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Revista_Brasileira_de_Literatura_Comparada_-_01

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ISSN-OI03- 6963 
A Revista Brasileira de Literatura Comparada (ISSN-O 103- 6963) é uma publicação anual da 
Associação Brasileim de Litemtura Comparada (Abralic), entidade civil de caráter cultuml que 
congrega professores universitários, pesquisadores e estudiosos de Litemtum Comparada, 
fundada em Porto Alegre, em 1986. 
DIRETORIA DA ABRALIC - 1990/1992 
Presidente: Silviano Santiago(UFF); vice-presidente: Laura Cavalcante 
Padilha(UFF); secretária: Marília Rothier Cardoso(UERJ); suplente: 
Renato Cordeiro Gomes(UERJ); tesoureiro: Edson Rosa da Silva(UFRJ); 
suplente: Jorge Fernandes da Silveira(UFRJ). 
CONSELHO DA ABRALIC - 1990/1992 
Ângela Mota de Gutierrez(UFC), Davi Arrigucci Júnior(USP), Eneida 
Maria de Souza(UFMG), Luiz Costa Lima(PUC-RJ, UERJ), Marlyse 
Meyer(UNICAMP), Nádia Battella Gotlib(USP), Raúl Antelo(UFSC), 
Tania Franco Carvalhal(UFRGS), Wander Melo Miranda(UFMG), 
Donaldo Schüller(UFRGS, suplente), Maria Helena de Souza(UFG, 
suplente). 
CONSELHO EDITORIAL 
Benedito Nunes, Boris Schnaiderman, Dirce Côrtes Riedel, Eneida Maria 
de Souza, Haroldo de Campos, João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, 
Lisa Block de Behar, Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raúl Antelo, 
Silviano Santiago, Sonia Brayner, Tania Franco Carvalhal, Yves Chevrel. 
Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta e exclusiva 
responsabilidade de seus autores. 
REDAÇÃO E ASSINATURAS 
Abralic - Instituto de Letras da UFF 
Campus do Gmgoatá 
Rua Visconde do Rio Bmnco, s/no - BL. C, sala 212 
24000 - Niterói - Rio de Janeiro 
DISTRIBUIÇÃO 
EDITORA ROCCO LTDA. 
Rua João Romariz, I SI 
Te!.: (021) 290-6047 
21031 - Rio de Janeiro - RJ 
~ 1991. Associação Brasileira de Literatura Comparada. 
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou 
transmitida sejam quais/orem os meios empregados. sem permissão por escrito. 
Editoração: Eneida Maria de Souza 
Nádia Battella Gotlib 
Wander Melo Miranda 
Produção Gráfica: Andrea Costa Gomes 
Cláudio Rezende 
Composição: ArteLaser Editorial Ltda. 
Impressão: Segrac - Sociedade Editora e Gráfica de Ação Comunitária 
Tiragem: 1000 exemplares 
Revista Brasileira de Literatura Comparada. v. 1 - 1991 
Niterói, 1991 - v. 
1. Literatura Comparada - Periódicos 
CDD - 809 
NOTA PRÉVIA 
A criação da Revista Brasileira de Literatura Comparada, 
durante a gestão da Diretoria da Abralic (1988-1990), inaugura uma 
publicação voltada para os estudos de Literatura Comparada realiza-
dos no Brasil e no exterior. Com o objetivo de oferecer uma reflexão 
mais aprofundada de temas relevantes ligados à disciplina no interior 
da cultura brasileira, a revista contribuirá também para a divulgação 
da nossa atual produção científica. 
Este número, organizado por Eneida Maria de Souza, Nádia 
Battella Gotlib e Wander Melo Miranda, membros da Diretoria da 
Abralic (1988-1990), conta com a colaboração de pesquisadores 
nacionais e estrangeiros que aceitaram nosso convite para participar 
deste primeiro número da Revista Brasileira de Literatura Compa-
rada. 
Os ensaios aqui reunidos tratam não só de questões que visam 
à releitura do conceito de identidade cultural na Modernidade· e na 
Pós-Modernidade, com especial ênfase nos movimentos modernistas 
no Brasil, como de reflexões sobre a prática interdiscursi va em textos 
literários e paraliterários. Integram ainda a revista estudos que evi-
denciam a escolha de temas próprios da contemporaneidade: a estra-
tégia interdisciplinar da Literatura Comparada, a crítica literária e a 
interpretação, o ensaio-conto parapolicial, ou a transfiguração esté-
tica do tempo e da morte. 
Pautados pela construção de objetos teóricos e conceitos ope-
racionais relevantes para a constituição de um pensamento crítico de 
Literatura Comparada no Brasil, os artigos que compõem este volume 
comprovam a oportuna contribuição desta revista para o aquecimento 
do debate cultural entre nós. 
Eneida Maria de Souza 
Presidente da Abralic -1988-1990 
SUMÁRIO 
Literatura Comparada: 
a estratégia interdisciplinar 
Tania Franco Carvalhal 
Tesis sobre el cuento 
Ricardo Piglia 
Da crítica, a crítica 
E.M. de Melo e Castro 
Sujeito e identidade cultural 
Eneida Maria de Souza 
Modernidade e tradição popular 
Silviano Santiago 
o duplo e a falta: construção do Outro e 
identidade nacional na Literatura Brasileira 
Ettore Finazzi-Agro 
Antropofagia e controle do imaginário 
Luiz Costa Lima 
Histórias do Brasil 
Raúl Antelo 
Postmodernity and transnational capitalism 
in Latin America 
George Yúdice 
Machado de Assis: a consciência do tempo 
Dirce Côrtes Riedel 
As escrituras da morte 
Maria Luiza Ramos 
Caminhos do imaginário no Brasil: 
Maria Padilha e toda a sua quadrilha 
Marlyse Meyer 
09 
22 
26 
34 
41 
52 
62 
76 
87 
110 
117 
127 
LITERATURA COMPARADA: 
A ESTRATÉGIA 
INTERDISCIPLINAR 
Tania Franco CaNalhal 
Se à época de seu surgimento, no século XIX, a Literatura Com-
parada punha em relação duas literaturas diferentes ou perseguia a migra-
ção de um elemento literário de um campo literário a outro, atravessando 
as fronteiras nacionais, hoje é ~ível diier que sua atuação se ampliou 
largamente. Essa ampliação, que corresponde a mudança de paradigmas 
e que provocou diversas alterações metodológicas na disciplina, constitui 
a própria história do comparativismo literário. De sua fase inicial, em que 
era concebida como subsidiária da historiografia literária ("une branche 
de I 'histoire littéraire" ,como diria Carré) ~ a exercer outras funções, 
mais adequadas a outros tempos. Surgida de uma ~dade de evitar o 
fechamento em si das nações recém constituídas e com uma intenção de 
cosmopolitismo literário, a Literatura Comparada deixa de exercer e&')él 
função "internacionalista" para converter-se em uma disciplina que põe 
em relação diferentes campos das Ciências Humanas. 
