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Valdir Denardin Cinthia Maria de Sena Abrahão Diomar Augusto de Quadros (Organizadores) LITORAL DO PARANÁ – REFLEXÕES E INTERAÇÕES MATINHOS UFPR Litoral 2011 VALDIR FRIGO DENARDIN CINTHIA MARIA DE SENA ABRAHÃO DIOMAR AUGUSTO DE QUADROS (Organizadores) LITORAL DO PARANÁ – REFLEXÕES E INTERAÇÕES Revisão técnica: Afonso Takao Murata; Arlete Motter; Carlos Alberto Cioce Sampaio; Clynton Lourenço Corrêa; Daniel Fleig; Edmilson Paglia; José Lannes; Liliani Tiepollo; Luciana Ferreira; Manoel Flores Lesama; Maurício Fagundes Revisão do texto: dos autores Revisão final: dos organizadores Projeto gráfico e Editoração eletrônica: Monica Ardjomand Capa: Carlos Weiner Catalogação na fonte Litoral do Paraná: reflexões e interações / Organizadores: Valdir Frigo Denardin; Cinthia M. de Sena Abrahão; Diomar Augusto de Quadros. Matinhos: UFPR Litoral, 2011. 268 p. ISBN 978-85-63839-08-4 (digitalizada) ISBN 978-85-63839-09-1 (impressa) 1.Litoral do Paraná. I. Denardin, Valdir Frigo. II. Abrahão, Cinthia M. de Sena. III. Quadros, Diomar Augusto de. CDD 981.62 Fernando Cavalcanti Moreira, CRB 9/1665 UFPR LITORAL Universidade Federal do Paraná Setor Litoral R. Jaguariaíva, 512 – Caiobá CEP 83260-000 - Matinhos, PR - Brasil © UFPR Litoral, 2011 Sumário Prefácio 5 Apresentação 8 Parte I - Diálogos de Pesquisa e Extensão 12 Terra inválida, gente invisível: o caso das comunidades rurais extrativistas do litoral paranaense 13 Marcia Regina Ferreira | Raquel Rejane Bonato Negrelle| Rafael Augusto Ferreira Zanatta Violência doméstica contra mulheres no Litoral do Paraná: olhares a partir um projeto de ensino/pesquisa/extensão 39 Nadia Terezinha Covolan | Daniel Canavese de Oliveira | Marcos Claudio Signorelli Agroindústria familiar no Litoral paranaense: o caso das casas de farinha 50 Valdir Frigo Denardin | Luiz Fernando de Carli Lautert | Mayra Taiza Sulzbach | Claudinei Pedroso Ribas | Humberto Handchuka Piccin | Rosilene Komarchescki | Cecilia Hernandes Cury Jovens e cultura política em Matinhos 71 Dione Lorena Tinti | Rodrigo Rossi Horochovski | Emerson Joucoski Um diálogo entre Teoria e Prática, Arte e Ciência no ensino contemporâneo da Arte 93 Carlos Weiner M. de Souza Periferias urbanas – território de complexidades: o caso da Vila Santa Maria em Paranaguá 111 Cinthia Maria de Sena Abrahão Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná: análise do quadro atual das associações de resíduos sólidos e suas relações 140 Cinthia Maria de Sena Abrahão | Lucia Helena Alencastro Vivência no acampamento José Lutzenberger: análise da segurança alimentar e nutricional 163 Diomar Augusto de Quadros | Rafael Pantarolo Vaz | Murilo Carzino de Alcântara | Sirlândia Schappo | Eduardo Harder Ações empreendedoras no meio rural: a comunidade pantanal do assentamento Nhundiaquara no litoral paranaense 184 Elsi do Rocio Cardoso Alano Parte II - Diálogos de Pesquisa e Ensino 198 Educação e desenvolvimento na formação do empreendedor: uma experiênia pedagógica na Universidade Federal do Paraná (Setor Litoral) 199 Cristiane Rocha-Silva | Marcia Regina Ferreira Enfoque fisioterapêutico na saúde da criança matinhense 228 Luize Bueno de Araujo | Vera Lúcia Israel | Magda Maciel Ribeiro Stival Aspectos biológicos do processo de envelhecimento e atividade fisica 246 Daniela Gallon | Anna Raquel Silveira Gomes 5 Prefácio Diante dos desafios de conciliar desenvolvimento e conservação ambiental, o Litoral Paranaense apresenta uma diversidade de experiên- cias que nos permite refletir sobre várias teorias, abordagens e realida- de, entre elas as interações entre sistemas sociais e ecológicos - em que a população interage com a natureza -, e na própria relação homem- homem. Fundamentalmente, este livro Litoral do Paraná: Diálogos e Intera- ções remete às dimensões humanas do desenvolvimento, compreendido à escala humana, como diria o ecossocioeconomista Manfred Max-Neef. O Litoral Paranaense constitui uma das franjas aluviais, senão conti- nentais, mais contínuas de Floresta Atlântica, resultado também de uma política de criação de Unidades de Conservação federais e estaduais. O território possui vulnerabilidade socioeconômica devido às au- sências históricas de políticas públicas, que evidentemente não con- tribuíram para o fortalecimento da cidadania e do tecido social carac- teristicamente marcado pela identidade territorial. Tal panorama com- promete a perspectiva de futuro quanto ao desenvolvimento territorial sustentável construído por e para quem vive e, ainda, viverá no local, compreendendo as dinâmicas ecossistêmicas. Dos sete municípios que compõem o litoral paranaense, cinco de- les – Antonina, Guaraqueçaba, Guaratuba, Morretes e Paranaguá - es- tão abaixo da média estadual do Índice de Desenvolvimento Huma- no (IDH) Municipal. Da mesma forma, se encontram os sete municípios do Vale do Ribeira Paranaense, território também compreendido pelo Projeto Político Pedagógico da UFPR-Litoral – Adrianópolis, Bocaiúva do Sul, Cerro Azul, Doutor Ulysses, Itaperuçu, Rio Branco do Sul e Tunas do Paraná. Matinhos e Pontal do Paraná, apenas estão um pouco acima dessa média. Um dos três critérios do IDH que puxa este índice para baixo é a ren- da per capita, sendo que todos os municípios estão abaixo da média do 6 Estado. Quanto ao índice de Gini, que mede a concentração de renda, retrata que não há um problema de concentração de renda no litoral. Até se pode sugerir que há falta de riqueza, no entanto na realidade em- pírica se verifica falta de acesso inclusivo à políticas públicas. No entanto, a conjuntura socioeconômica não é provocada pela criação de Unidades de Conservação dos últimos 20 anos, embora tam- bém haja controversas sobre o quanto que uma restrição ambiental pode desfavorecer comunidades tradicionais. Sob a visão bio ou ecocêntrica (o mito da natureza intocada) não há desenvolvimento que não impacte ambientalmente. Há que se questio- nar, sob o ponto de vista antropocêntrico, o quanto de desenvolvimento pode ser considerado territorialmente sustentável. Isso porque o que se convencionou chamar de desenvolvimento, - sobretudo pela perspec- tiva urbana-industrial-consumista-, mais se assemelha ao “mau” desen- volvimento, que se alicerça na desigualdade socioeconômica entre pa- íses com alto, médio e baixo índice de desenvolvimento humano. Além da própria contradição de que quanto maior o IDH maior é, geralmente, a pegada ecológica. Têm-se, então, dúvidas se a sociedade democrática é uma prerrogativa para a sustentabilidade. Baseando-se na política de bem-estar social europeu, se diria que não. Sob tal argumento, os modos de vida de populações tradicionais e híbridas do litoral do Paraná se aproximam mais do que se pode esperar do conceito de sustentabilidade, embora haja controvérsias quanto ao mito do bom selvagem. O que se quer ressaltar são as possibilidades de articulação entre os saberes, tanto dos acertos como dos equívocos do conhecimento científico e tradicional, no tratamento da relação homem e natureza. Embora o litoral paranaense represente pequena parcela da super- fície do Estado, há muitos modos de vida tradicionais ali inseridos. Esses modos de vida se confundem com as próprias comunidades tradicio- nais, que podem ser definidas por critérios geográficos - território iso- lado -, culturais - compartilhando costumes, usos e tradições, hábitos -, ou por funções socioeconômicas – variando por modos de produção. 