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______________________________________________________________ Carvalho, I. C. M. Análise do discurso e hermenêutica: reflexões sobre a relação estrutura e acontecimento. In: GALLIAZO, M.C. e FREITAS, J. V. Metodologias emergentes de pesquisa em educação ambiental. Rio Grande, Editora Ijui, 2005. pp 201-216. ______________________________________________________________ ANÁLISE DO DISCURSO E HERMENÊUTICA: REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO ESTRUTURA-ACONTECIMENTO E O CONCEITO DE INTERPRETAÇÃO Isabel Cristina. Moura Carvalho1 1. Introdução Este artigo discute as relações entre Análise do Discurso (AD) e Hermenêutica (H), dois campos do saber que implicam em posturas e recursos metodológicos para análise de formações discursivas, textos e esperiências sociais. Embora a AD e a H estejam relacionadas de alguma maneira, pois ambas são tributárias de uma mesma grande ruptura que é nomeada como "giro lingüístico" (Rorty, 1990) ou "giro iterpretativo" (Geertz, 1994), constituem campos diferenciados de compreensão sobre a linguagem e seu funcionamento. Essa situação, ao mesmo tempo de afinidade e diferença que caracteriza a relação entre AD e H, vai favorecer o equívoco no uso de conceitos nominalmente comuns, mas que adquirem sentidos diversos na medida em que funcionam em diferentes registros discursivos. Ao falarmos de AD é importante esclarecer que estamos tomando como quadro de referência as últimas formulações desta disciplina elaboradas principalmente por Pêcheux, no final dos anos 70 e início dos anos 802. Quanto a H estamos tomando 1 Ps icóloga, Doutora em educação e professora do PPGEDU da ULBRA 2 A AD é uma discipl ina que se const ruiu de uma forma acentuadamente dinâmica, em permanente diálogo e tomada de posição diante das provocações da vida intelectual e pol í t ica contemporânea. Esses movimentos de construção-desconstrução- recosntrução da teoria foram l idos por Maldidier (1990) como uma marca de inquietude . como referencia a chamada hermenêutica filosófica moderna, que tem em Gadamer um de seus principais formuladores. Consideraremos também em nosso marco referencial para hermenêutica o trabalho de Paul Ricouer. Este trabalho, longe esgotar o tema das relações entre AD e H pretende, ao contrário, uma incursão exploratória pelas fronteiras, as vezes porosas, destes dois campos do saber que se constituem sobre a máxima da linguagem. Nesse sentido, não vamos percorrer toda a extensão das continuidades e rupturas, que são muitas, mas vamos ater-nos a alguns conceitos-chaves para explorar essas delicadas relações. 2.Uma raiz comum: o giro lingüístico Antes de atermo-nos às diferenças entre AD e H, vamos situá-las em sua raiz comum: o giro lingüístico. A expressão "giro lingüístico" vem sendo usada por diversos autores para designar "o abandono do paradigma da filosofia da consciência, para centrar-se no signo como único ponto de referência do significado e do sentido" (Aramayo,1995: 288). O giro lingüístico, portanto, demarca fundamentalmente um ponto de clivagem com as bases filosóficas do projeto moderno, que Heidegger chamou de pensamento metafísico3. Isto significa a ruptura com as tradições filosóficas que deram sustentação ao ideal científico da modernidade ocidental, especialmente o idealismo(platônico) e o racionalismo (kantiano e cartesiano). O pensamento científico, baseado nos procedimentos objetificadores do método experimental, sustenta um conceito de verdade como correspondência com o real que tentou impor-se como critério de validade para todas as áreas do conhecimento. No plano empírico essa correspondência foi posta na correlação entre um dado e uma lei geral. No plano filosófico se expressa na correspondência entre representação (o conceito) e coisa mesma ( o real). 3 Habermas (1990:38) si tua com precisão as t radições f i losóficas que const i tuem o chamado pensamento metafís ico: "caracter izo como metafís ico o pensamento de um ideal ismo f i losófico que se origina em Platão, passando por Plot ino e o neoplatonismo, Agost inho e Tomás, Cusano e Pico de Mirandola, Descartes , Spinoza e Leibniz, chegando até Kant , Fichte, Shel l ing e Hegel" . 