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1.1 A arte de sensibilizar o olhar

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A Arte de Sensibilizar o Olhar
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Um par de óculos e uma centena de lentes 
 
A relação do homem com o mundo é sempre mediada por suas ferramentas. Ele constrói, 
apreende e interpreta a realidade a partir dos instrumentos que lhe são fornecidos pela cultura. 
Tecelão quase compulsivo de si próprio, borda sem cessar teias de significados para dar sentido ao 
mundo (GEERTZ, 1989:15) Essas teias, onde se misturam pontos abertos e fechados, novos e 
antigos, e linhas de todas as cores, são a cultura. É a partir desse véu da cultura, dessas lentes, que 
vemos então as coisas, os outros, e a nós mesmos. 
Cada cultura, entretanto, teria seu par de lentes próprio, ou, no máximo, um certo número 
de lentes utilizáveis, um certo leque de possibilidades de formas de ver o mundo. As lentes de uma 
sociedade nunca são as mesmas de outra (BENEDICT, 1997:19). Ainda que tenham semelhanças, 
são encontradas certas nuanças e particularidades. O que pode ser considerado ponto comum 
entre todos os homens é a armação, a existência dos óculos em si. As lentes, sempre diferentes, 
vão variar em espessura, cor e formato. 
Uma vez vendo os outros por detrás dessas lentes, e a partir de uma visão de mundo, há 
uma tendência em considerar nossa forma de ver e fazer as coisas como a mais correta, ou mesmo 
a única correta. Tal postura etnocêntrica consiste em tomar o que é nosso como o verdadeiro, e o 
que é do outro (e o que é o outro) como digno de reprovação, dando assim aos nossos valores um 
suposto caráter de universalidade (TODOROV, 1993: 21). 
Uma vez estando ao nosso lado todas as verdades e a certezas, estaríamos autorizados a 
interferir, em nome de nossa bondade e piedade, no que é do outro. Partindo desse pressuposto 
muitas formas de dominação, e mesmo etnocídios, tentaram ser legitimados. 
O Etnocentrismo não é, entretanto, exclusividade de nossa sociedade ocidental e moderna. 
É um fenômeno que se registra por toda a parte. Sobre o assunto, Heródoto já nos contava que: 
 
Se fosse dada a alguém, não importa a quem, a possibilidade de escolher 
entre todas as nações do mundo as crenças que considerasse melhores, 
inevitavelmente escolheria as de seu próprio país. Todos nós, sem exceção, 
 
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 Fragmento do texto publicado na internet (http://www.geocities.com/deborakrischkeleitao) de autoria de Débora Krischke Leitão 
com o título “A Arte de Sensibilizar o Olhar ou Por que ensinar Antropologia?” que busca justificar a inclusão do ensino de 
antropologia no currículo do ensino médio. Acesso em 27/08/2007. 
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pensamos que nossos costumes nativos e a religião em que crescemos são os 
melhores. Existe uma multiplicidade de evidências de que este sentimento é 
universal... Poderíamos lembrar, em particular, uma anedota de Dario. Sendo 
ele rei da Pérsia, chamou alguns gregos presentes em sua corte e perguntou-
lhes quanto queriam em troca de comer os corpos de seus pais defuntos. Os 
gregos replicaram que não havia dinheiro suficiente no mundo para fazer 
isso. Depois perguntou a alguns índios da tribo chamada Callatie - que 
realmente comem os corpos de seus pais defuntos - quanto queriam para 
queimá-los (referindo-se, é claro, ao costume grego da cremação). Os índios 
exclamaram horrorizados que nem se devia falar em coisa tão repugnante. 
 
Binóculos: explorando territórios desconhecidos 
 
Partir para o território do outro, dar espaço ao que não é familiar: esse é o primeiro passo 
para uma possível transformação do olhar, uma relativização de ponto de vista. A curiosidade do 
homem sobre si próprio sempre existiu, mas é a passagem do curioso, do exótico e do bizarro, 
para uma consciência da alteridade é que marca realmente o pensamento do homem sobre o 
homem (LAPLANTINE, 1995:13), e a reflexão a respeito da diferença. 
A diversidade cultural só pode ser compreendida se a postura frente ao estranho e ao 
estrangeiro se tornar mais flexível e permitir a existência da diferença enquanto diferença, não 
enquanto hierarquia. 
Deve-se então, em primeiro lugar, aceitar que o outro existe, conhecê-lo e reconhecê-lo. É 
preciso perceber que somos apenas uma das culturas possíveis, e não a única. Conhecendo as 
diferentes formas de lidar com o mundo, as diferentes respostas dadas pelas mais diversas 
culturas é que se pode relativizar que nos é o estranho, tentando encontrar, assim, no olhar do 
outro, o ponto de partida. 
Ensinar a olhar é, assim, antes de tudo, apontar os caminhos desse olhar, fazendo nascer a 
consciência da diversidade cultural e da pluralidade das culturas. 
 
