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Karla Leandro Rascke Valéria Moreira Coelho de Melo (Organizadoras) Amazônia(s) em História(s) Diversidade, ensino e política Karla Leandro Rascke Valéria Moreira Coelho de Melo (Organizadoras) Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política 1ª edição Marabá-PA, 2021 © Karla Leandro Rascke, Valéria Moreira Coelho de Melo (Organizadoras) 2021. A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98. Imagens capa e contracapa Valéria Moreira Coelho de Melo Projeto Gráfico e Diagramação Rosivan Diagramação & Artes Gráficas Catalogação da Publicação na Fonte. Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política [recurso eletrônico] / Karla Leandro Rascke e Valéria Moreira Coelho de Melo (organizadoras). – Marabá: Rosivan Diagramação & Artes Gráficas, 2021. 1 PDF. ISBN 978-65-993583-6-4 1. Ensino – História – Amazônia. 2. Política. 3. Recursos naturais. 4. Diversidade. I. Rascke, Karla Leandro. II. Melo, Valéria Moreira Coelho de. CDU 908:93/94(81) A489 Elaborada por Verônica Pinheiro da Silva CRB-15/692. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO USO DOS RECURSOS NATURAIS NO SUL E SUDESTE DO PARÁ: OS IMPACTOS DA MINERAÇÃO E PROJETOS DE INFRAESTRUTURA SOBRE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS Rita de Cássia Pereira da Costa Valéria Moreira Coelho de Melo Fabiano Campelo Bechelany AUSÊNCIAS E SILENCIAMENTOS: APONTAMENTOS ACERCA DO COMPONENTE HISTÓRIA NO DOCUMENTO CURRICULAR DE RORAIMA Monalisa Pavonne Oliveira DESCOLONIZAR E ENEGRECER O ENSINO DE HISTÓRIA: UM OLHAR INTERSECCIONAL SOBRE RELATOS DE ESTUDANTES NEGRAS DO SUL DO PARÁ Andreia Costa Souza Dernival Venâncio Ramos Júnior EDUCAÇÃO, EXPERIÊNCIA E JUVENTUDE: ESTUDANTES QUILOMBOLAS E A ESCOLA EM ARAGUATINS-TO Luciano Laurindo dos Santos Luziane Laurindo dos Santos POLÍTICAS EM MOVIMENTO: AÇÕES AFIRMATIVAS PARA A GRADUAÇÃO NA UNIFESSPA/PA E NA UDESC/SC (2009-2019) Janine Soares da Rosa de Moraes Karla Leandro Rascke Vera Márcia Marques Santos O PROFHISTÓRIA E O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA: OLHARES SOBRE AS DISSERTAÇÕES DOS PROGRAMAS DA REGIÃO NORTE DO BRASIL (2014-2020) Karla Leandro Rascke SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES 6 10 36 63 88 113 136 165 6 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política APRESENTAÇÃO Conhecida, sobretudo, pela riqueza biológica, a Amazônia é lugar também de grande diversidade étnica, racial, social e cultural. Este as- pecto é, entretanto, muitas vezes invizibilizado/silenciado, por meio, entre outras coisas, da dissolução da alteridade em uma ideia de diversidade ge- nérica e pelo apagamento deliberado de sujeitos e grupos sociais da histó- ria oficial da região. Tendo em vista que e nas escolas e nas universidades do Norte do país a presença de pretos, pardos, indígenas, quilombolas, Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu, de moradores do campo é mui- to marcante, torna-se imperativo problematizar como tornar significativa a história ensinada quando os currículos e os materiais didáticos utiliza- dos, permanecem, em muitos casos, pautados em uma lógica colonial, eurocêntrica e circunscritos a realidades de outras regiões do país. Quais as dimensões e as implicações desse silenciamento nas tra- jetórias desses sujeitos que frequentemente se veem à margem da histó- ria? Como sujeitos e coletivos locais se articulam de modo a fazer fren- te às violências e silenciamentos? Como esse processo de apagamento pode ser percebido nas escolas de Educação Básica e nos cursos de for- mação de professores de História? Desafios que envolvem as demandas do presente, de viveres e saberes de diferentes povos e culturas, além universos ocidentais, mobilizam pesquisadores e pesquisadoras em tor- no de fazeres da Amazônia. Essas são algumas das questões que motivam a presente cole- tânea. Ela reúne textos que, tomados em conjunto, lançam luz sobre a complexidade de processos e aspectos que caracterizam a região nos re- metendo para possibilidades e desafios que nela perpassam a formação de professores e o ensino de história. Compete evidenciarmos um pouco da origem dessa coletânea e seu percurso, permitindo vislumbrar caminhos e compreender cone- xões mesmo que entre capítulos com temáticas em especificidades que as potencializam e suscitam aprendizados sobre diferentes universos Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 7 culturais. Assim, de antemão, essa apresentação também é momento de agradecimento, pois esse material é fruto de um esforço coletivo do corpo docente do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Unifesspa (campus Xinguara). Na figura do coor- denador, Prof. Dr. Bruno Silva, agradecemos a todo o corpo docente que contribui para que o curso seja de qualidade e impacte a realida- de educacional da região Norte. Oportunamente, sem cada um dos autores e das autoras que dedicaram tempo e reflexões valiosas em cada um dos textos que compõem esse material, nada seria possível para leitura e construção de conhecimento no âmbito de pesquisas acadêmicas. Esse produto em forma de E-book é coletivo, colaborativo e articulado a questões da realidade social. A dinâmica de escolha de pesquisadores e temáticas passou por alguns aspectos e quesitos, dado tratar-se de uma publicação vinculada ao ProfHistória. Nesse sentido, essa obra possui debates conectados à Amazônia e suas diversidades, num esforço de valo- rizar produções dessa região e sobre essa região. Ainda, em termos de autorias, todos os capítulos possuem autores ou autoras que inte- gram a Rede do ProfHistória, sejam docentes ou discentes, incluindo ex-alunos e ex-alunas, recém-mestres. Essa coletânea também constitui movimentos de pesquisas ancoradas em possibilidades outras, de epistemologias dos povos que compõem as multiplicidades de experiências da e na Amazônia. Contendo abordagens vinculadas ao ensino de História e aos viveres dos sujeitos dessa Amazônia plural, esse E-book procurou articular perspectivas anticolonias, emancipadoras e antirracistas, em estudos sobre sujeitos históricos subalternizados, marginalizados e social- mente alienados de muitos direitos. Abrindo as produções, temos o texto “Uso dos recursos naturais no sul e sudeste do Pará: os impactos da mineração e projetos de infraes- trutura sobre povos e comunidades tradicionais”. Elegendo como recor- 8 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política te geográfico a porção Sudeste do estado do Pará, os autores colocam em relevo relatos e experiências de diferentes grupos sociais locais em relação a conflitos socioambientais identificados na região em questão. Além de nos conduzir por entre aspectos importantes da história de ocu- pação da região, o texto enfatiza as estratégias de resistência de Mulheres Quebradeiras de Coco, do povo indígena Akrãtikatêjê e de Agricultores Acampados no município de Canaã dos Carajás-PA frente a disputas ter- ritoriais e pelo acesso a recursos naturais. Questiona, dessa maneira, po- líticas estatais e determinadas interpretações acadêmicas que a partir de uma lógica hegemônica de pensar o desenvolvimento e a utilização dos recursos naturais, negam a história e as formas de existir desses grupos. Já o texto “Ausências e silenciamentos: apontamentos acerca do componente História no documento curricular de Roraima”, ao evidenciar lacunas identificadas na proposta de currículo elaborada no estado de Ro- raima, nos remete às especificidades locais e, ao mesmo tempo, à necessi- dade e desafios em torno da inclusão da história regional nos currículos. Oportunamente, destaca como diferentes sujeitos históricos permanecem à margem dos processos históricos legitimados e ensinados na escola, como é o caso dos povos africanos, dos povos indígenas e quilombolas. Os relatos de interlocutores da pesquisa articulam o cerne da análise construída no texto “Descolonizar e enegrecer o ensino de histó- ria:um olhar interseccional sobre relatos de estudantes negras do sul do Pará”. Por meio das narrativas de três estudantes negras de uma escola pública localizada no município de Conceição do Araguaia-PA, os auto- res chamam atenção para a importância de lançar luz sobre a trajetória de sujeitos “ainda invisíveis em diversos espaços que trazem histórias inquietantes de subordinação, opressão e resistência”. Aqui, é o ambien- te escolar, o ensino de história e a discussão de gênero que ganham ên- fase para a reflexão sobre o processo de cruzamento entre opressões, agências e construções identitárias. “Educação, Experiência e Juventude: Estudantes Quilombolas e a Escola em Araguatins-TO” traz à tona vozes de diferentes estudantes quilombolas e suas experiências na escola, enfatizando dificuldades so- Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 9 ciais e os impactos do racismo no cotidiano. O desafio da escola, en- quanto instituição que se propõe inclusiva, também é discutido nesse texto, compreendendo o conceito de juventude como balizador para or- ganizar o ensino de forma sistematizada, o qual insere-se no processo de construção do conhecimento. As autoras de “Políticas em Movimento: Ações Afirmativas para a Graduação na Unifesspa/PA e na UDESC/SC (2009-2019)” discutem aspectos legais nacionais e regionais e os percursos institucionais da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) e da Univer- sidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) em