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1 Paulo Eduardo Zanettini Paulo Fernando Bava de Camargo Fábrica Santa Marina: embalagem de vasilhames com palha, ca.1910-1920 (BRANDÃO 1996: 55) CACOS E MAIS CACOS DE VIDRO: O QUE FAZER COM ELES? 2 ÍNDICE 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 2 CARACTERÍSTICAS DO VIDRO 3 TECNOLOGIAS DE PRODUÇÃO: AS TÉCNICAS E SEUS TRAÇOS CARACTERÍSTICOS 3.1 Tecnologia Manual 3.1.1 Artefatos produzidos a partir de sopro humano sem o auxílio de moldes (Séculos XVI-XVIII) 3.1.2 Artefatos produzidos a partir de sopro humano com o auxílio de moldes (Séculos XVIII-XX) 3.1.3 Marcas de pontéis 3.1.4 Finalizando os vasilhames: gargalos 3.1.5 Marcas de moldes 3.1.6 Eliminando marcas de fabricação 3.1.7 Logomarcas de fabricantes ou produtos 3.1.8 Outras características 3.2 Tecnologia Mecânica 3.2.1 Prelúdio: máquinas compostas 3.2.2 Aspectos da produção semi-automática e automática 3.2.3 Traços de confecção presentes em garrafas e frascos: alguns problemas 3.2.4 Formas, cores e vedações: estandartização da produção 3.2.5 Comentários finais 4 REFERÊNCIAS PARA UMA HISTÓRIA DO VIDRO NO BRASIL 4.1 Primórdios 4.2 O vidro no Brasil a partir do século XIX 4.2.1 Primeiro Período (1808 – 1890/1900) 4.2.2 Segundo Período (1890/1900 – 1950) 5 DATAÇÃO DE RECIPIENTES DE VIDRO E ORIGEM 5.1 Análise química: exemplo de caso 5.1.1 Análise química evitando equívocos 5.2 Método prático para análise em laboratório 5.2.1 Procedimentos 5.3 Produção e deposição: chave de datação e processos intervenientes 6 ESTUDOS DE CASO 6.1 Ficha de análise e sua aplicação 6.2 Museu da Energia, Itu, SP 6.3 Um lixão da segunda metade do século XX. Salvamento Arqueológico do sítio Villa Branca (SP-JA-04), Jacareí, SP 6.3.1 Logomarcas de fabricantes 6.3.2 Logomarcas de produtos 3 6.4 Parque Estadual de Canudos, Bahia 7 BIBLIOGRAFIA 8 BIBLIOGRAFIA BÁSICA SOBRE VIDRO COMENTADA 9 ANEXOS 4 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Urgente: vidros O objetivo deste manual, lançado pela primeira vez em 1999, é oferecer à comunidade arqueológica uma modesta contribuição para a constituição de um quadro referencial de análise de artefatos de vidro resgatados de sítios histórico-arqueológicos no Brasil, estimulando a discussão e o aprofundamento do tema, tendo em vista a escassez de trabalhos do gênero no país. Porém, antes de respondermos à pergunta "o que fazer com eles?", torna-se necessário identificar os cacos de vidro, caracterizá-los com maior propriedade, datá-los, obter seu atestado de origem e assim por diante... A par dos diversos trabalhos dedicados às louças nestas duas últimas décadas, os vidros foram deixados de lado ou pouco explorados pelos arqueólogos brasileiros, replicando uma tendência observada na produção norte-americana, com a qual vimos mantendo um diálogo mais estreito. "Historical archaeologists seem fascinated with ceramics, sometimes to the exclusion of other important categories of artifacts. Bottle glass, for example, which lacks the visual and perhaps tactile appeal, provide us with data for studying chronology, function or both the individual artifact (such as a bottle to hold wine) and the group use of the object (such as social drinking), and trade networks" (BAUGHER-PERLIN 1988: 119). No decorrer da pesquisa, entretanto, tomamos conhecimento de outras iniciativas análogas, em especial as que estavam a cargo dos arqueólogos Luis Cláudio P. Symanski e Marcos André T. Souza, que prontamente nos remeteram artigos, até aquele momento inéditos, que continham informações de grande valiai. No nosso entender, essa simultaneidade de iniciativas isoladas deixava expressa a necessidade de se aprofundar a temática e, desde o primeiro lançamento de “Cacos e mais Cacos”, temos notado uma maior preocupação com o estudo dos artefatos de vidro. Por outro lado, todos os pesquisadores contatados foram consoantes e unânimes, concordando num aspecto: o tema teria que ser abordado no Congresso da SAB, em setembro daquele ano. 5 De lá para cá parece que os vidros arqueológicos vêm sendo tratados de forma mais consistente, oferecendo interpretações mais ricas sobre o nosso passado. Talvez agora, às vésperas de mais um encontro bi-anual da SAB fosse o momento de, novamente, arqueólogos de todo o Brasil trocarem experiências a respeito do tema. Um longo caminho a percorrer Vimos nos perguntando há algum tempo como explorar com maior propriedade o potencial oferecido por esta categoria de artefatos. Nos anos 1980, vimos-nos às voltas com o estudo de vasilhames abandonados pelas tropas do governo no palco de operações da Guerra de Canudos (1897), redigindo algumas impropriedades a respeito. Contávamos à época, em nosso laboratório em pleno sertão, apenas com as referências e classificações produzidas pelos pioneiros norte-americanos. Já no início da década de 1990, estimulados pela arqueóloga Tania Andrade Lima, demos mais alguns passos, debruçando-nos sobre a vidraria coletada à margem da Calçada de Lorena, na Serra do Mar. Infelizmente, por motivos de força maior tivemos que nos afastar por completo da Arqueologia, interrompendo a investigação. Passados alguns anos, de volta ao campo, sentimo-nos motivados a retomar o assunto, contando para essa tarefa com o auxílio e entusiasmo do então mestrando em Arqueologia Paulo Fernando Bava de Camargo. Assim, durante cerca de seis meses, navegamos pelo universo da produção vidreira, buscando referências que permitissem abrir as portas para o diálogo com garrafas, frascos, elementos construtivos (vidraças, por exemplo), resgatados em diversos novos contextos com os quais passamos a lidar. Quais traços presentes nas coleções de vidros recuperadas em solo brasileiro seriam capazes de nos informar acerca de sua fabricação, origem e função? De olho na produção analítica, almejávamos inicialmente "criar" uma chave de datação absoluta, à imagem daquela concebida por T. Stell Newman (1970) para garrafas norte-americanas produzidas a partir do século XIX. 6 Com o andamento da pesquisa percebemos que seria necessário ir mais adiante, para além da tradução ou transposição mecânica do conhecimento acumulado pelos norte- americanos durante os últimos 40 anos, aliás, hoje, de fácil acesso, reunido em sua mais significativa porção em CD-ROMs da Society for Historical Archaeology. Passamos, então, a indagar especialistas no Brasil e Exterior, efetuamos visitas a fábricas e ateliês de artistas vidreiros, adentramos nos sites das organizações de classe e colecionadores e recolhemos um grande volume de informações. A partir daí, repletos de novos dados, retornamos ao exame de exemplares de algumas coleções arqueológicasii. Concluído o artigo, percebemos que havíamos deixado muita coisa de fora, vendo-nos envolvidos na tradicional atmosfera de insatisfação. Embora essa sensação tenha sido parcialmente desvanecida pela aplicação dos parâmetros de análise sistematizados há seis anos, em diversos outros contextos arqueológicos, resta ainda muito a ser feito. Assim, forçosamente já demos início a próxima empreitada, dedicada à sistematização da produção vidreira européia, notadamente da portuguesa, da francesa e, obviamente, da brasileira. De Murano à Santa Marina Após a difusão dos segredos guardados a sete chaves na ilha de Murano, a técnica de produção de vidrosdifundiu-se por toda a Europa a partir da França, passando a conhecer sucessivas mudanças desde o seu estágio artesanal até a etapa de produção em escala industrial e automatizada, processo esse iniciado por volta de 1820, marco temporal adequado à França, Alemanha, Inglaterra e EUA, líderes em tecnologia vidreira. Nesses países, o consumo crescente assegurou uma veloz superação e substituição de tecnologia, deixando esses câmbios expressos na produção e nos registros arqueológicos. No Brasil, ao contrário do que ocorreu na América do Norte, onde o vidro passou a ser produzido na Virgínia, a partir de 1609, por exemplo, as primeiras tentativas frustradas se deram no início do século XIX, ganhando o parque manufatureiro de vidro alguma expressão apenas no final daquele século. A sua vez, já no século XX, a indústria 7 nacional se viu subordinada aos processos tecnológicos determinados por inputs gerados a partir das nações industrializadas. Por outro lado, a adoção de novas tecnologias não implicou, no caso da indústria vidreira brasileira, no abandono de técnicas mais rudimentares, tal qual se observa nos centros de maior dinamismo, sendo possível presenciar um convívio harmônico de processos de fabricação que nos remetem simultaneamente tanto às tecnologias desenvolvidas no decorrer do século XIX, como aos processos automatizados de produção. Basta observar as prateleiras de uma farmácia para divisarmos, lado-a-lado, frascos confeccionados a partir de moldes e processos manuais e semi-automáticos, até aqueles gerados pelas sofisticadas tecnologias industriais, hoje monopólio de algumas poucas multinacionais com a Saint Gobain, Corning, Pilkington e Guardian, dentre outras. Assim, ainda em 1999 observávamos a existência, no Estado de São Paulo, o mais industrializado do país, de pequenas manufaturas que sobreviviam produzindo utensílios com técnicas, processos de trabalho e equipamentos originalmente concebidos e desenvolvidos no século XIX. Por último, no decorrer da pesquisa constatamos que, dentre outras particularidades, via de regra impera o desinteresse e a despreocupação por parte dos fabricantes no trato e preservação da memória da indústria vidreira nacional: produtos, amostras, maquinários, registros de fábrica, salvo raras iniciativas, acabaram desaparecendo por completo, ou pior, foram submetidos ao sucateamento e sistematicamente destruídosiii. Quiçá resida aí a ausência de motivação para a construção de uma história brasileira do vidro, restando aos arqueólogos a tarefa de escrevê-la a partir de cacos e mais cacos... 