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ISSN-OI03- 6963 A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN-O 103- 6963) é uma publicação anual da Associação Brasileim de Litemtura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultuml que congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Litemtum Comparada, fundada em Porto Alegre, em 1986. DIRETORIA DA ABRALIC - 1990/1992 Presidente: Silviano Santiago(UFF); vice-presidente: Laura Cavalcante Padilha(UFF); secretária: Marília Rothier Cardoso(UERJ); suplente: Renato Cordeiro Gomes(UERJ); tesoureiro: Edson Rosa da Silva(UFRJ); suplente: Jorge Fernandes da Silveira(UFRJ). CONSELHO DA ABRALIC - 1990/1992 Ângela Mota de Gutierrez(UFC), Davi Arrigucci Júnior(USP), Eneida Maria de Souza(UFMG), Luiz Costa Lima(PUC-RJ, UERJ), Marlyse Meyer(UNICAMP), Nádia Battella Gotlib(USP), Raúl Antelo(UFSC), Tania Franco Carvalhal(UFRGS), Wander Melo Miranda(UFMG), Donaldo Schüller(UFRGS, suplente), Maria Helena de Souza(UFG, suplente). CONSELHO EDITORIAL Benedito Nunes, Boris Schnaiderman, Dirce Côrtes Riedel, Eneida Maria de Souza, Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Block de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raúl Antelo, Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalhal, Yves Chevrel. Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusiva responsabilidade de seus autores. REDAÇÃO E ASSINATURAS Abralic - Instituto de Letras da UFF Campus do Gmgoatá Rua Visconde do Rio Bmnco, s/no - BL. C, sala 212 24000 - Niterói - Rio de Janeiro DISTRIBUIÇÃO EDITORA ROCCO LTDA. Rua João Romariz, I SI Te!.: (021) 290-6047 21031 - Rio de Janeiro - RJ ~ 1991. Associação Brasileira de Literatura Comparada. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais/orem os meios empregados. sem permissão por escrito. Editoração: Eneida Maria de Souza Nádia Battella Gotlib Wander Melo Miranda Produção Gráfica: Andrea Costa Gomes Cláudio Rezende Composição: ArteLaser Editorial Ltda. Impressão: Segrac - Sociedade Editora e Gráfica de Ação Comunitária Tiragem: 1000 exemplares Revista Brasileira de Literatura Comparada. v. 1 - 1991 Niterói, 1991 - v. 1. Literatura Comparada - Periódicos CDD - 809 NOTA PRÉVIA A criação da Revista Brasileira de Literatura Comparada, durante a gestão da Diretoria da Abralic (1988-1990), inaugura uma publicação voltada para os estudos de Literatura Comparada realiza- dos no Brasil e no exterior. Com o objetivo de oferecer uma reflexão mais aprofundada de temas relevantes ligados à disciplina no interior da cultura brasileira, a revista contribuirá também para a divulgação da nossa atual produção científica. Este número, organizado por Eneida Maria de Souza, Nádia Battella Gotlib e Wander Melo Miranda, membros da Diretoria da Abralic (1988-1990), conta com a colaboração de pesquisadores nacionais e estrangeiros que aceitaram nosso convite para participar deste primeiro número da Revista Brasileira de Literatura Compa- rada. Os ensaios aqui reunidos tratam não só de questões que visam à releitura do conceito de identidade cultural na Modernidade· e na Pós-Modernidade, com especial ênfase nos movimentos modernistas no Brasil, como de reflexões sobre a prática interdiscursi va em textos literários e paraliterários. Integram ainda a revista estudos que evi- denciam a escolha de temas próprios da contemporaneidade: a estra- tégia interdisciplinar da Literatura Comparada, a crítica literária e a interpretação, o ensaio-conto parapolicial, ou a transfiguração esté- tica do tempo e da morte. Pautados pela construção de objetos teóricos e conceitos ope- racionais relevantes para a constituição de um pensamento crítico de Literatura Comparada no Brasil, os artigos que compõem este volume comprovam a oportuna contribuição desta revista para o aquecimento do debate cultural entre nós. Eneida Maria de Souza Presidente da Abralic -1988-1990 SUMÁRIO Literatura Comparada: a estratégia interdisciplinar Tania Franco Carvalhal Tesis sobre el cuento Ricardo Piglia Da crítica, a crítica E.M. de Melo e Castro Sujeito e identidade cultural Eneida Maria de Souza Modernidade e tradição popular Silviano Santiago o duplo e a falta: construção do Outro e identidade nacional na Literatura Brasileira Ettore Finazzi-Agro Antropofagia e controle do imaginário Luiz Costa Lima Histórias do Brasil Raúl Antelo Postmodernity and transnational capitalism in Latin America George Yúdice Machado de Assis: a consciência do tempo Dirce Côrtes Riedel As escrituras da morte Maria Luiza Ramos Caminhos do imaginário no Brasil: Maria Padilha e toda a sua quadrilha Marlyse Meyer 09 22 26 34 41 52 62 76 87 110 117 127 LITERATURA COMPARADA: A ESTRATÉGIA INTERDISCIPLINAR Tania Franco CaNalhal Se à época de seu surgimento, no século XIX, a Literatura Com- parada punha em relação duas literaturas diferentes ou perseguia a migra- ção de um elemento literário de um campo literário a outro, atravessando as fronteiras nacionais, hoje é ~ível diier que sua atuação se ampliou largamente. Essa ampliação, que corresponde a mudança de paradigmas e que provocou diversas alterações metodológicas na disciplina, constitui a própria história do comparativismo literário. De sua fase inicial, em que era concebida como subsidiária da historiografia literária ("une branche de I 'histoire littéraire" ,como diria Carré) ~ a exercer outras funções, mais adequadas a outros tempos. Surgida de uma ~dade de evitar o fechamento em si das nações recém constituídas e com uma intenção de cosmopolitismo literário, a Literatura Comparada deixa de exercer e&')él função "internacionalista" para converter-se em uma disciplina que põe em relação diferentes campos das Ciências Humanas. O contexto é sem dúvida diverso. Do mesmo modo que se poderia explicar a inexistência de comparativismo literário como atividade sistemática no século XVIII por não haver ainda se forta- lecido integralmente o conceito de nação e o estabelecimento de seus limites definitivos, poder-se-ia compreender as alterações por que passa a Literatura Comparada em nosso século no exame da consti- tuição das diferentes disciplinas que compreendem o domínio das 10 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, 112 1 - 03/91 I. VANTlEGHEM. P.l.a LiueralUre CO/llparee. Paris: A. Colin, 1931. p. 67-68. Ciências Humanas e da necessidade que surge em relacioná-las para a compreensão dos fenômenos. Vista a questão de outro ângulo, o de sua definição, é ainda numa perspectiva histórica que se poderia dizer que se antes a espe- cificidade da Literatura Comparada era assegurada por uma restrição de campos e modos de atuação, hoje, essa mesma especificidade é lograda pela atribuição à disciplina da possibilidade de atuar entre várias áreas, apropriando-se de diversos métodos, próprios aos obje- tos que ela coloca em relação. Este novo modo de entendimento acentua, então, um traço de mobilidade na atuação comparativista enquanto preserva sua nature- za "mediadora", intermediária, característica de um procedimento crítico que se move "entre" dois ou vários elementos, explorando nexos e relações. Fixa-se, em definitivo, seu caráter "interdiscipli- nar. " Nesse contexto cabe evocar que já no livro cleissico de P. Van Tieghem, La Littérature Comparée (1931), o futuro da disciplina se esboçava nessa direção. No capítulo intitulado "Différents domaines de la littérature comparée", delineava-se a ampliação dos domínios comparativistas para outras fronteiras. Dizia o autor: "Les études de littérature comparée peuvent porter sur des sujets tres différents" e mencionava, a seguir, "Le vaste domaine de la littérature comparée, domaine qui s' accroitra peut -être encore des provinces nou velles" . É certo que Van Tieghem não podia prever para onde se encaminha- riam os estudos futuros, em terrenos ainda inexistentes,mas ele intuia sua expansão e a expressa de fonna quase metafórica ao falar de "províncias novas". Mais adiante ainda acrescentaria: "Toute étude de littérature comparée, avons-nous dit, a pour but de décrire UIl passage le fait que quelque chose de Iittéraire est transporté au-delà d'une frontiere linguistique." I De novo, ao empregar o tenno "passage", Van Tieghem evoca metaforicamente a situação intervalar da Literatura Comparada que se coloca "em meio a", registrando sua característica essencial. Sabemos todos que aquele autor logrou fixar em seu manual pioneiro o que era usual na prática corrente: o estudo da natureza dos emprés- timos e sua história. Utilizava ele duas perspectivas: a do emissor, que proporcionava a aneilise do "sucesso" ou da influência e a do receptor, que permitia chegar às "fontes", recuperando, neste trajeto, o papel dos intennediários. Essa tenninologia e seu emprego fixo não estão reproduzidos aqui para que lhes seja feita a crítica. Muitos já o fizeram. René Wellek, em primeiro. Interessa apenas recuperei-los para esclarecimento do contexto no qual o tenno "passage" foi primeiramente empregado, tendo-se presente seu alcance inicial. Com efeito, essa "passagem" ou transladação devia ser exclusiva- Literatura Comparada: A Fstratégia ... - 11 mente literária e envol via diferentes sistemas lingüísticos como cabia numa época em que era preciso combater o isolacionismo naciona- lista. O primeiro largo passo de ampliação desse processo de "mise en relation", característico da disciplina, foi no campo das relações inter-artísticas. É uma ampliação sintomática: nos anos 40, no pós Segunda Grande Guerra, emerge esse espírito aglutinador que o filósofo Alain defendera e CJue o simbolismo, com suas correspon- dências, tentara ilustrar. A obra de Thomas M. Greene, intitulada The Arts and the Ar! of Criticism (1940) a expressa integralmente. Em novo momento de