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O Jogo dos Espelhos 
 
É a partir do reconhecimento do outro que eu posso, finalmente, entender quem sou. 
Cruzar a fronteira, deixando meu território, é a melhor forma de - olhando para trás - ver meu 
mundo com o espanto e a curiosidade que não podia germinar enquanto eu estava dentro dele. 
Por mais que o antropólogo tenha esse quê de viajante, não precisamos aqui falar em 
transposição de fronteiras físicas. A viagem que proponho é a de simplesmente enxergar o outro 
lado, a outra margem do lago, o que não me pertence e é diferente de mim. Através do 
estranhamento provocado pelas outras culturas, modifica-se a forma que temos de olhar sobre 
nós mesmos. 
A reflexão antropológica é, em certa medida, o exercício de um desejo narcísico de 
conhecer a si próprio. O Narciso antropológico, ao contrário daquele de que tanto ouvimos falar, 
não vê no lago sua imagem familiar refletida, e sim a imagem de algo que é desconhecido, rica em 
detalhes que, antes de ver o outro, passavam despercebidos. 
É um Narciso que, em vez de apaixonado, se aproximar cada vez mais do lago para 
mergulhar em si próprio, toma certa distância para admirar-se de mais longe e a partir de outros 
ângulos. Começa, então, a estranhar a si próprio, a se espantar com tudo que lhe parecia banal. 
O conhecimento de nossa própria cultura só é possível, assim, através do conhecimento do 
outro, das outras culturas. A partir da experiência da alteridade tem lugar, então, um 
descentramento do olhar. Essa revolução no olhar (LAPLANTINE, 1996: 19) provocada pelo 
distanciamento permite, então, que nos espantemos com o que nos é mais familiar, com o que é 
parte de nosso cotidiano e da sociedade na qual vivemos, [com valores e crenças que nos pareciam 
naturais – Nota do professor ALS]. 
 
Bem debaixo do seu nariz 
 
As fronteiras entre o inato e o adquirido são extremamente tênues e vacilantes. Pode-se 
dizer que todo comportamento humano, do mais simples ao mais complexo, contém um pouco de 
cada uma dessas duas dimensões. Geertz nos traz o exemplo da anatomia humana: natural e 
fisiologicamente preparada para a fala, de nada serviria se vazia da cultura, uma vez que é ela que 
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nos fornece as línguas, os idiomas e os dialetos a falar. (GEERTZ, 1989:62). A relação entre 
natureza e cultura sempre foi interesse não só da Antropologia, mas de praticamente todas as 
outras formas de busca de conhecimento inventadas pelo homem. 
Dada sua proximidade extrema, certos hábitos e costumes culturalmente construídos são, 
muitas vezes, vistos como fenômenos naturais inatos. De muito perto, sua imagem se desfoca, 
perdendo a nitidez. Como enxergar com perfeição, afinal, o que está bem debaixo do seu nariz? 
A prova mais substancial de que muitas características humanas naturalizadas são, na 
verdade, culturalmente dadas, pode se dar, antes de tudo, pelo conhecimento de outras 
realidades onde há uma variação do padrão cultural. Dotados de uma anatomia semelhante, 
damos a nossos corpos diferentes usos. A maneira de caminhar, vestir, sentar, comer e até mesmo 
rir é, se dá de cultura para cultura, de formadiversa. É a partir da percepção da diversidade, da 
presença do outro, que se pode relativizar, portanto, nossa própria sociedade. Percebendo que 
existem outras formas diferentes da nossa de expressar a dor, outras regras de casamento, 
práticas de cura muito diferentes e distintas crenças e religiões, vemos também nossa cultura com 
outros olhos. Olhos mais críticos mas, antes de tudo, mais aguçados e muito mais sensíveis. 
 
Do olhar crítico ao olhar sensível 
 
Pensar o mundo a partir de uma postura antropológica é ir além da visão crítica. É desafiar, 
sem temores, nossas próprias crenças e certezas (e as dos outros) mas, antes de tudo é perceber a 
enorme gama de elementos que compõe a realidade. É conhecer o outro, mas principalmente 
compreendê-lo e respeitá-lo. É reconhecer, sobretudo, a existência da assimetria e da diversidade. 
 
Referências 
 
BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva. 1997 
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC. 1989 
HERÓDOTO História. In: www.perseus.tufts.edu 
LAPLANTINE, François. La Description Ethnographique. Paris: Nathan. 1996 
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1995. 
LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. 
TODOROV, Tzetan. Nós e os Outros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1993.

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