7 Comunidades e modos de vida se confundem e se identificam no litoral paranaense - e, por extensão, do Vale do Ribeira - como extrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais, pequenos agricultoresfamiliares, povos originários e quilombolas. Tais comunidades, mesmo que pos- suam descaracterizações, são ainda identificadas como tradicionais por conservarem padrões de subsistência, valores e costumes, o que pos- sibilita encontrar, no seu âmbito, o principal atrativo: a convivência de inspiração solidária, característica exótica atualmente do modo de vida urbano-consumista. Neste contexto, surge o setor litoral da Universidade Federal do Paraná, mais conhecida por UFPR Litoral, sob a inspiração da chamada educação é nossa praia, na qual ensino, pesquisa e extensão são compre- endidos como um todo sistêmico, no qual não é possível dissociar suas partes. Os capítulos aqui organizados refletem diálogos e interações entre o corpo docente e discente da UFPR-Litoral, na qual contam seus esfor- ços de conhecimento, compreensão, proposição e ação no território do litoral paranaense. Não querendo roubar o protagonismo dos organizadores, finalizo convidando aos leitores a realizarem esta viagem para conhecer o litoral do Paraná, sob a organização dos amigos Valdir Frigo Denardin e Dio- mar Augusto de Quadros e a amiga Cinthia Maria de Sena Abrahão, que foram meus colegas na minha rápida passagem pela UFPR-Litoral, no entanto muito intensa de felicidades. Prof. Dr. Carlos Alberto Cioce Sampaio Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade Regional de Blumenau Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento da Universidade Federal do Paraná Pesquisador do CNPq. 8 Apresentação Este livro é resultante de um conjunto de reflexões produzidas em atividades de extensão e pesquisa universitária realizadas pela comu- nidade acadêmica e colaboradores da Universidade Federal do Paraná, Setor Litoral (UFPR Litoral). Sua principal expressão consiste no com- prometimento dessa universidade com o seu entorno, o que reflete o propósito da criação da unidade educacional no litoral, com sede em Matinhos/PR. A temática “Litoral Paranaense” tem sido iluminadora das ações da universidade desde sua instalação em 2005. Ao mesmo tempo em que há o desafio de propor aos membros da comunidade acadêmica que aportem contribuições para a sociedade, existe a necessidade de conhe- cer de forma mais profunda essa porção do território brasileiro. O litoral do Paraná congrega sete municípios e um conjunto denso de questões instigadoras para aqueles que se inspiram na idéia de construção de uma sociedade mais justa e equilibrada. A diversidade de abordagens e de temáticas traduz uma amostra do mosaico de ações e de reflexões que derivam dos primeiros cinco anos de existência da UFPR Litoral. A partir da temática norteadora que se traduz no título “Litoral do Paraná: Interações e Reflexões” o livro foi organizado em duas partes. A primeira congrega os capítulos que realizam o que chamamos de “Di- álogos de pesquisa e extensão”, de forma geral são reflexões e relatos originados de trabalhos desenvolvidos em um dos municípios, em uma comunidade ou em um grupo de municípios. A segunda parte denomi- namos “Diálogos de pesquisa e ensino”, congrega capítulos nos quais os autores dialogam com as práticas sociais imprimidas pela universida- de no processo de repensar os cursos de graduação. Na primeira parte do livro denominada Diálogos de pesquisa e extensão, o primeiro texto “Terra inválida, gente invisível: o caso das co- munidades rurais extrativistas do litoral paranaense”, de Márcia Regina Ferreira, Raquel Negrelle e Rafael Zanatta, discute o caso das comunida- 9 des extrativistas do litoral paranaense e sua invisibilização no contexto contemporâneo. Fruto de uma profunda pesquisa sobre a temática, o texto traz substância teórico-prática para repensar a política ambiental brasileira à luz da realidade sociocultural sobre a qual ela se aplica. O segundo texto intitula-se “Violência doméstica contra mulheres no litoral do Paraná: olhares a partir de um projeto de ensino/pesquisa/exten- são”, de Nádia Covolan, Daniel Canavese e Marcos Signorelle, discute as- pectos derivados do mapeamento e estabelecimento de redes de cons- cientização, defesa dos direitos das mulheres e no combate à violência doméstica nos municípios do litoral do Paraná. A apuração de dados e as reflexões contidas nesse texto resultam de um trabalho que se estendeu entre os anos de 2007 e 2009. O terceiro texto, ‘Agroindústria familiar no litoral paranaense: o caso das casas de farinha”, de Valdir Frigo Denardin, Luiz Fernando de Carli Lautert, Mayra Sulzbach, Claudinei Ribas, Humberto Piccin, Rosilene Ko- marchescki e Cecília Cury, apresenta um amplo diagnóstico acerca da agroindústria de farinha de mandioca. O propósito central da pesqui- sa está na geração de subsídios para intervenções nesse segmento que congrega funções econômicas, sociais e culturais, definindo parte da identidade territorial das comunidades tradicionais do litoral. O quarto texto trata a temática da política e juventude sob o título “Jovens e cultura política em Matinhos”, de Dione Tinti, Rodrigo Horocho- vski e Emerson Joucoski. A reflexão dos autores é fruto de uma pesqui- sa de campo realizada em 2008, que possibilitou a análise comparativa entre a realidade local, a partir do recorte do município de Matinhos e a nacional. O texto seguinte, de Carlos Weiner M. de Souza, intitulado “Um diá- logo entre teoria e prática, arte e ciência no ensino contemporâneo de arte – análise do projeto Vila Educação e Arte em Paranaguá”, traz um conjunto de reflexões sobre a prática docente e seus desafios no campo da arte, a partir de resultados do projeto Vila Educação e Arte desenvolvido atra- vés da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), entre 2008 e 2010. 10 Em seguida, Cinthia Maria Sena Abrahão apresenta o texto “Perife- rias urbanas – território de complexidades: o caso da Vila Santa Maria em Paranaguá”, no qual realiza uma abordagem histórico-geográfica das ci- dades e da periferia urbana na modernidade, tendo em vista destacar o caso das periferias no contexto brasileiro. A partir daí busca elementos para discutir os resultados da pesquisa sobre a ocupação da Vila Santa Maria, porção territorial da periferia de Paranaguá. O texto “Vulnerabilidade social e problemática ambiental na gestão dos resíduos sólidos no litoral do Paraná”, de Cinthia Maria Sena Abrahão e Lucia Alencastro, discute os resultados da pesquisa desenvolvida pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), que diagnos- ticou a situação atual dos resíduos sólidos nos municípios do litoral pa- ranaense. O foco da análise são as associações de coletores/separadores de resíduos, que representam os atores para os quais a ITCP tem voltado mais fortemente suas ações desde sua implantação na UFPR Litoral. Na sequência está o texto “Vivência no acampamento José Lutzen- berger: análise da segurança alimentar e nutricional”, de Diomar Augusto de Quadros, Rafael Pantarolo Vaz, Murilo Carzino de Alcântara, Sirlândia Schappo e Eduardo Harder. Esse texto entrelaça a discussão da seguran- ça alimentar e nutricional à questão do acesso a terra, a partir do vivên- cia realizada no acampamento José Lutzenberger em Antonina. A primeira parte do livro encerra-se com o texto de Elsi do Rocio Cardoso Alano, intitulado “Ações empreendedoras no meio rural: a Comu- nidade Pantanal do assentamento Nhundiaquara no litoral paranaense”, que busca analisar o espaço rural e suas possibilidades empreende- doras, a partir de pesquisa realizada com as famílias do Assentamento Nhundiaquara – Gleba Pantanal, situado no município de Morretes/PR. A segunda parte do livro intitula-se Diálogos de pesquisa e ensino. O primeiro texto, “Educação e desenvolvimento na formação do empre- endedor: uma experiência pedagógicana Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral”, de Cristiane Rocha e Márcia Regina Ferreira, traz à tona as mudanças paradigmáticas na formação de gestores e seus reflexos na estruturação do curso de Gestão e Empreendedorismo. 11 O segundo texto, “Enfoque sistêmico na saúde da criança matinhen- se”, de Luize Bueno de Araujo, Vera Lúcia Israel e Magda Maciel Ribeiro Stival, em que destacam a necessidade da construção de indicadores de saúde, com foco na questão do desenvolvimento infantil, contribuindo com as políticas e programas de melhoria das condições de desenvolvi- mento humano da região. Encerrando essa parte do livro, o texto “Aspectos biológicos do pro- cesso de envelhecimento e atividade física”, de Daniela Gallon e Anna Ra- quel Silveira Gomes analisa a questão do envelhecimento a partir dos aspectos neuromusculares, cardiorrespiratórios e composição corporal no envelhecimento e, a partir de então, sensibilizar para reorientação da gestão pública para desenvolver avaliações, métodos, técnicas e instru- mentos relacionados a melhora da qualidade de vida e do desenvolvi- mento sustentável da comunidade do Litoral do Paraná. Finalizando esta apresentação, registramos nossos agradecimentos à equipe de revisores, ao artista visual Carlos Weiner pela produção da capa, a Monica Ardjomand pela diagramação do livro. À UFPR Litoral nosso muito obrigada pelo abrigo às atividades de pesquisa e extensão na real perspectiva da indissociabilidade. Matinhos, novembro de 2011. Valdir Denardin Cinthia Maria de Sena Abrahão Diomar Augusto de Quadros Organizadores 12 Parte I Diálogos de Pesquisa e Extensão 13 Terra inválida, gente invisível: o caso das comunidades rurais extrativistas do litoral paranaense1 Marcia Regina Ferreira2 Raquel Rejane Bonato Negrelle3 Rafael Augusto Ferreira Zanatta4 “A justiça, a lei não veio para ajudar, para nós ela veio para acabar. Só chega aos pequenos, pois os grandes não sofrem com a força ambiental. A gente agora tá assim, gosta e quer produzir porque a gente é igual à terra, mas a nossa terra tá inválida e a gente também” Sebastião Almeida, membro da Comunidade São Joãozinho Introdução - O Embate entre as Perspectivas Preservacionistas e Socioambientais no Tocante as Áreas de Proteção Ambiental e os Reflexos para as Comunidades Rurais A questão da conservação ambiental tem tomado a agenda dos atores governamentais nos últimos anos, principalmente pela política mundial contemporânea de fomento à criação de unidades de conserva- ção, no âmbito das diferentes categorias de manejo. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), instituído no Brasil através da Lei 9.985/2000, estabelece critérios definidos e normas para a implantação e gestão das unidades de conservação. Os objetivos do SNUC, explicitados em seu art. 4°, praticamente coincidem com aqueles estabelecidos pela União Internacional para Conservação da Natureza (UICN). Neste viés 1 Esta é uma versão ampliada do artigo Levando os Caiçaras a Sério: O caso da invisibilidade das Comunidades Extrativistas do Litoral Paranaense publicado no Encontro de Administração Pública e Governança da ANPAD realizado em Vitória/ES – 28 a 30 de novembro de 2010. 2 Administradora, Doutora em Agronomia e Professora da UFPR Litoral. E-mail: marciaregina@ufpr.br. 3 Biológa, Pós Doutora em Gestão Sustentável de Recursos Florestais Não- Madeiráveis e Professora do Departamento de Botânica da Universidade Federal do Paraná. E-mail: negrelle@ufpr.br. 4 Bacharel em Direito e Mestrando em Direito na Universidade de São Paulo – E-mail: rafaelzanatta@usp.br. 14 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES Santilli (2005), assevera que este sistema de proposta de conservação é pautado em uma perspectiva socioambiental, que privilegia a interface entre biodiversidade e sociobiodiversidade, permeada pelo multicultu- ralismo e pela plurietnicidade; diferente da orientação preservacionista, que não atenta para as exigências e necessidades humanas concretas, preocupando-se apenas com o valor de espécies e ecossistemas. O conceito de bens socioambientais está presente e consolidado por todo o SNUC do Brasil, apoiando a tese do jurista José Afonso da Sil- va (2004) de que a defesa do meio ambiente não se reduz à proteção da fauna, flora e do meio físico, mas inclui também a proteção do próprio ser humano, através de suas atividades culturais e materiais. Ampliando o debate acerca das Unidades de Conservação, Vianna (2008) corrobo- ra Santilli (2005) ao sustentar que a aplicação do SNUC poderá propi- ciar que as populações rurais tradicionais, que vivem em unidades de conservação, saiam da posição de invisíveis e tornem-se protagonistas. Isso, por meio da valorização da sociodiversidade e o fortalecimento da organização das populações tradicionais, conferindo-lhes visibilidade e inclusão social, gerando também exercício da cidadania e promoção da justiça social. Nesse estudo, entende-se que as unidades de conser- vação de uso sustentável como as APAs - Área de Proteção Ambiental – podem ter um papel importante na busca por um desenvolvimento socialmente justo e equitativo, o que ainda não ocorre no Paraná, em razão de diversos fatores que serão apontados adiante. Arruda (1999) argumenta que não é só possível, mas é necessário, o caminho da inclusão das populações rurais no conceito de conservação e o investimento no reconhecimento de sua identidade. Tal inclusão se daria por meio de políticas que valorizem o seu saber e contribuam para a melhoria de suas condições de vida, bem como na garantia de sua participação na construção de uma política de conservação que tenha também como beneficiários as próprias comunidades rurais com ativi- dades extrativistas. Ming (1997), ao estudar as florestas e sua conservação, reconhece que as comunidades tradicionais conservam em seu próprio e específico 15 TERRA INVáLIDA, GENTE INVISíVEL processo de manejo as mais diferentes espécies úteis. O uso de tecno- logias agrícolas menos agressivas por essas comunidades - no caso dos caiçaras, apenas a enxada -, permitiu a conservação das florestas nativas. Algumas regiões de Mata Atlântica no Paraná (as porções mais bem con- servadas desse ameaçado bioma) são exemplos dessa interação entre comunidades tradicionais/conservação do ambiente. O conhecimento e a valorização dessas tecnologias são fundamentais para que sejam es- tabelecidas propostas de políticas públicas visando o desenvolvimento sustentável dessas regiões e suas populações. No entanto, um grande problema no campo da gestão do território brasileiro (como a floresta atlântica) decorre da crescente internaciona- lização dos circuitos econômicos, financeiros e tecnológicos do capital mundializado, os quais, de um modo geral, debilitam os centros nacio- nais de decisão e dificultam o comando sobre os destinos de qualquer espaço brasileiro. Villa Verde (2004) argumenta que o território está su- jeito ao aparato público e jurídico em que estão estabelecidas relações de domínio distintas. Como é sabido, a divisão política e administrativa do Estado Brasileiro está organizada em três níveis: federal, estadual e municipal. Esses níveis, legitimados pela esfera pública, impõem-se como o primeiro recorte territorial. Esse recorte ignora a questão das et- nias e culturas e acaba por não reconhecer a condição do outro, daquilo que é distinto, genuíno. Junto a isso, soma-se à gestão do território, sua regulação, as quais são cada vez mais, segundo Santos (2000), domina- das pelas instâncias econômicas. O caso do litoral paranaense não é diferente. No desenvolvimento da pesquisa-ação por meio do Projeto de Extensão da Universidade Fe- deral do Paraná – Setor Litoral intitulado “Cultura e identidade: elemen- tos necessários naprática pedagógica e fortalecimento do local”, coor- denado pela Professora Marcia Regina Ferreira, foi possível identificar o sentimento de opressão que essas comunidades caiçaras rurais vêm sofrendo nas últimas décadas na Área de Proteção Ambiental de Guara- tuba. A declaração do caiçara Sebastião de Almeida, da Comunidade de São Joãozinho, é emblemática: “Antes a gente preparava o material para a pesca e fazia a roça que a gente queria. Aqui todo mundo trabalhava li- 16 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES berto, as famílias em 1940 até 1960, era muito livre. A pessoa trabalhava à vontade. Plantava seu arroz, plantava seu aipim, tinha cana de açúcar, farinha e pescava para comer. Agora é tudo diferente, nem farinha para a gente por no prato tem”. Quando se resgata a história política de nosso país, verifica-se que os governantes militares da década de setenta não levaram em conside- ração a grande perda da sociobiodiversidade brasileira provocada pelo interesse por um desenvolvimento econômico meramente industrial. Esse período foi marcado por incentivos fiscais mantidos para que gran- des grupos ocupassem áreas nativas – a Mata Atlântica do Paraná é um exemplo – com plantação de pinus. Tais programas de incentivos fiscais (Lei 5.106/1966) alteraram o espaço vivido das famílias rurais que preci- saram mudar sua forma de vida5. Perante esse legado pautado na exploração territorial com fins eco- nômicos, Villa Verde (2004) contra-argumenta que o território precisa ser visto com a possibilidade de ser o lugar de todos, sem excluir quem quer que seja. Nesse sentido, a responsabilidade pública deve prevalecer para que as desigualdades não sejam agravadas. E, por outro lado, cabe ao Estado o papel de gestor, planejador, regulamentador que defende os interesses da sociedade como um todo, e não de segmentos. Ao contextualizar a importância do Estado e o papel do ator go- vernamental acerca da conservação na perspectiva socioambiental, o objetivo do presente artigo firma-se em analisar, primeiro, as visões e percepções dos atores governamentais sobre as comunidades rurais extrativistas - de produtos florestais não madeiráveis (PFNM) - estabe- lecidas em unidades de conservação e, segundo, examinar como as ins- tituições governamentais enxergam as políticas públicas do Estado do Paraná. Conhecendo a visão destes atores sobre a conservação e sobre as comunidades tradicionais caiçaras, visou-se contribuir para a amplia- ção do diagnóstico sobre o meio de vida sustentável para as famílias extrativistas no contexto do desenvolvimento rural. 5 De 1966 até o inicio do século XXI o Brasil incentivou os monocultivos florestais (pinus e eucalipto) em grandes aéreas por meio de grandes empreendimentos e grandes proprietários. A extração da madeira que leva de 12 a 15 anos para o corte vem sendo apresentado aos pequenos agricultores como uma fonte segura: a poupança verde. 