relação à criação e a consolidação de políticas de ação afirmativa para a graduação. A partir de pesquisa realizada no contexto de acordo de cooperação técnico- -científico estabelecido entre as duas universidades, as autoras abordam e historicizam perspectivas e diálogos sobre ações afirmativas no Ensino Superior. Contribuem desta maneira, para a necessária reflexão sobre as políticas voltadas para o acesso e a permanência de diferentes grupos sociais nas universidades brasileiras. O debate crítico acerca do ensino de História, bem como a im- portância de ampliação de determinadas temáticas, é assunto do último texto desse E-book: “O ProfHistória e o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira: olhares sobre as dissertações dos programas da região Norte do brasil (2014-2020)”. A partir da análise das dissertações defendidas no ProfHistória na região Norte, a autora nos instiga a refle- xão sobre o espaço que pode ser expandido para o ensino de História da África e da cultura afro-brasileira observado no contexto da matriz curricular do Mestrado Profissional em História. Convidamos cada um e cada uma a percorrer as linhas dessa tes- situra de histórias, memórias e narrativas sobre uma Amazônia que aqui se mostra plural, por meio dos desafios postos e pelas formas que sujeitos diversos nela existem e resistem. Do imergir constante desses homens e mulheres, das mais diferentes origens e atuações no mundo, trazemos à tona as vidas que se refazem, se reconectam, se repensam e se reestabele- cem no cotidiano de suas lutas por dignidade, justiça e felicidade. 10 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política USO DOS RECURSOS NATURAIS NO SUL E SUDESTE DO PARÁ: OS IMPACTOS DA MINERAÇÃO E PROJETOS DE INFRAESTRUTURA SOBRE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS Rita de Cássia Pereira da Costa Valéria Moreira Coelho de Melo Fabiano Campelo Bechelany As estratégias governamentais e empresariais desenvolvidas na Amazônia brasileira, nos últimos anos, têm se voltado para a intensi- ficação da exploração dos recursos naturais. Esse movimento reedita a atuação do Estado brasileiro na década de 1970, com planos de integra- ção e desenvolvimento da região amazônica fundamentados em gran- des projetos de infraestrutura e atividades econômicas agroextrativas. A expansão da fronteira econômica atual, com efeito, articula outros limites econômicos e políticos, mas atualiza semelhantes conflitos so- ciais, territoriais e ambientais, que persistem e se ampliam, impactando a população e a natureza na Amazônia. A porção sudeste do estado do Pará, localizada na confluência de dois grandes rios do território brasileiro — Araguaia e Tocantins — concentra fortes traços característicos desse processo histórico. Essa mesorregião é caracterizada por um considerável dinamismo socioe- conômico, pautado em atividades extrativistas e agrárias centrais para o planejamento estatal. Se retomarmos a história de ocupação da região, veremos que sua ocupação mais intensiva se dá, sobretudo, a partir do século XX. Na década 1960, deu-se início à implantação de grandes empreendimentos e obras de infraestrutura, a fim de integrar a Amazônia ao restante do país. As construções da rodovia Transamazônica e da Usina Hidrelétri- ca (UHE) de Tucuruí, bem como a implantação de polos minero-me- talúrgicos e agropecuários e ainda projetos de colonização conduzida Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 11 constituem alguns exemplos. Para entender o contexto dos conflitos que passam a se intensificar com esse processo, é preciso ter em vista que o sudeste do estado do Pará é caracterizado pela presença de uma miría- de de grupos sociais e étnicos. Povos nativos e grupos sociais chegados em decorrência das migrações espontâneas e sazonais e das políticas de colonização dirigida (VELHO, 2013). Além daqueles oriundos de pro- cessos migratórios diversos e mais recentes. Associado ao esforço de ocupação regional pela produção agro- pecuária, desenvolveu-se, no sudeste paraense, o maior projeto minera- lógico do país, envolvendo exploração mineral e instalação de infraestru- tura industrial. Criado na década de 1980 pela então estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), o Programa Grande Carajás (PGC) figura entre as ações do Estado executadas na região com essa finalidade. Sua abrangência, em uma área de 900 mil km2, englobava áreas da região sudeste do Pará e porções dos estados do Tocantins e Maranhão. O Programa teve como ação principal viabilizar a extração de minério de ferro da Serra dos Carajás e, paralelamente, subsidiar o de- senvolvimento de projetos agropecuários e da indústria de beneficia- mento primário. Dentre as obras de infraestrutura construídas para dar suporte à atividade mineradora na região, está a Estrada de Ferro Cara- jás (EFC), erigida na década de 1980. Perfazendo o chamado Corredor Carajás, a ferrovia tem 892km de extensão. Com a extinção do PGC e privatização da CVRD, o controle da mineração e de parte da infraes- trutura, construída pelo Estado para viabilizar essa atividade, passou para a empresa Vale, que se tornou uma das maiores corporações do setor no mundo, com atuação diversificada em inúmeras regiões do pla- neta. Uma das mudanças significativas da privatização refere-se à apro- priação privada de diversas terras do sudeste paraense pela empresa, reorganizando a estrutura fundiária e gerando intensificação das restri- ções de acesso à terra por camponeses. Antes da implantação dos grandes projetos, apesar das tensões com os nativos, as transformações territoriais ainda eram de pequena escala. Em certos casos, os grupos sociais constituídos por força dos 12 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política deslocamentos tinham, como alternativas de subsistência, a agricultura, o extrativismo, a caça, a coleta e a garimpagem (VELHO, 2013; MAGA- LHÃES, 2002). Da posse temporária, fundada na sazonalidade dessas práticas, vigora uma memória sobre o acesso livre à terra e aos recursos naturais. Mas, aos poucos, a apropriação da terra ganhou outra lógi- ca. Hoje, o Sudeste paraense é uma área bastante antropizada, restando apenas manchas de floresta amazônica, constituídas, sobretudo, pelas terras indígenas e pelas unidades de conservação. As experiências de implantação dos grandes projetos, nessa re- gião, têm se caracterizado por políticas autoritárias com fortes impac- tos socioambientais,e pelo desencadeamento e acirramento de conflitos e violências. Assim, o Sudeste do Pará se notabilizou pela violência no campo e contra agentes sociais dedicados à causa ambiental e à luta por direitos (ALMEIDA, 1995; HALL, 1989). Os conflitos e as resistências têm tido como resultado a constituição de movimentos sociais variados e constituídos por identidades coletivas diferenciadas, com a forte marca da luta pela terra. Nessa perspectiva, e com o objetivo de levantar e sistema- tizar um conjunto de informações sobre as situações sociais observáveis na região em questão, ganha sentido iniciativas de mapeamento social de povos e comunidades tradicionais impactados por grandes projetos. A dinâmica regional sugere uma configuração territorial que redefine as relações das categorias sociais, compostas por sujeitos que nasceram e vivem na região, ou que para ela migraram, sobretudo, atraí- dos pelas possibilidades de emprego prometidas pelas novas atividades econômicas. Nesse novo tecido social, distintos grupos se destacam por suas identidades singulares, construídas a partir da dinâmica sociopro- dutiva estabelecida no território por eles ocupado. É por meio das expe- riências desses grupos sociais diferenciados que este trabalho procura pensar a relação entre os projetos desenvolvimentistas implantados na região Sudeste do estado do Pará e seus impactos socioambientais. Para tanto, evidenciamos as experiências de três grupos, que serão descritos em seguida. São eles: as mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu; o povo indígena Gavião Akrãtikatêjê e os Agricultores Acampados do municí- pio de Canaã dos Carajás. Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 13 Trabalhamos, aqui, com o material etnográfico obtido em pro- cessos de mapeamento social, cuja finalidade é, por meio da autocarto- grafia, identificar e registrar um conjunto de situações. A autocartogra- fia permite que os próprios agentes sociais externem as situações sociais a partir de categorizações e simbolizações que lhes são próprias, me- diante relatos, narrativas e elaboração de mapas. Assim, pautado em ex- periências de cartografia social, o objetivo é mapear os esforços mobili- zatórios de grupos sociais, “[...] descrevendo-os e georreferenciando-se, com base no que é considerado relevante pelas próprias comunidades estudadas.” (ALMEIDA; FARIAS JÚNIOR, 2013, p. 28). Com os dados obtidos, é possível refletir acerca das experiências das ecologias políticas dos grupos que participam ativamente das ativi- dades que compõem o mapeamento. Procura-se analisar como esses co- letivos — a partir de suas experiências sociais —, vivenciam e pensam os impactos da mineração e de grandes projetos de infraestrutura e como reagem a eles. O processo de mapeamento social junto às Quebradeiras de Coco Babaçu e ao povo indígena Gavião Akrãtikatêjê se deu entre 2011 e 2014. Já o trabalho junto aos Agricultores Acampados de Canaã dos Carajás, ocorreu entre 2017 e 2019. Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu: mobilização e simbolismo ecológico nos babaçuais As mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu do Sudeste do Pará formam parte de uma das “[...] diferentes unidades sociais, designadas como povos e comunidades tradicionais [...]” (ALMEIDA 2017, p. 9) presentes na região. Com tradições culturais vinculadas ao extrativismo do babaçu (Orbignya phalerata), suas experiências, na vasta região que ocupam, dão-se por meio de um rico conhecimento, determinado por um “[...] conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural transmitido oralmente de geração em geração.” (DIE- GUES; ARRUDA, 2001, p. 31–32). 14 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política As mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu — tomadas, aqui, como um conjunto que define um grupo social —, são mulheres que se encontram em diferentes povoados e municípios de uma região que engloba e transcende o sudeste paraense. Nessa área, entretanto, elas se situam, principalmente, nos seguintes municípios: São João do Ara- guaia, São Domingos do Araguaia, Palestina do Pará e Brejo Grande do Araguaia. Aí são constituídas suas experiências de vida mobilizadas em movimentos sociais, a partir de grupos locais que integram a seção “Regional Pará” do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), organização presente em quatro estados da federa- ção: Piauí, Tocantins, Maranhão e Pará. No seu cotidiano e nas suas mobilizações, projetadas no campo político, as Quebradeiras de Coco Babaçu, organizadas com base em uma identidade coletiva, atuam em defesa do acesso livre aos babaçuais açambarcados pelos grandes proprietários de terra (ALMEIDA, 2011). O conflito social, no caso dessas mulheres extrativistas, dá-se pelo efeito dos processos históricos de ocupação que resultaram em áreas de concentração de terra, justificadas ou voltadas à indústria pecuária. Ressalta-se, também, o fato de a região ser representada como grande território mineral e, portanto, estar submetida aos reveses de projetos rodoviários, hidrelétricos e hidroviários. Em choque com essas deman- das incidentes e com impactos sobre o território e recursos naturais, atuam as quebradeiras de coco. É corrente e emblemático, no dizer dessas mulheres, que, antes, a terra “não era de dono”. E o ingresso nessas terras, em sua maioria, se dava mediante o livre acesso, em regime de uso caracterizado pela pos- se, mais do que a propriedade formal. Narrativas como a de Cledeneuza Oliveira (2017) assinalam esse aspecto: A gente não era diretamente dono de lote. Só alguns cercavam de madeira e ficavam usando aquela parte dele, e outros não, hoje fazia uma roça aqui, duas roças aí: “não aqui já não tá bom!”. Ia fazer mais distante. A criação do outro perturbava, ele já ia pra frente. A terra não era de dono, era só onde a gente quisesse Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 15 ficar. Só dos anos sessenta – começou 68 – já começou cada um já tirar seu pedaço e dizer: “eu vou ficar aqui” (OLIVEIRA, 2017, p. 35). Grande parte dos povoados e das terras onde vivem as que- bradeiras de coco passou por processos de apropriação e expropria- ção em diferentes momentos. Muitas dessas áreas incidem em an- tigos castanhais, de onde se retira a castanha-do-pará (Bertholletia excelsa), um importante recurso que constituiu atividade econômica central na região durante o início do século passado até a década de 1970. A princípio de livre acesso, esses castanhais coexistiam com os babaçuais nativos e outras vegetações. Posteriormente, essas áreas se tornaram objeto de exploração intensiva, com fins extrativos e madeireiros, e, por fim, deram lugar às grandes pastagens para a pe- cuária intensiva na região (EMMI, 1987). Ao longo dos anos, e, sobretudo, a partir das décadas de 1960, tem-se uma aceleração dos processos de controle institucional e empre- sarial sobre o território, atrelada à produção e à circulação de merca- dorias. Atualmente, boa parte das florestas de babaçu é secundária, em diferentes estágios de formação e em abundante florescência em áreas desmatadas. Assim sendo, as pesquisas em cartografia e mapeamento social têm indicado que a chamada região ecológica dos babaçuais se encontra em processo de expansão (NCSA, 2019). As etapas da biologia da planta, atreladas a aspectos políticos, econômicos e culturais, fazem parte do repertório social das quebradei- ras de coco. Suas narrativas permitem alargar a compreensão da ocor- rência da espécie em termos geográficos e sob o ângulo da memória e da vida social no presente. Nessas histórias narradas, vários antigos po- voados (hoje municípios) são indicados como referência no comércio da amêndoa do babaçu. Narram, assim, as práticas históricas, as atri- buições de uso do território e as percepções acerca dessas áreas de exis- tência de babaçuais, que se articulam a outras formas da relação entre os agentes sociais ea biodiversidade amazônica, como lugares de caça, coleta, cultivos de roças e criações. 16 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política Em diferentes ocasiões da pesquisa, as mulheres extrativistas des- creveram as práticas atuais relacionadas ao recurso do babaçu, e refleti- ram sobre quais são as várias situações que impactam o território e os re- cursos naturais, provocando mudanças ambientais (alusivas à devastação das florestas na região), e situações de conflitos explícitos ou velados. Nessas áreas, onde vivem e atuam as quebradeiras de coco, en- contram-se vários projetos de assentamento que compõem um capítulo sem o qual não é possível compreender a história da região. As tensões fundiárias que sucederam o conflito político-militar entre o Estado e os integrantes do Partido Comunista, no início da década de 1970, conheci- do como “Guerrilha do Araguaia”, resultaram na forte repressão pratica- da pelo Estado brasileiro, mas também favoreceram a emergência da luta pela posse da terra na região. A grande presença de trabalhadores sem acesso à terra e ao trabalho ganhou força nos fluxos migratórios diante da pressão sobre as terras nos estados vizinhos ao Pará, a propaganda gover- namental em torno da colonização da Amazônia e a atração dos garim- pos, como Serra Pelada (MAGALHÃES, 2002; VELHO, 2013). Sem serem absorvidos como força de trabalho, muitos desses sujeitos mobilizados em entidades representativas empreenderam o movimento de conquista da terra. As narrativas da liderança local do movimento das quebradeiras de coco, Cledeneuza Oliveira, detentora de oratória pujante, apontam para as condições vividas nesse momento histórico. Ela é parte de uma das famílias que, no passado, empreende- ram sucessivos deslocamentos em busca de terra e trabalho, dedicando- -se a diferentes atividades à procura do sustento familiar. Os garimpos e o extrativismo da castanha, da borracha (Hevea brasiliensis) e do baba- çu, além dos cultivos de roças, constituíram algumas das modalidades de trabalho exercidas no contexto da apropriação do território ocupado na região em estudo. Esse processo de ocupação e luta pela posse da ter- ra, protagonizado pela família de Cledeneuza e por outras famílias, teve como consequência a constituição de vários projetos de assentamentos. Nos relatos de Cledeneuza Oliveira, a luta pela terra emerge como aspecto fundamental da atuação dos agentes sociais na região. Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 17 Ela chama a atenção para o papel das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) do Movimento de Educação e Base (MEB) e da Comissão Pas- toral da Terra (CPT) no contexto dessa mobilização social. Segundo Cledeneuza, o apoio prestado por essas instituições na organização e na atuação sindical dos trabalhadores rurais foi fundamental no processo de ocupação e conquista da terra. Como lembra Cledeneuza, “Tinha aquela Campanha da Fraternidade: ‘terra para todos’. Aí a gente come- çou a pensar que se a terra é de todos, então vamos ocupar!” (OLIVEI- RA, 2017, p. 33). Nesse contexto, anos posteriores à década de 1980, a geografia do Sudeste do Pará se configura pela presença de projetos de assenta- mento. Grandes latifúndios foram ocupados e parte deles foi transfor- mada pelo Estado em assentamentos para os trabalhadores da agricul- tura familiar (OLIVEIRA, 2017). Apesar da importância e conquista da terra por muitos desses agentes sociais, boa parte das mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu não dispõe da terra e do território livre para obtenção do babaçu. No dizer de Cledeneuza Oliveira, até hoje se está “enfrentando conflito” e “dificuldade” no que se refere à disponibilidade de terras para as- sentamento. Não obstante às conquistas, parte das terras passou pelos reveses da reconcentração fundiária, em que pequenos lotes são acu- mulados por um proprietário. Além da dificuldade na garantia da terra e do território subme- tido às dinâmicas socioambientais com ingerência sobre a natureza e na divisão desigual dos recursos, as Quebradeiras de Coco Babaçu também consideram outras ameaças que impactam o recurso do babaçu. Nos relatos e denúncias, elas apontam várias estratégias adotadas por seus opositores, que implicariam a perda e devastação dos babaçuais. Uma delas é a derrubada das palmeiras adultas, quando consideradas entra- ves às práticas agropecuárias. As perdas e ameaças à espécie do babaçu também ocorrem pelo envenenamento das