2 Alguns setores de ponta das ciências naturais, especialmente a física pós- newtoniana, e uma parte significativa da ciências humanas tem se empenhado na crítica ao paradigma racionalista e idealista que deu as bases de justificação da ciência moderna. Com isto, tem sido posta sob suspeita a idéia de verdade como correspondência com o real. Dito de outra forma, tem sido posto em cheque a crença no pensamento como apreensão de um real inequívoco e "verdadeiro". Esta crítica epistemológica de longo alcance e profundas conseqüências encontra seus precursores em Nietzsche e Heidegger. 3.Estrutura e acontecimento: os caminhos da crítica ao estruturalismo Como vimos, tanto a AD quanto a H estão fora de uma perspectiva da filosofia da consciência, da psicologia do ego, do objetivismo científico, do positivismo. Ambas fazem uma crítica ao estruturalismo e vão buscar no acontecimento o ponto de fuga para o peso da estrutura paralisante. Contudo, e aí reside o risco de fazer equivalências apressadas , o lugar do acontecimento vai estar situado diferentemente em cada uma de nossas formações discursivas. A seguir passamos a pontuar os caminhos da crítica ao estruturalismo seguidos pela AD e H. Primeiramente é preciso lembrar com Maldidier (1990) que a AD nasce nos anos 60 sob o signo do "estruturalismo triunfante", que trouxe para o cenário intelectual uma promessa de cientificidade, apoiada na lingüística enquanto "ciência Piloto". E, nesse sentido, se evidencia a relação entre a expansão da lingüística e a possibilidade de uma disciplina de AD. Nos anos 70, portanto, a expansão da lingüística estrutural esteve muito associada à própria expansão da AD. Contudo, nos anos 80, Pêcheux reconhece a importância e ao mesmo tempo faz duras críticas ao estruturalismo, acusando este movimento de ter perdido de vista irremediavelmente o registro do ordinário do sentido, pelo qual este teria uma "aversão teórica". Ao fechar-se na esfera do simbólico, o estruturalismo afirmaria sua necessidade de um universo de sentido logicamente estabilizado, expulsando de seus domínios a força 3 dos jogos, deslocamentos, e derisões de sentido que se impõe desde o plano da ação dos sujeitos e do acontecer histórico. Dito de outro modo, Pêcheux vê no estruturalismo a perda da abertura para a alteridade, o fechamento para o que se impõe desde o Outro, o Outro da sociedade, da história. Denuncia ainda um "narcisismo da estrutura", que impôs a lógica conceitual como absoluta e acima dos acontecimentos, fazendo valer o teórico como uma espécie de metalíngua: "esta posição de desvio teórico, seus ares de um discurso sem sujeito, simulando os processos matemáticos, conferiu às abordagens estruturais esta aparência de nova 'ciência régia', negando como de hábito sua posição de interpretação" (Pêcheux 1990: 52-53) . Ao fazer sua análise sobre o enunciado "on a gagné", dito nas eleições de maio de 1981 na França, Pêcheux discute o estatuto das discursividades que "trabalham um acontecimento" (1990: 28). Toma este dito enquanto signo de um acontecimento opaco, inscrito no jogo de suas diversas denominações. Aponta para os diversos enunciados, já pre-configurados discursivamente antes das eleições, produzidos pelos diferentes atores e interesses emjogo na sociedade francesa que disputam as significações deste acontecimento político. Ao examinar os diferentes enunciados em jogo Pêcheux(1990: 22) mostra como "o jogo metafórico em torno do enunciado "on a gagné" veio sobredeterminar o acontecimento, sublinhando sua equivocidade". Ao focar diretamente o tema da discursividade como estrutura ou acontecimento destaca os riscos da análise, na medida em que inscreve o acontecimento num corpus, absorve-lo na estrutura dos marcos lógicos utilizados. Exemplifica isto com o uso do conceito de formação discursiva, que a AD toma emprestado a Foucault4, afirmando que este derivou muitas vezes para a idéia de uma máquina de assujeitamento voltada à repetição, que desembocaria num apagamento do acontecimento, absorvendo-o em uma sobre-interpretação antecipadora (1990:56). 4 O concei to de Formação Discurs iva é fortemente quest ionado nas úl t imas formulações da AD, que tendem a tornar cada vez mais central a noção de interdiscurso para dar conta das relações com a história , o Outro, e o pré-construído. (cf . Maldidier , 1990). 