17 TERRA INVáLIDA, GENTE INVISíVEL Metodologia de Pesquisa - Como Organizar os Dados? Este estudo de caso (YIN, 2001) do litoral paranaense teve como base o método da teoria substantiva ou grounded theory (STRAUS; COURBIN, 2008). A partir dele delinearam-se estratégias para coleta de dados, com pesquisa documental e entrevistas semi-estruturadas com distintos atores da esfera governamental relacionados às questões am- bientais e agrárias (Quadro 1). Quadro 1. Instituições e atores governamentais entrevistados. Municipal Estadual Federal Departamento de Agricultura Secretaria da Agricultura e do Abastecimento Estado do Paraná (SEAB). DFDA-PR - Delegacia Federal do Paraná do Ministério do Desenvolvimento Agrário Departamento de Meio Ambiente Secretaria do Meio Ambiente e recursos hídricos (SEMA) Dep. Sociobiodiversidade MPA - Ministério da Pesca e Aqüicultura - Superinten- dência Federal no Paraná. Secretaria do Bem Estar Social Secretaria de Estado do Pla- nejamento e coordenação geral (SEPL) do Paraná. Paraná Biodiversidade IBAMA Responsável da Uni- dade Secretaria da Educação Instituto Ambiental Paraná (IAP) – litoral/Regional ICMBIO- Instituto Chico Mendes da biodiversidade Atores Estaduais com atuação no município. EMATER - Instituto Paranaense de assistência técnica e exten- são rural. EMBRAPA FlorestaEMATER – Instituto Paranaense de assistência técnica e extensão rural IAP- Instituto Ambiental do Paraná/Departamento socio- ambiental IAP- atua no Mun. de Guaratuba-PR. IAPAR – Instituto Agronômico do Paraná EMBRAPA FlorestaBPflo – Batalhão da Policia Ambiental -Força Verde Fonte: Ferreira (2010). A coleta de dados pela análise documental deu-se por meio de pes- quisa em projetos, decretos, leis e outras fontes secundarias de dados, ocorrendo em vários momentos. No primeiro, para identificar possíveis entrevistados e os projetos desenvolvidos no Estado do Paraná, depois, para verificar os programas existentes. As entrevistas semi-estruturadas foram aplicadas (outubro a novembro de 2009) a atores governamentais 18 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES (n=19) das distintas esferas (municipal, estadual e federal), previamente identificados na pesquisa documental como representantes de institui- ções que idealizam, formulam e executam ações aplicadas no litoral do Paraná. As entrevistas foram precedidas pela apresentação do pesquisador e proposta de trabalho. Os atores governamentais assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, garantindo a proteção e sigilo das in- formações fornecidas, bem como a interrupção de sua participação a qualquer tempo da pesquisa. A entrevista seguiu roteiro semi-estrutu- rado e também contou com comentários registrados por meio de gra- vação consentida. Como resultados das transcrições das dezenove entrevistas, obtive- ram-se oitenta e cinco laudas. Esse material foi submetido às análises de conteúdo (BARDIN, 1988) e substantiva (STRAUS; COURBIN, 2008), na qual os dados são analisados até a saturação para elucidar as categorias. O tratamento dos dados respeitou o processo de categorização com a identificação da visão dos atores governamentais em relação às ativida- des extrativistas, políticas públicas e comunidades que vivem na Mata Atlântica, a partir da agricultura de subsistência. Essas análises foram consubstanciadas nas abordagens de Scoones (1998) sobre nova ecolo- gia e Bebbington (2005) pelo meio de vida rural sustentável em relação à importância das instituições. As Percepções dos Atores Governamentais em Relação às Comunidades Caiçaras Rurais Há mais de dez anos, Arruda (1999) apontou que as comunidades tradicionais, embora corporificassem um modo de vida tradicionalmente mais harmonioso com o ambiente, eram persistentemente desprezadas e afastadas de qualquer contribuição que poderiam oferecer à elabora- ção de políticas públicas regionais. Até hoje, de fato, pouca coisa mudou. As comunidades extrativistas ainda permanecem “invisíveis” para o Poder Público, em razão de seu fraco poder econômico e ausência de organiza- 19 TERRA INVáLIDA, GENTE INVISíVEL ção e representatividade política. No contexto deste trabalho, entende-se por comunidades caiçaras populações litorâneas que apresentam ligações com a terra por meio da lavoura de subsistência, pesca e extrativismo, através da relação de parentesco e ajuda mútua (DIEGUES, 1983). Bebbington (2005), discutindo os processos de desenvolvimento rural sustentável, aponta que as instituições e estruturas sociais tanto fortalecem como fragilizam o ambiente destas famílias. Outros autores indicam que a situação de pobreza no meio rural está diretamente alia- da à negação de direitos, capacidades e oportunidades (ADAMS, 2002; DRUMMOND, 2002; SCOONES, 1998, 1999; BEBBINGTON, 1999, 2005). Nesteâmbito, o Estado e sua infra-estrutura devem viabilizar, fomentar e reforçar mecanismos de sobrevivência digna in loco, através da pos- sibilidade de alterar regras e relações dominantes estabelecidas para o controle e distribuição dos recursos (DRUMMOND, 1996; BEBBINGTON, 1999; 2005; PINHEIRO, 2002). Além de se considerar o papel público e jurídico do Estado, é importante analisar as forças da economia de mer- cado capitalista com relações distintas de domínio público e privado em suas diversas escalas (SCOONES, 1999). Long; Ploeg (1994) inserem o conceito de agência e estrutura, com papel central no estudo da origem e manipulação de informações no en- tendimento do desenvolvimento rural, tendo como princípio o modo que as pessoas categorizam, codificam, processam e imputam significado às suas experiências. Assim, Guivant (1997) pondera sobre a gestão do ter- ritório e a importância da heterogeneidade de conhecimentos nesses es- paços, com a aceitação de que o conhecimento é relativo às situações de interface com os atores. Essa interface com os atores governamentais não é encontrada quando se analisa as comunidades caiçaras (BEGOSSI, 1999), embora se compreenda a importância delas para as análises microssociais a fim de abandonar noções causais simplificadoras do território. Em relação ao território, especial cuidado deve ser dedicado às com- plexas áreas de Unidades de Conservação (UC), em razão da riqueza em sociodiversidade e biodiversidade, bem como pelos diversos conflitos ambientais e sociais relativos ao uso da terra (ADAMS, 2000a; SANTILLI, 20 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES 2005). Com a criação das UCs, percebe-se a valorização em relação à con- servação da biodiversidade e o esquecimento sobre a riqueza cultural das pessoas locais (DUMORA, 2006). Embora Organizações Não Governamen- tais (ONGs) atuem nessas áreas interagindo com as populações rurais, o quadro de desigualdade não se altera devido à ênfase aos trabalhos de conservação (DIEGUES, 2008; ADAMS; 2000, 2000b, 2002). Exemplo desta dinâmica intrincada é encontrado na Área de Prote- ção Ambiental de Guaratuba no Paraná, com 92% da área deste município estabelecida desde 1992 como APA. Uma região com rica biodiversidade, com número significativo de famílias e heterogeneidade agrícola, onde coexistem a agricultura tradicional e comercial, em meio a complexida- des sociais agravadas pela pobreza das populações caiçaras (IAP, 2006). Na agricultura tradicional ocorre o cultivo de milho e mandioca para o consumo próprio, em áreas de um hectare, vindo o extrativismo comple- mentar a renda da unidade doméstica, existindo diferenças entre os que dependem do extrativismo dos PFNMs para sobrevivência e aqueles que o utilizam para reforçar o ganho mensal familiar (SONDA, 2002; BALZON, 2006; NOGUEIRA et al., 2006; FERREIRA, 2010). Dentre os estudos disponíveis sobre o extrativismo dos PFNMs na APA de Guaratuba, destacam-se os que enfatizam a cadeia produtiva (BALZON, 2006; NOGUEIRA et al., 2006), o enfoque etnobotânico (NEGRELLI; FORNA- ZZI, 2007, VALENTE, 2009) e ecológico de regeneração dos recursos utili- zados (VALENTE, 2009). Porém, pouco, ou quase nada, foi estudado sobre o impacto sócio-cultural-econômico e sua real sustentabilidade em rela- ção às famílias caiçaras. No entanto, esta informação não é nova. Adams (2000b), ao realizar um levantamento sobre os estudos acadêmicos, tam- bém identificou que os trabalhos publicados sobre conservação poucos tratavam o tema relativo às comunidades caiçaras. No litoral do Paraná, em especial na APA de Guaratuba, constata-se, ainda, que em relação à escala de interações das comunidades caiçaras em relação ao âmbito municipal e estadual, encontra-se uma verdadeira afronta aos princípios de participação e informação, que são o arcabou- ço valorativo e jurídico que sustentam as formas de participação da so- 21 TERRA INVáLIDA, GENTE INVISíVEL ciedade nos processos de tomada de decisão coletiva (FERREIRA, 2010). Ademais, o próprio Poder Público, em suas diversas esferas, reconhece sua dificuldade em lidar com os problemas das comunidades tradicio- nais e