2. CARACTERÍSTICAS DO VIDRO Em linhas gerais, o vidro é definido pela American Society for the Testing of Materials (ASTM) como "um material inorgânico formado pelo processo de fusão, que foi resfriado a uma condição rígida, sem cristalizar"iv. 8 Os ingredientes, fundidos sob calor extremo, podem ter em sua composição, praticamente todos os elementos básicos existentes na superfície da Terra. Com a combinação de 99 elementos, a indústria vidreira já desenvolveu mais de 50 mil fórmulas de produção de vidro. O vidro exige elementos vitrificantes, fundentes e estabilizantes. Atua como vitrificante a sílica, introduzida na forma de areia; como fundente, a soda ou potássio, em forma de sulfato ou carbonato e a cal, em forma de carbonato, é a responsável pela resistência maior aos ataques de água, estando estes componentes básicos presentes na composição dos vidros desde a Antigüidade como é possível observar na tabela a seguir. 9 Composição química do vidro ao longo da História (NF, 1981) Componentes/ Procedências Sílica Cal Potássio Soda Magnésio Óxido de ferro/ alumínio Outros Egito (XIIª. Dinastia) 68,3 4,9 2 20,2 1 3,2 0,4 Pompéia (79 DC) 69,4 7,3 - 17,2 - 3,7 2,4 Arábia (s. VIII DC) 68 2,6 23,4 - 0,9 4,2 0,9 Veneza (Idade Média) 68,6 11 6,9 8,1 2 1,5 1,9 Cristal Saint Gobain 72,1 12,2 - 15,7 3,8 - - Na atualidade o vidro conhecido como float glass, produzido em escala industrial, é resultante da seguinte composição, das quais cem partes de mistura geram 83 partes de vidro e dezessete partes de perda por volatilização, sendo 72% de sílica, 0,7% de alumina, 10,7% de cal, 2,6% de magnésio, 13,5% de soda e 0,5% de anidrido sulfuroso. O ser humano aprendeu a acrescentar a esta composição, quantidades variáveis de outros elementos que afetam sua cor final, processo adotado com maior intensidade na produção vidreira a partir do primeiro quartel do século XIX. A introdução de particulares compostos metálicos, soltos ou dispersos na massa ainda no estado coloidal, permite ao vidro uma capacidade de absorção seletiva da radiação luminosa, dando origem a cor. O óxido de cobre gera o rosa-violeta; o óxido de cobalto, o azul intenso; o ouro coloidal produz variantes de rosa a púrpura; o selênio e o cádmio matizes de vermelho a amarelo- alaranjado, e assim por diante. A fusão do vidro ocorre aos 1400/ 1600°C aproximadamente (o maquinário moderno opera em 1550°C). Após a fusão dos ingredientes, a massa é submetida ao resfriamento e quando chega aos 900°C adquire uma condição maleável, permitindo sua manipulação. A partir desse momento, artesãos munidos de seus instrumentos próprios (ponteios, tesouras, grampos, garras e moldes) aliam sensibilidade e técnica, dando forma às mais inusitadas peças e utensílios para o dia-a-dia há pelo menos 7 mil anos. Assim, vemos-nos diante de dois caminhos para a análise do vidro, a nosso ver, complementares, e não excludentes: de um lado, o aprofundamento do conhecimento tendo como matéria-prima o estudo quantitativo e qualitativo de composições químicas de 10 massas vítreas e suas nuances, "única forma segura de identificar e datar artefatos de vidro", tal qual defende o verrier Pierre Frisch; e de outro, o estudo dos traços derivados das diferentes técnicas de produção desenvolvidas ao longo do tempo, tema tratado a seguir. 3. TECNOLOGIAS DE PRODUÇÃO: AS TÉCNICAS E SEUS TRAÇOS CARACTERÍSTICOS Passemos agora à descrição de alguns processos e técnicas de fabricação de artefatos de vidro – sobretudo aqueles adotados para a produção de garrafas e frascos, os utensílios mais recorrentes nos sítios histórico-arqueológicos – bem como os respectivos traços de manufatura neles deixados. Note-se que as técnicas que deixaram suas marcas nos restos materiais, do ponto de vista cronológico estão mais bem adaptadas aos contextos da América do Norte e adjacências, uma vez que a sistematização do conhecimento arqueológico sobre o vidro no Novo Mundo decorre principalmente de pesquisas realizadas nessas regiões. Porém, sempre que possível, reportamo-nos a contextos arqueológicos brasileiros e técnicas vidreiras utilizadas aqui ou em países culturalmente muito próximos ao Brasil (França e Portugal). É importante lembrar que há grande disparidade entre a qualidade das fontes de informação, de forma que as técnicas usadas no Brasil, Portugal e França, ou não são contempladas pela literatura arqueológica norte-americana e inglesa, ou entram em conflito com a mesma, principalmente no quesito cronológico. De qualquer modo, o conhecimento arqueológico anglo-saxão deve servir de ponto de partida para que comecemos a analisar os vidros presentes nos sítios arqueológicos brasileiros e para que elaboremos parâmetros cada vez mais convenientes para estudar os restos materiais ligados às nossas condições sociais e culturais. 3.1. Tecnologia Manual 3.1.1. Artefatos produzidos a partir de sopro humanosem o auxílio de moldes (Séculos XVI-XVIII) 11 Raros e bastante fragmentados nos sítios histórico-arqueológicos originados a partir de assentamentos dos primeiros séculos, os restos vítreos nos fornecem escassas informações codificadas em diminutos cacos de coloração verde oliva, opacos e pouco translúcidos, muitas vezes apresentando uma superfície iridescentev. Também vimos essa situação de escassez de objetos de vidro se repetir, em um contexto bem diverso daquele presente em São Paulo dos primeiros séculos de conquista/ colonização, durante o reconhecimento arqueológico realizado nas imediações das ruínas da casa sede da sesmaria de Garcia D'Ávila (praia do Forte, Bahia), edificação originalmente erguida no século XVI e ocupada até meados do século XX (ECOPLAM e CEEC-UNEB 1998). Nos níveis mais antigos, ao lado de centenas de fragmentos de louça vidrada, faianças e porcelanas chinesas identificamos apenas um fragmento de vidro, possivelmente de um cálice. Obviamente, os cacos de vidro estão muito bem representados em estratos relativos em depósitos derivados da ocupação do Castelo em épocas posteriores. O mesmo padrão de ocorrência repetiu-se no refugo do convento carmelita de Massarandupió (BA), erguido durante o século XVII (ROBRAHN-GONZALEZ e ZANETTINI 1997). Em ambos os casos, borbotaram as louças as louças de vidrado à base de chumbo e as tradicionais faianças ibéricas decoradas com elementos estilísticos tomados da Chinavi. Ao que parece, tanto no ambiente bandeirantino rural, como no monacal e palaciano (os D'Ávila foram possuidores da maior sesmaria que já existiu no período colonial), os utensílios vítreos custaram algum tempo para ocupar lugar no interior das casas de morada e à mesa dos grandes senhorios. Os containeres de barro, de madeira e de ferro se adequavam melhor às longas travessias oceânicas, assegurando o transporte dos gêneros e víveres da metrópole aos primeiros colonizadores. Ao que tudo indica esse padrão de deposição só poderia ter se alterado em contextos arqueológicos relacionados às primeiras décadas do século XVII, quando os Estados da atual região Nordeste tiveram seu primeiro surto vidreiro, estimulado pelas práticas adotadas durante o domínio holandês. Embora haja grande número de escavações de sítios relacionados a esse período – forte das Cinco Pontas, PE (MELLO NETO 1983); forte Real do Bom Jesus, PE (ALBUQUERQUE e LUCENA 1997, com referências 12 anteriores); aldeamento de Vila Flor, RN (MARTIN 1988; ALBUQUERQUE, 1991) – neles não houve o interesse específico em se esmiuçar as questões relacionadas à produção e consumo de utensílios de vidro nessa época. Os artefatos desse período eram confeccionados a partir do sopro humano, sem o auxílio de moldes, podendo ou não apresentar marcas de pontel, uma vez que estas podem ter sido suprimidas, ou com fogo, ou com polimento (Figura 1). Figura 1 – Banco de vidreiro (França, século XX). Abaixo, vidreiro finaliza garrafa (ilustração de 1772) (HIER, 1980: 43). Diante do exposto, temos muito pouco a acrescentar sobre vasilhames e utensílios de mesa trazidos do além-mar ou eventualmente fabricados colônia, permanecendo no aguardo da publicação dos resultados das pesquisas de sítios quinhentistas e seiscentistas ora em curso em todo o litoral do Nordeste. Outros objetos existentes nos sítios formados nos primeiros anos da conquista/ colonização são as miçangas de vidro. Tanto nas narrativas históricas, quanto na 13 distribuição desses artefatos nos sítios arqueológicos é possível perceber o impacto inicial causado pelos pequenos objetos de vidro trazidos na bagagem dos colonizadores a partir de 1500, e que foram utilizados como "moeda", instrumento de barganha, e acabaram por se transformar em testemunhos cabais e indicadores seguros dos processos de contato interétnico entre o europeu e o indígena. 