4 De outro lado, Pêcheux também avalia que não se trata de absolutizar o acontecimento. Aponta para os riscos de um "retorno para os positivismos e filosofias da consciência" no movimento da Nova História, por exemplo, que se volta para a escuta das circulações cotidianas. Pêcheux afirma que essa retomada do ordinário do sentido toma-o às vezes como um fato de natureza psico-biológica, inscrito em uma discursividade logicamente estabilizada. Por fim, Pêcheux nos dá sua posição sobre como posicionar a questão da análise do discurso frente aos marcos metodológicos disponíveis: "Eu sublinharia o extremo interesse em uma aproximação , teórica e de procedimentos, entre as práticas de 'análise da linguagem ordinária' (na perspectiva anti-positivista que se pode tirar da obra de Wittgenstein) e as práticas de 'leitura' de arranjos discursivos-textuais (oriundo das abordagens estruturais). Ricouer (1978: 29) vai explicitar o debate entre hermenêutica e estruturalismo. E aqui reside a primeira diferença no teor da crítica. Ricouer não opõe a hermenêutica ao estruturalismo, mas diferencia estas abordagens enquanto pertencentes a campos diversos: o estruturalismo pertence à ciência enquanto a hermenêutica é uma disciplina filosófica. Nesse sentido, coerente com sua afirmação sobre a validade de um método jamais separar-se da consciência de seus limites, Ricouer valoriza o estruturalismo dentro de seu campo próprio de limites e possibilidades: "não vejo enfoque mais rigoroso e mais fecundo que o estruturalismo no nível de inteligência que é o seu", e afirma sua diferença para com a hermenêutica: "tanto o estruturalismo visa a distanciar, a objetivar, a separar da equação pessoal do pesquisador a estrutura de uma instituição, um mito, de um rito, quanto o pensamento hermenêutico embrenha-se naquilo que pudemos chamar de 'o círculo hermenêutico' do compreender e do crer, que o desqualifica como ciência e o qualifica como pensamento meditante. Considerando a cientificidade como a principal conquista do estruturalismo, Ricouer(1978: 73) analisa o preço dessa conquista, avaliando as perdas que isso acarreta. A exclusão da história, o fechamento do universo dos signos, a perda da 5 intenção primeira da linguagem que é dizer algo sobre alguma coisa, são alguns dos aspectos da crítica da H ao estruturalismo. O que fica de fora da inteligibilidade estrutural é a compreensão dos atos, operações e processos, constitutivos do discurso. Na perspectiva hermenêutica de Ricouer (1978:69) o que se busca, em contrapartida ao estruturalismo, é uma "nova inteligência das operações e dos processos. Essa nova inteligência se situaria para além da antinomia da estrutura e do acontecimento, do sistema e do ato". Nesta primeira aproximação já podemos ver que os pontos de partida da AD e da H para uma tomada de posição frente ao estruturalismo guardam diferenças importantes. A AD tem uma de suas raízes no próprio estruturalismo, nasce imbuída do triunfo científico que representou a lingüística saussiriana nos anos 60. E é sobre esta sua matriz que nos anos 80 se voltam as reflexões críticas de Pêcheux. Nesse sentido poderíamos dizer que - do mesmo modo como ocorre com a crítica ao marxismo - Pêcheux está fazendo uma espécie de tomada de posição dentro de sua própria tradição, diferenciando-se dos "desvios teóricos" que ele julga ter seguido o movimento estruturalista, e resgatando parte de duas conquistas, ao propor integrar as práticas de leitura dos arranjos discursivos-textuais na AD. Já a H não tem essa raiz no estruturalismo. Constitui-se a partir de um outro lugar nesse campo de interlocução. Seu principal ponto de ruptura é com o pensamento objetivista que está na base da ciência e da racionalidade moderna de um modo geral - e por conseguinte na origem do estruturalismo - , que Heidegger chamou de pensamento metafísico5. 5 Inicialmente a hermenêutica se constituiu como uma técnica de interpretação de textos que remonta a tradição exegética voltada para a compreensão dos textos bíblicos. Como técnica de interpretação também encontrou aplicação na filologia e no direito. Como aponta Ricoeur (1978), embora a hermenêutica estivesse relacionada à filosofia clássica e às ciências históricas no final do século XVIII e início do século XIX, é apenas nas primeiras décadas do século XX, com Dilthey e Schleiermacher que o problema hermenêutico transcende sua dimensão de técnica interpretativa e se torna problema filosófico. Destaca-se atualmente, com a contribuição dos hermeneutas contemporâneos como Gadamer, Ricoeur, Vattimo, entre outros, a condição da hermenêutica moderna como um método de análise que, além da filosofia, vai influenciar importantes correntes em ciências sociais e psicanálise. 