fortalecimento do espírito nacional, o escopo internacionalista, que fundamentava a transposição de fronteiras, se dilata para o terreno das artes. Todavia, guarda ainda o comparati vis- mo a exigência de que um desses meios de expressão seja o literário mas, pouco a pouco, perde a perspectiva dominante desse sobre as outras formas de expressão artística. E sobretudo é a primeira mani- festação clara de que a comparação não é um fim em si mesma mas apenas um instrumento de trabalho, um recurso para colocar em relação, uma fonna de ver mais objetivamente pelo contraste, pelo confronto de elementos não necessariamente similares e, por vezes mesmo, díspares. Além disso, fica igualmente claro que comparar não é justapor ou sobrepor mas é, sobretudo, investigar, indagar, fonnular questões que nos digam não somente sobre os elementos em jogo (o literário, o artístico) mas sobre o que os ampara (o cultural, por extensão, o social). É o início do que hoje entendemos como o vasto campo das relações inter-semióticas. Foi natural que essa expansão se desse também no terreno das artes que constituíam, por si, partes de uma totalidade: a estética. Não mais a visão romântica, como a de Schumann, que entendia a estética da arte sendo una, diversificada pela mudança de material: uma arte só, di vidindo-se em várias como a luz em cores. É buscada, de início, a Correspondência das artes, para empregarmos o titulo do também clássico livro de Etienne Souriau, de 1947. Contudo a diversidade lingüística já não serve de base à comparação~ fala-se agora de diversidade de "linguagens" ou de "fonnas de expressão" particu- lares e divergentes. É, aliás, a especificidade (ou a divergência) que começa a se impor acima das analogias ou similitudes. Por isso, E. Souriau não deixa de alertar para o que julga fundamental, ou seja, que apesar das semelhanças existentes entre o trabalho de um músico e o de um pintor há que lembrar sempre que "o músico pensou musicalmente, o pintor plasticamente". Além da diversidade de meios, a diferença de concepção. E completa o autor: ··E é nos próprios princípios da arte específica de cada um e na experiência 12 - Rev. Bras. de Ut. Comparada,n2 1- 03/91 2. SOURIAU, E. A cor- respondência das artes: elementos de estética comparada. São Paulo: Cultrix, Edusp, 1983. p. 31. 3. BROWN, C.S. 'I"be re- lations between music and literature as a field of study. Year BooIc of Ge- neral and Comparative Lileralure. Indiana: Uni- versity Press, v. XXII, v. 2, p. 102. 1970. 4. REMAK, Hemy H.H. Comparative Literature, its defmition and func- tion. In: STA- LLKNECHT e FRENZ (ed.). Comparative Lite- rature: MethodandPers- pective. Illinois: Sou- them IIIinois University Press, 1971. p. 1. S. Cf. WEISSTEIN, U. apud CUPERS, 1.L. Eu- terpe et Harpocrate; ou le défi Iiuéraire de la mu- sique. Bruxelles: Publi- cations des Facultés Uni- ativa e concreta que adquiriram, em seus respectivos trabalhos, dos imperativos e optativos destes, que estavam secretamente implicadas as razões dessa similitude. ,,2 É nesta linha de uma estética da interação das artes que se situam as obras de Calvin S. Brown, Music and Literature. A Com- parison ofthe Arts (1948) e Th. Munro, The Arts and Their Interre- lations (1949) e é nessa perspectiva que avança U. Weisstein em sua Introdução à ciência comparada da literatura (1968) ao dedicar o capítulo 8 à "Iluminação recíproca das artes". Não interessa aqui fazer o inventário dos textos que promoveram a reflexão nesse campo inter-artístico mas lembrar dois aspectos essenciais: que vigora ainda, nessa concepção comparativista, a intenção de abrangência, o intuito de dar conta do geral pelo particular e, também, que esta ampliação corresponde a uma alteração de definição e de paradigma. Leia-se, nesse sentido, como C.S. Browri ao definir a Literatura Comparada dirá que ela inclui "o estudo da literatura além de fronteiras lingüís- ticas e nacionais e qualquer estudo de literatura envolvendo, pelo menos, dois diferentes meios de expressão. ,,3 Não estamos longe da definição de· Henry H.H. Remak que irá, mais tarde, alargar, em definitivo, o alcance dos estudos literários comparados. Para Remak, "a Literatura Comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país em particular, e o estudo das relações entre literatura de um lado e outras áreas do conhecimento e crença, como as artes (pintura, escultura, arquitetura, música) filo- sofia, história, as ciências sociais (política, economia, sociologia) as ciências, religiões, etc. de outro. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana". 4 Como se percebe, há uma ampliação gradativa que se anuncia primeiramente nas comparações inter-artísticas. Ora, essa ampliação de campos de investigação pressupõe uma duplicação (ou multiplicação) de competências. O comparativista terá de aprofundar-se em mais de uma área, ou seja, em todas aquelas que vai relacionar, dominando terminologias específicas e movimen- tando-se num e noutro terreno com igual eficácia. A exigência de dupla (ou múltipla) competência acarreta, sem dúvida, alguns incon- venientes. A dupla especialização ocasiona uma dispersão de esfor- ços que seriam concentrados em apenas uma área mas tem também suas vantagens: de enriquecimento metodológico, dos contrastes e analogias que tornam possíveis essas relações, permitindo leituras muito mais ricas e esclarecedoras.s Entendida assim, a Literatura Comparada toma-se no mínimo duplamente comparativa, atuando simultaneamente em mais de uma área. Literatura Comparada: A Estratégia ... - 13 Voltada não só para as investigações inter-literárias, a Litera- nua Comparada vai privilegiar confrontos que digam mais sobre os procedimentos textuais. É o caso, por exemplo, das comparações da literatura com os escritos históricos, que analisa a presença em ambos de esquemas narrativos semelhantes e semelhantes esquemas de compreensão. Tais estudos levamà identificação de certas qualidades e certas operações de linguagem que caracterizam a produção textual. Nessa direção não é difícil perceber como o comparati vismo literário pode ser uma forma de reflexão generalizadora e mesmo teorizadora sobre o fenômeno literário. Já nos distanciamos da definição que considerava a Literatura Comparada apenas um ramo da história literária, pois ela será enten- dida como uma "certa tendência ou ramo da investigação literária,,6 que encontrará sua especificidade justamente nos problemas que propõe e na sua mobilidade para resolvê-los. Vista assim, é uma prática intelectual que, sem deixar de ter no literário o seu objeto central, confronta-o com outras formas de expressão cultural. É, portanto, uma maneira específica de interrogar os textos literários, concebendo-os não como sistemas fechados em si mesmos mas na sua interação com outros textos, literários ou não. A COMPARAÇÃO ~TER-ARTÍSTICA: LITERATURA E MUSICA Esta ampliação interdisciplinar dos domínios da Literatura Comparada a que me venho referindo não é nova no campo das relações inter-artísticas, sobretudo se pensarmos que quase dois sé- culos nos separam do clássico estudo de G.E. Lessing, Laocoon. Também não lhe tem faltado rigor nem tentativa de lhe estabelecer uma formalização de validade mais universal, como se pode ver pelos estudos de Roman Jakobson em Questions de poétique, particular- mente no ensaio "Musicologie et Linguistique." 7 Todavia, é bem recente a sua aceitação como um aspecto reconhecido do estudo estético e como parte integrante da Literatura Comparada. As relações mútuas entre as artes têm. sofrido muitas restrições. Alguns lhe negam o valor, sobretudo quando se deparam com estudos ligeiros nos quais são abundantes as metáforas ou as tentati vas de simplesmente transpor de uma arte para outra uma nomenclatura. Chamam de "sinfonia" um poema ou um romance sem dar ao epíteto ajusta medida metafórica, assinalando que "nada em pintura ou em música pode jamais ser literalmente a mesma coisa que o correspondente literário" . 8 Outros criticam, além da nebulosa contaminação terminológica, a falta, nesses estudos, daquele "esprit versitaires Saint-Louis, 1988. p. 83: uThe linking of classical philology wilh the study of Gennan literature has, for him who is oniy moderately equipped, lhe disadvanta- ge of dissipating his strength and not letting him attain in both areas what he. could perhaps achieve in one, but it has advantages which com- pensate for that draw- back." 6. GUILLÉN, C. Entre lo uno y do diverso: intro- ducción a la literatura comparada. Barcelona: Critica, 1985. p. 14. Gui- llén defme-a como "una tendencia de los estudios literários, o sea, una for- ma de exploración inte- lectual, un quehacer orientado por inquietudes y interrogaciones especí- ficas. " 7. JAKOBSON, R. Ques- riollS de poérique. Paris: Seuil, 1977. Veja-se, ain- da, no mesmo livro, Sur I 'art verbal des poêtes- peintres - Blake, Rous- seau et Klee. 8. Veja-se BROWN, Cal- vins. Preface à obra citada de CUPERS, Bruxelles, 1988. 14 - Rev. Bras. de Ut. Comparada, n! I - 03/91 9. Veja-se BROWN. op. cit .• nota 8. 