3.1.2. Artefatos produzidos a partir de sopro humano com o auxílio de moldes (Séculos XVIII-XX) Apesar de encontrarmos objetos de vidro produzidos a partir do sopro humano da massa vítrea, sem o auxílio de moldes, em sítios datados de desde os primórdios do Descobrimento (alguns raros cacos atribuíveis a garrafões, copos, pés de taças, contas, etc.), eles se tornam sensivelmente mais freqüentes em contextos arqueológicos originados por ocupações de fins do século XVII em diante, em grande parte pelos incrementos das fundições metalúrgicas inglesas, que indiretamente derivaram no desenvolvimento de fornos mais eficientes para a produção de porcelana e de vidro. Um outro fator a ser estudado é a criação da fábrica do Covo, no Porto (1690), a qual ainda estava em produção no início do século XX (PROSTES 1908: 5). Mas a freqüência de objetos de vidro só se torna um padrão arqueológico significativo quando vemos entrar em cena, no decorrer do século XVIII, talvez um pouco antes, os artefatos europeus soprados e finalizados em formas ou moldes. Esses artefatos, os quais passaram a ser trazidos em maiores quantidades ao Brasil, eram produzidos de acordo com o seguinte processo: 1) A massa vítrea, com o auxílio de um tubo ou cana (esta última, denominação mais usual), era soprada, gerando um bulbo que era submetido a uma pré-modelagem por meio da rotação do mesmo sobre uma prancha, ganhando uma forma preliminar (parison). Este era então introduzido em um molde e novamente soprado, assegurando um aspecto mais regular ao corpo ou ao recipiente inteiro. Esses moldes poderiam ser inteiriços ou constituídos por duas ou três partes e os materiais mais comuns para sua elaboração eram o metal, a madeira revestida com cortiça e a cerâmica refratária. 14 2) A operação seguinte consistia na retirada do recipiente, ainda fixado à cana de soprar, de dentro do molde, passando-se ao reforço da base por meio de pressão aplicada com um molete de ferro ou outro material. Produzia-se então o chamado fond piqué, ou fundo picado, traço característico até hoje nos vasilhames industriais automáticos de várias marcas de vinhos, sobretudo de vinhos espumantes, havendo inúmeras discussões sobre a real finalidade dessa operação (ver, por exemplo, JONES 1971). 3) Feito o reforço da base, procedia-se à operação de estruturação da boca ou gargalo do recipiente através da aplicação de um reforço de vidro, semelhante a uma tira. Para tal operação, o recipiente precisava ser sustentado por um pontel fixado à base. Quais são as marcas derivadas dessas operações? Os primeiros estudos norte-americanos dedicados a essa questão datam da década de 1960 e início dos anos 70, tais como o The Glass Wine Bottle in Colonial America (1961) e o já clássico A Guide to Artifacts of Colonial America (1986 [1970]), ambos de Ivor N. Hume. Não menos importantes são os artigos do periódico Historical Archaeology de autoria de Dessamae Lorrain (1968) e Olive Jones (1971). Esses autores se dedicaram longamente à análise dos traços derivados do processo de fabricação sumariamente descrito, identificando e criando tipologias para as marcas deixadas pela operação de reforço da base (push-ups) e para a sustentação dos recipientes pelos pontéis (pontil-marks), além dos sinais deixados pelos moldes, estabelecendo datas para o início e término do uso de cada técnica na cadeia produtiva. Por sua vez, o mercado norte-americano de vidros antigos impulsionou, a partir dos anos 1980, um grande aprofundamento do tema. Como resultado, temos hoje inúmeras organizações, publicações temáticas, manuais, sites de intercambio de informações e de negócios. Também no Brasil vimos surgir,mais recentemente, um ativo mercado de vidros antigos. Há que se destacar que nem sempre essas atividades estão associadas à legalidade e à preservação dos bens culturais, entretanto, é dever do arqueólogo não fechar os olhos a essas práticas, mas propor alternativas que garantam o cumprimento das leis e a satisfação desse questionável fetiche colecionista. 15 3.1.3. Marcas de pontéis Conforme mencionado, artífices da Europa e América do Norte munidos de pontéis afixados aos vasilhames podiam realizar a finalização e reforço dos gargalos. Ao término dessa operação, a garrafa era liberada do pontel, restando no fundo do recipiente traços da incisão/ colagem do instrumento, derivados aos resíduos do ponto de contato do mesmo com o recipiente. Esses bastões, de acordo com os estudos citados anteriormente, podiam ser feitos, ou com madeira, ou com vidro, ou com metal, sendo estes últimos os que possivelmente legaram as marcas mais recorrentes nas bases de garrafas encontradas em todo o território brasileiro (Figura 2). Figura 2 – Acima, ilustração com diversos tipos de pontel: em vidro; com areia, a própria cana e, por último, o pontel de ferro (JONES 1971: 69). A técnica do pontel entra em declínio nos EUA a partir de 1850/60 com a introdução de um novo instrumento para sustentação do recipiente: o snap-case, garra de fixação que envolvia o corpo do objeto, permitindo a finalização dele. Com a introdução e difusão dessa ferramenta, o fundo das garrafas se viu liberto da ação e efeitos dos pontéis, cedendo paulatinamente espaço para a inserção de inscrições (capacidade, nome da fábrica ou ateliê, etc.). No caso da produção norte-americana, o abandono do pontel é 16 concomitante ao final da Guerra de Secessão (1860-1865), uma provável conseqüência das mudanças ocorridas na indústria voltada para o esforço de guerravii (Figura 3). (Figura 3 – Snap-case ou garra de fixação, ferramenta introduzida no final da década de 1850 nos EUA (MENDES e RODRIGUES 1992: 142). 3.1.4. Finalizando os vasilhames: gargalos Outro traço bastante evidente, decorrente do processo manual de fabrico em molde é a adoção de reforço da boca da garrafa, envolvendo a aplicação a posteriori de uma pequena parcela de vidro (tira) ao redor do gargalo, garantindo o fortalecimento dessa parte do artefato para receber, ou rolhas de cortiça, ou couro, ou pano, estes dois últimos, embebidos em parafina. A partir de 1860 alguns recipientes passaram a ter seus gargalos feitos à parte, sendo posteriormente colados ao corpo, numa das primeiras tentativas de estabelecer uma proto “linha de montagem” (Figura 4). 17 (Figura 4 – Gargalos com tiras de reforço, oriundos de garrafas produzidas em molde inteiriço (ZANETTINI 1998: 129). Entre 1830/40 surgem diversos tipos de ferramentas que possibilitam um melhor acabamento dos gargalos (POLAK 1997: 20-21). Ao invés das bocas receberem toscas tiras de vidro como reforço, a partir desse momento uma segunda camada de vidro passa a ser aplicada nelas, as quais são torneadas com ferramentas conhecidas como ferros de tornear ou marisar até adquirirem formatos parecidos com os que vemos hoje. Há manuais da indústria vidreira que não mencionam a aplicação de uma segunda camada de vidro à boca da garrafa a ser torneada (PROSTES 1908: 31). Esse tipo de acabamento continua em voga até o término da produção manual (Figura 5a e b). Figura 5a e b – Acima, dois tipos distintos de alicates ou ferros de marisar (a, PROSTES 1908: 31) (b, POLAK 1997: 221). Os gargalos torneados com ferros de marisar apresentam traços horizontais ao longo de suas superfície – tal como os sulcos dos antigos discos de vinil – decorrentes do contato 18 do metal frio da ferramenta com o vidro quente. Uma outra marca característica desse tipo de gargalo, mas que nem sempre é perceptível, é um sulco no interior do mesmo, bem na área final de contato da ferramenta com o pescoço do recipiente, talvez decorrente de alguns tipos de alicates de marisar que produziam gargalos mais elaborados. Finalmente, os gargalos produzidos em separado dos recipientes legaram duas marcas paralelas, bem nas áreas de colagem deles com os pescoços. Essas marcas, entretanto, não são muito comuns de serem encontradas nos objetos exumados dos contextos arqueológicos brasileiros, o que nos leva a crer que esse tipo de técnica não foi muito comum na produção destinada ou originada no Brasil. 3.1.5. Marcas de moldes A delimitação temporal do uso de moldes é bastante complexa, levando os autores especializados a entrar em conflito. Segundo Lorrain (1968), o molde inteiriço ou único teria sido largamente usado entre 1790 e 1810. Os outros dois tipos – molde duplo ou bifásico e molde triplo ou trifásico – teriam surgido por volta de 1810, sendo utilizados concomitantemente até 1840/50, quando o trifásico cai em desuso. Já o bifásico teria permanecido em uso até o fim da produção manual. Sherene Baugher-Perlin (1988) por sua vez coloca que os moldes inteiriços teriam sido utilizados desde fins do século XVII até meados do século XIX; os duplos, de 1750 até 1880; e os triplos, de 1820 até 1860/ 70. Essa periodização nos parece mais adequada para analisar o caso brasileiro, tal como pudemos constatar na Calçada do Lorena. É desse extenso sítio paulista que provém o exemplar apresentado na figura 6. Através de análise química de sua composição, a Frish Verrier apresentou um laudo (1993) atestando que aquele fragmento é de uma garrafa produzida na França, no último quartel do século XIX (ZANETTINI 1998), datação mais próxima à periodização proposta por Baugher-Perlin (Figura 6). 