6 Para a H trata-se de superar a antinomia estrutura-acontecimento. E é nas palavras, o lugar da linguagem onde se fará constantemente esse encontro da estrutura e do acontecimento. Numa perspectiva hermenêutica as palavras são signos em posição de parole, são o ponto de articulação entre o semiológico e o semântico em cada acontecimento de parole: "A palavra é como um permutador entre o sistema e o ato, entre a estrutura e o acontecimento: de um lado ela depende da estrutura como um valor diferencial, mas, neste caso, não passa de uma virtualidade semântica; do outro depende do ato e do acontecimento, na medida em que sua atualidade semântica é contemporânea da atualidade evanescente do enunciado" (Ricouer, 1978:80) Com isso a H resgata a força da fala que foi excluída por Saussure em sua distinção entre língua e fala. O argumento de Ricoeur é que essa distinção e a valorização da língua sobre a fala levou Saussure a constituir sua disciplina sobre um objeto homogêneo: "Tudo o que diz respeito à língua cai realmente no interior do mesmo domínio, enquanto que a fala se dispersa nos registros da psicofisiologia, da psicologia, da sociologia, e não parece constituir o objeto único de uma disciplina específica".(1978:71) Para a H a principal preocupação é com o sentido. Este é produzido na experiência dos sujeitos no mundo e, portanto, é contextual. Assim, a noção de discurso está de certa forma submetida à experiência : "o discurso é uma tentativa incessantemente renovadapara exprimir integralmente o pensável e o dizível de nossa experiência"(Ricouer 1978:79) E mais adiante: 7 "Compreendemos, então, o que ocorre quando a palavra acede ao discurso, com sua riqueza semântica. Sendo todas as nossas palavras polissêmicas em certo grau, a univocidade ou a plurivocidade de nosso discurso não é obra das palavras, mas dos contextos"(Ricoeur, 1978:81). Assim, para a H a abertura da linguagem está no dizer e, em termos do discurso, na palavra. É nessa abertura que a H vai se afirmar em contraponto ao estruturalismo. Como é possível perceber, os acentos da H são bem diferentes da AD em relação a concepção e modo de funcionamento do discurso. A própria noção de discurso está submetida na H a outra ordem de coisas, isto é, para usar a expressão cara aos franceses, está posicionada dentro de um registro fenomenológico que pensa o ser aí (dasein), e remete à experiência como origem do discurso. Está claro que para a H a linguagem é constitutiva do estar no mundo. E aqui temos um ponto de encontro com a AD. Contudo os desdobramentos conceituais e metodológicos dessa constatação comum apontam para caminhos diversos. E isto se evidencia mais uma vez quando analisamos os sentidos que a interpretação vai tomar em cada uma destas disciplinas. 4. Interpretação em Hermenêutica e em Análise do Discurso 4.1 Interpretação em Hermenêutica Interpretação é um conceito chave em hermenêutica, por isso neste tópico vamos situá-lo em duas de suas importantes dimensões tratadas por Gadamer e Ricoeur, respectivamente. Interpretação-compreensão em Gadamer 8 Ao eleger a linguagem como meio privilegiado da experiência humana do mundo, a H opera com um conceito de linguagem onde esta não é transparente, óbvia, e onde os sentidos não estão nunca dados previamente, mas se constituem numa relação dialógica de interpretação. Para Gadamer: "a linguagem é o meio universal em que se realiza a compreensão mesma. A forma de realização da compreensão é a interpretação. Todo compreender é interpretar e toda interpretação se desenvolve em meio a uma linguagem que pretende deixar falar o objeto e ao mesmo tempo a linguagem própria de seu intérprete". Para o autor "A linguagem é onde se encontram o eu e o mundo"(Gadamer, 1993:467 e 567)". A linguagem é aqui o meio onde se realiza a simultaneidade entre a análise e a aplicação, entre a interpretação e compreensão, e também entre o eu e o mundo ou seja, entre sujeito e objeto. Deste modo, "la interpretación no es un acto complementario y posterior al de la compreensión, sino que compreender es siempre