fomentar a participação de tais comunidades na formulação de políticas públicas. Em razão de tal realidade, a pesquisa identificou a percepção dos atores governamentais acerca das comunidades tradicionais extrativis- tas na Área de Proteção Ambiental no Paraná e constatou um quadro grave com relação ao desenvolvimento de políticas públicas que sejam efetivas na garantia dos direitos constitucionais. Nesse estudo, as visões foram distribuídas em quatro classes – de- terminista indiferente, propositivo, favorável, desfavorável -, variando de acordo com a esfera de atuação política dos atores governamentais no âmbito Estadual e Municipal, conforme Figura 1. Para a melhor compreensão do posicionamento apresentado grafi- camente, deve-se analisar pontualmente o que cada uma dessas classes comportamentais, ou percepções acerca da realidade das comunidades extrativistas, por parte dos atores governamentais representa em sua dimensão político-social. Determinista indiferente: reconhece as limitações do Estado e estag- nação das comunidades rurais extrativistas. Alguns manifestam apatia sobre a situação de comunidades empobrecidas, quanto à dificuldade de operacionalização e desenvolvimento de ações no Estado. Eles reconhe- cem uma abordagem de planejamentos desenvolvida com alternativas elaboradas por técnicos, cabendo a atores estaduais e federais do Estado fazer cumprir essas determinações. Muitas decisões sobre conservação da Mata Atlântica são ideais, principalmente pela visão dos que são ex- ternos aos trabalhos no Paraná. A experiência demonstra o pouco inte- resse por caminhos, frente à realidade encontrada pelos atores governa- mentais que decidam diariamente sobre comunidades rurais tradicionais e conservação da natureza. Os funcionários afirmaram que não são con- sultados quando do planejamento de ações políticas e inclusão social. 22 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES Figura 1. Distribuição percentual do posicionamento dos atores governamentais em relação às comunidades rurais extrativistas. Estadual Municipal Determinista indiferente 17% 29% 17% 0% 25% 28% 41% 43% Determinista indiferentePropositivo Propositivo Favorável FavorávelDesfavorável Desfavorável Fonte: Ferreira (2010). Propositivo: favorável à manutenção das famílias no campo, reco- nhece as limitações do Estado, apresenta propostas para mudança pela perspectiva socioambientalista e revela constrangimento durante os diálogos e reflexões. O conhecimento, mesmo que histórico, sobre a realidade das comunidades caiçaras empobrecidas e o entendimento sobre o funcionalismo do Estado nos planejamentos de políticas terri- toriais geram desconforto profissional. Eles concordam e reconhecem que existem diversas dimensões: ambiental, cultural, espacial, demo- gráfica e econômica, e mesmo assim o Estado acaba sendo regulado pela dimensão econômica. Essas informações não são estáticas e rígi- das. Uma ação diferenciada poderá mudar o cenário de indiferença pre- senciado e manifestado. Favorável: considera importante a existência das comunidades na floresta para sua manutenção e do território com perspectiva so- cioambientalista. Destacam que as políticas públicas poderiam ser de- senvolvidas na retomada da presença do Estado, evitando que o poder paralelo constituído e atuante das ONGs e igrejas continuem a crescer nesses espaços empobrecidos. No entanto, não apresentam propostas nos diálogos ocorridos. Desfavorável: é contra a permanência de comunidades na floresta. Possui visão preservacionista e conservacionista, com atenção maior à preservação da floresta sem interação humana. O mito da Floresta comointocada. 23 TERRA INVáLIDA, GENTE INVISíVEL As visões e percepções demonstradas pelos atores governamen- tais do Paraná sobre as comunidades rurais extrativistas estabelecidas em unidades de conservação apresentaram um posicionamento (Figu- ra 1) que, embora num primeiro momento pareça favorável em rela- ção às comunidades caiçaras, é pessimista, tendente à concepção de aniquilamento das comunidades tradicionais em razão da organização e estrutura do Estado. Isto pois, no litoral do Paraná existem diversas instituições e estruturas sociais que fragilizam e impactam as comuni- dades caiçaras, tais como as ONGs; o Estado pela sua falta de atenção a essas populações; o sistema capitalista, por meio dos interesses de terra e preocupação ambiental; e a cultura, por sua história de subordinação e ênfase na abordagem preservacionista que prega a dicotomia confli- tante entre homem e natureza. Os atores governamentais envolvidos em pesquisa, extensão, fis- calização e desenvolvimento de programas de governo, apontam fra- gilidades e necessidades dos caiçaras paranaenses que vivem na Mata Atlântica, em relação ao seu modo de vida atual e futuro. Os elementos apontados emergem de uma posição dos atores governamentais, tanto do âmbito municipal, estadual quanto no federal (Quadro 2). Entre os atores governamentais, o Município mostrou-se favorável aos investimentos em relação à valorização da cultura caiçara e sua per- manência na Mata Atlântica. O Município foi, ao mesmo tempo, quem pontuou o quanto é difícil para o local desenvolver políticas de apoio e acesso a essas comunidades, pois o poder municipal atua atendendo demandas mais urgentes, e estas estão alocadas em grupos urbanos da cidade e grupos organizados do rural. Dentro desse cenário, os atores municipais, embora cientes da importância dessas comunidades, não conseguem ver alternativas para uma ação a partir do local. Além disso, os atores apresentaram que as políticas desenvolvidas nos últimos dez anos foram de intensificação da fiscalização e cuidado do meio ambiente por meio de leis ambientais, as quais não favorece- ram a agricultura familiar ou campesina dos caiçaras em regiões trans- formadas em área de proteção ambiental. Destacam ainda que essas 24 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES leis, por meio da intensificação da fiscalização, acabaram por excluir as comunidades tradicionais. As ações são de controle e coerção; e não de inclusão ou em educação para o desenvolvimento comunitário. Quadro 2. Percepções dos atores nos âmbitos local, estadual e federal sobre o presente e o futuro das populações caiçara. Instituições Fragilidades das comunidades caiçaras do litoral paranaense Federal Não há interesse do Estado em dispensar atenção a essas populações caiçaras. Pois, existem instrumentos, na sociedade civil e internacional que protegem direitos humanos e deveriam ser aplicados na biodi- versidade. ONG A falta do Estado cria um Estado paralelo e surgem outros princípios em nome do meio ambiente. As populações caiçaras tradicionais em áreas transformadas em APA podem ser expulsas para a criação de RPPN. Município Não tem recursos para isso, nem estrutura, não tem pessoal técnico capacitado para operacionalizar essas ações. A gestão municipal é mais voltada para o urbano e o espaço rural organizado. Política Ação preser- vacionista A fragilidade deles está na ênfase na questão ambiental aliada à infra- estrutura precária unificada a omissão do Estado, o qual não tem in- vestimento e nem fundo cultural para essas comunidades. Os caiçaras rurais encontram-se em uma situação preocupante, porque o olham para eles como separados da natureza. Capitalismo O capitalismo faz com que elas percam a identidade, e os meios de trabalho. Fonte: Ferreira (2010). Os atores responsáveis pela fiscalização que atuam no âmbito do Município de Guaratuba acreditam que a criação da APA amplia a visibi- lidade dessas famílias e promove uma melhoria na sua condição de vida, embora exija também maior fiscalização. No entanto, identificou-se um desconhecimento dos próprios atores municipais em relação à APA, pois uma Secretaria indicou que a criação da APA melhorou muito a vida das famílias rurais extrativistas, o que demonstra uma falta de conhecimen- to da realidade. Ocorreu um forte investimento na APA em relação ao aparato do equipamento público para a fiscalização da área protegida (instalações novas, carros, equipamentos e uniformes). Alguns entrevistados revela- ram que, em nome do meio ambiente, o modo de vida dessas comuni- dades tem sido destruído, pois não há investimento na melhoria da qua- 25 TERRA INVáLIDA, GENTE INVISíVEL lidade de vida, apenas na fiscalização para a conservação da natureza, voltada para a repreensão dessas comunidades. Afirmam que deveriam existir investimentos privados e públicos a fim de melhorar as condições de vida das comunidades residentes na APA. Os investimentos que ocorreram no Paraná no período de 1997 a 2007, por meio de um programa chamado Pró-Atlântica, financiado pelo banco alemão KFW, tiveram como objetivo a preservação e conservação da