O contexto é sem dúvida diverso. Do mesmo modo que se 
poderia explicar a inexistência de comparativismo literário como 
atividade sistemática no século XVIII por não haver ainda se forta-
lecido integralmente o conceito de nação e o estabelecimento de seus 
limites definitivos, poder-se-ia compreender as alterações por que 
passa a Literatura Comparada em nosso século no exame da consti-
tuição das diferentes disciplinas que compreendem o domínio das 
10 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, 112 1 - 03/91 
I. VANTlEGHEM. P.l.a 
LiueralUre CO/llparee. 
Paris: A. Colin, 1931. p. 
67-68. 
Ciências Humanas e da necessidade que surge em relacioná-las para 
a compreensão dos fenômenos. 
Vista a questão de outro ângulo, o de sua definição, é ainda 
numa perspectiva histórica que se poderia dizer que se antes a espe-
cificidade da Literatura Comparada era assegurada por uma restrição 
de campos e modos de atuação, hoje, essa mesma especificidade é 
lograda pela atribuição à disciplina da possibilidade de atuar entre 
várias áreas, apropriando-se de diversos métodos, próprios aos obje-
tos que ela coloca em relação. 
Este novo modo de entendimento acentua, então, um traço de 
mobilidade na atuação comparativista enquanto preserva sua nature-
za "mediadora", intermediária, característica de um procedimento 
crítico que se move "entre" dois ou vários elementos, explorando 
nexos e relações. Fixa-se, em definitivo, seu caráter "interdiscipli-
nar. " 
Nesse contexto cabe evocar que já no livro cleissico de P. Van 
Tieghem, La Littérature Comparée (1931), o futuro da disciplina se 
esboçava nessa direção. No capítulo intitulado "Différents domaines 
de la littérature comparée", delineava-se a ampliação dos domínios 
comparativistas para outras fronteiras. Dizia o autor: "Les études de 
littérature comparée peuvent porter sur des sujets tres différents" e 
mencionava, a seguir, "Le vaste domaine de la littérature comparée, 
domaine qui s' accroitra peut -être encore des provinces nou velles" . 
É certo que Van Tieghem não podia prever para onde se encaminha-
riam os estudos futuros, em terrenos ainda inexistentes,mas ele intuia 
sua expansão e a expressa de fonna quase metafórica ao falar de 
"províncias novas". Mais adiante ainda acrescentaria: "Toute étude 
de littérature comparée, avons-nous dit, a pour but de décrire UIl 
passage le fait que quelque chose de Iittéraire est transporté au-delà 
d'une frontiere linguistique." I 
De novo, ao empregar o tenno "passage", Van Tieghem evoca 
metaforicamente a situação intervalar da Literatura Comparada que 
se coloca "em meio a", registrando sua característica essencial. 
Sabemos todos que aquele autor logrou fixar em seu manual pioneiro 
o que era usual na prática corrente: o estudo da natureza dos emprés-
timos e sua história. Utilizava ele duas perspectivas: a do emissor, 
que proporcionava a aneilise do "sucesso" ou da influência e a do 
receptor, que permitia chegar às "fontes", recuperando, neste trajeto, 
o papel dos intennediários. Essa tenninologia e seu emprego fixo não 
estão reproduzidos aqui para que lhes seja feita a crítica. Muitos já o 
fizeram. René Wellek, em primeiro. Interessa apenas recuperei-los 
para esclarecimento do contexto no qual o tenno "passage" foi 
primeiramente empregado, tendo-se presente seu alcance inicial. 
Com efeito, essa "passagem" ou transladação devia ser exclusiva-
Literatura Comparada: A Fstratégia ... - 11 
mente literária e envol via diferentes sistemas lingüísticos como cabia 
numa época em que era preciso combater o isolacionismo naciona-
lista. 
O primeiro largo passo de ampliação desse processo de "mise 
en relation", característico da disciplina, foi no campo das relações 
inter-artísticas. É uma ampliação sintomática: nos anos 40, no pós 
Segunda Grande Guerra, emerge esse espírito aglutinador que o 
filósofo Alain defendera e CJue o simbolismo, com suas correspon-
dências, tentara ilustrar. A obra de Thomas M. Greene, intitulada The 
Arts and the Ar! of Criticism (1940) a expressa integralmente. Em 
novo momento de fortalecimento do espírito nacional, o escopo 
internacionalista, que fundamentava a transposição de fronteiras, se 
dilata para o terreno das artes. Todavia, guarda ainda o comparati vis-
mo a exigência de que um desses meios de expressão seja o literário 
mas, pouco a pouco, perde a perspectiva dominante desse sobre as 
outras formas de expressão artística. E sobretudo é a primeira mani-
festação clara de que a comparação não é um fim em si mesma mas 
apenas um instrumento de trabalho, um recurso para colocar em 
relação, uma fonna de ver mais objetivamente pelo contraste, pelo 
confronto de elementos não necessariamente similares e, por vezes 
mesmo, díspares. Além disso, fica igualmente claro que comparar não 
é justapor ou sobrepor mas é, sobretudo, investigar, indagar, fonnular 
questões que nos digam não somente sobre os elementos em jogo (o 
literário, o artístico) mas sobre o que os ampara (o cultural, por 
extensão, o social). 
É o início do que hoje entendemos como o vasto campo das 
relações inter-semióticas. 
Foi natural que essa expansão se desse também no terreno das 
artes que constituíam, por si, partes de uma totalidade: a estética. Não 
mais a visão romântica, como a de Schumann, que entendia a estética 
da arte sendo una, diversificada pela mudança de material: uma arte 
só, di vidindo-se em várias como a luz em cores. É buscada, de início, 
a Correspondência das artes, para empregarmos o titulo do também 
clássico livro de Etienne Souriau, de 1947. Contudo a diversidade 
lingüística já não serve de base à comparação~ fala-se agora de 
diversidade de "linguagens" ou de "fonnas de expressão" particu-
lares e divergentes. É, aliás, a especificidade (ou a divergência) que 
começa a se impor acima das analogias ou similitudes. Por isso, E. 
Souriau não deixa de alertar para o que julga fundamental, ou seja, 
que apesar das semelhanças existentes entre o trabalho de um músico 
e o de um pintor há que lembrar sempre que "o músico pensou 
musicalmente, o pintor plasticamente". Além da diversidade de 
meios, a diferença de concepção. E completa o autor: ··E é nos 
próprios princípios da arte específica de cada um e na experiência 
12 - Rev. Bras. de Ut. Comparada,n2 1- 03/91 
2. SOURIAU, E. A cor-
respondência das artes: 
elementos de estética 
comparada. São Paulo: 
Cultrix, Edusp, 1983. p. 
