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Uma Infelicidade Machadiana

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A partir do momento de sua primeira publicação, na edição de 29 janeiro de 1845 do jornal The New York Evening Mirror (onde apareceu sem a assinatura do autor e pelo qual este recebeu a quantia de dez dólares), o poema "The Raven", de Edgar Allan Poe, foi alvo de agudo interesse por parte do público. Foi publicado na imprensa onze vezes durante a vida de Poe e em um número incontável de ocasiões de lá para cá. O sucesso do poema fez com que Poe passasse a ser solicitado a falar publicamente para integrantes de sociedades literárias e clubes de senhoras. Como suporte para tais conferências, preparou um ensaio que também se tornaria famosíssimo e leitura compulsória para tantos quantos se ocupem da poesia: "The Philosophy of Composition" ("A filosofia da composição").
Em "A filosofia da composição" Edgar Allan Poe descreve o processo de confecção de "The Raven" de tal forma a induzir no leitor a noção de que teria sido projetado e realizado como um teorema matemático. Ocupa-se quase exclusivamente de questões relacionadas à métrica, às sonoridades, às rimas e assim por diante. Dedica poucas palavras às imagens usadas no poema, embora se estenda em considerações quanto ao clima. No que concerne à narrativa nele expressa, praticamente silencia.
Essa concentração nos aspectos formais da composição poética contribuiu de forma não pouco relevante para uma certa tendência acadêmica que prefere apresentar e analisar a poesia como simples ajuntamento de sons, deixando para um longínquo segundo plano questões relacionadas ao significado. "A filosofia da composição" comparece infalivelmente entre as fontes mencionadas como embasamento "teórico" por adeptos dessa concepção. 
Tal atitude tem conseqüências imediatas sobre o modo como se encara a tradução de poesia. Mesmo comentaristas que não poderiam ser acusados de radicalismo esteticista examinam traduções sob o ponto de vista exclusivamente fônico e métrico. É o caso, por exemplo, do filólogo Matoso Câmara Jr. Num artigo dedicado à defesa dos dotes poéticos de Machado frente aos de Fernando Pessoa e Gondin da Fonseca ("Machado de Assis e 'O corvo' de Edgar Poe", Ensaios machadianos, Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico, 1977), ele transcreve diversos dos trechos da tradução de Machado em que recorrem equívocos facilmente identificáveis por confronto com o original, mas sobre os quais não profere palavra. A frase conclusiva do artigo permite depreender por quê. Referindo-se a "The Raven", afirma tratar-se "de uma obra que vale quase totalmente como poesia pura, sem o esteio do pensamento filosófico nítido ou do arroubo sensual"... 
Outros, como os que no Brasil seguem as doutrinas da "transcriatividade" (traduzir é "transcriar", segundo critérios íntimos do tradutor), chegam a postular implicitamente a desimportância do significado. É evidente que o que eles têm em mente é a poesia, e não a prosa (pois ficaria difícil defender uma tradução de Romeu e Julieta que resultasse em Os sertões) , mas como seria impossível reivindicar "transcriatividade" para a primeira sem também fazê-lo para a segunda, vêm-se obrigados a defender a noção em toda a sua radicalidade. Uma das conseqüências mais graves de tal operação epistemológica é que, em face da circunstância de o ato de criação ser arbitrário e suas motivações e referenciais permanecerem encerrados no âmbito exclusivo do criador, aquilo que um observador externo possa dizer sobre o que ele faz é desconsiderado como irrelevante. Nesse passo, desaparece o próprio conceito de erro. Como identificar a incidência de equívocos (ou mesmo declarar qualquer coisa de significativo) sobre algo que nos é apresentado como "transcriação"? 