Floresta Atlântica. Foi escolhido o litoral do Paraná justamente por ser um dos locais maiores e mais bem conservados da Floresta Atlântica no Brasil, e por ser uma das unidades de conservação com rica biodiversi- dade. Foi um investimento de mais de cinqüenta milhões de euros, em dez anos. A política estabelecida por meio desse investimento privado teve como finalidade o controle e regulação sobre as famílias caiçaras, principalmente em relação ao seu modo de vida. A melhoria no modo de vida das famílias caiçaras, no entanto, so- mente será possível se as instituições públicas desenvolverem uma visão socioambiental em relação aos territórios ocupados por elas (SANTILLI, 2005). As relações estabelecidas atualmente ocorrem por meio de um distanciamento das realidades dessas comunidades, sendo que o Esta- do apenas aparece como instituição de regulação (como por exemplo, por meio do IAP) ou de controle e multa (por meio da Polícia Ambiental Força Verde). Essas ações culminam também em limite para ação extra- tivista sustentável pela falta de diálogo, entre as comunidades e Estado, para o estabelecimento de regras claras, e também pela necessidade que as famílias possuem de acessos a outros recursos, além dos naturais disponíveis na Mata Atlântica. Esse cenário oportuniza para que as famí- lias tornem-se ainda mais marginalizadas e exploradas pelos intermedi- ários, permanecendo em um ciclo perverso de pobreza (BELCHER, 2005, BALZON, 2006, VALENTE, 2009, FERREIRA, 2010). A partir dos estudos do projeto de extensão “Cultura e Identidade”, identificaram-se os mesmos elementos que Cristina Adams encontrou no litoral paulista. Adams (2002) relatou que as populações locais da Flo- resta Atlântica sempre ocuparam uma posição político-econômica peri- 26 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES férica e, nas últimas décadas, sofrem com a perda do seu modo de vida (agricultura, pesca e artesanato) devido aos processos de criação das Unidades de Conservação. As mudanças na paisagem rural promovem o fortalecimento da exclusão histórica e sócio-ambiental das comunida- des rurais litorâneas. No tocante à forma que estão estruturados os acessos para os di- álogos das comunidades com as instituições governamentais e como eles enxergam as políticas públicas do Estado do Paraná, observa-se que os atores governamentais consideram que essas políticas impactaram mais negativamente que positivamente nessas comunidades. A questão das políticas públicas voltadas para o litoral paranaense na análise dos próprios autores foi mais danosa que benéfica, quando ocorreram. O principal problema apontado está na falta de entendimen-to do Estado em relação à lógica do caiçara. A realidade do modo de vida e dos laços sociais que a permeiam, assim como as características específicas que os caiçaras possuem, precisa ser considerada na elabora- ção das políticas públicas. No entanto, os atores institucionais não con- seguem desenvolver esse diálogo necessário. Evidenciou-se que apenas dois programas do governo estadual apresentaram impactos positivos (Quadro 3). Quadro 3. Evidências do papel das políticas e seus impactos nas comunidades. Ações Frases das entrevistas Impacto Interferência do Estado Projeto Universidade Sem Fronteiras Este projeto trabalha na área social e produtiva na ideia do Mutirão, estudar como funciona e propor para eles a partir da prática e não da lógica de mercado. Promove o diálogo e reforça nas pessoas do meio rural a capacidade de acessar recursos. Positivo Falta de Integração Paraná 12 meses. Política de cima para baixo, sem integra- ção. Seria necessário analisar a realidade para entrar com projetos com aceitação da comunidade. Porém é muito difícil de trabalhar desse modo, não temos funcionários. Negativo Ausência do Estado O Estado está ausente e despreparado para atuar nas co- munidades tradicionais. E quando intervém como política pública geralmente ele é mais danoso do que benéfico. Negativo Fonte: Ferreira (2010), continua 27 TERRA INVáLIDA, GENTE INVISíVEL Ações Frases das entrevistas Impacto Interferência do Estado Diálogo por meio de associação Falta gente para dialogar com esse pessoal mais distan- te, é preciso uma correlação de formas de organização para formar conselhos e associações. E o que é ruim, é que quanto maior a condição de pobreza menor é o po- tencial de reivindicação. Negativo Fiscalização Falta de diálogo As restrições para o atendimento de demanda ambiental e privado sem diálogo com as comunidades tradicionais acarretam punição aos caiçaras a fim de prevenções in- fundadas para a proteção do meio ambiente. Negativo Tarefa de repressão A cada 40 profissionais na fiscalização (federais e estadu- ais), temos no Estado 3 profissionais (entre agrônomo do Município e técnico da EMATER) para práticas agrícolas. Muitos para fiscalizar e poucos para fomento. É preciso mudar isso. Negativo A tarefa tem sido de repressão do que integração, menos de conscientização sobre a preservação de uso sustentável. Negativo Política social Políticas organizadas Ação do Estado positiva em Serro Azul (PR). Existe um conjunto de agricultores organizados que se beneficiam das políticas específicas. Quando se organiza, consegue acessar o Estado. Positivo Precariedade no atendimento ás comuni dades do campo Há precariedades no acesso às estradas; comunicação, saúde, escolas e assistência técnica não chegam a essas comunidades, mas a fiscalização se faz presente. Negativo Unidade de conservação e Legislação ambiental Facilitador do acesso as políticas Os acessos às políticas promovem desenvolvimento nas comunidades, mas ficam apenas limitadas ao que já tem. Porém, essas políticas não têm a abrangência necessária. Negativo Dicotomia ho- mem e nature- za dificultam a sustentabili- dade cultural e ambiental O método de subsistência tradicional serve para ali- mentar a família. No entanto, isso é visto como forma de degradação ambiental pela legislação. É preciso que o Estado mude o jeito de conceber o rural. Negativo Sociedade civil e perfil da comunidade caiçara Projetos in- coe rentes com a realidade e falta de infor- mação O técnico costuma aplicar projetos que não se adequam à lógica de sobrevivência caiçara. Negativo Representati- vidade Clientelismo e personalismo nas ações políticas. As pes- soas empobrecidas têm dificuldades na escolha de seus representantes; o voto virou moeda de troca. Outra forte influência é a igreja, gerando movimento de organização. Negativo Fonte: Ferreira (2010). 28 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES Os impactos negativos foram relacionados à falta de integração, di- álogo, falta de associação e conscientização política das comunidades caiçaras, ou seja, uma invisibilidade sobre a realidade dessas famílias e também por uma falta de acesso para o desenvolvimento de suas capa- cidades (BEBBINGTON, 1999). No entanto, para esses atores municipais, o Município é pequeno demais para o planejamento e a organização do desenvolvimento rural, porém o Estado também não tem condições de conhecer todas as ne- cessidades e as heterogeneidades existentes no litoral do Paraná. Dessa forma, salienta-se a falta de diálogo entre esses atores, o que leva a de- senvolver políticas públicas de gabinetes por planejadores que desco- nhecem as especificidades locais. Quanto a esse cenário, os atores municipais expressaram que os problemas relacionados à eficiência das políticas públicas encontram-se principalmente em relação ao acesso e conhecimento das famílias no li- toral (Figura 2) e à falta de funcionários para estabelecer esses processos, tanto de comunicação com as famílias, como com os órgãos do Estado. Figura 2. Fatores que contribuem para a ineficiência das políticas públicas nas comuni- dades rurais litorâneas e posicionamento dos atores governamentais. Estudo distante das comunidades Fraqueza institucional Política Vertical Determinista Propositivo 30% 30% 40% 67% 33% Fonte: Ferreira (2010). Como resultado, observa-se no Município falta de estrutura e capaci- tação técnica dos atores governamentais locais e atenção a essas comuni- dades desassistidas. No Estado do Paraná, a falta de funcionários técnicos para estabelecer essas alianças, assim como as mudanças de governo, inibe a continuidade de programas em escala regional e nacional. No go- 29 TERRA INVáLIDA, GENTE INVISíVEL verno Federal, as elaborações de políticas púbicas padronizadas não con- sideram a heterogeneidade das comunidades litorâneas do Paraná. Na perspectiva socioambiental, para a formulação de políticas públi- cas mais próximas da realidade caiçara, é necessário o reconhecimento da floresta cultural. Este conceito parte do pressuposto que as famílias caiça- ras secularmente vivem na floresta