31. 
3. BROWN, C.S. 'I"be re-
lations between music 
and literature as a field of 
study. Year BooIc of Ge-
neral and Comparative 
Lileralure. Indiana: Uni-
versity Press, v. XXII, v. 
2, p. 102. 1970. 
4. REMAK, Hemy H.H. 
Comparative Literature, 
its defmition and func-
tion. In: STA-
LLKNECHT e FRENZ 
(ed.). Comparative Lite-
rature: MethodandPers-
pective. Illinois: Sou-
them IIIinois University 
Press, 1971. p. 1. 
S. Cf. WEISSTEIN, U. 
apud CUPERS, 1.L. Eu-
terpe et Harpocrate; ou 
le défi Iiuéraire de la mu-
sique. Bruxelles: Publi-
cations des Facultés Uni-
ativa e concreta que adquiriram, em seus respectivos trabalhos, dos 
imperativos e optativos destes, que estavam secretamente implicadas 
as razões dessa similitude. ,,2 
É nesta linha de uma estética da interação das artes que se 
situam as obras de Calvin S. Brown, Music and Literature. A Com-
parison ofthe Arts (1948) e Th. Munro, The Arts and Their Interre-
lations (1949) e é nessa perspectiva que avança U. Weisstein em sua 
Introdução à ciência comparada da literatura (1968) ao dedicar o 
capítulo 8 à "Iluminação recíproca das artes". Não interessa aqui 
fazer o inventário dos textos que promoveram a reflexão nesse campo 
inter-artístico mas lembrar dois aspectos essenciais: que vigora ainda, 
nessa concepção comparativista, a intenção de abrangência, o intuito 
de dar conta do geral pelo particular e, também, que esta ampliação 
corresponde a uma alteração de definição e de paradigma. Leia-se, 
nesse sentido, como C.S. Browri ao definir a Literatura Comparada 
dirá que ela inclui "o estudo da literatura além de fronteiras lingüís-
ticas e nacionais e qualquer estudo de literatura envolvendo, pelo 
menos, dois diferentes meios de expressão. ,,3 
Não estamos longe da definição de· Henry H.H. Remak que irá, 
mais tarde, alargar, em definitivo, o alcance dos estudos literários 
comparados. Para Remak, "a Literatura Comparada é o estudo da 
literatura além das fronteiras de um país em particular, e o estudo das 
relações entre literatura de um lado e outras áreas do conhecimento 
e crença, como as artes (pintura, escultura, arquitetura, música) filo-
sofia, história, as ciências sociais (política, economia, sociologia) as 
ciências, religiões, etc. de outro. Em suma, é a comparação de uma 
literatura com outra ou outras, e a comparação da literatura com 
outras esferas da expressão humana". 4 Como se percebe, há uma 
ampliação gradativa que se anuncia primeiramente nas comparações 
inter-artísticas. 
Ora, essa ampliação de campos de investigação pressupõe uma 
duplicação (ou multiplicação) de competências. O comparativista 
terá de aprofundar-se em mais de uma área, ou seja, em todas aquelas 
que vai relacionar, dominando terminologias específicas e movimen-
tando-se num e noutro terreno com igual eficácia. A exigência de 
dupla (ou múltipla) competência acarreta, sem dúvida, alguns incon-
venientes. A dupla especialização ocasiona uma dispersão de esfor-
ços que seriam concentrados em apenas uma área mas tem também 
suas vantagens: de enriquecimento metodológico, dos contrastes e 
analogias que tornam possíveis essas relações, permitindo leituras 
muito mais ricas e esclarecedoras.s 
Entendida assim, a Literatura Comparada toma-se no mínimo 
duplamente comparativa, atuando simultaneamente em mais de uma 
área. 
Literatura Comparada: A Estratégia ... - 13 
Voltada não só para as investigações inter-literárias, a Litera-
nua Comparada vai privilegiar confrontos que digam mais sobre os 
procedimentos textuais. É o caso, por exemplo, das comparações da 
literatura com os escritos históricos, que analisa a presença em ambos 
de esquemas narrativos semelhantes e semelhantes esquemas de 
compreensão. Tais estudos levamà identificação de certas qualidades 
e certas operações de linguagem que caracterizam a produção textual. 
Nessa direção não é difícil perceber como o comparati vismo 
literário pode ser uma forma de reflexão generalizadora e mesmo 
teorizadora sobre o fenômeno literário. 
Já nos distanciamos da definição que considerava a Literatura 
Comparada apenas um ramo da história literária, pois ela será enten-
dida como uma "certa tendência ou ramo da investigação literária,,6 
que encontrará sua especificidade justamente nos problemas que 
propõe e na sua mobilidade para resolvê-los. 
Vista assim, é uma prática intelectual que, sem deixar de ter no 
literário o seu objeto central, confronta-o com outras formas de 
expressão cultural. É, portanto, uma maneira específica de interrogar 
os textos literários, concebendo-os não como sistemas fechados em 
si mesmos mas na sua interação com outros textos, literários ou não. 
A COMPARAÇÃO ~TER-ARTÍSTICA: 
LITERATURA E MUSICA 
Esta ampliação interdisciplinar dos domínios da Literatura 
Comparada a que me venho referindo não é nova no campo das 
relações inter-artísticas, sobretudo se pensarmos que quase dois sé-
culos nos separam do clássico estudo de G.E. Lessing, Laocoon. 
Também não lhe tem faltado rigor nem tentativa de lhe estabelecer 
uma formalização de validade mais universal, como se pode ver pelos 
estudos de Roman Jakobson em Questions de poétique, particular-
mente no ensaio "Musicologie et Linguistique." 7 
Todavia, é bem recente a sua aceitação como um aspecto 
reconhecido do estudo estético e como parte integrante da Literatura 
Comparada. As relações mútuas entre as artes têm. sofrido muitas 
restrições. Alguns lhe negam o valor, sobretudo quando se deparam 
com estudos ligeiros nos quais são abundantes as metáforas ou as 
tentati vas de simplesmente transpor de uma arte para outra uma 
nomenclatura. Chamam de "sinfonia" um poema ou um romance 
sem dar ao epíteto ajusta medida metafórica, assinalando que "nada 
em pintura ou em música pode jamais ser literalmente a mesma coisa 
que o correspondente literário" . 8 Outros criticam, além da nebulosa 
contaminação terminológica, a falta, nesses estudos, daquele "esprit 
versitaires Saint-Louis, 
1988. p. 83: uThe linking 
of classical philology 
wilh the study of Gennan 
literature has, for him 
who is oniy moderately 
equipped, lhe disadvanta-
ge of dissipating his 
strength and not letting 
him attain in both areas 
what he. could perhaps 
achieve in one, but it has 
advantages which com-
pensate for that draw-
back." 