10. Apud CUPERS, oI'. ei\.. p. 20. de géométrie" a que se referia Pascal, por oposição ao "esprit de finesse ... Na verdade, afora certos estudos sistemáticos, como são reali- zados principalmente entre os comparativistas americanos, a grande maioria dos trabalhos efetua aproximações episódicas e mesmo in- tuitivas. Cabe lembrar, nesse contexto, a pequena história contada por Calvin S. Brown em prefácio recente ao livro de Jean-Louis Cupers, intitulado Eltterpe et Harpocrate ou le défi littéraire de la mu.sique. Neste texto introdutório, Brown evoca que um dia Abraham Lincoln foi envolvido numa disputa na qual alguém insistia em confundir as questões em pauta alegando casos hipotéticos e adotando definições arbitrárias. Exasperado, Lincoln interrompe-o. "Digamos, disse ele, que chame pata a cauda de um gato: quantas patas ele terá? Cinco, respondeu o interlocutor com segurança a que Lincoln retrucou que não. Haverá sempre quatro. Não será porque você chama de pata a' d I ' . ,,9 cau a que e a se tornara em uma apenas por ISSO. Essa passagem, quase anedótica e simples, contém um dado significativo para essas relações entre as artes: nada pode alterar a natureza de um dos elementos relacionados. Assim, o poema não se converte em sinfonia por sua simples designação como tal, continua a ser um poema, com uma estrutura que lhe é própria e jamais será exatamente a mesma da outra arte. Isso não invalida que similitudes sejam reconhecidas e com- provadas nem que se teçam analogias e paralelos. Contudo há que manter a diferença de base, a que aludia Souriau, mesmo que a literatura possa aspirar à plasticidade da escultura tanto quanto à sugestividade da müsica ou ao colorido da pintura. Sabemos que uma determinada forma de expressão pode se apropriar de características de outra embora não perca sua especifi- cidade. Por vezes, isso acontece devido a confluências ou ao que poderíamos ainda denominar de tendências dominantes na sensibili- dade ou no gosto de uma dada época. Tal como observa Jules Romain em Les hommes de bonne volonté: "à chaque époque la littérature et I 'un des autres arts se rencontrent curieusement autour de préoccu- pations analogues, et tentent des efforts d'expression paralleles." 10 Como se percebe, também essa noção de confluência nos au- xi lia a tratar a questão das influências com rigor. Paralelamente aos fatores dominantes em detenninado período, há dados da fonnação de cada autor e de interesses por ele manifestos que nos penllitem caminhar com segurança nesse terreno das inter-relações artísticas. Não apenas o caso dos talentos duplos ou mesmo mültiplos como Da Vinci mas a simples inclinação não desenvolvida de um autor que tenta recriar, nos domínios de sua arte, efeitos ou recursos técnicos Literatura Comparada: A &tratégia ... - 15 de outra fonna de expressão com que esteja familiarizado. São essas "transposições" que nos possibilitam estudos de ressonâncias de uma arte sobre outra, a par daqueles que têm por objeto as obras onde duas artes se conjugam ou se encontram: a ópera, o lied, etc. Sem dúvida o estudo e a descrição dos elementos comuns às duas artes é indispensável nesse tipo de investigação porque ele envolve outro tipo de pesquisa, essencialmente estética, que procura articular, no esquema geral das artes, as posições respectiva .. das fonnas postas em confronto. São questões como essas que Jean-Lollis Cupers discute no livro publicado em 1988 com o sub-título de" Aspects méthodologi- ques de I 'approche musico-littéraire". Além de nos dar ali a história implícita dos estudos entre música e literatura, o autor se detém em aspectos metodológicos que são indispemiáveis a trabalhos dessa natureza. Para ele, "le tout littéraire est, en réalité, beaucollp plus proche qu'on ne le dit souvent, tant en qualité qu'en strllcture, du fait musical. En d'autres tennes, ni la Iittérature ne peut se faire uniqlle- ment musique, ni la musique uniquement littérature. Cela ne les empêche pas de pouvoir s'avancer três loin, la musique du côté littéraire, la littérature du côté musical". 11 E com Brown, ele aponta que a música tem sido uma importante fonte de inspiração e de técnicas para a literatura moderna, bastando citar autores como M. Proust, Conrad Aiken e Thomas Mann. A essas considerações acres- centa que os autores recorrem à música não para teproduzirem-na simple!'>1uente mas para, através dela, traduzirem o intradllzível. É nessa colaboração assim enunciada que se pode entender a presença do componente musical no literário não como algo acessório, cons- tituinte de uma atmosfera mas como elemento integrante e fundamen- taI da criação literária. Em todas as épocas, a literatura é farta em exemplos dessa natureza. Sobretudo entreos modernos, não é difícil encontrannos a transposição para o campo literário de elementos de outras artes: Muitos, como Baudelaire, dedicaram-se à crítica de outra fonua de expressão que não a literária. E sendo o hibridismo de gêneros uma dominante na literatura contemporânea, é freqüente que a própria dissolução das características fonnais de um texto por oposição ao modelo clássico seja marcada por essa interpenetração artística. Assim um vasto campo de investigação se desdobra diante do pesquisador que se ocupa em saber o que atrai um artista para outro modo de expressão além do seu a ponto de querer transpô~lo em sua própria realização. No fundo, é certo que o crítico deseja descobrir o que existe de misterioso nessas contaminações, pois, como observa Jean-Louis Cupers em suas conclusões, "qu'elle soit littéraire, musicale, pictu- 11. CUPERS. op. cit.. p. 36. 16 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n2 1 - 03/91 12. Idem,p. 147. 13. Veja-se, nesse senti- do, O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma, de Gilda de Mello e Souza (São Pau- lo: Duas Cidades, 1979). rale, l'un des problêmes fondamentaux de toute étude esthétique, de toute critique d'art, est bien cette difficulté de dépasser le niveau de la pure description de structures, squelettes décharnés et vides, afin d'éclairer en quelque sorte la fascination de la chair même de l'art. Sans doute est-ce d'ailleurs parce qu'elles offrent une sorte de tram- plin idéal qui permette d' attendre à I' essentiel, que les études interar- tielles en général fascinent le chercheur. Illui semble qu'il va enfin pouvoir saisir le secret de I' art, non ses structures. 11 va pouvoir enfin transcender ces différents schêmes qu'il veut comprendre en les comparant. " 12 Se de um lado, pondo em relação duas ou mais literaturas o investigador quer melhor compreender a literatura em si mesma, de outro, relacionar duas ou mais formas de expressão artísticas nos diria mais sobre os fenômenos estéticos em si. Por isso na obra de Machado de Assis (1839-1908), um dos grandes romancistas brasileiros, muitas vezes essa apropriação de elementos musicais tem a intenção de traduzir aspectos fundamentais de seu projeto estético: vale-se da música Ce de músicos) para falar sobre a criação literária e seus problemas. Há, então, em Machado uma correspondência estreita entre projeto musical e projeto literário: a música, para ele, simbolizaria o eterno e o universal. Mais do que a literatura, uma arte supostamente impura. É natural, portanto, que a música esteja intimamente vinculada à sua produção, embora não fosse ele um conhecedor profundo de leitura musical nem um execu- tor de qualquer instrumento. Era, isso sim, um ouvinte privilegiado, com formação autodidata, graças a seus amigos compositores e artis- tas. No contexto literário brasileiro é Machado de Assis,juntamen- te com Mário de Andrade, exemplo significativo dessa relação inter- artística. A obra de ambos manifesta a implicação entre música e literatura, desde aspectos mais superficiais a repercussões estruturais profundas. Basta pensarmos no subtítulo de Macunaíma, essa "rap- sódia" que é uma das chaves para a sua leitura. 13 Em Mário, professor de música e pianista, autor de uma História da música no Brasil, é muito mais fácil de entender essa articulação. Contudo, Machado de Assis, mesmo na sua condição de "ouvinte" também explora farta- mente as relações musicais, baseando-se em Tristão e Isolda, de Wagner, por exemplo, para a escrita do Memorial de Aires, como já o apontou a crítica. E, por isso, nos 150 anos de seu nascimento cabe revisar essas transposições que traduzem a presença freqüente da música em seus textos literários. A obra de Machado de Assis ilustra, assim, essa atuação interdisciplinar que é um dos campos mais fecundos da investigação comparati vista. Uteratura Comparada: A &tnrtégia ... - 17 MACHADO DE ASSIS: PROJETO MUSICAL E PROJETO LITERÁRIO É necessário salientar, desde logo, que a música não tem, na obra de Machado de Assis, uma função decorativa ou que ela esteja ali somente para criar atmosfera. É certo também que a grande maioria dos textos machadianos refere-se à música, pois há quase sempre personagens que cantam ou tocam um instrumento-piano ou violino-ou cantam uma ária de ópera ou simples melodias de rua. Valsas, polcas, pregões e quadrilhas povoam os textos de Machado a ponto de podermos dizer que o autor, ao escrever, usava um ouvido musical e mesmo, tal como o Conselheiro Aires, de seu último ro- mance, tivesse uma certa frustração em não saber cantar ou executar. Mas afora essas hipóteses de natureza biográfica, que pode- riam ser exploradas no próprio texto, interessa aqui sobretudo acen- tuar que há, em Machado, uma intenção clara de apropriar-se literariamente de formas ou elementos musicais. Apropriações que não foram fruto de estudo ou pesquisa mas que deconem do domínio da experiência. As associações musicais, em sua produção, são, por- tanto, motivadas pelo conjunto de experiências que constituiam seu universo cultural. Desde as "musas" cantoras a que Jean-Michel Massa refere em A juventude de Machado de Assis14 aos amigos músicos como Francisco Braga, Leopoldo Miguez e o pianista Artur Napoleão, até seu gosto pelo teatro lírico que se expressou na crítica musical com que se ocupou, é possível notar esse "gosto" de que foi enriquecida sua formação. Dirá sobre isso Raymond Sayers, em "A música na obra de Machado de Assis": "Não sabia tocar instrumento nenhum, não conhecia a teoria musical, mas tinha escutado muita música com o seu ouvido de homem inteligente, e conhecia compositores e artis- tas".15 Convivera, também, com Alberto Nepomuceno, regente e compositor conhecido, que provavelmente lhe aguçara o interesse para a música alemã, Wagner particularmente. Na obra de Machado, além disso, a presença constante da música reflete um dado sociológico, pois testemunha hábitos de época. No' Brasil de final de século XIX, "toca-se e canta-se em todos os saraus, tanto nos palacetes dos ricos como em casas mais humildes, e a música ou a vida musical são um assunto infalível de conversa- ção.,,16 Mas o que desperta a curiosidade do pesquisador é a freqüência dessas notações musicais na obra. Dir-se-ia, usando uma expressão de E. Souriau, que a música é "a forma de fundo" da produção machadiana. Se isso ocorre dispersadamente nos textos em geral, em alguns centraliza a narrativa. É o caso de "Trio em lá menor", de 14. MASSA, Jean-Mi- chel. Ajuventude de Ma- chado de Assis. Rio de Janeiro: Civilimção Bra- sileira,l97l. 15. SAYERS, R. Onze estudosde literaturabra- sileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileim, INL, 1983. p. 170. Texto fomecidoporZilá Bemd. 16. Idem, p. 164. 