interpretar, y en consecuencia la interpretación es la forma explicita de la compreensión" (Gadamer, 1992: 378). Apesar do forte acento no papel do sujeito intérprete e sua pré compreensão como condições fundamentais do ato de interpretação, há que destacar que as condições da interpretação não devem ser subsumidas à mera subjetividade do intérprete, mas este deve ser entendido a partir de sua condição histórica e inserção num contexto ideológico específico. Gadamer chama atenção para a importância da historicidade da compreensão como princípio hermenêutico: "La lente de la subjetividad es un espejo deformante. La autoreflexión del individuo no es mas que una chispa en la corriente cerrada de la vida historica. Por eso los prejuicios de un individuo son, mucho más que sus juicios, la realidad histórica de su ser" (Gadamer, 1993: 344). 9 Interpretação e a busca do sentido para além da linguagem em Ricoeur Ricoer define interpretação guardando seu sentido exegético e destacando a problemática da multiplicidade de sentidos: "A interpretação, diremos, é o trabalho de pensamento que consiste em decifrar o sentido oculto no sentido aparente, em desdobrar os níveis de significação implicados na significação literal. Guardo assim a referência inicial à exegese, isto é, à interpretação dos sentidos ocultos. Símbolo e interpretação tornam-se, assim, conceitos correlativos: há interpretação onde houver sentido múltiplo; e é na interpretação que a pluralidade dos sentidos torna-se manifesta" (Ricoeur, 1978: 15). Ao depositar toda a problemática da interpretação no sentido e não na análise das significações, Ricouer expressa uma aposta no ultrapassamento da linguagem. O conceito de sentido aponta para uma dimensão que se constitui via linguagem mas que em seus efeitos é extra lingüística. Explico melhor, Ricoeur quer ultrapassar o fechamento de uma análise lingüística que se pauta por um universo de significações como um sistema fechado em si mesmo. Para ele a absolutização da linguagem "nega a intenção fundamental do signo que é a de valer por..., portanto, ultrapassar-se e suprimir-se naquilo a que visa. A própria linguagem, enquanto meio significante, exige ser referida à existência. Ao fazer essa confissão reencontramos Heidegger: aquilo que anima o movimento de ultrapassamento do plano lingüístico é o desejo de uma ontologia." (1978: 18) 4.2. Interpretação e descrição em Análise do Discurso A AD se distingue marcadamente da H quando se trata do tema da interpretação, e isso vamos demonstrar através das póprias palavras de Pêcheux e Orlandi. Em AD a interpretação estará associada a uma outra operação: a descrição. Interpretação e descrição não são duas fases sucessivas, mas segundo Pêcheux (1990: 54) 10 são dois momentos que se alternam nas operações de análise do discurso. E mesmo aí, no que tange a descrição como operação-fim da AD, também podemos notar diferenças de ênfases entre as proposições de Pêcheux e de Orlandi, como veremos. Pêcheux, (1990:50) destaca o sentido da interpretação em AD e sua diferença em relação a H: "A primeira exigência [da AD] consiste em dar o primado aos gestos de descrição das materialidades discursivas. Uma descrição, nesta perspectiva, não é uma apreensão fenomenológica ou hermenêutica na qual descrever se torna indiscernível de interpretar: essa concepção da descrição supõe ao contrário o reconhecimento de um real específico sobre o qual ela se instala: o real da língua" E mais adiante, acrescenta: "Todo enunciado, toda seqüência de enunciados é, pois, linguisticamente descritível como uma série (léxico sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise de discurso"(1990:53) Orlandi(1996:63-64) também vai distinguir a AD da H em várias passagens de seu trabalho sobre interpretação: "Inicialmente devo dizer que a AD distingui-se da H em vários aspectos: a) pela natureza do sujeito interpretante (não psicológico); b) pelo fato de que, na AD, a interpretação é precedida pela descrição; ou seja, a linguagem na AD não é transparente. Em suma, interpretar para o analista de sentidos não é atribuir sentidos, mas expor-se à opacidade do texto, ou como tenho proposto é compreender, ou seja, explicitar o modo como um objeto simbólico produz sentidos, o que resulta em saber que o sentido pode ser outro". 