6. GUILLÉN, C. Entre lo 
uno y do diverso: intro-
ducción a la literatura 
comparada. Barcelona: 
Critica, 1985. p. 14. Gui-
llén defme-a como "una 
tendencia de los estudios 
literários, o sea, una for-
ma de exploración inte-
lectual, un quehacer 
orientado por inquietudes 
y interrogaciones especí-
ficas. " 
7. JAKOBSON, R. Ques-
riollS de poérique. Paris: 
Seuil, 1977. Veja-se, ain-
da, no mesmo livro, Sur 
I 'art verbal des poêtes-
peintres - Blake, Rous-
seau et Klee. 
8. Veja-se BROWN, Cal-
vins. Preface à obra citada 
de CUPERS, Bruxelles, 
1988. 
14 - Rev. Bras. de Ut. Comparada, n! I - 03/91 
9. Veja-se BROWN. op. 
cit .• nota 8. 
10. Apud CUPERS, oI'. 
ei\.. p. 20. 
de géométrie" a que se referia Pascal, por oposição ao "esprit de 
finesse ... 
Na verdade, afora certos estudos sistemáticos, como são reali-
zados principalmente entre os comparativistas americanos, a grande 
maioria dos trabalhos efetua aproximações episódicas e mesmo in-
tuitivas. 
Cabe lembrar, nesse contexto, a pequena história contada por 
Calvin S. Brown em prefácio recente ao livro de Jean-Louis Cupers, 
intitulado Eltterpe et Harpocrate ou le défi littéraire de la mu.sique. 
Neste texto introdutório, Brown evoca que um dia Abraham Lincoln 
foi envolvido numa disputa na qual alguém insistia em confundir as 
questões em pauta alegando casos hipotéticos e adotando definições 
arbitrárias. Exasperado, Lincoln interrompe-o. "Digamos, disse ele, 
que chame pata a cauda de um gato: quantas patas ele terá? Cinco, 
respondeu o interlocutor com segurança a que Lincoln retrucou que 
não. Haverá sempre quatro. Não será porque você chama de pata a' 
d I ' . ,,9 cau a que e a se tornara em uma apenas por ISSO. 
Essa passagem, quase anedótica e simples, contém um dado 
significativo para essas relações entre as artes: nada pode alterar a 
natureza de um dos elementos relacionados. Assim, o poema não se 
converte em sinfonia por sua simples designação como tal, continua 
a ser um poema, com uma estrutura que lhe é própria e jamais será 
exatamente a mesma da outra arte. 
Isso não invalida que similitudes sejam reconhecidas e com-
provadas nem que se teçam analogias e paralelos. Contudo há que 
manter a diferença de base, a que aludia Souriau, mesmo que a 
literatura possa aspirar à plasticidade da escultura tanto quanto à 
sugestividade da müsica ou ao colorido da pintura. 
Sabemos que uma determinada forma de expressão pode se 
apropriar de características de outra embora não perca sua especifi-
cidade. Por vezes, isso acontece devido a confluências ou ao que 
poderíamos ainda denominar de tendências dominantes na sensibili-
dade ou no gosto de uma dada época. Tal como observa Jules Romain 
em Les hommes de bonne volonté: "à chaque époque la littérature et 
I 'un des autres arts se rencontrent curieusement autour de préoccu-
pations analogues, et tentent des efforts d'expression paralleles." 10 
Como se percebe, também essa noção de confluência nos au-
xi lia a tratar a questão das influências com rigor. Paralelamente aos 
fatores dominantes em detenninado período, há dados da fonnação 
de cada autor e de interesses por ele manifestos que nos penllitem 
caminhar com segurança nesse terreno das inter-relações artísticas. 
Não apenas o caso dos talentos duplos ou mesmo mültiplos como Da 
Vinci mas a simples inclinação não desenvolvida de um autor que 
tenta recriar, nos domínios de sua arte, efeitos ou recursos técnicos 
Literatura Comparada: A &tratégia ... - 15 
de outra fonna de expressão com que esteja familiarizado. São essas 
"transposições" que nos possibilitam estudos de ressonâncias de 
uma arte sobre outra, a par daqueles que têm por objeto as obras onde 
duas artes se conjugam ou se encontram: a ópera, o lied, etc. Sem 
dúvida o estudo e a descrição dos elementos comuns às duas artes é 
indispensável nesse tipo de investigação porque ele envolve outro 
tipo de pesquisa, essencialmente estética, que procura articular, no 
esquema geral das artes, as posições respectiva .. das fonnas postas 
em confronto. 
São questões como essas que Jean-Lollis Cupers discute no 
livro publicado em 1988 com o sub-título de" Aspects méthodologi-
ques de I 'approche musico-littéraire". Além de nos dar ali a história 
implícita dos estudos entre música e literatura, o autor se detém em 
aspectos metodológicos que são indispemiáveis a trabalhos dessa 
natureza. Para ele, "le tout littéraire est, en réalité, beaucollp plus 
proche qu'on ne le dit souvent, tant en qualité qu'en strllcture, du fait 
musical. En d'autres tennes, ni la Iittérature ne peut se faire uniqlle-
ment musique, ni la musique uniquement littérature. Cela ne les 
empêche pas de pouvoir s'avancer três loin, la musique du côté 
littéraire, la littérature du côté musical". 11 E com Brown, ele aponta 
que a música tem sido uma importante fonte de inspiração e de 
técnicas para a literatura moderna, bastando citar autores como M. 
Proust, Conrad Aiken e Thomas Mann. A essas considerações acres-
centa que os autores recorrem à música não para teproduzirem-na 
simple!'>1uente mas para, através dela, traduzirem o intradllzível. É 
nessa colaboração assim enunciada que se pode entender a presença 
do componente musical no literário não como algo acessório, cons-
tituinte de uma atmosfera mas como elemento integrante e fundamen-
taI da criação literária. 
Em todas as épocas, a literatura é farta em exemplos dessa 
natureza. Sobretudo entreos modernos, não é difícil encontrannos a 
transposição para o campo literário de elementos de outras artes: 
Muitos, como Baudelaire, dedicaram-se à crítica de outra fonua de 
expressão que não a literária. E sendo o hibridismo de gêneros uma 
dominante na literatura contemporânea, é freqüente que a própria 
dissolução das características fonnais de um texto por oposição ao 
modelo clássico seja marcada por essa interpenetração artística. 
Assim um vasto campo de investigação se desdobra diante do 
pesquisador que se ocupa em saber o que atrai um artista para outro 
modo de expressão além do seu a ponto de querer transpô~lo em sua 
própria realização. 
No fundo, é certo que o crítico deseja descobrir o que existe de 
misterioso nessas contaminações, pois, como observa Jean-Louis 
Cupers em suas conclusões, "qu'elle soit littéraire, musicale, pictu-
11. CUPERS. op. cit.. p. 
36. 