19 Figura 6 – Fundos de garrafas contendo marcas de pontel. Um dos exemplares permitiu a reconstituição da garrafa original (ZANETTINI 1998: 133). Os moldes inteiriços – que poderiam ser apenas cilindros ou prismas com ambas ou apenas uma das extremidades abertas – praticamente não deixavam marcas nos objetos, gerando dúvidas com relação à sua identificação, uma vez que se assemelham àqueles artefatos elaborados livremente, sem molde. A única marca que poderia persistir é aquela decorrente do preenchimento total do molde. Nesse caso uma linha horizontal é distinguível por todo o diâmetro da junção do corpo com os ombros (BAUGUER-PERLIN 1988: 262). Essa marca também é encontrada nas garrafas feitas com moldes trifásicos (Figura 7a e b). Figura 7a – Exemplo de marcas deixadas por molde inteiriço (BAUGUER-PERLIN 1988). 20 Figura 7b – Vidreiro soprando garrafa em molde único de madeira (PROSTES 1908: 29). Já os moldes triplos – que nada mais são do que a articulação de um molde inteiriço com dois moldes longitudinais para os ombros e o pescoço – apresentam as marcas acima descritas, além de dois riscos verticais, opostos, que partem da divisa do corpo com os ombros chegando quase até o fim do gargalo, decorrentes justamente da união das partes do molde que formam o topo da garrafa (LORRAIN, 1968; BAUGHER-PERLIN, 1988; POLAK, 1997) (Figura 8a e b). 21 Figura 8a – Exemplo de marcas deixadas por molde triplo (BAUGUER-PERLIN 1988). Figura 8b – Corte longitudinal em molde triplo unido por charneiras (PROSTES 1908: 31). Uma característica comum aos artefatos confeccionados ou pelo molde inteiriço, ou pelo molde triplo é que o diâmetro da base tende a ser menor que o diâmetro da interface entre o corpo e os ombros dos recipientes. Segundo Appert e Henrivaux (1894) esse aumento progressivo do diâmetrofacilitava a retirada da garrafa do molde. Outra característica em comum entre os artefatos feitos com esses tipos de moldes é a presença, por vezes, de linhas espiraladas ao longo dos corpos dos mesmos. Embora ainda sejam necessárias mais observações a respeito desse tipo de marca, deduz-se que elas são provenientes de movimentos usados para tirar os recipientes de dentro dos moldes, os quais são resultantes de um movimento de rotação associado a um movimento de extração. Sem querer dar muitos nomes a coisas que, de tão corriqueiras para os vidreiros, eram banais para serem por eles nomeadas, podemos chamar esses traços de vestígios de extração com rotação. Pode estar aí uma das chaves para diferenciar melhor, por exemplo, os artefatos feitos sem moldes dos feitos com moldes inteiriços ou triplos, uma vez que as marcas entre uns e outros podem ser muito tênues. Existe uma característica que pode às vezes sanar dúvidas quanto à técnica que se utilizou na confecção de um artefato. Em alguns casos, quando temos muitos fragmentos dos corpos de vasilhames e nenhuma base ou gargalo, não conseguimos estabelecer se eles são provenientes de peças feitas com moldes inteiriços ou triplos ou se elas foram elaboradas sem molde algum. Se dentre esses fragmentos houver alguns que têm a aparência de “metal martelado”, então estes, apesar de não apresentarem os traços característicos legados pelas junções dos moldes, foram fabricados com moldes que estavam frios e foi essa particularidade que legou essa aparência (FRANK 1982). Isso nem sempre ajuda, pois o objeto elaborado em seguida ao nosso objeto-exemplo 22 certamente não apresentaria essas características, porque o molde já estaria aquecido, mas essa é uma dica que pode pelo menos apontar ao arqueólogo em qual direção seguir (contexto da primeira ou da segunda metade do século XIX?, por exemplo). Apesar de serem conhecidos desde meados do século XVIII, foi só em 1814 (patente de 1822) que a Ricketts Company, de Bristol, Inglaterra, atendendo à demanda do mercado de bebidas alcoólicas como vinhos, cervejas, cidras, etc., conseguiu produzir um molde duplo eficiente (LORRAIN 1968). Esse molde eliminou a fase de elaboração manual da base da garrafa, o fond piqué ou push-up, pois o fundo já saia do mesmo com a forma final. O processo desenvolvido por Henry Rickett também contribuiu para o aprimoramento da produção de garrafas nos aspectos relacionados à estabilidade, simetria e padronização de dimensões e medidas. Os moldes duplos, grosso modo imprimem duas linhas verticais opostas, que correm da base em direção ao gargalo do recipiente. Uma terceira linha marca a base do recipiente diametralmente, unindo as demais. Posteriormente essa última linha deixa de existir, porque os fabricantes passam a usar uma terceira parte nos moldes de duas partes (o que soa como contra-senso): um disco para formar a base dos recipientes (BAUGHER- PERLIN 1988: 262-264). Com o passar do tempo e conseqüente incremento técnico, as marcas verticais passam a cada vez mais se aproximar do gargalo dos recipientes, fato que indica que os fabricantes conseguiam produzir moldes cada vez mais bem ajustados, possibilitando modelar uma maior porcentagem do recipiente, progressivamente dispensando as finalizações feitas à mão livre (POLAK 1997: 20) (Figura 9a e b). Figura 9a – Exemplo de marcas deixadas por molde duplo (BAUGUER-PERLIN 1988). 23 Figura 9b – Seqüência do avanço das marcas deixadas em recipientes feitos com moldes duplos ao longo do tempo (válida para a produção dos EUA) (POLAK 1997: 20). Finalizando este tópico, nunca podemos deixar de ter em mente que o conhecimento arqueológico está sempre em construção. Como conseqüência, essas considerações sobre cronologia do uso dos moldes também ficam sujeitas às análises dos diversos contextos arqueológicos que têm sido localizados e estudados nos últimos anos, principalmente com o incrível avanço da arqueologia de contrato. Com isso queremos dizer que não podemos nos aferrar tanto às cronologias estrangeiras – elas são apenas o ponto de partida. Isso ficou bastante claro quando nos deparamos com uma grande quantidade de fragmentos de vasilhames elaborados com moldes trifásicos em sítios arqueológicos brasileiros das últimas décadas do século XIX ou início do século XX. Como veremos adiante, esse tipo de molde foi usado em máquinas compostas acionadas manualmente, as quais foram construídas durante os anos de transição do trabalho manual para o semi- automático (APPERT e HENRIVAUX, 1894). Entretanto, a existência delas jamais é citada em estudos dos países de língua inglesa. 3.1.6. Eliminando marcas de fabricação Conforme já mencionado para objetos de vidro produzidos a partir do sopro humano livre, vale aqui ressaltar que alguns vidreiros recorriam, por vezes, a processos de polimento a fogo, a fim de extrair as indiscretas marcas deixadas pelos moldes e pelo processo de fabricação. Esse procedimento ainda é bastante usual no caso dos cristais (tipo de vidro que contém uma maior quantidade de chumbo em sua composição), que são melhor 24 acabados, não raro trazem a assinatura do verrier ou da fábrica e, consequentemente, de valor substancialmente superior, destinado às classes mais afortunadas. Na década de 1840 são desenvolvidas, no hemisfério norte anglo-saxão, técnicas que permitem a eliminação das marcas indesejadas resultantes do contato da massa do vidro quente com os moldes frios. Estes eram esquentados antes de receber a massa e/ ou recebiam uma camada de cortiça que se queimava e dava tempo do molde esquentarviii. No entanto, de acordo com os contextos arqueológicos brasileiros, esse padrão de excelência parece que não foi sistematicamente aplicado na produção ordinária. Aliás, no caso da produção de alguns tipos de recipientes, os que demandavam um rápido resfriamento para formar uma têmpera forte, era mesmo necessário que o molde estivesse frio (PROSTES 1908: 58). Para os recipientes comuns, principalmente garrafas de bebidas alcoólicas, Evinson patenteia, em 1879, um método para eliminar as marcas deixadas pelos moldes. Bastava untar as faces internas deles com uma pasta especial que diminuía o atrito dos objetos com as paredes metálicas dos moldes e, terminada a insuflação, rodavam-se os recipientes ainda dentro das respectivas formas, fazendo com que as marcas sumissem (POLAK 1997: 12). Entretanto, algumas linhas horizontais intermitentes podem se formar no corpo do vasilhame (BAUGHER-PERLIN 1988: 264). Também concorrem para a eliminação de marcas de moldes processos de abrasão, sendo comum encontrarmos outros continentes, tais como copos, produzidos no decorrer do século XIX, submetidos a polimentos da base a frio. Esse processo é hoje utilizado para reparos e para a extração de riscos em vidros planos, ou vidros do tipo cristal, fabricados manualmente. 