18 - Rev. Bras. de til. Canparada. ~ 1 - 03/91 17. Mac:hadode Assisfoi analisado por Antonio Candido, em O observa- dor literário (l9S9), ten- do em vista a presença da música na narrativa ma- chadiana, sobretudo em Memorial de Aires, can- frontando.a com sua teS- sonãncia em OIlteMll, de Raúl Pompéia. Veja, ain- da, sobre relações inter- artísticas o ensaio de CANDIDO, Melodia impura: ensaio sobre o gosto e as experiências musicais de Stendhal, em 'lese e anlitese, (1964). Várias histórias, de "Cantiga de esponsais", de Histórias sem data, e de vários outros textos. Bastaria, para ilustrar alguns aspectos dessa inter-relação, a leitura atenta do conto" Um homem célebre" . 17 Ali, a figura de um músico centraliza o narrado, dividido entre vocação e ambição: um festejado autor de polcas que ambicionava compor obras mais perenes. Machado retoma, através da figura do músico Pestana, o que já desenvolvera em outros textos: a busca frustrada da glória perma- nente. Pestana quer compor obras elevadas mas, traído pela memória, só consegue reproduzir Mozart e Chopin. Sua criação mais legítima gera apenas polcas que rapidamente atingem popularidade mas que serão,também de efêmera lembrança. Diferentemente de outras pas- sagens, a música é nesta narrativa tema central, sem repercussões na estrutura. Mas, sob a música, o autor explora o tema da própria criação artística como se percebe neste trecho: Às vezes, como que ia surgir das profundezas do incons- ciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aven- tá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, defmida e bela, era eco apenas de algu- ma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano. o trecho reproduz, sem dúvida, o esforço criador independente de se tratar, nele, da criação musical. Os dados em jogo: inspiração, imaginação, memória e invenção, constituintes básicos do processo criador, podem referir-se indiferentemente à criação literária, como à musical ou outra. Entre inspiração e invenção estaria contida toda a seqüência de procedimentos criativos e a invenção, nesse contexto, supõe originalidade. Chamam a atenção as metáforas empregadas: "a aurora de idéia" para evocar o despertar, a imaginação "a dor- mir", como em estado de preguiça, a repetição da memória que conduz à imitação e à cópia. Colocados juntos esses termos, perce- be-se que há uma tentati va de insinuar uma movimentação lenta dessa idéia que deveria funcionar como fator de descoberta. Só nessa parece estar o original, o único, o novo. Essas três qualidades, Pestana as encontraria na elaboração das polcas: leves, alegres e próprias. Tal como descreve Machado: Literatura Comparada: A Estratégia ... - 19 Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espal- mou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma cousa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esque- cera até o preto, que o esperava com a bengala e o guarda- chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha SÓ, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene. Confrontado com o texto anterior, este último sintetiza a faci- lidade da composição, até mesmo o caráter inebriante do ato criador. Se Machado, neste conto, ocupa-se com a criação, paralelamente nele desdobra o tema da insatisfação, da exigência do compositor com ele mesmo. Vê-se, então, que a experiência do artista lhe serve para atingir o humano, entrelaçando os dois temas. Daí a ironia do título, "Um homem célebre": uma celebridade efêmera e insatisfatória, celebridade que encobre o drama humano da não-realização. Trata-se da mesma insatisfação que persegue Mestre Romão, personagem de "Cantiga de esponsais", destinado a reger músicas alheias. Diz Machado sobre isso: "Ah! se mestre Romão pudesse seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, as que têm língua e as que não a têm. As primeiras realizam-se; as últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de hannonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel" (grifos meus). Retoma aqui não só o tema da impossibilidade de expressão, da incapacidade de traduzir o que desejaria manifestar mas surgem, explicitados, os conceitos de "novo" e de "original" que no texto de "Um homem célebre" estavam implícitos. A partir desse confronto pode-se dizer que, para Machado, a criação estava estreitamente vinculada à noção de originalidade, não só àquilo que seria particular mas também ainda não realizado. Em mestre Romão o drama da criação frustrada se resolve pelo da execução bem sucedida: a uns é dado criar; a outros, executar, sugere Machado. Todavia, no centro dessa trama está a ausência dos meios de expressão, a "língua" a que ele se refere como veículo, 20 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n2 1 - 03/91 como recurso único e factível entre inclinação e realização. No en- tanto, não há, em Machado, o esclarecimento sobre o esforço de obtenção dessa "língua" mas seu entendimento como dom concedi- do, presente das musas ou do céu. Daí a imagem expressiva que encontra para aludir à impossibilidade da expressão: a inspiração que não logra concretizar-se em ato criador é "como um pássaro que acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, acima, impaciente, aterrado ... ". A figura desse pássaro encarcerado e a representação de sua luta dramática pela liberdade, igualmente presente em outros textos machadianos, são aqui símbolo da drama- ticidade interna em que se encontra o personagem sem ultrapassar o "lá .. .lá .. .lá" onde interrompera sua composição. A frase musical, inacabada, alude, ao fmal, à impossibilidade de traduzir algo que se ansia dizer mas cuja busca é sem retorno. Observa com justeza Sayers que são raras as metáforas musi- cais na obra de Machado. Não recorre o autor a elementos de outra forma de expressão artística para inseri-los no texto literário a não ser sugestões estruturais ou componentes temáticos. Suas metáforas são predominantemente literárias e mesmo assim era com elas bas- tante parcimonioso. A crítica às metáforas de adorno é também uma constante em sua obra. Considera~as quase sempre "excessos de estilo" próprios da linguagem da oratória, corrente na época: cita- ções, metáforas, lugares-comuns e adjetivação faziam as delícias dos ouvintes enquanto serviam para encobrir a mediocridade do pensa- mento. Deste modo, metáforas e comparações, em Machado, são extremamente eficazes e nunca funcionam como ornamento à expres- são. Ao contrário, elas emergem como surge a música em seus textos: como recurso eficaz de expressar por alusão. É por isso, talvez, que ele privilegie os compositores para explorar o tema da criação. Possivelmente, para ele, a música seria a forma de expressão mais fácil quando haveria talento e a mais difícil diante da inexistência deste. Ao mesmo tempo, um campo tão vasto e nuançado a partir do qual é possível a realização e o êxito menor por contraste com as grandes realizações que asseguram a eternidade e o universal. Sem falar de literatura nem de literatos, mas de música e de compositores, Machado atinge à primeira através da última. Não é por acaso, então, que Machado de Assis recorre tantas vezes à figura do músico. Dito de outro modo, perguntar-se-ia em que medida a representação do músico poderia estar vinculada à do escritor? Em que medida as polcas não seriam os textos fáceis, de agrado popular? Em que medida não falando de si mesmo, nem de seus pares, Machado podia refletir sobre a criaçãO literária pelo viés da da criação musical? Literatura Comparada: A Estratégia ... - 21 Essa relação entre projeto literário e Projeto musical fica ainda mais explicitada se pensannos que, no Memorial de Aires, o Conse- lheiro lamenta não comfOr ou tocar algum instrumento. Para ele, "a arte é também língua" 1 ,uma maneira de expressar-se, a única pos- sível. É também a arte que "naturaliza a todos na mesma pátria superior". As considerações do Conselheiro Aires, registro de me- mória, nos autorizam a pensar num conceito de instrumental e numa noção de universalidade que estariam na base do pensamentomacha- diano, justificando a identificação entre música e literatura que per- passa sua obra. Se as hipóteses se confmnam, o projeto estético de Machado de Assis teria seu equivalente no projeto musical onde ele esboça critérios como "puro" (no sentido de clássico) e eterno. Ao longo de seus textos fica claro que, para ele, é a música a fonna de expressão mais completa e uni versal. Tal vez a única que possa manifestar tantas nuanças de emoções como as por que passa o Conselheiro Aires que recupera, pela memória, o que já foi e se vê nos outros, na mocidade de Fidélia e Tristão que lhe dão consciência de sua velhice e lhe fazem sentir "saudade de si mesmo." São associações entre a música vigorosa de Wagner, a vivaci- dade de Mozart, a nostalgia dos compositores românticos alemães e os momentos instáveis do sábio Conselheiro que dizem mais sobre ele mesmo do que as palavras que registra em seu "memorial." Por outro lado, no momento da leitura dos textos machadianos, essas associações se reproduzem de imediato na sensibilidade do leitor, também ele um ouvinte. Fonna-se uma rede de associações advinda do es~ímulo auditivo que o autor sugere a partir de seu contexto cultural. Essas se transferem no ato da leitura para o leitor, ouvinte cúmplice daquelas melodias. Este, por sua vez, as reinterpre- ta e as enriquece com suas próprias motivações e inferências cultu- rais. Por isso nos é possível falar de um denominador comum nas linguagens estéticas e da propriedade que têm de funcionarem como sistemas de signos que põem em movimento toda uma série de associações fundadas em experiências individuais e coletivas. Esta- mos, sem dúvida, no terreno da recepção quando tudo ecoa nos ouvidos do leitor onde as associações, por fim, tomam sentido. Machado sabia disso. O Conselheiro Aires também. 