11 Mais adiante Orlandi volta a esse tema e pontua: "A tarefa do analista de discurso não é a) nem interpretar o texto como faz o hermeneuta; b) nem descrever o texto. Tenho dito que o objetivo é compreender, ou seja, explicitar os processos de significação que trabalham o texto: compreender como o texto produz sentidos, através de seus mecanismos de funcionamento" (1996:88).Destas citações de Pêcheux e Orlandi, podemos depreender que as operações de análise das significações que tem lugar na AD, quer tomem o caráter de interpretação, descrição, ou compreensão, estão referidas sobretudo a explicitação de um modo de funcionamento discursivo. Nesse sentido, estão intrinsecamente ligadas à materialidade do fato discursivo, isto é, ao intradiscurso. E aqui reside, talvez, a principal diferença entre AD e H, uma vez que a abertura para a dimensão extra lingüística - a história, a sociedade - está contemplada em ambas as abordagens como se pode ver pelas noções de interdiscurso, filiações sócio-históricas de identificação na AD e historicidade, história factual em H. Como vimos acima com Pêcheux, o real da língua é a condição de possibilidade da descrição. A materialidade lingüística é, portanto, parte inalienável do fato discursivo em AD. Estas noções não fazem sentido dentro do marco da H. Esta última se move numa dimensão do simbólico constituída por sentidos que se fazem a partir da experiência do ser no mundo. Disto decorre que o gesto hermenêutico de interpretar não percorre os meandros do intradiscurso. Aliás, como vimos em Ricoeur, o hermeneuta não só não penetra o intradiscurso como deseja ultrapassar a linguagem, alcançando o sentido para além do signo lingüístico. Ernildo Stein (1996) nos ajuda a esclarecer a diferença entre o lugar das ciências lingüisticas e o da filosofia, onde se move a H, quando refere-se às: 12 "fronteiras imprecisas das relações entre análise do discurso (de que é capaz o universo das ciências humanas) e a análise do discurso que é propriamente o discurso da filosofia, não a da linguagem, mas da filosofia enquanto um certo tipo de análise". O analista de discurso também busca um para além do lingüístico, como bem aponta Maingueneau (1996: 8), "o interesse que orienta a análise do discurso não é apreender nem a organização textual ela mesma, nem a situação de comunicação, mas o dispositivo de enunciação que liga uma organização textual e um lugar social determinado". Contudo, para o analista de discurso esse para além se alcança através da análise da materialidade lingüística. Nesse sentido intra e interdiscurso são duas faces de uma mesma realidade: o fato discursivo. 5. Breves comentários finais Não se trata aqui de concluir ou estabelecer um juízo sobre a AD e H. A perspectiva comparativa que adotamos não tem como finalidade a escolha ou indicação de uma ou outra abordagem. O que se buscou neste trabalho foi apenas um mapeamento das afinidades e diferenças entre estes dois saberes interpretativos, para uma melhor compreensão e precisão conceitual. Assim, interrogamos tanto a AD quanto a H no sentido de obter suas intenções fundamentais de análise, seus modos de compreensão da linguagem e do fato lingüístico, buscando reconstruir o sentido que cada uma produz para sua própria ação interpretativa. BIBLIOGRAFIA 13 Gadamer, Hans-George. Verdad y método; fundamentos de una hermenéutica filosófica. Ediciones Sígueme, Salamanca, 1993. Geertz, Cliford. Conocimiento local. Barcelona, Paidós, 1994 Habermas, Jürgen. Pensamento pós-metafísico; estudos filosóficos. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990. Maingueneau, Dominique. L'analise du discours em France aujourd'hui. In: Le discours: enjeux et perspectives. Le Français dans le monde, Ed. Edicef, numero especial, julho/96. Maldidier, Denise. L'inquietude du discours. Editions des Cendres, 1995. Orlandi, Eni Pulcinelli. Interpretação; autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, Vozes, 1996. Pêcheux, Michel. O discurso; estrutura ou acontecimento. Pontes, Campinas, 1990. Ricouer, Paul. O conflito das interpretações. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1970. Rorty, Richard. El giro linguístico. Barcelona: Paidós, 1990 Stein, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. EDIPUCRS, Coleção Filosofia n.40, Porto Alegre, 1996. 14
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