3.1.7. Logomarcas de fabricantes ou produtos Recipientes feitos manualmente até 1850/60 não costumam conter logomarcas, pois foi só com a difusão da garra de fixação (snap-case) que as superfícies externas das bases ficaram sistematicamente livres das marcas dos pontéis sem a necessidade de uma outra etapa – polimento – ser incluída no processo produtivo. Novamente fomos buscar um exemplo na Calçada do Lorena, o qual não contém sinais de pontel mas apresenta 25 iniciais gravadas, possivelmente indicando ou o vidreiro, ou manufatura (ZANETTINI 1998) (Figura 10). Figura 10 – Base de garrafa cilíndrica, elaborada com tecnologia manual, onde estão impressas as iniciais“PF”. Calçada do Lorena, São Paulo (ZANETTINI 1998: 134). Mas para toda a regra, há pelo menos uma exceção. Permitimos-nos estabelecer a hipótese de que as incisões ou marcas em relevo – desenhos mais ou menos regulares do tipo quadrifólio – situadas sob a marca deixada pela extração do pontel e que estão quase sempre presentes nas garrafas de molde único tipo case bottles (JONES 1971), tratar-se-iam, de fato, de logomarcas do vidreiro ou fabricante. A literatura arqueológica atribui essa marca a qual nos referimos à operação de push-up mas, para realiza-la, tendo-se em mente as etapas de produção ainda hoje seguidas pelos artesãos, não seria necessário um outro instrumento: o próprio pontel, invaginando a base, serviria para o push up. Portanto, a marca quadrifólia poderia muito bem ser uma assinatura. Ao que parece esse sinal descrito poderá contribuir para a identificação de garrafas bastante comuns em solo brasileiro. Foram identificados exemplares desse tipo: no Rio Grande, RSix; na fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, em Guarujá, SPx; na já citada Calçada do Lorena; e foram achados dois exemplares de bases durante vistoria que efetuamos à convite do IPHAN para a demarcação e tombamento do arraial de São Francisco Xavier da Chapada (MT), erguido no primeiro quartel do século XVIII (ZANETTINI 1991) (Figura 11). 26 Figura 11 – Base de garrafa, coletada em superfície, no arraial de São Francisco Xavier da Chapada. O artefato foi recolhido por um dos autores durante a demarcação desse sítio histórico-arqueológico. Outro grande marco para o aparecimento das logomarcas, bem como da inclusão das assinaturas ou das referências dos produtos contidos nos vasilhames é a difusão do uso dos moldes, os quais podiam gravar elaboradas inscrições em milhares e milhares de peças. Para a identificação de logomarcas de fabricação contamos com o Glasmarken Lexicon, de Carolus Hartmann, publicado pela Arnoldsche Art Publishers. O catálogo exibe 3000 logomarcas e nomes comerciais da Europa e dos EUA, abrangendo a produção vidreira entre 1600 e 1945. Curiosamente, a Calçada do Lorena nos legou um isolador de vidro para linha de transmissão elétrica cuja marca não estava contemplada no Lexicon. Esse fato foi comunicado pelo engenheiro Pierre Frisch aos editores do catálogo para que eles o incluíssem numa próxima edição. 3.1.8. Outras características Em linhas gerais, garrafas elaboradas com sopro humano apresentam bases contendo grandes quantidades de vidro (pesadas, se comparadas aos produtos mais recentes); formatos irregulares e dissimétricos em relação ao seu eixo longitudinal. As raras garrafas inteiras encontradas, quando postas em pé deixam evidentes os efeitos da interferência humana direta na sua elaboração. No decorrer dos anos, outras técnicas de reforço da 27 base foram introduzidas passando a oferecer maior estabilidade aos recipientes, notadamente às garrafas (Figuras 12 a, b e c). Figuras 12 a e b – Bases de garrafas cilíndricas encontradas na Calçada do Lorena, apresentando fond piqué (ZANETTINI 1998: 141). Figura 12 c – Esquema de elaboração do fond piqué com o próprio pontel (PROSTES 1908: 31). Outro traço característico observável em garrafas produzidas e utilizadas no decorrer dos primeiros séculos de nossa colonização é a "coloração" natural que exibem, predominando recipientes em tons e matizes diversos de verde ou âmbar, mais ou menos translúcidos, decorrentes de impurezas presentes na composição das areias empregadas (ver adiante). 28 Com base nesses atributos derivados da técnica de confecção, é possível identificar com relativa facilidade garrafas produzidas no exterior e postas à venda nos mercados coloniais a partir do século XVIII. No caso norte-americano, após quatro décadas de exaustivos estudos sobre os push- ups, pontil-marks, marcas de moldes e sobre a tipologia das formas finais dos vasilhames, aos arqueólogos foi possível passar a explorar todo o potencial desses artefatos dentro das mais diversas abordagens teóricas. Entretanto, mais uma vez ressaltamos que as datas atribuídas para câmbios tecnológicos materializados nos artefatos manuais, precisamente conhecidas no caso das vidrarias norte-americanas ou inglesas, não podem ser aplicadas mecanicamente ao caso brasileiro. 3.2. Tecnologia Mecânica 3.2.1. Prelúdio: máquinas compostas No final do século XIX, na transição entre a produção industrial manual para a semi- automação, uma série de mecanismos, já adotados há algum tempo naquela ocasião, foram unidos e articulados em máquinas compostas, formando um capítulo bastante interessante da história vidreira, mas pouco abordado pela literatura arqueológica ou pelos historiadores do vidro. Um exemplo desse tipo de máquina foi citado acima, a máquina descrita por Appert e Henrivaux em fins do século XIX e que será apresentada mais adiante. Entretanto, ao que tudo indica máquinas compostas existiram em praticamente todos os países e não eram coisas extraordinárias nas vidrarias (PROSTES 1908: 31-32). Elas eram a resposta para aumentar a produção e garantir o espaço dessas indústrias num mundo que ficava extremamente competitivo. Essas máquinas diminuíam a quantidade de mão-de-obra necessária no processo, mas ainda não possibilitavam o uso de operários não- especializados, pois a fabricação continuava dependendo muito do saber fazer do vidreiro. 29 O reflexo material disso é a sobrevida de marcas, tais como as deixadas pelos moldes trifásicos, oriundas de técnicas que já não estavam mais em uso nos EUA ou Inglaterra, em objetos produzidos na França, Espanha, Portugal, Argentina e Brasil, dentre outros. O significado disso transcende a discussão que muitas vezes toma conta dos manuais de arqueologia: o avanço tecnológico e a evolução das técnicas numa seqüência normal e ascendente. Ora, o que está em jogo na análise de contextos arqueológicos tais como os brasileiros, são as relações sociais e as afinidades culturais. Apesar dos norte- americanos e ingleses saírem à frente na produção semi-automática e automática, o que está expresso nos sítios arqueológicos do Brasil são o consumo de cerveja nacional e vinhos portugueses e franceses envasados em recipientes feitos nos países que produziram os respectivos conteúdos. A presença norte-americana só será sentida com mais força após a Segunda Guerra Mundial; até lá estaremos muito mais ligados à França que, para compensar sua relativa defasagem tecnológica, exportava eficientemente padrões culturais “de ponta”. 3.2.2. Aspectos da produção semi-automática e automática É no decorrer do século XIX que observamos a transição do modo de produção artesanal para o industrial. A partir daí, mas, principalmente, nas últimas décadas do século XIX, que se impõem as produções semi-automáticas e automáticas, começando por EUA e Inglaterra, depois se espalhando pelo mundo aforaxi. Tanto a produção semi-automática quanto a automática partem do mesmo pressuposto: ao contrário da produção manual, a parte feita no final, o gargalo, passa a ser feita em primeiro lugar. Assim, a produção altamente mecanizada segue três passos (Figura 13). Figura 13 – Esquematização de produção automatizada (MILLER e SULLIVAN 1984). 30 1) A massa vítrea é despejada no molde do gargalo e do parison, sendo a partir daí moldada, ou pela pressão do ar, ou pela sucção, ou pela pressão de êmbolo (press blow), dando forma final ao gargalo e ao parison. O parison tem a função de distribuir a massa paraque ela comece a apresentar sua forma final: no caso de uma garrafa, o parison alonga a massa dando-lhe formato levemente cilíndrico (Figura 14); 2) Ainda com o molde do gargalo fixo no mesmo, o molde do parison é removido (Figura 15); 3) O molde final junta-se ao molde do gargalo em torno do parison e então a garrafa é soprada, pela pressão do ar, até atingir seu formato definitivo. É a partir do molde final que são aplicadas as inscrições e elementos decorativos/ estilísticos que dão identidades exigidas por um novo contexto de mercado a cada vasilhame/ conteúdo (Figura 16). A grande diferença das semi-automáticas para as automáticas é que as primeiras necessitavam que trabalhadores semi-especializados as alimentassem com a massa derretida de vidro e as colocassem em movimento. As automáticas Owens, por exemplo, eram construídas sobre os tanques de derretimento da massa e possuíam mecanismos que dispensavam a alimentação manual, necessitando de pouco pessoal para seu manuseio e manutenção. Cada máquina semi-automática precisava de uma equipe de três operários. 