18. MACHAOO DE AS- SISo Memorial de Aires. Rio de Janeiro: Jackson, 1957. p. 131. TESIS SOBRE EL CUENTO Ricardo Piglla I En uno de sus cuadernos de notas Chejov registró esta anécdota: "Un hombre, en Montecarlo, va al Casino, gana un milión, vuelve a sua casa, se suicida". La fonnacIásicadel cuenroestá condensada en el mícleo de ese relato futuro y no escrito. Contra 10 previsible y convencional (jugar-perder-suicidarse) la intriga se plantea como una paradoja. La anécdota tiende a desvin- cular la historia del juego y la historia del suicidio. Esa escisión es clave para defInir el carácter doble de la fonna del cuento. Primera tesis: Un cuento siempre cuenta dos historias. II El cuento clásico (poe, Quiroga) narra en primer pláno la historia 1 (el relato del juego) y construye en secreto la historia 2 (el relato del suicidio). El arte del cuentista consiste en saber cifrar la historia 2 en los intersticios de la historia 1. Un relato visible esconde un relato secreto, narrado de un modo elíptico y fragmentario. El efecto de sorpresa se produce cuando el fInal de la historia secreta aparece en la superficie. III Cada una de las dos historias se cuenta de modo distinto. Trabajar con dos historias quiere decir trabajar con dos sistemas Tesis Sobre El Conto - 23 diferentes de causalidad. Los mismos acontecimientos entran simul- táneamente en dos lógicas narrativas antagónicas. Los elementos esenciales de un cuento tienen doble función y son usados de manera diferente en cada una de las dos historias. Los puntos de cruce son el fundamento de la construcción. IV En "La muerte y la brújula" ,al comienzo delrelato, un tendero se decide a publicar un libro. Ese libro está ahí porque es imprescin- dible en el armado de la historia secreta. ¿Cómo hacer para que un gangster como Red Scharlach esté al tanto de las complejas tradicio- nes judías y sea capaz de tenderle a LOnrot una trampa mística y filosófica? Borges lo consigue ese libro para que se instruya. Al mismo tiempo usa la historia 1 para disimular esa función: el libro parece estar ahí por contigüidad con el asesinato de Yarmolinsky y responde a una causalidad irónica. "Uno de eses tenderos que han descubierto que cualquier hombre se resigna a comprar cualquier libro publicó una edición popular de la Historia secreta de los Hasi- dim". Lo que es superfluo en una historia, es básico en la otra. El libro del tendero es un ejemplo (como el volumen de Las 1 00 1 noches en "El sur"~ como la cicatriz en "La fonoa de la espada") de la materia ambígua que hace funcionar la microscópica máquina narra- . tiva que es un cuento. V El cuento es un relato que encierra un relato secreto. No se trata de un sentido oculto que dependa de la interpretación: el enigma no es otra cosa que una historia que se cuente de un modo enigmático. La estrategia del relato está puesta al servicio de esa narración cifra- da. ¿Cómo contar una historia mientras se está contando otra? Esa pregunta sintetiza los problemas técnicos 4el cuento. Segunda tesis: la historia secreta es la clave de la fonna del cuento y sus variantes. VI La versión moderna del cuento que viene de Chejov, Katherine Mansfleld, Sherwood Anderson, el Joyce de Dublineses, abandona el final sorpresivo y la estructura cerrada~ trabaja la tensión entre las dos historias sin resolverla nunca. La historia secreta se cuenta de un modo cada vez más elusivo. El cuento clásico a la Poe contaba una 24 - Rev. Sras. de Ut. Comparada, n! 1 - 03/91 historia anunciando que había otra; el cuento moderno cuenta dos historias como si fueran una sola. La teoría del iceberg de Hemingway es la primera síntesis de ese proceso de transformación: lo más importante nunca ,se cuenta. La historia secreta se construye con lo no dicho, con el sobreenten- dido y la alusión. VII "El gran río de los dos corazones", uno de los relatos funda- mentales de Hemingway cifra hasta tal punto la historia 2 (los efectos de la guerra en Nick Adams) que el cuento parece la descriptión tri,i:cd de una excursión de pesca. Hemingway pone toda su pericia en la narración hermética de la historia secreta. Usa con tal maestria el arte de la elipsis que logra que se note la ausencia del otro relato. ¿ Qué hubiera hecho Hemingway con la anécdota de Chejov? Narrar con detalles precisos la partida y el ambiente donde sedesa- rolla el juego y la técnica que usa el jugador para apostar y el tipo de bebida que toma. No decir nunca que ese hombre se va a suicidar, pero escribir el cuento como si el lector ya lo supiera. VIII Kafka cuenta con claridad y sencillez la historia secreta, ynarra sigilosamente la historia visible hasta convertirla en algo enigmático y oscuro. Esa inversión funda lo "kafkiano." La historia del suicidio en la anécdota de Chejov sería narrada por Kafka en primer plano y con toda naturalidad. Lo terrible estaría centrado en la partida, narrada de un modo elíptico y amenazador. IX Para Borges la historia 1 es un género y la historia 2 es siempre la misma. Para atenuar o disimular la esencial monotonía de esa historia secreta, Borges recurre a las variantes narrativas que le ofrecen los géneros. Todos los cuentos de Borges están construidos con ese procedimiento. La historia visible, el juego en la anécdota de Chejov, sería contada por Borges según los estereotipos (levemente parodiados) de una tradición o de un género. Una partida en un almacén, en la llanura entrerriana, contada por un viejo soldado de la caballería de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. El relato del suicidio sería una historia construida con la duplicidad y la condensación de la vida de un hombre en una escena o acto único que defme su destino. Tesis Sobre El Conto - 25 x La variante fundamental que introdujo Borges en la historia del cuento consistió en hacer de la construcción cifrada de la historia 2 el tema del relato. Borges narra las maniobras de alguien que construye perver- samente una trama secreta con los materiales de una historia visible. En "La' muerte y la brújula" la historia 2 es una construcción delibe- rada de Scharlach.Lo mismo sucede con Acevedo Bandeira en "El muerto"; con Nolan en "Tema del traidor y del héroe"; con Emma Zunz. Borges (como Poe, como Kafka) sabía transformar en anécdota los problemas de la forma de narrar. XI El cuento se construye para hacer aparecer artificialmente algo que estaba oculto. Reproduce la busca siempre renovada de una experiencia única que nos permita ver, bajo la superficie opaca de la vida, una verdad secreta. "La visión instantánea que nos hace descu- . brir lo desconocido, no en una lejana terra incognita, sino en el corazón mismo de lo immediato" , decía Rimbaud. Esa iluminación profana se ha convertido en la forma del cuento. DA CRíTICA1 A CRíTICA E. M. de Melo e Castro Questionar a critica, nos seus fundamentos e nas suas práticas, tem sido, nos tempos recentes, a mais coerente maneira de fazer critica. Numerosos são os autores e as obras em que preocupações deste teor se refletem com maior ou menos nitidez e objetividade. Daí, a acusação freqüente por parte dos leitores que a crítica só serve para os críticos e que eles leitores ficam entregues a si próprios na tarefa árdua de "decifrar" as obras de poesia ou de ficção que a crítica e os críticos deveriam supostamente iluminar, esclarecer ou interpre- tar. Evidentemente que o problema ou os problemas não são assim tão simples sendo sobejamente conhecidos os estrondosos fracassos das críticas que pretendem explicar as obras aos leitores. Tal atitude é, a nossos olhos, totalmente ineficaz, primeiro porque nada explica verdadeiramente nada (ou nenhum texto pode explicar ou justificar outro texto) segundo, porque tal atitude é um atestado de menoridade que recai sobre quem lê. De fato, o que há, é pessoas que são capazes de ler e essas não necessitam de explicações porque encontram as suas próprias leituras, e pessoas que não são capazes de ler e, para essas, nunca haverá explicações que sejam suficientes. Efetivamente existem três poéticas concorrentes em qualquer texto; mas concorrentes não quer dizer convergentes. A poética do autor, a poética da escritura e a poética da leitura, se estão presentes em qualquer ato de leitura, estão-no duma forma diferente. A poética do autor é a que mais remota fica. A problemática que leva o autor a escrever o seu texto é fechada e só acessível ao leitor através de hipotéticas tentativas de penetração naquilo a que muitos chamaram "o mistério da criação". Essa poética é muitas vezes