com diversas práticas sociais, as quais merecem ser reconhecidas e valorizadas pelos poderes públicos ao pla- nejar políticas para o território. Dentro deste conceito de floresta cultural, Furlan (2006) apresenta que as florestas culturais ou sociais, aquelas mane- jadas pelas populações locais, compreendem-se como espaço onde essas populações vivem a sua territorialidade e usam seus recursos por meio de práticas passadas entre gerações. No entanto, observa-se que ainda nos dias de hoje essa territorialidade não é reconhecida nos instrumentos le- gais de proteção e conservação de florestas, embora se saiba que as flo- restas nunca foram espaços vazios. O reconhecimento da floresta cultural e a identidade das comunidades caiçaras direcionam-se para a construção de uma gestão da floresta como um todo e implica reconhecer também a importância da multifuncionalidade no ecossistema florestal. É preciso que os agentes envolvidos nessas políticas consigam en- xergar a multifuncionalidade também das famílias na Mata Atlântica, pois seu reconhecimento envolve dimensões que contribuem para o futuro do território, como a dimensão econômica, sociocultural, institucional e ambiental. Os agentes governamentais não podem considerar apenas a dimensão econômica, mas sim aquela que melhor representa o modo de vida dessas comunidades. Para a ação extrativista de forma sustentável pelas comunidades rurais, torna-se necessário que ela ocorra como complementaridade no orçamento da Unidade familiar desenvolvida dentro de diversas outrasatividades. Por isso, o conceito de pluriatividade torna-se tão importante, assim como de multifuncionalidade das famílias no meio rural, como cui- dadores da floresta e portadores de uma herança cultural de um modo de vida. Infelizmente, hoje os interesses dos atores governamentais se vol- tam apenas para agricultores organizados dentro de uma perspectiva de produção agrícola empresarial, com pouca manifestação comunicacional 30 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES no local para se conhecer e estudar as possibilidades de melhoria de vida dessas famílias extrativistas. Embora exista a questão ambiental e agrícola nessas regiões con- sideradas como Unidades de Conservação de uso sustentável, as aten- ções e as políticas estão centradas no quesito conservação da natureza e exclui o ser humano, já que a UCs como APA têm sua atenção na biodi- versidade e não na sociodiversidade. Nesse sentido, considera-se que a conservação da natureza foi tam- bém alterada por essa política de incentivo à formação de florestas de Pinus e eucaliptos, ocasionando uma mudança no território (em sua bio- diversidade e sociodiversidade) das famílias caiçaras. Essa ênfase dada às empresas de reflorestamento, com o enfoque no crescimento econômico do país na década de setenta, desconsiderou as comunidades rurais que ocupavam há tempos essas áreas. Tais políticas tiraram das famílias o aces- so ao recurso natural – as terras - para o cultivo de diversas culturas. Isso também gerou uma relativa instabilidade psicossocial nas famílias, no to- cante ao significado de seu trabalho e sua vida (FERREIRA, 2010). Há uma clara distância entre o ideal e o real na percepção dos ato- res governamentais, manifestada sobre as políticas públicas necessárias e possíveis às comunidades rurais com atividades extrativistas a fim de que as mesmas possam permanecer na Mata Atlântica (Figura 3). Isso de- monstra que o caminho para uma possível visibilidade das comunidades caiçaras depende, em grande parte, de uma nova postura do Estado. Figura 3. Sugestões dos atores governamentais sobre políticas públicas necessárias às comunidades com atividades extrativistas. 60,34% 12,08% 10,34%17,24% Nova postura do Estado Geração de emprego e renda Educação diferenciada Acesso a direito e a cidadania Fonte: Ferreira (2010). 31 TERRA INVáLIDA, GENTE INVISíVEL Os atores governamentais acreditam que, em primeiro lugar, é pre- ciso realizar uma mudança na postura do Estado em relação às comu- nidades rurais extrativistas, como: revisões na legislação ambiental, re- gularização fundiária, divulgação do conhecimento tradicional, políticas públicas que incentivem e financiem pesquisas voltadas para a concilia- ção da permanência de agricultores familiares com as UCs, trabalhos de parceria entre Universidade e Estado e decisão em relação à erradicação da pobreza no meio rural. Com relação às sugestões dos atores governamentais sobre políticas públicas necessárias às comunidades com atividades extrativistas, consta- ta-se uma postura acomodada por parte dos agentes estatais, eis que, em última instância, eles são agentes do Estado e “sabem muito bem o que fazem”, conforme expressão do filósofo contemporâneo Zizek (1992). No tocante à abordagem proposta por Bebbington (2005) sobre os programas, leis e políticas de desenvolvimento criados pelos dirigentes das instituições estaduais - e como elas afetam o meio de vida dessas co- munidades rurais -, observou-se que, no caso em análise do Paraná, o Go- verno Federal gerou impacto nas famílias caiçaras por conta de ações es- tabelecidas na década de setenta. Nesse período foram criadas políticas de desenvolvimento via programas de incentivos fiscais (Lei 5.106/1966), voltadas para a valorização de florestas plantadas como a de pinus. Essas políticas fomentaram mudanças de paisagem na Mata Atlântica em rela- ção ao uso da terra pelas famílias caiçaras, que hoje estão encurraladas pelas empresas de reflorestamento na APA de Guaratuba. Em suma, no Paraná, a conservação da natureza foi primeiramente alterada em razão da política de incentivo à formação de florestas de pinus, ocasionando severas mudanças no nível local (território da famí- lia). Em outros termos: não foram as populações locais que alteraram a paisagem da Mata Atlântica, mas o próprio Estado, ao atender aos inte- resses econômicos de grupos internacionais. Corona (2006), ao estudar a vida comunitária rural da região me- tropolitana de Curitiba-PR, encontra transformações semelhantes no território ocasionadas pela interferência de grupos econômicos com 32 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES investimento em derrubada de mata nativa para o reflorestamento (Comfloresta – Grupo Brascam do Brasil), somado à presença opressora da fiscalização nas áreas protegidas. Independente da região, as ações das instituições sempre impactam na vida das famílias no meio rural, seja positiva ou negativamente. No litoral paranaense, segundo Gruntowski (2005), a parceria finan- ceira entre o Governo da Alemanha, por meio de seu agente financiador – o Banco KFW – e o do Paraná até o ano de 2004, gerou um investimento no valor de R$ 40 milhões para o programa de preservação, conservação e recuperação da Floresta Atlântica paranaense. A área de abrangência do Programa corresponde a uma área de 12 mil quilômetros quadrados, incluindo no programa quinze Municípios do Paraná. Todos na perspec- tiva de fiscalização e controle, pois o programa não previa investimentos para processos sócio-educativos com as comunidades em uma perspec- tiva de troca de saberes acerca da floresta e sua conservação. Segundo Santos (1997), um Estado-regulador precário na organiza- ção e conhecimento da administração pública no estabelecimento de suas ações desenvolve uma assimetria em relação aos serviços prestados e à informação para o uso do dessas ações. Os recursos provenientes da criação da APA, como o repasse do ICMS-Ecológico, não são acessados ou utilizados pelas comunidades da floresta, embora o exercício efetivo da cidadania exija o fomento da capacidade de publicizar as instituições governamentais e estabelecer práticas democráticas cotidianas (LOU- REIRO et al., 2004). A falta de um programa específico e transparência no uso dos repasses financeiros para as UCs possibilitam que tais recursos sejam utilizados nas despesas gerais do Município. A ênfase dos recursos está na fiscalização, diminuindo os investimentos em infra-estrutura ou processos de organização das comunidades. Os investimentos públicos, nesse setor, são direcionados à fiscalização, à formação de conselhos e a discussões sobre os planos de conservação. Por fim, a pesquisa desenvolvida nos últimos três anos com as co- munidades locais e no ano de 2009 com os atores governamentais, apresentou um cenário de invisibilidade das famílias caiçaras que, em 33 TERRA INVáLIDA, GENTE INVISíVEL grande parte, também está relacionada com a situação de opressão des- tas famílias nas últimas décadas. O fato dos membros da Comunidade serem posseiros e iletrados - valendo-se apenas da oralidade, dos cos- tumes e da boa-fé - acaba por limitar as possibilidades de organização social para a formulação de