31 As primeiras máquinas semi-automáticas apareceram na década de 80 do século XIX. Esse processo se iniciou com a patente da máquina semi-automática do norte-americano Philip Arbogast, em 1881, mas que só começou a ter participação significativa na elaboração de potes a partir de 1893. Quase na mesma época (1886), no Reino Unido, Howard Ashley também desenvolvia uma máquina semi-automática para produzir garrafas que, no entanto, só passou a ter expressiva parcela da produção a partir de 1899 (MILLER e SULLIVAN 1984: 85). Mesmo com o aparecimento das automáticas Owens (patenteadas em 1903; início de produção em 1904), as semi-automáticas permaneceram em uso porque: 1) A concessão de uso das máquinas Owens era muito cara; 2) As automáticas Owens só eram rentáveis produzindo grandes quantidades, sendo que elas foram criadas em uma época em que as pequenas encomendas de milhares de 32 pequenos comerciantes, cada qual necessitando de um tipo diferente de recipiente, movimentavam boa parte da indústria vidreira; 3) A última razão é que a demanda era tal que para atender ao mercado que ambas as formas de produção tiveram espaço por um certo período de tempo. Após 1904 e até a primeira metade da década de 1920, o sistema de automação completa passa a dominar nos países de ponta na produção vidreira. Os custos elevados das máquinas Owens inviabilizavam para grande parte das manufaturas a sua aquisição. Uma das soluções encontradas foi a de “automatizar” as máquinas semi-automáticas com um sistema de alimentadores automáticos (feeders), os quais transportavam a massa derretida até as máquinas sem a ajuda de operários. A partir de 1915 vemos surgir diversos desses sistemas, apesar deles serem conhecidos desde 1903. Entretanto, é só a partir da década de 1920 que eles começam a ocupar espaço no mercado, superando, inclusive, as revolucionárias máquinas Owens. É inclusive com o desenvolvimento dos alimentadores automáticos que começam a ser produzidas máquinas automáticas mais simples, com menor capacidade de produção e menor custo de fabricação. O desenvolvimento dos feeders foi tão importante para a indústria vidreira que, de acordo com estimativas de especialistas do ramo, no início dos anos 1970 mais de 90% da produção mundial de recipientes de vidro havia adotado essa inovação. Outra invenção voltada para o campo dos alimentadores, e que procurou solucionar os problemas da recém-criada automação, foi o desenvolvimento de um tipo de máquina com muitos moldes que não necessitava ser totalmente parada para que fossem trocados um ou alguns moldes. É no ano de 1925, que Henry Ingle, da Hartford Empire Company, desenvolve as máquinas I. S. (Individual Section). Nessa máquina cada seção (que era constituída por maquinismos que desenvolviam as três fases da produção) podia ser parada individualmente, sem prejudicar o funcionamento das outras. Essas máquinas tiveram imenso sucesso, sendo vendidas para todo o mundo: a máquina Monish, da empresa inglesa de mesmo nome, foi adotada em Portugal e a norte-americana Lynch foi adquirida por empresas brasileiras tais como a Santa Marina. Essas máquinas mais eficientes e mais baratas acabaram por tornar a produção automatizada predominante, mesmo em países periféricos. 33 3.2.3. Traços de confecção presentes em garrafas e frascos: alguns problemas Apesar dos equipamentos semi-automáticos e automáticos serem bastante distintos entre si, sobretudo do ponto de vista da divisão do trabalho e, consequentemente, do incremento que a segunda obteve em relação à primeira no tocante à capacidade de produção X custos de produção, não há marcas diferenciadas entre os objetos feitos por uma ou outra técnica. Recipientes feitos por qualquer um dos processos possuem: 1 e 2) Uma ou duas marcas horizontais que contornam a junção do gargalo com o pescoço, resultante(s) do molde específico para o mesmo. Para garrafas de bebidas, tais como as de cerveja, essa marca pode ter sido eliminada pelo polimento a fogo. É importante ressaltar que essa marca, isoladamente, não indica que o recipiente tenha sido fabricado por qualquer uma das técnicas em questão: uma patente de 1860 deixa clara a presença dessa marca em artefatos feitos manualmente, mas que tiveram os gargalos feitos em um molde separado e depois colado ao pescoço do vasilhame. 3 e 4) Marcas verticais que percorrem o corpo da garrafa do gargalo até quase a base, resultantes da união do molde duplo final. Podem existir marcas verticais pouco definidas, paralelas às deixadas pelo molde final, decorrentes das partes do molde do parison; 5) E, por último, uma marca de confecção horizontal, um pouco acima da base, resultante da união do molde duplo do corpo a forma que define a da base (lembrem-se do contra senso!) (Figura 17). 34 Figura 17 – Marcas deixadas pelos processos semi-automático e automático em uma garrafa (MILLER e SULLIVAN 1984). De uma maneira geral os recipientes – íntegros e/ ou com inscrições – feitos por um ou outro processo só podem ser diferenciados através de catálogos de colecionadores ou documentação primária obtida junto aos fabricantes. Porém, existem alguns sinais passíveis de detecção no caso das máquinas automáticas, tais como as marcas características deixadas pela máquina Owens, por exemplo: uma cicatriz de formato circular, não alinhada com o centro da base, deixada pelas lâminas que cortam a massa vítrea incandescente quando o molde já está cheio. A outra marca típica dos recipientes feitos automaticamente é derivada do funcionamento de uma válvula: um polígono polifacetado, pouco regular, que quase pode ser confundido com uma circunferência, encontrado na superfície externa de bases de alguns tipos de potes e garrafas de leite datados entre as décadas de 1930 e 1950. 35 Finalmente, contamos no caso brasileiro com uma mudança tecnológica recente que elimina uma tênue marca deixada no corpo das garrafas produzidas automaticamente, gerando uma perturbação na superfície dos recipientes denominada pressed-band plow. A tecnologia Nero-Neck foi recentemente adquirida pela CIV e também adotada pela Saint Gobain e CISPER. Esse avanço, ainda não contemplado pela literatura arqueológica, oferece-nos desde já uma marcação para a diferenciação de garrafas automáticas feitas antes e depois do final da década de 1990. Assim, quem sabe, num futuro próximo, as chamadas “áreas perturbadas por acúmulo de entulho” poderãoser melhor situadas no tempo... Figura 18 – Tinteiro, frasco e garrafas encontradas em assentamentos de populações tradicionais litorâneas em Sauípe, BA (ROBRAHN-GONZÁLEZ e ZANETTINI 1997). 3.2.4. Formas, cores e vedações: estandartização da produção No final do século XIX, no que tange a diversidade de formas, cores e vedações, o quadro delineado era o seguinte: qualquer negociante que desejasse possuir o seu 36 recipiente com formato exclusivo, mesmo que em pequenas quantidades, poderia obtê-lo. Contava também com várias alternativas de vedação para os recipientes, mas não dispunha de uma grande gama de cores, uma vez que as vidrarias dependiam muito de circunstâncias naturais – areias com maior ou menor grau de impurezas – ou do acréscimo de minerais pouco estáveis, tais como o magnésioxii. A produção obtida com tecnologia manual era flexível o bastante para acomodar os desejos de diversos pequenos empresários, independentemente das quantidades encomendadas ou da qualidade do produto. Com a semi-automação e, principalmente, com a automação, esse quadro muda forçosamente. O desenvolvimento desses processos de produção não é um sintoma isolado, próprio da indústria vidreira. Os outros ramos industriais também se automatizavam a fim de suprir as demandas cada vez maiores. As fábricas de processamento de alimentos e de bebidas investiam em tecnologia, tornando a produção mais rápida. No entanto, com a automação, perdia-se a capacidade de diversificar. As pequenas demandas eram eliminadas em detrimento dos grandes pedidos por vasilhames uniformes. Dentro desse quadro de estandartização global é que vemos a indústria vidreira simplificar as formas de seus produtos, eliminar boa parte das vedações possíveis, e se render ao vidro incolor para uma grande parcela de embalagens. No final do século XIX e início do XX, bastava aos negociantes desejosos em obter seus recipientes exclusivos, com dizeres e tamanhos específicos, enviar às vidrarias uma cópia de seu sonho entalhada em madeira. Para aqueles que não tivessem dinheiro suficiente para adquirir seus moldes exclusivos, as fábricas davam a opção de utilizar moldes padronizados aos quais eram acoplados dizeres tais como o nome do fabricante e o local de fabricação do produto (plate molds). Com a chegada da automação, o número de vidrarias que realizava esse serviço diminuiu. As únicas que atendiam essa parcela do mercado eram as poucas fábricas manuais sobreviventes, que por sua vez continuaram mais um tempo no páreo justamente porque atendiam aos pedidos exclusivos... ou bizarros. Apesar desse sopro de vida, nos EUA, no decorrer dos anos 1920, quase já não mais existiam fábricas que produzissem pequenas encomendas de recipientes específicos, podendo contar com modelos exclusivos apenas as grandes empresas tais como a Coca- Cola e a Heinz, já que suas encomendas excediam a casa das 14.400 garrafas, faixa 37 mínima da produção automática. Os pequenos compradores tinham que se contentar com os recipientes "standard", diferenciando seus produtos com rótulos de papel. Uma das razões que determinou o desaparecimento dos recipientes exóticos foi a elevação dos custos para se fabricar os conjuntos de moldes das semi-automáticas e automáticas, compostos por três moldes distintos: o do gargalo, o do parison e o final, isso para cada tipo e para cada tamanho. Outra razão deriva das exigências do mercado industrializado: produção seriada, sem perda de tempo com a troca dos moldes. As máquinas Owens, que dominaram absolutas o mercado até os anos 1920, eram imensas e produziam grandes quantidades. Se apenas um molde tivesse que ser trocado, toda a máquina deveria ser parada. Daí, até o molde e a máquina entrarem em sintonia, produzindo poucas peças rejeitáveis, ter-se-ia desperdiçado um tempo precioso para o fabricante. Além dos períodos de ajustes causarem peças de qualidade duvidosa, certos formatos de recipientes geravam grande quantidade de produtos defeituosos, tais como os quadrangulares ou os facetados. O domínio absoluto dos continentes cilíndricos se deu a partir dessa condição da automação, sem contar as possibilidades de melhor armazenamento, manuseio e transporte derivadas da ausência de arestas e cantos. Mesmo no caso dos continentes cilíndricos, pequenas alterações das formas dos produtos estandartizados também eram um problema para os fabricantes, pois elas gastavam de 10 a 20% mais material, o que encarecia a produção e o produto final. Além desses fatores inerentes à produção vidreira de larga escala, havia a pressão dos fabricantes dos conteúdos para que fossem produzidos recipientes mais fáceis de serem adaptados aos mecanismos das ações pré-envasamento: os continentes tinham que ser lavados, rotulados, pasteurizados, vedados, etc., em larga escala, o que envolvia a colocação dos mesmos em outras máquinas, as quais deveriam estar ajustadas aos diferentes tamanhos e formatos. Com a normatização dos recipientes essas tarefas foram simplificadas, até certo ponto. No caso das vedações esse processo é bem nítido: na produção manual existiam diversos tipos de vedações, utilizadas nos inúmeros formatos e tamanhos de recipientes. 