pindovas — árvores jovens, consideradas infestan- 18 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política tes (invasoras) nessa fase. Quando extirpadas, portanto, inviabilizam o crescimento de novos babaçuais. Além disso, as mulheres apontam a queima do coco inteiro em fornos de cerâmicas, no beneficiamento mineral de ferro gusa, entre outras utilizações. Isso significa a perda da amêndoa, que é de grande importância no processo de aproveitamento da espécie. Outra prática que ameaça o recurso babaçu, no dizer das extrativistas, é o “arrastão”, ou seja, a derrubada efetuada por trator e correntes. Ou, ainda, a prática de ceifar o entorno, de forma que a pal- meira permanece erguida, mas, com o tempo e o vento, tende a cair — argumenta Cledeneuza Oliveira (2017). Como lembra o antropólogo Alfredo Wagner de Almeida, “[...] os empreendimentos dos agronegócios, que hoje se expandem por esta região ecológica dos babaçuais, desmatam para plantar eucalipto, mon- tar pastagens artificiais e plantio de soja” (2017, p.10). Na região sudes- te do Pará, não é diferente. A introdução desses monocultivos se dá, principalmente, pela chegada de espécies como o eucalipto (Eucalyptus grandis) e a teca (Tectona grandis L.f.), além da entrada no bioma ama- zônico da soja (Glycine max L.) e do milho (Zea mays). No que diz respeito à utilização de veneno para exterminar os babaçuais, as mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu ampliam a aná- lise que fazem da destruição que as afeta, incluindo, em seus relatos, a preocupação com o impacto dessa ação predatória sobre a terra, a agri- cultura, os rios, as águas e as plantas. Face a essas experiências, as Quebradeiras de Coco se mobili- zam contra o latifúndio, pelo livre acesso e pela preservação dos baba- çuais; por direitos sociais fundamentais e políticas públicas. Elas mo- bilizam o babaçu na produção da sua existência material e simbólica. Essa mobilização é atravessada por um discurso ambiental concreto, pautado em ações práticas. Em agosto de 2016, o MIQCB realizou, no sudeste do Pará, a apresentação da campanha anual em defesa dos babaçuais, contra a devastação ambiental e pelo livre acesso às florestas de babaçu. Reu- Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 19 nidas em sessão especial na Câmara Municipal de São Domingos do Araguaia, juntamente com representantes regionais, parceiros institu- cionais e pesquisadores, o grupo debateu e reforçou sua agenda de luta pelo acesso aos babaçuais. Habitando a chamada “região ecológica dos babaçuais”, um ter- ritório caracterizado por características ambientais específicas e práti- cas, e por modalidades de uso de terras particulares, as Quebradeiras de Coco desenvolvem relações culturais específicas com os recursos naturais. Essas relações ecológicas são sustentadas por complexos sabe- res sobre a biodiversidade e por tecnologias no manejo do ecossistema local. As quebradeiras produzem diferentes formas de aproveitamento do babaçu a partir da elaboração de óleos, sabões, sabonetes, farinhas, artesanatos, carvão, entre outros produtos. Além dessa transformação da matéria-prima em bens, o babaçu é o símbolo de suas lutas nos espa- ços de reuniões e eventos. Nossa inserção de campo permitiu observar que as relações ecológicas também são refletidas em uma concepção muito própria da relação entre essas mulheres e a palmeira do babaçu. Nas narrativas, frequentemente a palmeira é mencionada como “mãe”. Osafetos esta- belecidos nesse universo e que dominam as percepções socioecológicas estão, assim, compreendidos dentro de um quadro de significados em que o idioma do parentesco é importante e se constitui para além das relações estritamente humanas, abarcando entes da natureza. Para as quebradeiras de coco, a árvore que oferece leite por meio de suas amêndoas guarda uma identidade com a mulher. Assim, um símbolo concêntrico que faz lembrar a mama feminina, estampa a cam- panha babaçu livre. Na estampa, é possível ler a frase “Floresta de baba- çu é vida. Deixa em pé. Deixa viver”. Todos esses aspectos são acionados nas mobilizações políticas das quebradeiras de coco, estruturadas sob a identidade sociocultural e de gênero, e referidas nas formas de extrativismo tradicional. É funda- mental notar que essa identidade é mobilizada, politicamente, em con- 20 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política texto de disputas, em que as quebradeiras enfrentam questões relativas à produção, à problemática ambiental e à luta pela terra e pelo território. Como mulheres, reivindicam seus direitos fundamentais e seu prota- gonismo enquanto categoria social e identitária. É nesse sentido que, historicamente, a existência das quebradeiras de coco babaçu implicou a abertura de espaço para suas demandas nos próprios sindicatos de trabalhadores rurais, e a posterior constituição de uma entidade que as representasse — o MIQCB. Fica claro, mediante as experiências de pesquisa entre as que- bradeiras de coco, que a utilização do babaçu constitui uma alternativa de existência para muitas mulheres e suas famílias e que, além disso, esse modo de relacionar produz concepções, práticas e saberes vincu- lados ao território. Quando esses aspectos se coadunam com a atuação política, imprimem resistência às ações e aos discursos dominantes do mercado sobre os usos dos recursos naturais e do espaço. Tais ações e discursos, originados na ação empresarial e do pró- prio Estado, apresentam uma representação da região onde as Quebra- deiras de Coco Babaçu e os Agricultores Acampados, entre outros gru- pos sociais, são invisibilizados. Assim, negam os símbolos do babaçu e afirmam a ideia de que o sudeste do Pará não forma parte da região de ocorrência dessa espécie e, portanto, das relações características dos babaçuais. Uma análise desses procedimentos, por exemplo, presentes nos mapas e documentos oficiais do Estado, permite identificar o pro- cesso de denegação que visa à liberalização de suas terras por meio da extinção dos babaçuais. Isso ocorre através de métodos discursivos e de práticas de envenenamento, derrubada e queima dos babaçuais, recor- rentemente apontados pelas mulheres. Demarcando uma posição contrária a essa concepção, em feve- reiro de 2019, ocorreu, no município de São Domingos do Araguaia, o VIII Encontrão do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu. Com a temática central “Mulheres Quebradeiras de Coco: Re- sistência nos Babaçuais”, o encontro reuniu cerca de 400 participantes de diferentes estados e localidades. Entre parceiros e convidados, foram Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 21 analisadas as conjunturas social e política e, nos grupos de trabalhos, discutidos os vários eixos temáticos ligados a organização, economia e educação. Além disso, ocorreram feiras de produtos naturais e artesana- tos, e momentos culturais com homenagens, ritos e cantos. O que a pesquisa de caráter etnográfico, as inserções de campo e, sobretudo, a produção da cartografia pelas próprias quebradeiras de coco permitem concluir é que as diferentes mulheres, em suas locali- dades (ou em rede) e no movimento social produzem formas de resis- tência frente às práticas estatais e do mercado, gerando uma outra sig- nificação de território. Formulando um repertório de experiências no território e acerca do uso da biodiversidade no ecossistema amazônico, essas mulheres se mobilizam para dar a conhecer e serem reconhecidas em suas práticas sociais particulares que informam modos de vida das populações regionais. Povos Indígenas: o caso dos Gavião Akrãtikatêjê Outro grupo social presente na região sudeste do Pará, cuja ex- periência singular do território se cruza com uma identidade social di- ferenciada, são os povos indígenas. Os grupos indígenas de diferentes etnias que habitam a região vivenciaram, ao longo do tempo, uma sé- rie de investidas sobre seus territórios. Contudo, a partir da década de 1960, essa pressão aumenta. Nas décadas que se seguem, e tendo como justificativa a necessidade de garantir a expansão das frentes econômi- cas, o Estado e os grupos de atuação econômica variada comprimem e ocupam os territórios indígenas tradicionais, alguns habitados por po- vos que já tinham o contingente populacional drasticamente diminuído pelo contato com os não indígenas (FERRAZ, 1984). De maneira lenta, o Estado demarcou algumas terras indígenas, colocando os grupos em pequenas parcelas dos seus antigos territórios e liberando as demais áreas para atividades econômicas e urbanização da região. Ainda assim, algumas das terras indígenas da região possuíam garantias jurídicas bastante precárias até a década de 1980 (CEDI, 1985). 