16 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n2 1 - 03/91 
12. Idem,p. 147. 
13. Veja-se, nesse senti-
do, O tupi e o alaúde: 
uma interpretação de 
Macunaíma, de Gilda de 
Mello e Souza (São Pau-
lo: Duas Cidades, 1979). 
rale, l'un des problêmes fondamentaux de toute étude esthétique, de 
toute critique d'art, est bien cette difficulté de dépasser le niveau de 
la pure description de structures, squelettes décharnés et vides, afin 
d'éclairer en quelque sorte la fascination de la chair même de l'art. 
Sans doute est-ce d'ailleurs parce qu'elles offrent une sorte de tram-
plin idéal qui permette d' attendre à I' essentiel, que les études interar-
tielles en général fascinent le chercheur. Illui semble qu'il va enfin 
pouvoir saisir le secret de I' art, non ses structures. 11 va pouvoir enfin 
transcender ces différents schêmes qu'il veut comprendre en les 
comparant. " 12 
Se de um lado, pondo em relação duas ou mais literaturas o 
investigador quer melhor compreender a literatura em si mesma, de 
outro, relacionar duas ou mais formas de expressão artísticas nos diria 
mais sobre os fenômenos estéticos em si. 
Por isso na obra de Machado de Assis (1839-1908), um dos 
grandes romancistas brasileiros, muitas vezes essa apropriação de 
elementos musicais tem a intenção de traduzir aspectos fundamentais 
de seu projeto estético: vale-se da música Ce de músicos) para falar 
sobre a criação literária e seus problemas. Há, então, em Machado 
uma correspondência estreita entre projeto musical e projeto literário: 
a música, para ele, simbolizaria o eterno e o universal. Mais do que 
a literatura, uma arte supostamente impura. É natural, portanto, que 
a música esteja intimamente vinculada à sua produção, embora não 
fosse ele um conhecedor profundo de leitura musical nem um execu-
tor de qualquer instrumento. Era, isso sim, um ouvinte privilegiado, 
com formação autodidata, graças a seus amigos compositores e artis-
tas. 
No contexto literário brasileiro é Machado de Assis,juntamen-
te com Mário de Andrade, exemplo significativo dessa relação inter-
artística. A obra de ambos manifesta a implicação entre música e 
literatura, desde aspectos mais superficiais a repercussões estruturais 
profundas. Basta pensarmos no subtítulo de Macunaíma, essa "rap-
sódia" que é uma das chaves para a sua leitura. 13 Em Mário, professor 
de música e pianista, autor de uma História da música no Brasil, é 
muito mais fácil de entender essa articulação. Contudo, Machado de 
Assis, mesmo na sua condição de "ouvinte" também explora farta-
mente as relações musicais, baseando-se em Tristão e Isolda, de 
Wagner, por exemplo, para a escrita do Memorial de Aires, como já 
o apontou a crítica. 
E, por isso, nos 150 anos de seu nascimento cabe revisar essas 
transposições que traduzem a presença freqüente da música em seus 
textos literários. A obra de Machado de Assis ilustra, assim, essa 
atuação interdisciplinar que é um dos campos mais fecundos da 
investigação comparati vista. 
Uteratura Comparada: A &tnrtégia ... - 17 
MACHADO DE ASSIS: PROJETO MUSICAL 
E PROJETO LITERÁRIO 
É necessário salientar, desde logo, que a música não tem, na 
obra de Machado de Assis, uma função decorativa ou que ela esteja 
ali somente para criar atmosfera. É certo também que a grande 
maioria dos textos machadianos refere-se à música, pois há quase 
sempre personagens que cantam ou tocam um instrumento-piano 
ou violino-ou cantam uma ária de ópera ou simples melodias de rua. 
Valsas, polcas, pregões e quadrilhas povoam os textos de Machado a 
ponto de podermos dizer que o autor, ao escrever, usava um ouvido 
musical e mesmo, tal como o Conselheiro Aires, de seu último ro-
mance, tivesse uma certa frustração em não saber cantar ou executar. 
Mas afora essas hipóteses de natureza biográfica, que pode-
riam ser exploradas no próprio texto, interessa aqui sobretudo acen-
tuar que há, em Machado, uma intenção clara de apropriar-se 
literariamente de formas ou elementos musicais. Apropriações que 
não foram fruto de estudo ou pesquisa mas que deconem do domínio 
da experiência. As associações musicais, em sua produção, são, por-
tanto, motivadas pelo conjunto de experiências que constituiam seu 
universo cultural. Desde as "musas" cantoras a que Jean-Michel 
Massa refere em A juventude de Machado de Assis14 aos amigos 
músicos como Francisco Braga, Leopoldo Miguez e o pianista Artur 
Napoleão, até seu gosto pelo teatro lírico que se expressou na crítica 
musical com que se ocupou, é possível notar esse "gosto" de que foi 
enriquecida sua formação. 
Dirá sobre isso Raymond Sayers, em "A música na obra de 
Machado de Assis": "Não sabia tocar instrumento nenhum, não 
conhecia a teoria musical, mas tinha escutado muita música com o 
seu ouvido de homem inteligente, e conhecia compositores e artis-
tas".15 Convivera, também, com Alberto Nepomuceno, regente e 
compositor conhecido, que provavelmente lhe aguçara o interesse 
para a música alemã, Wagner particularmente. 
Na obra de Machado, além disso, a presença constante da 
música reflete um dado sociológico, pois testemunha hábitos de 
época. No' Brasil de final de século XIX, "toca-se e canta-se em todos 
os saraus, tanto nos palacetes dos ricos como em casas mais humildes, 
e a música ou a vida musical são um assunto infalível de conversa-
ção.,,16 
Mas o que desperta a curiosidade do pesquisador é a freqüência 
dessas notações musicais na obra. Dir-se-ia, usando uma expressão 
de E. Souriau, que a música é "a forma de fundo" da produção 
machadiana. Se isso ocorre dispersadamente nos textos em geral, em 
alguns centraliza a narrativa. É o caso de "Trio em lá menor", de 
14. MASSA, Jean-Mi-
chel. Ajuventude de Ma-
chado de Assis. Rio de 
Janeiro: Civilimção Bra-
sileira,l97l. 
15. SAYERS, R. Onze 
estudosde literaturabra-
sileira. Rio de Janeiro: 
Civilização Brasileim, 
INL, 1983. p. 170. Texto 
fomecidoporZilá Bemd. 
16. Idem, p. 164. 
18 - Rev. Bras. de til. Canparada. ~ 1 - 03/91 
17. Mac:hadode Assisfoi 
analisado por Antonio 
Candido, em O observa-
dor literário (l9S9), ten-
do em vista a presença da 
música na narrativa ma-
chadiana, sobretudo em 
Memorial de Aires, can-
frontando.a com sua teS-
sonãncia em OIlteMll, de 
Raúl Pompéia. Veja, ain-
da, sobre relações inter-
artísticas o ensaio de 
CANDIDO, Melodia 
impura: ensaio sobre o 
gosto e as experiências 
musicais de Stendhal, em 
'lese e anlitese, (1964). 