também pouco clara para o próprio produtor de textos, no momento mesmo da criação. A poética da escritura, essa, ainda que nem sempre transparen- te, é mais translúcida para o leitor, principalmente na escritura dita experimental ou seja naquela em que a questionação dos próprios processos e leis do escrever são o modo como a obra se organiza e materializa em códigos verbais. Mas toda a poesia e toda a ficção são susceptí veis de análise quanto à sua própria poética e aí se estabelece um possível elo entre quem escreve (quem usa um código) e quem lê (quem decifra esse código). Mas tal aproximação não é apenas racio- nal ou metodológica, mas principalmente ela é intuitiva e emocional. A poética da escritura vai da emoção do autor à emoção do leitor através do desconhecimento recíproco, do distanciamento espacial e temporal e de conexões ignoradas e irreconhecíveis, além de total- mente imprevisíveis. Chegamos agora à poética da leitura, aquela em que cada leitor tem que responder por si próprio. É certo que pode haver e há teorias da recepção, mas não é de generalidades que se trata. A poética da leitura é o combate entre o leitor e o texto e, se o autor se debate com a página em branco no momento da escrita, o leitor, esse, no momento da leitura, debate-se com a página escrita, maculada e carregada de várias camadas de signos, à procura de significados. A possibilidade da crítica será assim necessariamente uma parte da poética da leitura. Poética essa que se transforma numa semiótica, precisamente porque o leitor, ao ler, penetra: num mar de signos que começam no objeto livro composto de páginas com uma configuração física, um toque, uma cor, uma mancha impressa com determinados caracteres (signos gráficos), numa determinada língua (código lingüístico), com um determinado estilo (código literário) circunstâncias sígnicas, essas, que provocam em quem lê o despertar de outros níveis sígnicos, conceptuais, emocionais, ideológicos ou lúdicos, quer de um modo narrativo ou não narrativo (presentativo), quer adjetivaI ou substantivamente, podendo denunciar toda uma diversa estratégia de enunciação que o autor dá como sinal de desco- dificação aos seus desconhecidos leitores. Deste modo, a noção peirciana de signo interpretante-como signo que o receptor forma na sua mente sob o estímulo dos signos primários ou representamen (a escritura) toma-se de capital impor- tância para o entendimento do que seja uma poética da leitura. Inter- pretar poderá ser assim o colocar-se entre a escrita e a subjetividade do indivíduo que lê. Só que é ao próprio leitor que cabe a formação dos signos interpretantes e a tomada de conhecimento da sua própria Da Crítica, a Critica - 27 28 - Rev. Bras. Lit. Comparada, ri- 1 - 03/91 interpretação, atingindo assim aquilo a que Peirce chama o nível da terceiridade. Assim se pode propor uma passagem interdisciplinar entre a semi ótica e a hermenêutica, na qual e pela qual se joga a possibilidade ou a impossibilidade da crítica. É, por isso, à luz da atual hermenêutica que devemos tentar entender a importância e função do signo interpretante de Peirce, tanto quanto ele faz parte dessa mesma hermenêutica. Paul Ricoeur na sua obra Teoria da interpretação chama a atenção para, pelo menos, três falácias correntes relativas à própria noção de interpretar. A primeira será a do historicismo, segundo a qual, interpretar é encontrar o contexto histórico-social de um signo, de uma palavra ou de um texto. No entanto, já Husserl nas Investiga- ções lógicas, observava que não só os atos lógicos mas também os atos perceptivos, volitivos e emocionais constituem uma fenomeno- logia objetiva e todo o ato intencional se deve descrever pelo seu lado noético ou seja inovador e autônomo. A não historicidade dos méto- dos críticos de análise textual, retira daí a sua validade quanto à determinação da significação dum texto. Texto que não é primordial- mente dirigido a nenhum leitor em especial, sendo sim, um objeto atemporal. Potencialmente um texto dirige-se a quem o puder ler. A objeti vidade do texto depende apenas da construção do próprio texto. Neste sentido, explicar um texto não tem sentido algum e compreen- dê-lo é conhecer as leis internas que o constituem e permitem que ele seja um texto. Outro equívoco é o da apropriação do texto, como retomo à exigência romântica de uma coincidência com o gênio do autor. Trata-se, efetivamente, dum vulgar preconceito hermenêutico que postula, primeiramente, a identificação do eu do autor com o texto e, em segundo lugar, exige a identificação do eu do leitor com o eu do autor do texto. Assim, a única interpretação válida é a que nos revela o que o autor pretendeu dizer. Na realidade, a intenção original do autor perdeu-se como evento psíquico no momento da escrita e a intenção do leitor, ao tentar ler e interpretar um texto, constitui outro, necessariamente diferente, evento psíquico que, de comum com o primeiro, nada tem. Entre eles está o texto que é mudo e indiferente a esses eventos psíquicos, já que só tem sentido verbal, constituindo uma entidade que em si própria é apenas material, sendo por isso passível de numerosas descodifica- ções, da responsabilidade do leitor. A terceira falácia é a de que, assim sendo, toda a interpretação recai no campo da subjetividade do leitor, perdendo-se a relação com o autor e com a função do texto, como signo dum tempo e dum devir histórico-social. Encontramo-nos assim num círculovicioso, em que a apropria- ção dum signo ou destrói esse mesmo signo, tornando-o noutra coisa, ou se torna manifestamente impossível. Frege e Husserl, perante este problema, notaram que um "significado" (dum signo, duma frase, dum texto) não é uma idéia que alguém tenha na sua mente, não é um conteúdo psíquico, mas um objeto ideal que pode ser identificado e reidentificado por diferentes indivíduos, em tempos diferentes, como sendo um só e o mesmo. Esta identidade não é, nem física, nem psíquica, mas está ligada à sua representação, ou seja, à sua materia- lidade que se constitui em signo ou conjunto de signos. Essa repre- sentação é a manifestação do caráter noético do próprio significado. Interpretar parece ser, assim, a construção duma nova repre- sentação que sirva a quem a produz. O signo interpretante de Peirce estará, deste modo, sujeito a todos estes condicionamentos e, quando afirmamos o valor de um signo, é a uma representação da repre- sentação que nos estamos a referir. Eis, assim, como semiótica e hermenêutica se interligam atra- vés da deslizante e ambígua noção de "representação". Por que, o que é "representar"? Para além da facilidade do caráter repetitivo do prefixo re, segundo o qual representar é presentar, ou apresentar, ou fazer pre- sente uma segunda vez, as conotações de representação incluem fortes alusões ao teatro ou seja ao "fazer de conta", ao criar uma realidade que se sobrepõe a outra, ao estabelecer relações entre os fatos ou as pessoas, ou os seus signos, que só existem enquanto se realizam. Representar será, assim, criar uma realidade cuja existência é instantânea, mas que, enquanto existe, funciona como autêntica e totalizadora. Representar será, assim, criar um fato, como se ele fosse pos- sí vel e real. Daí que, toda a interpretação, sendo representação, só se pode realizar COMO SE se pudesse realizar e só existe enquanto é criada (isto é, representada) pelo leitor ou pelo crítico. A hermenêutica torna-se, deste modo, o próprio terreno do instável e do ficcional imagético, uma vez que toda a representação é por sua vez geradora de imagens e todas as imagens são, em si próprias, desmaterializadas e fugidias. Poderá agora dizer-se que os resultados desta análise filosófica se repercutem na praxis da escrita da crítica, retirando-lhe todo o valor normativo, pois eles se conjugam subrepticiamente numa dilui- ção epistemológica que afeta, desde as raízes, toda a atual produção literária, gerando uma síndrome de insegurança e de mal estar: Da Critica, a Critica - 29 30 - Rev. Bras. Lit. Comparada, n2 1 - 03/91 Miguel Tamen, no notável ensaio "Hermenêutica e mal estar" publicado em 1987, estuda esta questão, em termos universais e com referências literárias de várias literaturas, inclusive da portuguesa, mostrando como questões deste teor fazem parte da estrutura da literatura moderna ocidental. A aproximação deste livro com o ensaio recentemente publicado "Presenças reais" de George Steiner, pare- ce-me um exercício esclarecedor da profunda preocupação com essa síndrome do mal estar que toca a quem, neste fim de século, pratica a literatura e a crítica literária, acreditando que elas correspondem a um exercício necessário e, particularmente, que a crítica detém uma função ou complexo de funções, mas que, ao mesmo tempo, sente resvalarem e desagregarem-se os fundamentos dessas mesmas fun- ções. Tais questões poderão ser sistematizadas, embora provisoria- mente e em resumo, do seguinte modo: 1 º - Dificuldade de definição do objeto da crítica. O que é literário e o que não o é? quais os limites? a tendência é para se assumir que os limites são fluidos e para apresentar a qualidade ou a literalidade como escapatória de avaliação crítica. 2º - Se criticar é interpretar, então o que é interpretar? a asso- ciação com o sentido musical de interpretar faz-nos recair numa outra falácia, pois acabaremos por tentar dizer o mesmo por outras pala- vras, o que em relação à obra literária, isto é, ao poema, é irrelevante, introduzindo fatores subjeti vos que só aumentam a imprecisão. 