políticas públicas que objetivem maiores mudanças à longo prazo. Isso implica que, no complexo sistema político de formulação e execução de políticas públicas por parte do Estado (que inclui os diversos interesses de grupos privados organizados), os caiça- ras não possuem força suficiente para terem suas demandas atendidas. Por outro lado, os atores governamentais mostram-se (até certo ponto) sensíveis às condições de vida dos caiçaras, reconhecendo os conflitos atuais, porém, atuam conforme uma agenda que objetiva apenas a fis- calização e respostas às demandas urgentes, formuladaspor grupos de interesses organizados frente ao Estado. Diante deste quadro, é preciso perseverar o estudo sobre a mútua relação entre a distribuição econômica, a distribuição ecológica e a dis- tribuição do poder político. Enfim, avançar nos estudos da ecologia polí- tica (MARTÍNEZ ALIER, 1998), com o escopo de reverter tal cenário social através do empoderamento dos caiçaras, mediante a aproximação entre a universidade e as comunidades tradicionais, e conseqüente conscien- tização dos agentes governamentais acerca de tal realidade através da publicização dos problemas e assimetrias aqui discutidos. Considerações Finais: Identificado o Problema, Como Mudar o Cenário Atual? O propósito central deste artigo foi o de analisar as percepções e visões dos atores governamentais do âmbito local, Estadual e Federal sobre as comunidades rurais com atividades extrativistas, estabelecidas em Unidades de Conservação, assim como o seu entendimento sobre as políticas públicas existentes e seus impactos nessas famílias caiçaras. Ao privilegiar o prisma destes agentes pouco investigados pela lite- ratura, o presente estudo procurou inverter o enfoque tradicionalmente 34 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES utilizado para a investigação acerca do meio de vida rural sustentável. Com esta inversão investigativa foi possível problematizar diversos as- pectos ressaltados pela literatura em relação ao comportamento gover- namental diante da questão ambiental e das comunidades tradicionais caiçaras. Neste sentido, o primeiro aspecto apresentado neste estudo de campo, pautado pela abordagem da Teoria Fundamentada, foi a consta- tação que a aplicação do SNUC como instrumento poderá propiciar às populações rurais tradicionais, que vivem em unidades de conservação, uma possível noção de protagonismo, ou seja, que saiam da situação de invisíveis que hoje se encontram. No entanto, a pesquisa apresenta que este é um longo caminho, já que esses grupos pertencentes a comuni- dades rurais com atividades extrativistas, não conseguem participar da formação da Agenda, ou seja, ainda não possuem mobilização política necessária para manifestar suas demandas. Com efeito, foi possível identificar que a valorização da sociodiversi- dade e o fortalecimento da organização das populações tradicionais, conferindo-lhes visibilidade, inclusão social, exercício da cidadania e a promoção da justiça social, ainda não estão contemplados por meio de programas do Estado do Paraná ou por meio de políticas locais de valo- rização da cultura caiçara. Essa situação reflete o paradigma da moderni- dade abordado por Santos (1997), onde o Estado manifesta uma tensão dialética entre a regulação social e a emancipação social dividindo-se ora como Estado-regulador, ora Estado-providência. Embora as unidades de conservação de uso sustentável tenham sido consideradas como institutos importantes para a interação ho- mem-ambiente em determinados territórios, como apresentado nas narrativas dos atores governamentais, a busca de seu fortalecimento e a construção de espaços que desenvolvam processos que envolvam as comunidades, a fim de se alcançar um meio de vida socialmente justo e equitativo, ainda não foram contemplados. Por fim, urge a elaboração de políticas públicas de longo prazo pau- tadas na educação e participação política dessas comunidades caiçaras, caso o Paraná deseje, de fato, promover justiça social e ambiental. Esta 35 TERRA INVáLIDA, GENTE INVISíVEL pode ser pautada no envolvimento sustentável apresentado por Viana (1999), no qual se destaca a importância do dialogo legitimo para a con- servação das florestas pelo reconhecimento e valorização das comu- nidades caiçaras. A inércia dos agentes governamentais pode resultar em graves danos a essas comunidades rurais, já desestruturadas pelas limitações produtivas e pela perda de identidade, em especial com seus tradicionais vínculos com a terra. É preciso levar os caiçaras a sério e agir. Referências ADAMS, C. As populações caiçaras e o mito do bom selvagem: a necessidade de uma nova abordagem interdisciplinar. Revista de Antropologia, n.43, v.1, 2000. ADAMS, C. As roças e o manejo da Mata Atlântica pelos caiçaras: uma revisão. Interciencia, n. 25, p. 143-150. 2000a. ADAMS, C. Caiçaras na Mata Atlântica: pesquisa cientifica versus planejamen- to e gestão ambiental. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2000b. ADAMS, C. “Identidade Caiçara: exclusão histórica e sócio-ambiental. In: Atuali- dades em Etnobiologia e Etnoecologia. Recife: Sociedade Brasileira de Etno- biologia e etnoecologia. 2002. ARRUDA, R. Populações Tradicionais e a Proteção dos Recursos Naturais em Uni- dades de Conservação. 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Em meio a diversas formas de violência, discutimos neste texto, uma das manifestações da violência de gênero: a violência doméstica contra mulheres. Oliveira (2005) relata que a violência se apresenta de forma diferen- te para homens e mulheres. Argumenta que o homem sofre a violência majoritariamente nas ruas, nos espaços públicos, em geral, praticada por outros homens que lhe são estranhos. Enquanto isso, as mulheres sofrem predominantemente a violência masculina, ou seja, perpetra- da por homens, dentro de casa, no espaço privado. Seus agressores são com frequência o namorado, marido, companheiro ou ex-cônjuge. 1 Enfermeira, Filósofa, Doutora em Ciências Humanas e Professora da UFPR Litoral. E-mail: nadiathe@gmail.com. 2 Odontólogo, Mestre em Saúde Coletiva e Professor da UFPR Litoral. E-mail: daniel.canavese@ufpr.br. 3 Fisioterapeuta, Mestre em Fisiologia e Professor da UFPR Litoral. E-mail: sarcosina@yahoo.com.br. 40 LITORAL DO PARANá - REFLExõES E INTERAçõES Nesse caso é chamada “violência por parceiro íntimo”, pois é praticada no interior de uma relação conjugal. Alguns autores, como Schraiber et al. (2005), consideram o termo “violência doméstica”, pois comumente ocorre no espaço doméstico, no seio das relações familiares. Importante ressaltar que mulheres com orientação sexual homossexual ou bissexu- al também podem ser vítimas de violência doméstica ou violência por parceira íntima (DONOVAN et al., 2006), embora os relacionamentos he- terossexuais parecem refletir uma maior assimetria de poder entre ho- mens e mulheres, resultando em sérios agravos à essas mulheres. A violência doméstica contra as mulheres é tema antigo, grave e persistente. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que uma en- tre três mulheres no mundo é, já foi ou será um dia vítima de violência doméstica (KRUG et al., 2002). A invisibilidade do problema e os desca- sos com as graves conseqüências, que atentam a elementares direitos humanos, são frutos da naturalização da submissão feminina que per- passa a sociedade sexista, heteronormativa e homofóbica. Questões de poder, de poderes, permeiam as relações e as representações dos gêne- ros, influenciando fortemente a violência contra mulheres nos âmbitos doméstico, urbano, no trabalho, dentre outros. Essa violência física e moral, naturalizada por muitos séculos, tem sido denunciada e visibilizada nos últimos anos, decorrente especial- mente das lutas feministas e de direitos humanos. Diversos grupos, liga- dos ou não a instituições de defesa de direitos, por exemplo, Academia, Organizações Não-Governamentais (ONGs), ou mulheres e homens in- dividualmente, têm contribuído para a exposição desse drama humano que necessita ser extinto. Refere-se que, ao lado da visibilização, o que está ocorrendo é um aumento de registros de casos de violência contra mulheres, o que torna essa reflexão e abordagem o fulcro de qualquer proposta de desenvolvimento ou de projeto de melhoria de qualida- de de vida com justiça de gênero. Assim, iniciamos contextualizando o tema de nosso trabalho. O cenário de desenvolvimento desse projeto é o Litoral do Paraná. A região abrange sete municípios, a saber: Antonina, Guaraqueçaba, Guaratuba, Matinhos, Morretes, Paranaguá e Pontal do Paraná e uma 41 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA MULHERES NO LITORAL DO PARANá população
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