Várias histórias, de "Cantiga de esponsais", de Histórias sem data, 
e de vários outros textos. Bastaria, para ilustrar alguns aspectos dessa 
inter-relação, a leitura atenta do conto" Um homem célebre" . 17 Ali, 
a figura de um músico centraliza o narrado, dividido entre vocação e 
ambição: um festejado autor de polcas que ambicionava compor 
obras mais perenes. 
Machado retoma, através da figura do músico Pestana, o que 
já desenvolvera em outros textos: a busca frustrada da glória perma-
nente. Pestana quer compor obras elevadas mas, traído pela memória, 
só consegue reproduzir Mozart e Chopin. Sua criação mais legítima 
gera apenas polcas que rapidamente atingem popularidade mas que 
serão,também de efêmera lembrança. Diferentemente de outras pas-
sagens, a música é nesta narrativa tema central, sem repercussões na 
estrutura. Mas, sob a música, o autor explora o tema da própria 
criação artística como se percebe neste trecho: 
Às vezes, como que ia surgir das profundezas do incons-
ciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aven-
tá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão; a idéia 
esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos 
correrem à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, 
como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não 
vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso 
uma idéia aparecia, defmida e bela, era eco apenas de algu-
ma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha 
inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, 
ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo 
outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano. 
o trecho reproduz, sem dúvida, o esforço criador independente 
de se tratar, nele, da criação musical. Os dados em jogo: inspiração, 
imaginação, memória e invenção, constituintes básicos do processo 
criador, podem referir-se indiferentemente à criação literária, como 
à musical ou outra. Entre inspiração e invenção estaria contida toda 
a seqüência de procedimentos criativos e a invenção, nesse contexto, 
supõe originalidade. Chamam a atenção as metáforas empregadas: 
"a aurora de idéia" para evocar o despertar, a imaginação "a dor-
mir", como em estado de preguiça, a repetição da memória que 
conduz à imitação e à cópia. Colocados juntos esses termos, perce-
be-se que há uma tentati va de insinuar uma movimentação lenta dessa 
idéia que deveria funcionar como fator de descoberta. Só nessa parece 
estar o original, o único, o novo. Essas três qualidades, Pestana as 
encontraria na elaboração das polcas: leves, alegres e próprias. Tal 
como descreve Machado: 
Literatura Comparada: A Estratégia ... - 19 
Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espal-
mou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma cousa 
própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca 
buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da 
parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, 
ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e 
bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esque-
cera até o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-
chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente 
da parede. Compunha SÓ, teclando ou escrevendo, sem os 
vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir 
ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. 
Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma 
fonte perene. 
Confrontado com o texto anterior, este último sintetiza a faci-
lidade da composição, até mesmo o caráter inebriante do ato criador. 
Se Machado, neste conto, ocupa-se com a criação, paralelamente nele 
desdobra o tema da insatisfação, da exigência do compositor com ele 
mesmo. Vê-se, então, que a experiência do artista lhe serve para 
atingir o humano, entrelaçando os dois temas. Daí a ironia do título, 
"Um homem célebre": uma celebridade efêmera e insatisfatória, 
celebridade que encobre o drama humano da não-realização. 
Trata-se da mesma insatisfação que persegue Mestre Romão, 
personagem de "Cantiga de esponsais", destinado a reger músicas 
alheias. Diz Machado sobre isso: "Ah! se mestre Romão pudesse 
seria um grande compositor. Parece que há duas sortes de vocação, 
as que têm língua e as que não a têm. As primeiras realizam-se; as 
últimas representam uma luta constante e estéril entre o impulso 
interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens. 
Romão era destas. Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro 
de si muitas óperas e missas, um mundo de hannonias novas e 
originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel" (grifos meus). 
Retoma aqui não só o tema da impossibilidade de expressão, 
da incapacidade de traduzir o que desejaria manifestar mas surgem, 
explicitados, os conceitos de "novo" e de "original" que no texto de 
"Um homem célebre" estavam implícitos. 
A partir desse confronto pode-se dizer que, para Machado, a 
criação estava estreitamente vinculada à noção de originalidade, não 
só àquilo que seria particular mas também ainda não realizado. 
Em mestre Romão o drama da criação frustrada se resolve pelo 
da execução bem sucedida: a uns é dado criar; a outros, executar, 
sugere Machado. Todavia, no centro dessa trama está a ausência dos 
meios de expressão, a "língua" a que ele se refere como veículo, 
20 - Rev. Bras. de Lit. Comparada, n2 1 - 03/91 
como recurso único e factível entre inclinação e realização. No en-
tanto, não há, em Machado, o esclarecimento sobre o esforço de 
obtenção dessa "língua" mas seu entendimento como dom concedi-
do, presente das musas ou do céu. Daí a imagem expressiva que 
encontra para aludir à impossibilidade da expressão: a inspiração que 
não logra concretizar-se em ato criador é "como um pássaro que 
acaba de ser preso, e forceja por transpor as paredes da gaiola, abaixo, 
acima, impaciente, aterrado ... ". A figura desse pássaro encarcerado 
e a representação de sua luta dramática pela liberdade, igualmente 
presente em outros textos machadianos, são aqui símbolo da drama-
ticidade interna em que se encontra o personagem sem ultrapassar o 
"lá .. .lá .. .lá" onde interrompera sua composição. A frase musical, 
inacabada, alude, ao fmal, à impossibilidade de traduzir algo que se 
ansia dizer mas cuja busca é sem retorno. 
Observa com justeza Sayers que são raras as metáforas musi-
cais na obra de Machado. Não recorre o autor a elementos de outra 
forma de expressão artística para inseri-los no texto literário a não 
ser sugestões estruturais ou componentes temáticos. Suas metáforas 
são predominantemente literárias e mesmo assim era com elas bas-
tante parcimonioso. A crítica às metáforas de adorno é também uma 
constante em sua obra. Considera~as quase sempre "excessos de 
estilo" próprios da linguagem da oratória, corrente na época: cita-
ções, metáforas, lugares-comuns e adjetivação faziam as delícias dos 
ouvintes enquanto serviam para encobrir a mediocridade do pensa-
mento. Deste modo, metáforas e comparações, em Machado, são 
extremamente eficazes e nunca funcionam como ornamento à expres-
são. Ao contrário, elas emergem como surge a música em seus textos: 
como recurso eficaz de expressar por alusão. 