Em seu "O texto-espelho (Poe, engenheiro de avessos)" (em A operação do texto, Perspectiva, 1976), artigo que poderia ter sido escrito sob o modelo de Câmara Jr., com a única diferença de que o autor se situa em lado diverso da trincheira estética, Haroldo de Campos percorre o mesmo percurso comparativo, desta vez entre Machado de Assis e Fernando Pessoa. Depois de anunciar que "a tradução, aqui, será vista [...] como uma instância privilegiada de atividade crítica", Campos passa a fazer considerações de natureza métrica, rítmica e assim por diante, eximindo-se, porém, de assinalações mais substantivas sobre significados – embora, presumivelmente, estas também façam parte da "atividade crítica". Muitas palavras elogiosas a Pessoa (e suas distorções) e nenhuma quanto aos empréstimos de Machado. 
Num livro publicado no início de 1998, em que se reproduzem algumas das traduções do poema ("O Corvo" e suas traduções, Lacerda), o organizador Ivo Barroso inclui um ensaio de abertura em que também silencia sobre os aspectos semânticos e se concentra nos métricos. 
Como a versão de poesia é considerada o non plus ultra da atividade de tradução, esse gênero de desconsideração acaba por estimular a irresponsabilidade de tradutores de qualquer tipo de texto. Boa parte deles assume implicitamente (e, por vezes, abertamente) que seu compromisso fundamental é com eles próprios, ficando a fidelidade quanto ao original num apagado segundo plano. Num país em que a responsabilidade, se não é exercida invidualmente, não é exercida por ninguém, isso só pode levar à disseminação de barbaridades – como se vê todos os dias. 
"The Raven" está entre os mais traduzidos poemas curtos da história da literatura. Encontram-se traduções dele em todas as línguas, das neolatinas às eslavas, passando pelas nórdicas, insuladas (como o basco) e artificiais (o esperanto). De todas, o francês bate o recorde, com dezenas de versões. O português conta com pelo menos treze traduções (uma delas em cordel) e provavelmente outras, escondidas em páginas de livros e autores esquecidos. "The Raven" constituiu o Waterloo de todos esses tradutores. Os gravíssimos problemas semânticos em que incorrem, não raro produzindo nonsense, são objeto de um livro mais amplo sobre a tradução e suas armadilhas, que se encontra à busca de editora. Muito se poderia escrever sobre a tradução de Fernando Pessoa, de longe a mais conhecida – mas que, das versões completas, é provavelmente a que mais mutila e distorce o original. Apesar disso, devido à reputação de Pessoa, costuma ser tomada na Europa e no Brasil como standard. 
Ao leitor brasileiro não se reservou destino diferente, e pela pena de ninguém menos do que Machado de Assis (e também, entre outros, Emílio de Menezes). Para examinar a sua tradução, é necessário voltar um pouco no tempo e recorrer ao francês Charles Baudelaire, o principal divulgador da obra de Poe na França e, daí, para o resto do mundo. Em 1853, Baudelaire preparou uma tradução de "The Raven" que contém uma enorme quantidade de erros. Seu principal valor reside no fato de ter sido composta em prosa, pois Baudelaire compreendeu claramente que a força do poema reside em sua narrativa. (Em 1875, Stéphane Mallarmé, fundador do movimento simbolista – para o qual a poética de Poe, e "The Raven" em especial, contribuíram de forma significativa –, consertaria os erros de Baudelaire em sua versão muito superior, também em prosa.) 
Os erros da tradução de Baudelaire foram responsáveis pela multiplicação de equívocos em uma grande quantidade de versões do poema, em todas as línguas neolatinas. É onde Machado de Assis se enquadra. Pois é possível afirmar-se, sem sombra de dúvida, que a tradução do escritor brasileiro é muito mais da versão francesa de Baudelaire do que do poema original. Isso não se depreende de similaridades vagas, mas da ocorrência dos mesmos erros, das mesmas adições, das mesmas omissões e das mesmas palavras nos mesmíssimos lugares das traduções de um e de outro. O melhor modo de constatá-lo é pela inspeção direta.

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