3º - Se interpretar é julgar, nos dois sentidos de julgar, isto é, o de "conjecturar ou pensar como" e o de "avaliar", como poderemos ter a certeza dum julgamento? Se meramente conjecturamos ou ima- ginamos o que uma obra é, acabamos por dela nos afastar. Se a julgamos, que medida ou que escala de valores inquestionáveis vali- darão o nosso juízo? A crítica atual assume estas incertezas como uma base episte- mológica, isto é, exerce rigorosamente uma ação que sabe ser incerta, tal como interpreta o que sabe não ser interpretável. 4º - Se recorremos à noção de rigor como um objetivo a atingir pelo crítico, então, a crítica desse rigor vem-nos do lado das próprias ciências rigorosas, através do chamado "teorema de Godel" que nos diz que, dentro dum sistema coerente de proposições, existem algu- mas que só são demonstráveis através de proposições que não per- tencem a esse mesmo sistema, o que equivale a dizer que o rigor não se basta a si próprio, mas precisa de apoios externos, mesmo nas ciências matemáticas. A procura de rigor na crítica literária pode ser detetada desde meados do século XIX, passando primeiro pela adoção de modelos da ciência histórica, depois da ciência biológica e, finalmente, das ciências matemáticas. Tal rigor encontra-se hoje altamente compro- metido, pois como poderá o crítico apelar para o rigor da sua análise, se só fora do objeto analisado ele poderá fundamentar a sua análise? Análise que se refere ao poema; poema que é autotélico e original. Assim sendo, o poema nada tem que esteja fora de si próprio, nem existe além de si próprio, isto é, além da sua própria literalidade e dos materiais com que é construído. No entanto, o crítico, continua falan- do como se a sua intervenção tivesse fundamentos e prossegue criti- cando segundo valores que estão fora do próprio poema e, por isso, só indiretamente lhe dirão ou não dirão respeito. Uma situação semelhante se pássa com a noção de qualidade. Esta tem indiscutivelmente fatores subjetivos e manifesta-se num discurso altamente conotativo, onde as hipóteses dialogais são quase nulas. No entanto, dispomos, hoje, de uma noção universal de quali- dade como "fitness to purpose" ou seja, qualidade como adequação ao objetivo ou função finalidade. No caso da qualidade literária, tal conceito desloca a questão para se saber qual é o objetivo, a finalidade e a função da obra literária, isto é, do poema. Assim, a própria noção de qualidade literária fica à mercê de conceitos e valores obviamente não literários. Ora, nós sabemos que o poema é por definição a condensação do especificamente literário, o que faz com que ele seja e contenha a sua própria finalidade. A poesia, se não tem função que não seja poética, contém em si a sua própria qualidade, o que sendo uma tautologia, propõe a questão crucial de: como julgar um poema de um ponto de.vista fora de si próprio? Daí que, quanto mais realizado ou mais especificamente poé- tico for o poema, menos será possível julgá-lo em termos de qualida- de, pois ele contém a sua própria finalidade, objetivo e função. É George Steiner quem nos adverte que o ato de leitura se baseia numa hipótese instável: "devemos ler como se ... como se o texto tivesse um sentido ... um sentido que não será o único se o texto for um texto sério, que nos obriga a responder à sua força de vida ... mas não será um sentido de estrutura histórico-cultural, nem obtido por acumulação de consensos; sobretudo o sentido para o qual se tende não será um sentido que a exegese, o comentário, a tradução, a paráfrase, a descodificação psicanalítica ou sociológica, poderão alguma vez esgotar ou definir como total. É que só os maus poemas podem ser exaustivamente interpretados e compreendidos. Só nos textos triviais ou de circunstância é que o sentido total é igual à soma das suas partes" . Isto quer dizer,em última análise, que a crítica só se pode executar sobre a poesia que não é poesia e que a crítica, a realizar-se, deve fazer-se como se se pudesse realizar. Está assim aberto o cami- nho, que parece sempre ter existido em maior ou menor grau, para a Da Crítica, a Crítica - 31 32 -Rev. Bras. Lit. Comparada, ng 1 - 03/91 anarquia interpretativa e de julgamento literário, onde os valores subjetivos preponderam à solta e onde a opinião dos sábios vale tanto como a dos ignorantes, apenas se distinguindo uma da outra, pelo estilo da enunciação e pela bagagem ou parafernália referencial e erudita. Situação, esta, que não pode deixar de gerar uma sensação de estranho mal estar. Miguel Tamen, na já referida obra, observa: • à hipótese primei- ra (mas não a mais importante) deste trabalho deriva da questão da possibilidade de uma ciência feliz e da íntima suspeita de que do "procurar compreender" faz parte uma dimensão considerável de mal estar-talvez, quem sabe, por este ser na maior parte dos casos um procurar compreender tudo" . George Steiner, por seu lado, observa: "A relatividade, o arbi- trário de todas as proposições estéticas, de todos os julgamentos de valor, são inerentes à consciência e à palavra humana. Qualquer pessoa pode dizer o que quiser sobre qualquer coisa" . Assim, afirmar que a poesia de Fernando Pessoa não tem interesse, ou que Camões poderia ter escrito o Ulisses, são afirmações verdadeiramente irrefutáveis no seu relativismo primário, como ma- nifestações de uma posição subjetiva e incomunicável e, portanto, de um estado não cultural. Também, todas as teorias críticas assentam num ato consciente ou não, manifesto ou implícito, de uma adesão ou recusa subjetivas, . verdadeiramente indemonstráveis e, por isso, inquestionáveis. Intui- ções profundas, essas, a que só posteriormente se poderá chamar de crítica, quando passarem ao nível das formulações racionais ou pa- raracionais, explicitamente expressas, de um modo dialógico e dia- logante. Por isso poderemos falar em ficção crítica, póis, de fato, a teorização literária releva de uma tentativa de inventar ou construir razões escriturais para as próprias intuições do teorizador e, entender ou compreender o que isso possa ser. Esta, é a questão que está no cerne mesmo daquilo a que se convencionou chamar a "crise da linguagem" protagonizada, duma forma aguda, -pela poesia, desde a segunda metade do século XIX até hoje e pelas vozes filosófico-re- flexivas de Nietzsche, Freud, Heidegger, Walter Benjamin, Wittgens- te in e também Fernando Pessoa. É que, se interpretar é julgar, o julgamento é o lugar do próprio efêmero, pois não saberemos, nem como realizar tal ação, nem pode- remos julgar tudo e para sempre. Assim, desde as origens estóicas e talmúdicas, a hermenêutica tomou-se na ciência do instável, ou seja, a ciência que inclui a ausência das suas próprias bases científicas: instabilidade e ausência estas que se refletem na atual crítica literária. Por isso, só se pode ler, como se se soubesse ler; só se pode entender, se não desejarmos entender tudo; só se pode julgar, como se não fizessemos umjuizo. Colocados que estamos em tal situação, que sentido poderá fazer, hoje, a atividade crítica, se não o sentido da própria ausência de sentido, que caracteriza a epistemologia desli- zante deste fim de século? Mas tal situação, para a qual a própria palavra crise já não parece ser suficiente, não será, por outro lado, um indício ou sintoma duma já imparável mudança de paradigma nas funções da relação dos homens consigo próprios e por isso da linguagem, com a própria linguagem? Da Crítica, a 0iIica - 33 Referências bibliog- táficas: MELO E CASTRO, E- M. de. Pmugal, critica e mal-estar nos anos 80. SIMPÓSIO DE ClÚTI- CA LrrERÁRIA. 1990, São Paulo. (médito). RICOEUR, PauL Teoria da interpretação. Lis- boa: Edições 70, 1987. STEINER, George. Ú sem dIl sem: pésenc:es téelles. Paris: Libtairie Philosopbique J. Vrin.. 1988. TAMEN, MigueL Her- Jlumilllica e 11IIIl-eslID: Lisboa: hnprensa Nacio- nal. - Casa da Moeda, 1987. SUJEITO E IDENTIDADE CULTURAL Eneida Maria de Souza Quando, nos últimos anos, publica-se na França grande quanti- dade de textos sobre a questão da alteridade nas Ciências Hmnanas (e cito, particulannente, Nous et les autres, de T. Todorov, e Étrangers à nous-mi- mes, de J. Kristeva) 1, percebe-se que algo de novo anda acontecendo para além das fronteiras nacionais. A comemoração do bicentenário da Revo- lução Francesa e a proximidade da efetiva unificação européia poderiam explicar o ressurgimento de tais preocupações, sem mencionar a própria situação da Europa (e da França, principalmente), onde á pluralidade racial (e étnica) prolifera e atrapalha a "perfeita ordem" das cidades. Espaços, portanto, em qUe o espírito colonizador ainda não desapareceu de todo, repetindo-se, de forma diferente, na ámeaça existente pela invasão dos "bárbaros". Os dois autores acima citados, estrangeiros em Paris, têm razão e conhecimento para discorrer sobre a questão da alteridade' ao tomarem como base a reflexão francesa sobre o assunto. Repensar a alteridade conduz, necessariamente, ao exame do problema da identidade, assim como traz implícita uma série de associações binárias, ligadas às categorias de razão e instinto, nação e indivíduo, universal e particular, e assim por diante. Seguindo esse raciocínio, entende-seque a noção de identidade cultural estaria em concordância com as transformações sócio-políticas, construindo-se ora como efeito, ora como participação simultânea dessas mudanças. As manifestações artísticas, por sua vez, entendidas ou como reflexo do fato histórico-equívoco difícil de ser sanado-ou como parte 1. TOOOROV, Tzvetan. Nous et les autres: la ré- flexion française sur la diversité humaine. Paris: Seuil, 1989. KRm'EVA, lJIia. Étran- gers à rious-mêmes. Pa- ris: Fayard,1988. 