É por isso, talvez, que ele privilegie os compositores para 
explorar o tema da criação. Possivelmente, para ele, a música seria a 
forma de expressão mais fácil quando haveria talento e a mais difícil 
diante da inexistência deste. Ao mesmo tempo, um campo tão vasto 
e nuançado a partir do qual é possível a realização e o êxito menor 
por contraste com as grandes realizações que asseguram a eternidade 
e o universal. Sem falar de literatura nem de literatos, mas de música 
e de compositores, Machado atinge à primeira através da última. 
Não é por acaso, então, que Machado de Assis recorre tantas 
vezes à figura do músico. Dito de outro modo, perguntar-se-ia em que 
medida a representação do músico poderia estar vinculada à do 
escritor? Em que medida as polcas não seriam os textos fáceis, de 
agrado popular? Em que medida não falando de si mesmo, nem de 
seus pares, Machado podia refletir sobre a criaçãO literária pelo viés 
da da criação musical? 
Literatura Comparada: A Estratégia ... - 21 
Essa relação entre projeto literário e Projeto musical fica ainda 
mais explicitada se pensannos que, no Memorial de Aires, o Conse-
lheiro lamenta não comfOr ou tocar algum instrumento. Para ele, "a 
arte é também língua" 1 ,uma maneira de expressar-se, a única pos-
sível. É também a arte que "naturaliza a todos na mesma pátria 
superior". As considerações do Conselheiro Aires, registro de me-
mória, nos autorizam a pensar num conceito de instrumental e numa 
noção de universalidade que estariam na base do pensamentomacha-
diano, justificando a identificação entre música e literatura que per-
passa sua obra. 
Se as hipóteses se confmnam, o projeto estético de Machado 
de Assis teria seu equivalente no projeto musical onde ele esboça 
critérios como "puro" (no sentido de clássico) e eterno. Ao longo de 
seus textos fica claro que, para ele, é a música a fonna de expressão 
mais completa e uni versal. Tal vez a única que possa manifestar tantas 
nuanças de emoções como as por que passa o Conselheiro Aires que 
recupera, pela memória, o que já foi e se vê nos outros, na mocidade 
de Fidélia e Tristão que lhe dão consciência de sua velhice e lhe fazem 
sentir "saudade de si mesmo." 
São associações entre a música vigorosa de Wagner, a vivaci-
dade de Mozart, a nostalgia dos compositores românticos alemães e 
os momentos instáveis do sábio Conselheiro que dizem mais sobre 
ele mesmo do que as palavras que registra em seu "memorial." 
Por outro lado, no momento da leitura dos textos machadianos, 
essas associações se reproduzem de imediato na sensibilidade do 
leitor, também ele um ouvinte. Fonna-se uma rede de associações 
advinda do es~ímulo auditivo que o autor sugere a partir de seu 
contexto cultural. Essas se transferem no ato da leitura para o leitor, 
ouvinte cúmplice daquelas melodias. Este, por sua vez, as reinterpre-
ta e as enriquece com suas próprias motivações e inferências cultu-
rais. Por isso nos é possível falar de um denominador comum nas 
linguagens estéticas e da propriedade que têm de funcionarem como 
sistemas de signos que põem em movimento toda uma série de 
associações fundadas em experiências individuais e coletivas. Esta-
mos, sem dúvida, no terreno da recepção quando tudo ecoa nos 
ouvidos do leitor onde as associações, por fim, tomam sentido. 
Machado sabia disso. O Conselheiro Aires também. 
18. MACHAOO DE AS-
SISo Memorial de Aires. 
Rio de Janeiro: Jackson, 
1957. p. 131. 
TESIS SOBRE EL CUENTO 
Ricardo Piglla 
I 
En uno de sus cuadernos de notas Chejov registró esta anécdota: 
"Un hombre, en Montecarlo, va al Casino, gana un milión, vuelve a sua 
casa, se suicida". La fonnacIásicadel cuenroestá condensada en el mícleo 
de ese relato futuro y no escrito. 
Contra 10 previsible y convencional (jugar-perder-suicidarse) 
la intriga se plantea como una paradoja. La anécdota tiende a desvin-
cular la historia del juego y la historia del suicidio. Esa escisión es 
clave para defInir el carácter doble de la fonna del cuento. 
Primera tesis: Un cuento siempre cuenta dos historias. 
II 
El cuento clásico (poe, Quiroga) narra en primer pláno la 
historia 1 (el relato del juego) y construye en secreto la historia 2 (el 
relato del suicidio). El arte del cuentista consiste en saber cifrar la 
historia 2 en los intersticios de la historia 1. Un relato visible esconde 
un relato secreto, narrado de un modo elíptico y fragmentario. 
El efecto de sorpresa se produce cuando el fInal de la historia 
secreta aparece en la superficie. 
III 
Cada una de las dos historias se cuenta de modo distinto. 
Trabajar con dos historias quiere decir trabajar con dos sistemas 
Tesis Sobre El Conto - 23 
diferentes de causalidad. Los mismos acontecimientos entran simul-
táneamente en dos lógicas narrativas antagónicas. Los elementos 
esenciales de un cuento tienen doble función y son usados de manera 
diferente en cada una de las dos historias. Los puntos de cruce son el 
fundamento de la construcción. 
IV 
En "La muerte y la brújula" ,al comienzo delrelato, un tendero 
se decide a publicar un libro. Ese libro está ahí porque es imprescin-
dible en el armado de la historia secreta. ¿Cómo hacer para que un 
gangster como Red Scharlach esté al tanto de las complejas tradicio-
nes judías y sea capaz de tenderle a LOnrot una trampa mística y 
filosófica? Borges lo consigue ese libro para que se instruya. Al 
mismo tiempo usa la historia 1 para disimular esa función: el libro 
parece estar ahí por contigüidad con el asesinato de Yarmolinsky y 
responde a una causalidad irónica. "Uno de eses tenderos que han 
descubierto que cualquier hombre se resigna a comprar cualquier 
libro publicó una edición popular de la Historia secreta de los Hasi-
dim". Lo que es superfluo en una historia, es básico en la otra. El 
libro del tendero es un ejemplo (como el volumen de Las 1 00 1 noches 
en "El sur"~ como la cicatriz en "La fonoa de la espada") de la 
materia ambígua que hace funcionar la microscópica máquina narra- . 
tiva que es un cuento. 
V 
El cuento es un relato que encierra un relato secreto. No se trata 
de un sentido oculto que dependa de la interpretación: el enigma no 
es otra cosa que una historia que se cuente de un modo enigmático. 
La estrategia del relato está puesta al servicio de esa narración cifra-
da. ¿Cómo contar una historia mientras se está contando otra? Esa 
pregunta sintetiza los problemas técnicos 4el cuento. 
Segunda tesis: la historia secreta es la clave de la fonna del 
cuento y sus variantes. 