22 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política No processo de ocupação e desenvolvimento promovido pelo Estado brasileiro, as terras indígenas da região sudeste do Pará foram afetadas pela construção de rodovias e ferrovias, e por linhas de trans- missão de energia que cortaram seus territórios. Outras foram, parcial ou totalmente, inundadas pela formação do lago da UHE de Tucuruí, grande obra que transformou a região. Outras, por fim, foram e ainda são im- pactadas por mais de um desses empreendimentos. É o caso dos Awae- té-Parakanã que, na época da construção da rodovia Transamazônica, na década de 1970, ainda não haviam sido contatados. Parte desse povo foi alvo de desastrosas ações de pacificação que resultaram em uma acentua- da depopulação. Entretanto, não foi apenas a rodovia que redesenhou o território tradicional Parakanã. Parte dele ficou, também, submersa com a formação do lago da UHE de Tucuruí. Outra parte foi desmembrada pelo Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Getat/Incra) com o propósito de reas- sentar colonos também atingidos pelo reservatório da UHE. Uma das atividades econômicas de intensa ação e sobreposição às terras indígenas é a mineração. Para além da atividade garimpeira, os territórios indígenas, localizadas na área de influência do Projeto Ferro Carajás, passaram a ser afetadas direta ou indiretamente pela extração do minério de ferro e por outras atividades a ela relacionadas. No início da implementação do programa [...] diante de denúncias veiculadas pela imprensa nacional e internacional [...], sobre o não- reconhecimento pelo governo brasileiro e pelas agências de desenvolvimento associadas ao PGC, da presença de populações indígenas na área de abrangência do PFC e do PGC, e sobre os impactos que adviriam sobre as mesmas com a implantação desses empreendimentos, o Banco Mundial (BIRD) – um dos seus principais agentes financiadores – condicionou a concessão de novos recursos para a continuidade ao PFC e ao PGC, à implementação pelo Governo brasileiro, de ações visando a garantia das condições de sobrevivência desses povos, especialmente levando- se em conta a necessidade de demarcação das terras indígenas situadas na esfera de ação desses programas (OLIVEIRA, 2004, p. 145). Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 23 Em 1982, em decorrência da exigência do Banco Mundial, foi elaborado pela então CVRD o “Projeto Ferro-Carajás: Apoio às Comu- nidades Indígenas”, voltado para a aplicação, até 1986, de 13,6 milhões de dólares junto a povos indígenas do Maranhão, leste do Pará e nor- te de Goiás. Entretanto,contrariando os termos do próprio convênio, a maior parte do recurso foi investida na máquina administrativa da agência tutelar, em detrimento de ações voltadas para o fortalecimento e a autonomia dos povos atingidos (CEDI, 1985; OLIVEIRA, 2004). Na TI Mãe Maria, localizada no município de Bom Jesus de To- cantins, a 30km da cidade Marabá, residem três grupos que ficaram conhecidos pelo termo genérico “Gavião”, mas que se autodenominam Akrãtikatêjê, Kyikatêjê e Parkatêjê. Essa TI é atravessada pela EFC, linha ferroviária por onde é escoado o minério de ferro extraído da região. Além disso, é cortada pela rodovia BR-222 e por linhas de transmissão de alta tensão da empresa Eletronorte. Para a instalação das torres da linha de transmissão, foi “[...] desmatada uma faixa de 19 quilômetros de extensão por 150 metros de largura dentro da TI, o que resultou na destruição de parte significativa dos castanhais essenciais nas práticas socioculturais e econômicas dos Gavião.” (SANTOS; NACKE, 1988). Pela passagem da linha de transmissão, os Gavião foram indenizados em 40 milhões de cruzeiros, moeda corrente na época (CEDI, 1985, p. 95). Outros fatores que exercem pressão sobre a TI e seus recursos é o fato de ela estar cercada por fazendas e cidades. Os Akrãtikatêjê (também conhecidos como “Gavião da Mon- tanha”) que hoje residem na TI Mãe Maria, no passado habitavam as cabeceiras do rio Capim. Esse grupo foi contatado, em 1958, quando somava em torno de 74 pessoas. Apenas três anos após o contato, a po- pulação estava reduzida a 31 pessoas. Em 1970, a instalação do canteiro de obras da UHE Tucuruí foi estabelecida nas terras do Posto Indígena da Montanha, concedida por decreto estadual no ano de 1945. Em de- corrência desse fato, o grupo foi transferido compulsoriamente para a TI Mãe Maria, onde passou a viver junto aos Kyikatêjê e aos Parkatêjê. 24 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política Payaré, o então líder dos Akrãtikatêjê, ficou conhecido pela resis- tência em deixar seu território tradicional. Após o deslocamento com- pulsório, Payaré empreendeu uma longa batalha judicial, de maneira autônoma, contra a Eletronorte. No ano de 2008, após muitos recursos, agravos de instrumentos e outros procedimentos jurídicos, a empresa foi condenada a ressarcir os Akrãtikatêjê com uma área de 3.600 hec- tares contígua à TI Mãe Maria e com condições ecológicas semelhantes às daquela de onde foram transferidos de maneira irregular (GUIMA- RÃES, 2017). Entretanto, os Akrãtikatêjê ainda aguardam que a Eletro- norte cumpra a decisão judicial. No trabalho realizado junto a esse grupo, emergiu, das narrativas dos agentes sociais, uma série de situações que ajudam a entender os impactos e pressões atuais das obras de infraestrutura e da exploração mineral sobre a TI Mãe Maria. Como assinalaram nas oficinas de carto- grafia social, a presença desses empreendimentos não significa somente a perda de espaço físico, mas também impõe limites às atividades coti- dianas. Em relação à rodovia que atravessa a TI, os Akrãtikatêjê mencio- nam que ela torna as aldeias vulneráveis ao acesso de pessoas estranhas. No que diz respeito à linha de transmissão, eles enfatizam o re- ceio em relação à exposição aos campos magnéticos que elas produzem. Além disso, anualmente, a vegetação que fica sob as torres é queimada. Nesse sentido, o grupo se ressente do risco de propagação do fogo e da fumaça na área. Em relação à linha férrea, apontam o ruído causa- do pela passagem do trem. Já o pó de minério deixado pelo caminho é entendido por eles como prejudicial. Ainda apontam essa linha férrea como um empecilho ao livre trânsito dentro da própria TI, devido ao controle que a empresa exerce sobre a faixa de domínio estabelecida às margens da ferrovia. No contexto da duplicação da EFC, o Ministério Público Fede- ral (MPF) de Marabá, no ano de 2016, sugeriu a suspensão das obras, no trecho da estrada que passa na TI Mãe Maria, em função de ques- tionamentos levantados pelo estudo de impacto realizado no território. Um dos problemas apontados pelo MPF foi a não atenção à obrigatorie- Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 25 dade de consulta prévia e informada, estabelecida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989, e ratificada pelo Brasil em 2002. Na mesma ação em que pede a suspensão das obras, o MPF aponta a necessidade de construção de um Plano Básico Am- biental (PBA) que estabeleça ações para mitigar os impactos identifica- dos (MPF, 2016). Mais recentemente, a empresa de mineração Vale tem proposto a elaboração desse PBA. A negociação para sua elaboração, entretanto, tem provocado divisões entre as aldeias dos Gavião. O contexto que caracteriza o entorno também exerce pressão so- bre a TI e seus recursos. Na ocasião do trabalho de cartografia, os Ga- vião relataram a preocupação com a retirada, por parte de fazendeiros, de matas ciliares nas proximidades da TI. As invasões do território com o objetivo de caçar, pescar e/ou coletar castanha e açaí também foram mencionadas, pois resultam na pressão sobre os recursos disponíveis na TI. A expansão urbana de Marabá, por sua vez, com a construção de residenciais e habitações populares, ameaça o território de Mãe Maria com obras de esgotos sanitários para ele direcionados. É importante enfatizar que os povos indígenas que habitam a TI Mãe Maria mobilizam relações diferenciais com os recursos naturais e com o ecossistema local, orientados por uma lógica oposta àquela que caracteriza a racionalidade econômica e empresarial projetada sobre o território do sudeste do Pará. Não à toa, a área da TI Mãe Maria se des- taca como um dos poucos redutos de floresta em uma paisagem desma- tada e ameaçada pela devastação ambiental. No mapa elaborado pelos Akrãtikatêjê, sinaliza-se, também, a infraestrutura que caracteriza a aldeia, os lugares tidos como impor- tantes para as práticas socioculturais, a biodiversidade característica do território e a distribuição dos recursos naturais na TI. No âmbito da comunidade, eles promovem cultivos diversifica- dos, criações de animais e se organizam para o manejo extrativo da cas- tanha. Encontra-se em fase de implantação, na aldeia Akrãtikatêjê, uma cooperativa que visa a comercializar a castanha extraída na área. A ideia 26 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política é unir as diferentes aldeias de modo a não necessitar de intermediários e obter valorização do produto. A logística e a venda têm sido administra- das por jovens, como forma de envolvê-los nas questões políticas e nos processos decisórios. O objetivo é, portanto, fortalecer, cada vez mais, a autonomia do grupo. Nesse sentido, o território e a sua biodiversidade significam, para os Akrãtikatêjê, não apenas prover a existência, mas também a possibili- dade de autonomia frente aos recursos repassados pela mineradora como indenização pelos danos causados na TI. O território se constitui, assim, como parte fundamental do discurso político do grupo. Em meio às si- tuações descritas, os Akrãtikatêjê têm-se disposto a resistir, afirmando a sua identidade étnica como categoria política de modo a se posicionarem frente aos grandes projetos de mineração e infraestrutura da região. Agricultores Acampados de Canaã dos Carajás Os Agricultores Acampados do município de Canaã dos Carajás, constituídos em categoria identitária, têm-se mobilizado coletivamente em ações voltadas para a ocupação e permanência na terra. Ligados a movimentos sociais e entidades de apoio aos trabalhadores rurais, esses agricultores têm