2 FERRY, Luc e RE- NAUT, ALain. Pensa- mento 68: ensaio sobre o anti-humanismo con- temporâneo. S. PauLo: Ensaio, 1968. Sujeito e Identidade Cultural- 35 integrante do acontecimento, sempre se apresentaram em posição crítica diante das contradições de seu tempo. Para o tema de discussão deste ensaio-revolução e identidade nacional-proponho-me a examinar alguns tópicos ligados à Teoria Literária e à Literatura Comparada, centralizando-me na leitura da noção de sujeito, seu lugar no discurso da crítica contemporânea, marcado por conotações históricas e contextuais. Essa postura, deve- dora da revolução do pensamento crítico dos anos 60 nas Ciências Humanas, possibilita a abertura para se pensar a identidade cultural, tal como ela é interpretada por pesquisadores nacionais e estrangei- ros. A Literatura Comparada, dentre os vários objetivos a que se propõe, incide na relação entre culturas, reacendendo a polêmica da dependência cultural como forma de se repensar a própria identidade, encarada numa perspectiva que envolve a literatura e outros discursos a ela relacionados. Ao sujeito que se expõe como ator na cena enun- ciati va se justapõe o conceito de identidade cultural construído simul- taneamente à encenação conjunta da realidade histórico-social e literária. O reconhecimento de que a revolução cultural, processada pelos acontecimentos de maio na França-com sua repercussão em outros países, principalmente no Brasil~, contou com a participação, mesmo que indireta, dos filósofos, se explica pela reunião da crítica ao humanismo com o horizonte histórico, como aftrmava J. Derrida, em conferência sobre os "fins do homem" . Na esteira de Freud, Marx e Heidegger, Deleuze, Bourdieu, Foucault e Althusser-para citar alguns dos mais importantes autores da desconstrução do sujeito filosóftco-contribuíram para a instauração de vários postulados, segundo teóricos do pensamento de maio de 68: a) o tema do ftm da filosofia; b) o paradigma da genealogia; c) a dissolução da idéia de verdade; d) a historicizaçãodas categorias e a relativização da refe- rência ao universal? Reproduzindo as idéias defendidas por L. Ferry e A. Renaut, no livro Pensamento 68, e reconhecendo aí a presença de um pensa- mento conservador diante do sujeito, entende-se <tue a crítica ao discurso filosóftco realiza-se no interior da própria filosofia. Tal fato irá concorrer para a desconstrução do cogito racional, da "morte do sujeito" e do apagamento da origem, algumas das mais contundentes dissoluções do pensamento moderno. Embora pregando, como Fou- cault, a prática da análise genealógica nas Ciências Humanas, inver- tia-se o objeto de estudo ao se desprezar a indagação sobre o conteúdo do discwfso, enfocandomals as suas" condições exteri.Óles deptoou- ção". O desaparecimento do sujeito da "ciência" era, por sua vez, . tributário da retomada da posição nietzschiana sobre o conhecimento, quando se postula a inexistência de fatos e a presença, apenas, de 36 -Rev. BImI.lit. Comparada, ~ 1 - 03/91 interpretações. Em acirrada crítica aos discursos universalistas, es- pecificamente centrados na razão ordenadora, procurava-se, como Foucault, contextualizar historicamente cada particularidade discur- siva, tendo como princípio o recorte descontínuo, em oposição à causalidade positivista das práticas anteriores. A causalidade estru- tural, substituindo a causalidade factual, inaugura, defmiti vamente, o novo campo epistemológico fundado em categorias-mestras da Modernidade: o descontínuo, a diferença e a ruptura. Some-se a esse panorama desconstrutor a lição da antropologia lévi-straussiana, no combate ao etnocentrismo, ao se descobrir o ""Outro" , selvagem e primitivo, como possuidor do mesmo esquema mental do civilizado. Mdda-se o objeto de pesquisa, uma vez que a alteridade passa constituir elemento instaurador de diferenças no próprio método de análise. Os discursos das Ciências Humanas rece- bem novo tratamento, e a crítica literária notadamente a dos países periféricos, encontra eco para suas inquietações. A gradativa não hierarquização dos discursos propiciava, felizmente, o permanente mal-estar trazido pelas incertezas da interpretação. Toma-se obsoleta a busca do sentido pleno, como obsoleta é toda tentativa de captação da totalidade do objeto. Interpretado en- quanto categoria capaz de instaurar o sentido, o paradoxo rompia com o caráter unívoco do objeto, na medida em que a pluralidade inter- pretativa diluía a idéia de sentido como verdade absoluta. O texto se dá a ler pelas brechas e fendas, fissuras e silêncios que a psicanálise lacaniana soube muito bem captar, e que J. Derrida transpõe para a sua definição de escritura: ausência e presença contínuas do "logos" , mutilação do fantasma paterno e território de interditos. O sujeito, assim mal instalado, despe-se das roupas metafísicas do sujeito cartesiano (e filosófico) e se dissolve na superfície chapada da linguagem, na qual toda e qualquer noção de fundamento e prin- cípio toma-se vazia. Efeito de discurso e da "máquina desejante" do sistema (nas palavras de Deleuze e Guattari, no Anti-Édipo), esse sujeito se manifesta como diferença e alteridade, e se posiciona como ator, na cena enunciativa do discurso social e político . . Se a pSicanálise, na produção de conceitos e teorias, recuperou a metáfora teatral, notadamente no que se refere ao estatuto do sujeito como ator no discurso, a Sociologia política e a História irão também se utilizar dessa metáfora para a interpretação dos fatos. A conhecida reflexão de Valéry sobre a literatura, vista como a figuração do teatro mental, em que se processa a encenação de subjetividades - teoriza- ção retomada por Luiz Costa Lima em Sociedade e discurso ficcional (1986)-, tem como objetivo distinguir o sujeito empírico do ficcio- nal, pela maior ou menor intensidade de representação e distancia- mento no discurso. Esse sujeito-ator relaciona-se ao sujeito que se 3.ARENDT.Hannah. Da~. n.d.F.D. VIeÜa. São PIuIo: ÁIi- CII/UNB. 1988. P. 84. 4. Idem, P. IS. Sujeito e Identidade Cultural- 37 eXibe em público, exercendo um papel e estabelecendo-se a ponte entre representação teatral e social. Nas palavras de Hannah Arendt, presentes no seu livro Da revolução3, era comum o emprego da metáfora orgânica nas descri- ções e interpretações das revoluções: Marx, por exemplo, fazia refe- rência "às dores do parto da revolução"; contudo, entre aqueles que efetivamente atuaram, a metáfora era retirada da linguagem do tea- tro. Cria-se a metáfora política, a persona, própria do vocabulário teatral, correspondente à máscara dos antigos atores e significando, ao mesmo tempo, esconder ou substituir a própria face e expressão do ator, de tal forma que fosse possível ouvir sua voz. Explica-se, dessa maneira, a diferença entre ~ comum e cidadão; esSe último, ao usar a máscara, desempenhava um papel na sociedade. Como exemplo d~a prática, Hannah Arendt associa na Revo- lução Francesa, o retirar "a máscara da hipocrisia" à outra figura, a do hipócrita, distinto da persona, por representar o próprio ator. Este, não mostrando nada sob a máscara, pelo simples fato de não se utilizar dela, finge fi papel que interpreta e, ao entrar no jogo cênico da sociedade, o faz sem qualquer idéia de representação teatral. A más- cara é empregada com a intenção de fraude e não como .. tábua de salvação para a verdade". 4 A título de exemplo, cite-se o filme ligações perigosas. basea- do na obra homônima de Laclos. Guardando as devidas diferenças entre o artifício e o embuste praticados pelo jogo social e a arte, reino do artifício, verifica-se, contudo, o elo criado entre o verossímil no palco e o verossímil na rua, pela indistinção entre o papel dos atores sociais e artísticos. Ao se encenar certo moralismo próprio do século XVllI, a hipocrisia tira a máscara e o espectador não cogita sobre critérios possíveis de moralidade ou imoralidade encenados. O arti- fício supera tais categorias, entendendo ser a arte representação astuta e amoral do jogo cênico da sociedade. Tr3nsportando a metáfora teatral para o final do século XIX e início da Modernidade, a situação do sujeito é a de se expor no espetáculo da rua e do discurso. Época marcada pela eloqüência das mudanças e pelo fantasma do progresso, pelas grandes exposições e inaugurações, esse sujeito irá também reaparecer de forma exposta, objeto a ser contemplado, desprovido de profundidade intimista ou de verdade interior. Nas obras da Modernidade persiste, de igual forma, a configuração do sujeito como "hipérbole da vacuidade", perdido que está na arquitetura fugidia dos espaços da cidade e de sua escrita. O caráter fragmentário e efêmero dos "tempos modernos", o crescimento desordenado das cidades, onde se vive sob a ilusão do novo e da máquina, a velocidade superando as distâncias e o tempo se espacializando, permitem a inserção desse sujeito-persona na pai- 38 -Rev. Bras. Lit. Comparada,n2 1- 03/91 sagem como peça de uma memória desértica e labiríntica. Robô ou manequim, exposto aos olhares públicos, esse personagem incorpo- ra-se ao teatro da cidade e se reflete nas maquinarias desejantes do discurso. A crítica literária, seguindo o passo das manifestações artísti- cas e das transformações processadas no interior das Ciências Huma- nas, realiza a passagem do sujeito "máquina mental" do estruturalismo para o "sujeito vigilante" e em espetáculo, da fase mais atual, segundo afirmações de Luiz Costa Lima. O veto ao sujeito respondia à necessidade de "suspensão do juízo" em favor da neu- tralidade interpretativa, isolando-se, para tal, as questões relativas à própria construção da análise. Ao colocar a produção artística em posição de maior importância do que a recepção recalcava-se a figura do sujeito-leitor como co-criador do saber enunciativo.s . S.Emvezdeumsujeito, pura e transparente má- Afirmar, contudo, que a história, a subjetividade e o indivíduo quina mental, passei estiveram ausentes das pesquisas
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