38 Com o aparecimento de máquinas semi-automáticas e automáticas e a estandartização das formas dos recipientes, foram desaparecendo as tampas mais exóticas e se consagraram as mais adaptáveis aos processos de confecção do vidro e de produção de vedações em larga escala, na qual deveria prevalecer um encaixe preciso da tampa no recipiente repetido milhares de vezes, sem variações. Na seleção automática das vedações triunfaram as tampas de rosca, não importando a matéria-prima (alumínio, plástico, etc.), as chapinhas metálicas (crown cap, patente inglesa de 1892) e as sempre presentes rolhas. Tendo em vista os fatores acima mencionados podemos traçar um quadro das mudanças dos formatos dos recipientes. Primeiramente a produção em larga escala utilizou-se dos antigos formatos, mais populares, mas concebidos para os recipientes feitos à mão, fazendo com que os velhos e impopulares tipos fossem gradualmente desaparecendo na medida em que também desapareciam as vidrarias manuais. Com o desenvolvimento da automação e o aumento da competição entre as indústrias, esses formatos conservadores de grande sucesso passam a ceder espaço aos novos tipos, concebidos já dentro de um espírito artístico apropriado à produção em larga escala. No caso dos EUA, as inovações estilísticas começam a aparecer no final dos anos 1920, início dos 30, sofrendo um declínio a partir da Segunda Guerra. Na indústria brasileira, manifestações de design especificamente industrial surgiram somente a partir da década de 1950. No final do milênio passado e no início deste, a embalagem constitui um elemento chave na construção de um produto final. A título de exemplo tomemos a multinacional Coca- Cola. Fabricantes e produtores de embalagem vêm se dedicando há alguns anos à busca de soluções técnicas e econômicas capazes de reverter a forma tradicional de envase desse produto em alumínio, de forma a aplicar à lata o quase centenário vasilhame de vidro, permitindo uma associação imediata ao conteúdo. Mais do que nunca, a manutenção de formas perceptíveis para determinados conteúdos se torna fundamental para a própria sobrevivência de produtos num mercado de grande escala, voraz e competitivo. Haja vista o sal de fruta Eno, o Biotônico Fontoura, o Leite de Magnésia de Phillips e assim por diante. Em todos esses casos o vidro se mostrou, nas últimas décadas, menos competitivo, sendo substituídopor embalagens plásticas. Porém, os formatos originais dessas panacéias de amplo consumo tiveram que obrigatoriamente ser mantidos. 39 Quanto às cores dos recipientes, ocorre uma mudança drástica. O predomínio do transparente é indiscutível, ficando as outras cores reservadas para produtos que não poderiam ser tão expostos à luz solar – caso dos vinhos tintos e cervejas em geral – ou aqueles que já tinham uma imagem de produto definida junto ao público consumidor, como no caso do frasco azul do Leite de Magnésia de Murray do começo do século XX, substituído pelo de Phillips. Com o incremento da indústria de processamento de alimentos, sobretudo durante as décadas de 1950-1970, os fabricantes se devotaram à produção de continentes cada vez mais translúcidos e/ ou transparentes, ampliando a visualização do produto, assim percebida pelo consumidor como garantia da qualidade e integridade daquilo que foi envasado – muito embora existam perigos ocultos pela boa aparência. Entretanto, no início da automação da indústria vidreira, os métodos à disposição dela não eram eficientes o bastante para gerar produtos de qualidade em larga escala. A cor do vidro é determinada pela quantidade de impurezas – óxidos metálicos, principalmente o de ferro – presentes em grande parte das areias. Dependendo da saturação, os vidros variam de verde a âmbar. Antes da era da automação o vidreiro tinha algumas alternativas para lidar com as cores de seus produtos: 1) aceitar a cor que resultara da fusão, seja ela qual for; 2) clarear a massa através de uma melhor oxidação; 3) mascarar os efeitos das impurezas ferrosas com outros óxidos metálicos, como o cobalto, por exemplo; 4) utilizar areias com o mínimo de ferro possível – solução mais adotada; e, por último, 5) neutralizar um verde claro com o púrpura claro ou rosa do magnésio (primeiro a ser utilizado) ou do selênio (que começou a ser utilizado por ser mais estável e mais fácil de se trabalhar nas máquinas). É só com a aplicação do selênio que a produção automática em larga escala de recipientes incolores ganha a qualidade necessária. Anteriormente, com a aplicação do magnésio, elemento instável, os artefatos que ficassem expostos ao sol por muito tempo tendiam a adquirir tonalidades de púrpura, retornando a sua coloração inicial. 3.2.5. Comentários finais No âmbito do mundo capitalista a difusão do vidro está diretamente relacionada à burguesia, que adota o vidro para si com grande entusiasmo, difundindo-o já na fase 40 avançada da primeira Revolução Industrial, com o desenvolvimento da navegação a vapor e, sobretudo, com a ferrovia. No decorrer do século XIX as vidraças e clarabóias invadiram não só os palácios, como as edificações urbanas européias e brasileiras, respondendo no âmbito doméstico e no universo do trabalho a novos processos de intermediação, amplificando ou mascarando a comunicação nas áreas das cidades, permitindo um novo relacionamento diuturno de uma classe em ascensão com os espaços de caráter público e seu domínio sobre eles. Ruas e praças exigiram o uso de mangas de vidro para a proteção das chamas das luminárias, que por sua vez garantiam o controle e manipulação dessas áreas à distância, sem a necessidade da constante presença física de um guardião da ordem. Dentro das residências cortesãs, os frascos de perfumes, as colônias, remédios e panacéias destacam novos padrões de higiene; novos modos e rituais à mesa passam a ser pontuados, integrando a louçaria à vidraria: cálices e copos, cada qual para uma bebida; as próprias bebidas, cada uma num tipo de continente; os potes, trazendo novos hábitos e sabores do além mar, assegurando aos artefatos de vidro sua posição e função no mundo burguês ou, no caso do Brasil, no mundo aburguesado. Essa temática é minuciosamente perseguida e explorada há mais de uma década pela arqueóloga Tania Andrade Lima (1997, com referências anteriores) e, mais recentemente, pela nova safra de pesquisadores sul-riograndenses, tais como Symanski (1998a; 1998b). Mas esse domínio burguês sobre as propriedades do vidro, que veio com a industrialização, também se vai com ela, na esteira da ascensão do processo produtivo automático: a massificação do uso de artefatos de vidros torna-o banal para garantir o controle da burguesia sobre o povo miúdo em geral. No caso brasileiro essa popularização do vidro se dá com um descompasso de praticamente meio século em relação aos países industrializados, apresentando vigor somente no decorrer do século XX, mais precisamente após a Segunda Grande Guerra. Tendo em vista esse processo apresentamos a seguir algumas referências para a constituição de uma história do vidro no Brasil e suas relações com a produção internacional, tema que será explorado com maior propriedade em novo artigo. 