estabelecido unidades denominadas “acampamentos”. Nelas, eles residem e cultivam a terra em busca de assegurar sua pos- se. A mobilização dos Agricultores Acampados constitui mais um caso histórico bastante significativo dos processos sociais desencadeados em área de mineração no sudeste do Pará. Essas situações combinam-seem um quadro de relações estabelecidas na apropriação do território e de recursos naturais que assinalam para a ecologia política da mineração. Canaã dos Carajás, na região Sudeste do Pará, carrega no próprio nome o anúncio de terra prometida. Entretanto, o que se estabelecia como promessa para colonos e migrantes em busca de terra e trabalho foi mais bem alcançado pelos grandes projetos definidos para a região, em função da prevalência de seus interesses que tiveram a anuência e contrapartida do Estado. O município de Canaã dos Carajás surgiu a Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 27 partir da construção de assentamentos implementados pelo Estado, efe- tivados como estratégia de ocupação espacial e econômica dessa região do país. Portanto, tem seu processo de crescimento estruturado pela materialidade e pelos signos dos grandes projetos pecuários e minerá- rios, expressos na ação desenvolvimentista estatal. As narrativas de agricultores dos antigos assentamentos e dos Agricultores Acampados, que atualmente empreendem ocupações de terra na área, são elucidativas dessa história no contexto de mineração. Eles informam que a área foi, primeiramente, ocupada por pequenos agricultores e por colonos assentados pelo Estado brasileiro, a partir de 1982, no Projeto de Assentamento Carajás I, II e III. Esse projeto foi criado com o propósito de assentar mais de 1.500 famílias de colonos que, após se estabelecerem no local, passaram a conviver com as recor- rentes pesquisas de mineração nos lotes de terra ocupados. As incursões realizadas na área, sem autorização prévia dos colonos, eram justifica- das, segundo relatos, a partir do argumento de que a mineração traria o progresso à região. Ainda segundo relatos dos agentes sociais, quando as empresas chegaram à região, um colono, ao abrir uma roça, autorizou a um garim- peiro realizar buscas por ouro no terreno. O achado de algumas pepitas no local, por volta de 1985, coincidiu com as tensões em torno do fecha- mento do garimpo de Serra Pelada e provocou significativa afluência de garimpeiros para a área. Já em 1997, as empresas de pesquisa acusaram a descoberta de cobre nas áreas conhecidas como Sossego e Sequeiri- nho. No dizer de um líder sindical de Canaã dos Carajás, para instalação da chamada Mina do Sossego (que ocorreu em 2002), teve início uma gradual retirada dos agricultores e garimpeiros que se encontravam na área, que durou até 1999, quando saíram os últimos ocupantes. O Projeto Ferro Carajás, em Parauapebas, município vizinho a Canaã dos Carajás, e a implantação do Projeto Sossego e Projeto S11D, operados pela empresa Vale, constituem empreendimentos de mine- ração de grande monta. Esses empreendimentos, juntamente com um conjunto de obras de infraestrutura instaladas na região, têm gerado 28 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política um quadro significativo de questões sociais e mudanças ambientais no su- deste do Pará. Nesse contexto, a expropriação do território, a disputa por recursos naturais, entre outros, tanto pode ocorrer pela agressão direta como pela violência simbólica e oculta. De um lado, observa-se a ocor- rência de deslocamentos forçados, expropriações, ameaças e agressões. De outro, há o incentivo à negociação da terra pautada na justificativa de que esses empreendimentos são mais viáveis e emissários do progresso. No final da década de 1980, Anthony Hall (1989), ao analisar os impactos do PGC, chamava a atenção para o que nomeou de “crise agrária” na Amazônia. O autor enfatiza, no trabalho em questão, as im- plicações que essa crise teria para os pequenos lavradores e migrantes. Atualmente, pode-se dizer que as transformações fundiárias e os confli- tos analisados por Hall se agravaram com o tempo. As políticas de desenvolvimento seguem, hoje, marginalizando diversas categoriais sociais. Em decorrência desse processo, a região su- deste do Pará vivencia problemas agudos, relativos a expropriação, con- centração fundiária e disputas no território. No quadro representativo, o recurso às mobilizações sociais tem sido uma forma de garantir a ter- ra para viver e produzir. O fenômeno das ocupações, como estratégia de acesso à terra, permitiu, recentemente, um registro de 514 assentamentos da reforma agrária. Embora reconhecidos legalmente, muitos deles tam- bém são afetados por mineração, de maneira semelhante ao que aconte- ce com os Agricultores Acampados em disputas pela terra e diretamente confrontados com a empresa mineradora em Canaã dos Carajás. Os projetos de mineração e de infraestrutura têm influenciado importantes deslocamentos para essa parte da Amazônia, tanto por força da colonização dirigida como por migrações motivadas pela mo- mentânea dinamização econômica. A migração constitui um dos efei- tos associados a impactos socioambientais de grande envergadura e, em alguma medida, também está relacionada com ações de expropriação e conflitos. Desde sua implantação, o Projeto S11D responde por atos dessa natureza, o que culminou no remanejamento de vilas inteiras, a exemplo de Mozartinópolis e Racha Placa. Esse último nome provém da Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 29 resistência à empresa mediante a quebra de placas proibitivas de caça e pesca, instaladas em locais aos que, até então, a comunidade local tinha acesso (REIS, 2014). Os Agricultores Acampados de Canaã de Carajás se encontram distribuídos em uma extensão do município com situação fundiária complexa. Reiteradamente, entidades e Agricultores Acampados rela- tam que, hoje, a área de domínio da empresa Vale incide sobre antigos e novos assentamentos agrícolas, a exemplo do que ocorre nas imediações e na área em que foi instituído o Projeto Carajás I, II, e III em 1982. Dessa maneira, os acampados associam à mineradora atos de compra irregular de terras do Estado, além de impactos sobre impor- tantes rios e sítios arqueológicos. Estes são indicativos da antiguidade das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas e, posteriormente, por agricultores e garimpeiros. A mineradora Vale, adquirindo terra para a pesquisa, a lavra e o reflorestamento, exigido como contrapartida pelas áreas impactadas pelos projetos minerários, tornou-se uma das principais proprietárias de terras na região. As áreas obtidas em caráter de compensação am- biental, assim como aquelas destinadas à proteção ambiental, formam um cordão de isolamento no entorno da área de lavra. Isso significa dizer que a apropriação desses empreendimentos não se restringe à área de exploração em si, mas abarcam um espaço mais amplo no território com fins locacionais, de modo a garantir o suporte logístico complexo e o controle sobre os recursos naturais. Todo esse processo tem uma série de consequências — apropria- ção, expropriação, concentração fundiária e especulação —, que aca- bam por gerar tensas situações de litígio judicial. Essas tensões, efeito de processos de expropriação, estão na origem das insurgências dos grupos de Agricultores Acampados, que passam a ocupar as terras na região. Isso tem ocasionado choques entre esses agentes sociais e os empresa- riais, assim como situações de controle e ameaças contra os agricultores da região. Além disso, são recorrentes as informações alusivas aos im- 30 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política pactos ambientais, com transformações e perdas decorrentes da apro- priação destrutiva da natureza. O amplo repertório de narrativas locais denuncia os impactos sobre os rios, as perdas materiais e a interferência na cultura, na saúde, na reprodução e no equilíbrio ecossistêmico. Em Canaã dos Carajás, no processo de pesquisa e elaboração da autocartografia, os Agricultores Acampados indicaram as tensões vivi- das, dando destaque para diversas ameaças que incidem nas condições de existência. Entre elas, há as oriundas do interesse na desocupação da área,que gera liminares judiciais com ordem de despejos dirigidas a esses grupos. E há, igualmente, ações que objetivam acionar individual- mente os Acampados e suas lideranças, com o objetivo de descaracte- rizar suas ações coletivas. Todas essas ações, de acordo com os relatos, têm o intuito de impedir o acesso à terra e a permanência nela. Os relatos dos grupos também informam sobre a vigilância com drones e os impedimentos de acesso e trânsito por determinadas áreas. A mineradora faz uso de serviços de segurança privado, à cuja ação se soma, segundo os agentes sociais, o cerceamento de serviços básicos por parte do poder público municipal. Em meio a essas situações, os Acampados acionam estratégias políticas locais de resistência e também enfrentam, judicialmente, a empresa em audiências na Vara Agrária de Marabá, no Fórum municipal e no órgão fundiário. Portanto, a pesquisa sugere elementos significativos desse espaço e das relações empreendidas pelos Acampados. São ações pelo reconhe- cimento de direitos sobre as terras, associadas às lutas socioambientais travadas por meio de denúncias das situações de impacto sobre a natu- reza e o ambiente onde vivem. Envolvidos nesse processo, demarcam um campo de ação em que formulam categorias que abarcam as práticas alternativas de uso da terra e dos recursos naturais. Dessa maneira, fortemente atreladas ao acesso à terra, os Acam- pados buscam realizar a produção agrícola diversificada para o consu- mo alimentar com garantia da biodiversidade. Essas práticas se reves- tem de força política, em condição de notabilizar uma lógica diferente Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 31 na relação com a natureza perante a escassez de produtos alimentícios locais e a redução da diversidade biológica. Em resposta, afirmam a re- levância da produção agrícola dedicada ao consumo próprio, associada ao abastecimento do campo e da cidade. Isso ocorre com a oferta dos produtos em feira livre, espaço ao qual buscam assegurar o acesso. Considerações finais - Transformações e Estratégias Políticas Locais Para concluir, recordamos que as experiências de pesquisa da cartografia social fornecem aspectos históricos e sociológicos das situa- ções vivenciadas pelas Quebradeiras de Coco Babaçu, pelos Akrãtika- têjê e pelos Agricultores Acampados, que nos são apresentadas a partir do ponto de vista dos próprios sujeitos. Essas experiências são situadas no território vivido por esses grupos e referem-se a esse território do qual suas identidades sociais emergem. Sobre outro ângulo de análise, e como um contraponto à perspectiva oficial, as realidades autocarto- grafadas elucidam o forte impacto do neoextrativismo no Brasil e as diferentes respostas dadas pelos grupos afetados nesse processo. No que toca o Sudeste do Pará, região de enorme complexidade social, os projetos de mineração e de infraestrutura impõem à histó- ria da região um conjunto de implicações socioambientais. Pensar seus impactos sobre povos e comunidades tradicionais a partir das autocar- tografias nos permite acessar uma percepção da região que, em muitos casos, é diversa daquela que emerge a partir dos mapas oficiais. A elabo- ração de mapas pelos próprios grupos, como ferramenta utilizada para tratar das questões sociais, visa, portanto, a reforçar o conhecimento dessas realidades e identidades coletivas, além de contribuir com um instrumento de reflexão e ação política para as comunidades. As experiências, aqui relatadas, muito longe de representarem casos isolados, fornecem um quadro com discursos, práticas e pressu- postos culturais que podem ser tomados para análise das situações de um campo de luta, em que se entreveem elementos de uma determinada ecologia política na Amazônia e, em especial, no sudeste paraense. O 32 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política modo como essas realidades locais se organizam, configura, do ponto de vista de suas formas de resistência apresentadas pelos grupos sociais, um campo de força frente às ações dos grandes projetos que afetam o acesso à terra e a seus recursos naturais, e as condições necessárias à produção de suas existências. O que esse campo de luta assinala é a dis- tribuição desigual das terras e do território que caracterizam o sudeste do Pará (LEFF, 2006; MARTINEZ ALIER, 2015). Na acepção rígida e autoritária de acumulação do capital, o de- senvolvimento com pretexto de progresso atua, em realidade, como projeto cultural da modernidade capitalista que marginaliza amplas dimensões das dinâmicas socioculturais de povos e comunidades tra- dicionais. Esse projeto cultural, que informa as ações do Estado e dos agentes empresariais, opera por uma lógica econômica e binária da re- lação humano-natureza. Esse modo de operação, sob o escopo de mo- dernizante, acaba por invisibilizar a mediação ecológica na dinâmica da vida e nas experiências das comunidades tradicionais, impondo uma razão econômica para a vida na terra e a relação com o ambiente. A pesquisa desses contextos, que aliam instrumentos da etno- grafia à produção de mapas, apontou para importantes mudanças nas práticas tradicionais. Como estratégia de resistência e luta social, têm emergido práticas alternativas de cultivo e extrativismo entre os grupos analisados. A produção de roças com cultivos diversificados, o desen- volvimento da piscicultura e o aproveitamento dos recursos extraídos dos territórios tradicionais cresce entre agricultores, indígenas e que- bradeiras de coco. Para além da importância social e econômica, essas ações também demarcam e articulam a relação com o meio ambiente e a atuação política dos grupos em questão. Tornam-se, assim, formas de enfrentamento às situações postas pelo contexto de mudanças no meio ambiente e conflitos socioambientais, implicados na distribuição e apropriação desiguais do território e dos recursos naturais. Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 33 Referências ACOSTA, A. Extrativismo e neoextrativismo: duas faces da mesma mal- dição. In. DILGER, G., Lang, M.; PEREIRA Filho, J. (org.). Descolonizar o Imaginário – Debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvol- vimento. São Paulo, Brasil: Fundação Rosa de Luxemburgo, 2016. ALMEIDA, A. W. B. de. Carajás: A Guerra dos Mapas. Belém, Brasil: Gráfica Supercores, 1995. _______. Antropologia dos archivos da Amazônia. Rio de Janeiro, Brasil: Casa 8/Fundação Universidade do Amazonas, 2008. ALMEIDA, A. W. B., FARIAS Júnior, E. de A. (org.). Povos e comunida- des Tradicionais: nova cartografia social. Manaus, Brasil: UEA Edições, 2013. BARROS JUNIOR, O. A. 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Tal documento faz parte da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), e corresponde à parte atinente ao currículo regional, que deve atender 40% de toda a proposta, sendo 60% relativos aos conteúdos co- muns a serem compartilhados por todo o território nacional. Desse modo, a análise dedica-se aos textos introdutórios que pre- cedem às seções concernentes às diferentes disciplinas que compõem o currículo, e à parcela destinada à disciplina de História, examinando os programas prescritos para a área em todo o Ensino Fundamental. A produção do documento A confecção do Documento Curricular de Roraima (DCR) teve como ponto de partida a Portaria Nº. 2812/17/SEED/GAB/RR (RO- RAIMA, 2017), que institui a Comissão Estadual e o Comitê Execu- tivo da Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Em seu Art. 2º, a portaria designou para a elaboração do documento os representantes das seguintes funções/instituições: Secretário Estadual de Educação; Diretora do Departamento de Educação Básica; Secretário executivo da UNDIME; Coordenadora Estadual da BNCC; Presidente do Conselho Estadual de Educação; representante da Assembleia Legislativa; Presi- dente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado de Rorai- Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 37 ma (SINTER); Presidente da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação - seção Norte (UNCME); representante da Universidade Federal de Roraima (UFRR); representante da Universidade Virtual de Roraima (UNIVIRR); representante da Universidade Estadual de Roraima (UERR); representante do Ministério Público; presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME); representante da Organização de Professores Indígenas de Roraima (OPIR); representante da Associação dos Prefeitos; representante da União Municipal dos Estudantes Secundaristas (UMES); representante do Instituto Federal de Roraima (IFRR); representante do Sindicato das Escolas Particulares; representante do Instituto Nacional de Coloniza- ção e Reforma Agrária (INCRA) e representante das Instituições de En- sino Superior Privadas1. A proposta da BNCC e os documentos estaduais apoiam-se na argumentação da sua produção em bases democráticas. Nessa seara, o artigo “BNCC e o Currículo de História: interpretações docentes no contexto da prática”, escrito por Francisco José Balduíno da Silva, Jean Mac Cole Tavares Santos e Márcia Frota Fernandes (2019) sobre o do- cumento nacional com relação ao Ensino Médio, contribui para a aná- lise do processo de confecção do documento como um todo, conforme afirmação dos autores: Somam-se às contribuições via internet a realização de 5 audiências públicas realizadas entre julho e setembro de 2017 em cada região do país, e mais de 27 seminários estaduais. Com esses números o MBNC defende a ideia de processo democrático na organização da BNCC, construindo assim, por meio de sua rede de articulações discursos de legitimação de uma Base constituída democraticamente e que viria a garantir as aprendizagens necessárias aos alunos do Ensino Médio de todo o Brasil, defendendo desta forma o currículo prescritivo como garantia de qualidade educacional. (SILVA; SANTOS; FERNANDES, 2019, p. 1016). 1 Com relação à composição dos grupos de trabalho que contribuíram com as partes especí- ficas do documento voltadas às disciplinas, no nosso caso História, não consta na portaria citada a designação dos membros desses grupos. 