41 4. REFERÊNCIAS PARA UMA HISTÓRIA DO VIDRO NO BRASIL 4.1. Primórdios O vidro chega ao Brasil juntamente com os primeiros colonizadores europeus. Uma das mercadorias utilizadas no escambo com o indígena eram as famosas miçangas feitas de vidro, das quais alguns exemplares foram encontrados no sítio de contato interétnico Mineração, em Iguape, litoral sul de São Paulo (Figura 19). Figura 19 – Contas de vidro encontradas no sítio Mineração, Iguape, SP pela equipe da arqueóloga Maria Cristina M. Scatamacchia no início da década de 1990 (SCATAMACCHIA 1994). Escala desconhecida. A manufatura das miçangas é feita da seguinte maneira: um bocado de massa de vidro, após ser apanhado do cadinho é furado no meio; depois é pregado um pontel numa das extremidades e essa massa é estirada até formar um tubo de vidro comprido, mas com diâmetro muito reduzido. Esse tubo é seccionado e os pedaços, por sua vez, são cortados em pedacinhos menores ainda, de acordo com o que se quer fazer – contas ou miçangas cilíndricas. Os pedacinhos de vidro são então colocados dentro de tubos de metal cheios de argila e pó de carvão para que os furinhos não se fechem com o reaquecimento. Esses tubos são fechados nas extremidades e levados ao fogo, quando imprime-se movimentos de rotação a eles de forma que os objetos lá dentro percam as arestas. Após esse processo os artefatos perdem o brilho, que é recuperado com a imersão dos mesmos sucessivas vezes em recipientes com areia e em recipientes com sêmea (flor da farinha) (PROSTES 1908: 88-89). A importância da fabricação das contas e miçangas e do uso delas nas trocas com os indígenas do Brasil quinhentista ainda é um assunto pouco abordado nos trabalhos de arqueologia, mas sua importância deve ter sido vital para a conquista/ colonização de novas terras, uma vez que o próprio Pedro Prostes, já em pleno século XX, cita o valor 42 que as contas, vidrilhos e miçangas possuíam no comércio com as colônias africanas de Portugal. Avançando um pouco mais no tempo, contamos com referências a objetos de vidro nos inventários de paulistas do final do século XVI e início do XVII, mas a verdade é os expoentes mais elevados da capitania contentavam-se com a posse de apenas um ou dois cálices de vidro (LEVY 1943: 214; BRUNO 1974). A primeira tentativa de produção de vidro em solo colonial brasileiro se dá em 1637, sob o domínio holandês. Com a chegada do Governador Geral Maurício de Nassau, instalam-se em Olinda e Recife quatro artesãos que confeccionavam copos, frascos e vidros para janelas. Entretanto, com a expulsão dos holandeses, em 1654, eles são obrigados a encerrar as atividades e acompanhar seus patrícios (SANDRONI 1989: 39). Nos primeiros 250 anos da ocupação européia no Brasil, o usodo vidro parece ter sido bastante restrito – com exceção do período de domínio holandês. Maior uso do vidro só vamos encontrar a partir do auge da exploração aurífera, nas Minas Gerais. Em 1752, quase 50 anos depois da fundação de Mariana, chegam inteiros vidros para ornar a nova catedral. E em 1756, vidro plano é utilizado na construção do palácio dos Governadores, na hoje chamada cidade de Ouro Preto (SANDRONI 1989: 42). Com uma utilização mais freqüente desse material, não é de se estranhar que, no final do século XVIII, existisse uma corporação de vidreiros em Minas Gerais (LEVY 1943: 216). Na cidade do Rio de Janeiro, que a partir de 1763 se tornou capital do então recém estabelecido Vice-Reino do Brasil, o uso do vidro passa a ser difundido pelos altos estratos sociais, agora mais ligados aos refinamentos do gosto europeu. Como conseqüência da elevação à capital, mais impulsos à utilização do vidro foram dados no período de 1790-1801, quando a iluminação pública com óleo de baleia começa a ser instalada no Rio de Janeiro. Para proteger a chama das luminárias, utilizam-se quebra-luzes de vidro (SANDRONI 1989: 53). Mas a grande difusão do uso do vidro só viria a partir de 1808, com a chegada da família real portuguesa, a abertura dos portos e a revogação da proibição à instalação de manufaturas no Brasil (1785). Entretanto, há que se trabalhar melhor essa afirmação 43 através da investigação dos sítios arqueológicos brasileiros que elucidem o papel do contrabando nos hábitos e no comportamento da sociedade colonial. Talvez o uso maciço do vidro no Brasil recue alguns anos... Com relação à origem de fabricação, as garrafas encontradas no Brasil, trazidas primeiramente e oficialmente pelas embarcações portuguesas durante os séculos XVIII e XIX, acredita-se que devem ter sua origem de fabricação em diversas manufaturas européias, sobretudo, da França, Inglaterra, Alemanha, possivelmente também Bélgica e Áustria, abrigando em seu interior produtos portugueses ou diretamente relacionados ao país de origem de fabrico do recipiente. Um exemplo dessa situação é fornecido pelo excerto a seguir. Um anexo à carta de Henry Hill (adido comercial norte-americano no Brasil) a James Madison (17/11/1809), traz uma lista da quantidade e dos tipos de artigos exportados dos EUA para Salvador e para a Corte, da quantidade de dinheiro gerado por estas mercadorias comercializadas, a aceitação delas nesses mercados e a aceitação dos mesmos tipos de produtos manufaturados de outros países: “Artigos de vidro ............Vende-se qualquer quantidade de artigos alemães de qualidade inferior, variados, quebra luzes para castiçal, copos pequenos para vinhos, frasqueiras de baixo preço, espelhos quadrados e redondos com moldura dourada, espelhos para penteadeiras, outros com moldura em papier maché, de 6, 12 ou 18 polegadas” (WRIGHT 1978: 216). Esse exemplo mostra como seria difícil a criação de uma indústria nacional, mas também deixa patente as dificuldades de Portugal em impor sua parca produção aos mercados coloniais. Além disso, apesar de antiga, a produção vidreira portuguesa ganhou significação apenas no final do século XVIII, com a instauração da Real Fábrica de Vidros da Marinha Grande (Atual Fábrica-escola Irmãos Stephens), dirigida pelos membros da família inglesa Stephens (MENDES 1992), devendo-se a "esta indústria a preparação da mão-de-obra vidreira portuguesa" (MEMÓRIAS 1815: 270). Nesse sentido, acreditamos que garrafas produzidas em Portugal somente devem ter passado a afluir com freqüência no decorrer do século XIX, concorrendo em nítida 44 desvantagem com as demais vidrarias européias, sobretudo, as francesas, tal qual se observou, por exemplo, na Calçada do Lorena. 4.2. O vidro no Brasil a partir do século XIX Apesar de pouco estudada pelos autores que tratam da industrialização brasileira, a indústria do vidro está entre os ramos industriais que apresenta crescimento contínuo durante este processo que, grosso modo, inicia-se com a vinda da família real portuguesa, em 1808. Desde os primórdios do século XIX até hoje, a produção de vidro só tem crescido em volume, apesar da ameaça recente dos recipientes feitos com derivados de petróleo. Dentro desses quase 200 anos de produção vidreira brasileira podemos estabelecer três períodos distintos: A – O primeiro, circunscrito entre o início do século XIX até 1890/1900; caracterizado pelas iniciativas pioneiras, a descoberta de jazidas de areias livres de metais pesados, a importação e especialização de mão-de-obra e produção exclusivamente manual. B – O segundo, de 1890/1900 até 1940/50; quando se destaca a consolidação da indústria vidreira através da criação de grandes fábricas tais como a Santa Marina, a CISPER e a Nadir Figueiredo. Caracteriza-se esse período também pela importação de tecnologia de ponta e a distribuição maciça de produtos através da navegação de cabotagem, da rede ferroviária em franca expansão e da rede rodoviária em criação. C – E o terceiro, de 1950 até o presente, por nós vivenciado, correspondendo à fase de consolidação da produção vidreira na forma de oligopólios mundiais, como a Saint Gobain (FRA) e a Corning (EUA), sendo a produção dessas empresas altamente automatizada, atendendo somente às grandes encomendas, contando com amplo sistema de distribuição. Mas, torna-se necessária uma ressalva: 45 A chegada de tecnologia de ponta, da semi-automação e da automação não elimina por completo a produção manual, processo desenrolado muito rapidamente nos EUA e no Reino Unido. Aliás, como veremos adiante, essa é uma característica da indústria vidreira dos países que mais comerciavam com o Brasil, tais como Portugal. Dessa forma, falar em atraso da indústria vidreira brasileira é se entregar a uma conclusão precipitada, da mesma forma que também o seria classificá-la como uma das integrantes do grupo chefe, já que aqui vivenciamos apenas surtos de modernização consoantes àqueles percebidos pelas nações dominantes. São tratados a seguir os dois primeiros períodos da produção nacional a partir de três parâmetros básicos: a produção, a distribuição das mercadorias e o consumo. 4.2.1 Primeiro Período (1808 – 1890/1900) Produção Tendo jazidas de areia em abundância, madeira para aquecer os fornos (sendo que suas cinzas forneceriam a potassa e a soda) e cal a vontade, os fabricantes dependiam apenas da terra refratária vinda do exterior. Mas esta última, utilizada para a confecção dos cadinhos nos quais seriam misturadas e derretidas as matérias-primas, era um dos insumos essenciais. Somente esses potes, confeccionados com esse material especial, suportariam as altas temperaturas dos fornos e, mesmo assim, eles precisavam ser substituídos a cada oito semanas porque também se transformavam em vidro. Seu custo de reposição era alto, sendo que sua confecção demorava pelo menos oito meses. Grande parte das tentativas fracassadas, no século XIX, devem-se a esse fator (POLAK 1997: 8). Mão-de-obra Ao longo de toda a história da indústria vidreira no Brasil, necessitou-se de mão-de-obra estrangeira, ou para alavancar a produção, ou para aperfeiçoá-la. 46 Mas nesse primeiro momento, conhecimento estrangeiro não era sinônimo de introdução de técnicas de ponta na produção nacional. A revolução industrial e seu modo de produção seriado e em larga escala, somado ao desenvolvimento dos meios de transporte impulsionados pelo vapor, proporcionaram um aumento considerável no poder de produção e
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