38 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política No entanto, algumas entidades não celebram a produção do do- cumento como democrática dada a rapidez com a qual o processo trans- correu, principalmente após o golpe-jurídico-midiático-parlamentar de 2016 (MATTOS; BESSONE; MAMIGONIAN, 2016), desconsideran- do, em alguma medida, as discussões travadas nos anos anteriores en- tre a “Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) e a Associação Brasileira de Currículo (ABdC), bem como entidades sindicais como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), as quais vieram se posicionar contrárias à ideia de Base Nacional e sua implantação” [da forma como foi concebida]. “Em termos específicos disciplinares, a Associação Nacional de História (ANPUH)” questionou a rapidez e as bases sobre as quais se estrutura- ram a proposta (SILVA; SANTOS; FERNANDES, 2019, p. 1016). A produção de currículos torna-se, geralmente, pauta de diversos setores da sociedade, para além daqueles diretamente envolvidos com a educação, quando dos debates públicos impulsionados por esferas do go- verno e a grande mídia. Esta, em larga medida, comunga uma perspectiva político-ideológica neoliberal com instituições privadas interessadas na concepção da educação como mercado que atenda às expectativas desse modelo econômico. Nessa perspectiva, os autores supracitados elencam também as instituições e fundações privadas entusiastas na promoção da elaboração do documento nacional, sendo elas: Centro de Estudos e Pesquisas em Educação (Cenpec), Comunidade Educativa CECAD, Fun- dação Maria Cecília Souto Vidigal, Instituto Inspirare, Instituto Ayrton Senna, Fundação Lemann, Fundação Roberto Marinho, Instituto Natura e Instituto Unibanco (SILVA; SANTOS; FERNANDES, 2019, p. 1014). Diante do exposto, valorizamos e reconhecemos o esforço dos colegas que trabalharam sempre na intenção de contribuir para a educa- ção, especificamente, o ensino de história, especialmente, no estado de Roraima e por todo o país. Por outro lado, é importante ter em vista ascondições e as intenções de produção desse documento, que em última instância, alinha-se às prioridades educacionais que atendam às deman- das das políticas socioeconômicas neoliberais. Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 39 Análise do Documento de Roraima – textos introdutórios A BNCC e a DCR expressam em seus textos primar por valores como democracia e tolerância, especialmente o respeito à diversidade étnico-racial, social e cultural, além de frisar a construção das propostas de currículo calcadas em bases democráticas. Tais premissas compõem os textos introdutórios do documento, relativas à formação do sujeito nos mais diferentes aspectos. No documento estadual, bem como no nacional, há uma parte que abrange questões amplas relativas à formação dos educandos, a qual chamamos de textos introdutórios. Esta seção precede a que trata espe- cificamente daquelas direcionadas às disciplinas. Em consonância com os valores democráticos e de tolerância como basilares na formação dos estudantes, o documento em seus “Princípios filosóficos, sociológicos e pedagógicos do currículo” notabiliza-se pela: abordagem sociointeracionista, na concepção vygotskyana, visto que parte do princípio de que o sujeito não nasce pronto e acabado, nem mesmo é uma cópia do ambiente em que está inserido, pois sua evolução intelectual pressupõe uma interação com o outro, com o meio e, sua interação social promove a transformação de um ser biológico em um ser humano. Partindo desse princípio, a escola tem como função social fazer com que os conhecimentos empíricos construídos pelo sujeito a partir da vivência com o outro, o meio, evoluam para construção dos conhecimentos científicos, de forma que este se reconheça como um ser social, histórico e cultural, transformando-se num sujeito crítico reflexivo e participativo (DOCUMENTO CURRICULAR DE RORAIMA, 2018, p. 10). No excerto observamos uma preocupação com a formação dos educandos levando em consideração a interação com o meio e as rela- ções interpessoais como parte do processo, todavia a “concepção vygo- tskyana” aparece no texto sem maiores aprofundamentos e sem referên- cia das obras que comportam tal concepção. 40 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política Alinhado com a diretriz nacional, o documento reafirma a preo- cupação com a formação integral do sujeito na perspectiva de que “Não basta que o aluno aprenda apenas conceitos básicos dos componentes curriculares; o ideal é que consiga usar o que aprendeu na sua vida” (DO- CUMENTO CURRICULAR DE RORAIMA, 2018, p. 11). Se por um lado, tal premissa nos conduz ao entendimento da intenção de um ensi- no significativo para os sujeitos envolvidos, por outro lado, constitui-se como necessário pensar a educação para além de termos utilitaristas, que abarquem possibilidades de crescimento e descobertas que viabilizem a percepção de diferentes modos de viver, alargando a compreensão e a problematização do próprio meio no qual o indivíduo está inserido. A percepção que extrapola o próprio meio e a própria vida é pon- to fulcral para a formação do sujeito na perspectiva da educação para uma cultura de cidadania, paz e tolerância. Tais aspectos se relacionam diretamente com a diversidade social, cultural e econômica do País. Nesse sentido, a afirmação “consiga usar o que aprendeu na sua vida”, pode remeter a um ensino voltado para questões prementes, apoiado na lógica econômica neoliberal que reproduz as desigualdades sociais, ao invés de um ensino estimulante e questionador, que valorize a descober- ta e a problematização, proporcionando o exercício do descentramento. A importância do descentramento pode ser observada pela di- versidade presente nas escolas roraimenses que o próprio documento menciona: Segundo o Censo Escolar (BRASIL, 2017), a Rede Estadual de Educação de Roraima conta atualmente com 381 escolas, dentre as quais, 258 são escolas indígenas, distribuídas entre as 32 Terras Indígenas homologadas, que representa 46,2% do território do Estado, com algumas que já estão na zona urbana da capital Boa Vista. Outro aspecto importante a ser destacado, é a migração maciça de venezuelanos que, de acordo com os dados da Secretaria Estadual de Educação, entre 2017 e 2018, gerou uma demanda de atendimento de mais de 1300 alunos nas classes de Ensino Fundamental II e Médio, e o número crescente Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política | 41 de alunos a serem atendidos no âmbito da Educação Especial, que representa cerca de 1,7% do total de matrículas (DOCUMENTO CURRICULAR DE RORAIMA, 2018, p. 14). Na parte destinada à disciplina História, percebemos que as pre- missas da área podem contribuir para a formação dos sujeitos a partir da incorporação dos pressupostos teóricos e metodológicos que preco- nizam a “des-hierarquização das histórias”, ou seja, tratamento equâni- me para os diversos assuntos abordados na disciplina História, e pela adoção efetiva das inovações e as extensas pesquisas em relação ao en- sino de história. A adoção das pesquisas e da renovação historiográfica referente ao ensino de história oportuniza o exercício do descentramento, contu- do, o documento em tela, na nossa perspectiva, carece de certo aprofun- damento de dois fundamentos básicos do conhecimento historiográfi- co: a problematização e a historicização. Sendo assim, apesar do documento propor um ensino significa- tivo que favoreça a “formação integral”, conforme consta no item “2.2 Formação Integral do Sujeito” (DOCUMENTO CURRICULAR DE RORAIMA, 2018, p. 11), a proposta perde um pouco da sua vitalidade quando nos referimos à concatenação dos preceitos mais amplos com o proposto na disciplina História, sobretudo no que diz respeito à aborda- gem acerca dos conteúdos. A parcela dedicada à disciplina História, com relação aos con- teúdos divididos entre as “Unidades Temáticas” e os seus respectivos “Objetos de Conhecimento”, não se distancia de uma proposta de con- teúdo tradicional com uma concepção de história linear. Isso se reflete na forma como o documento compreende as questões teóricas e meto- dológicas da área e a metodologia de ensino, que envolvem o modo de inserção de fontes históricas na sala de aula e a maneira de trabalhá-las em âmbito escolar, como veremos adiante. 42 | Amazônia(s) em História(s): diversidade, ensino e política A disciplina história no Documento Curricular de Roraima Na seção dedicada ao Ensino de História nos Ensinos Funda- mentais I e II, assim como para as outras áreas, há o estabelecimento de competências (conceitos e procedimentos) e habilidades (práticas, cog- nitivas e socioemocionais) a serem desenvolvidas. Tais determinações exigem, por conseguinte, de acordo com o documento estadual “o rede- senho curricular que possibilite o alcance de uma rede de aprendizagem entre as competências gerais, competências da área e as competências do componente curricular” (DOCUMENTO CURRICULAR DE RO- RAIMA, 2018, p. 464), o que indica o caráter prescritivo e balizador do documento, que entende a gama de conhecimentos dispostos, compe- tências e habilidades como “essenciais”. No processo de ensino e aprendizagem da História, a DCR ex- prime a importância da inserção das fontes na sala de aula, essa tônica é recorrente ao longo do texto, como poderemos evidenciar mais adiante a partir dos quadros designados “Organizadores Curriculares”. Toda- via, observamos com clareza algumas fragilidades na proposta, sendo a maior delas a falta de problematização no trabalho com as fontes, que advém da indefinição do que se considera fonte, limitando-se à sua des- crição, e uma frágil contextualização sem análise e problematização: Para se pensar o ensino de História, é fundamental considerar a utilização de diferentes fontes e tipos de documento (escritos, iconográficos, materiais, imateriais) capazes de facilitar a compreensão da relação tempo e espaço
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