VI 
La versión moderna del cuento que viene de Chejov, Katherine 
Mansfleld, Sherwood Anderson, el Joyce de Dublineses, abandona 
el final sorpresivo y la estructura cerrada~ trabaja la tensión entre las 
dos historias sin resolverla nunca. La historia secreta se cuenta de un 
modo cada vez más elusivo. El cuento clásico a la Poe contaba una 
24 - Rev. Sras. de Ut. Comparada, n! 1 - 03/91 
historia anunciando que había otra; el cuento moderno cuenta dos 
historias como si fueran una sola. 
La teoría del iceberg de Hemingway es la primera síntesis de 
ese proceso de transformación: lo más importante nunca ,se cuenta. 
La historia secreta se construye con lo no dicho, con el sobreenten-
dido y la alusión. 
VII 
"El gran río de los dos corazones", uno de los relatos funda-
mentales de Hemingway cifra hasta tal punto la historia 2 (los efectos 
de la guerra en Nick Adams) que el cuento parece la descriptión tri,i:cd 
de una excursión de pesca. Hemingway pone toda su pericia en la 
narración hermética de la historia secreta. Usa con tal maestria el arte 
de la elipsis que logra que se note la ausencia del otro relato. 
¿ Qué hubiera hecho Hemingway con la anécdota de Chejov? 
Narrar con detalles precisos la partida y el ambiente donde sedesa-
rolla el juego y la técnica que usa el jugador para apostar y el tipo de 
bebida que toma. No decir nunca que ese hombre se va a suicidar, 
pero escribir el cuento como si el lector ya lo supiera. 
VIII 
Kafka cuenta con claridad y sencillez la historia secreta, ynarra 
sigilosamente la historia visible hasta convertirla en algo enigmático 
y oscuro. Esa inversión funda lo "kafkiano." 
La historia del suicidio en la anécdota de Chejov sería narrada 
por Kafka en primer plano y con toda naturalidad. Lo terrible estaría 
centrado en la partida, narrada de un modo elíptico y amenazador. 
IX 
Para Borges la historia 1 es un género y la historia 2 es siempre 
la misma. Para atenuar o disimular la esencial monotonía de esa 
historia secreta, Borges recurre a las variantes narrativas que le 
ofrecen los géneros. Todos los cuentos de Borges están construidos 
con ese procedimiento. 
La historia visible, el juego en la anécdota de Chejov, sería 
contada por Borges según los estereotipos (levemente parodiados) de 
una tradición o de un género. Una partida en un almacén, en la llanura 
entrerriana, contada por un viejo soldado de la caballería de Urquiza, 
amigo de Hilario Ascasubi. El relato del suicidio sería una historia 
construida con la duplicidad y la condensación de la vida de un 
hombre en una escena o acto único que defme su destino. 
Tesis Sobre El Conto - 25 
x 
La variante fundamental que introdujo Borges en la historia del 
cuento consistió en hacer de la construcción cifrada de la historia 2 
el tema del relato. 
Borges narra las maniobras de alguien que construye perver-
samente una trama secreta con los materiales de una historia visible. 
En "La' muerte y la brújula" la historia 2 es una construcción delibe-
rada de Scharlach.Lo mismo sucede con Acevedo Bandeira en "El 
muerto"; con Nolan en "Tema del traidor y del héroe"; con Emma 
Zunz. 
Borges (como Poe, como Kafka) sabía transformar en anécdota 
los problemas de la forma de narrar. 
XI 
El cuento se construye para hacer aparecer artificialmente algo 
que estaba oculto. Reproduce la busca siempre renovada de una 
experiencia única que nos permita ver, bajo la superficie opaca de la 
vida, una verdad secreta. "La visión instantánea que nos hace descu- . 
brir lo desconocido, no en una lejana terra incognita, sino en el 
corazón mismo de lo immediato" , decía Rimbaud. 
Esa iluminación profana se ha convertido en la forma del 
cuento. 
DA CRíTICA1 A CRíTICA 
E. M. de Melo e Castro 
Questionar a critica, nos seus fundamentos e nas suas práticas, 
tem sido, nos tempos recentes, a mais coerente maneira de fazer critica. 
Numerosos são os autores e as obras em que preocupações 
deste teor se refletem com maior ou menos nitidez e objetividade. 
Daí, a acusação freqüente por parte dos leitores que a crítica só serve 
para os críticos e que eles leitores ficam entregues a si próprios na 
tarefa árdua de "decifrar" as obras de poesia ou de ficção que a crítica 
e os críticos deveriam supostamente iluminar, esclarecer ou interpre-
tar. 
Evidentemente que o problema ou os problemas não são assim 
tão simples sendo sobejamente conhecidos os estrondosos fracassos 
das críticas que pretendem explicar as obras aos leitores. 
Tal atitude é, a nossos olhos, totalmente ineficaz, primeiro 
porque nada explica verdadeiramente nada (ou nenhum texto pode 
explicar ou justificar outro texto) segundo, porque tal atitude é um 
atestado de menoridade que recai sobre quem lê. De fato, o que há, é 
pessoas que são capazes de ler e essas não necessitam de explicações 
porque encontram as suas próprias leituras, e pessoas que não são 
capazes de ler e, para essas, nunca haverá explicações que sejam 
suficientes. 
Efetivamente existem três poéticas concorrentes em qualquer 
texto; mas concorrentes não quer dizer convergentes. A poética do 
autor, a poética da escritura e a poética da leitura, se estão presentes 
em qualquer ato de leitura, estão-no duma forma diferente. 
A poética do autor é a que mais remota fica. A problemática 
que leva o autor a escrever o seu texto é fechada e só acessível ao 
leitor através de hipotéticas tentativas de penetração naquilo a que 
muitos chamaram "o mistério da criação". Essa poética é muitas 
vezes também pouco clara para o próprio produtor de textos, no 
momento mesmo da criação. 
A poética da escritura, essa, ainda que nem sempre transparen-
te, é mais translúcida para o leitor, principalmente na escritura dita 
experimental ou seja naquela em que a questionação dos próprios 
processos e leis do escrever são o modo como a obra se organiza e 
materializa em códigos verbais. Mas toda a poesia e toda a ficção são 
susceptí veis de análise quanto à sua própria poética e aí se estabelece 
um possível elo entre quem escreve (quem usa um código) e quem lê 
(quem decifra esse código). Mas tal aproximação não é apenas racio-
nal ou metodológica, mas principalmente ela é intuitiva e emocional. 
A poética da escritura vai da emoção do autor à emoção do leitor 
através do desconhecimento recíproco, do distanciamento espacial e 
temporal e de conexões ignoradas e irreconhecíveis, além de total-
mente imprevisíveis. 
Chegamos agora à poética da leitura, aquela em que cada leitor 
tem que responder por si próprio. É certo que pode haver e há teorias 
da recepção, mas não é de generalidades que se trata. A poética da 
leitura é o combate entre o leitor e o texto e, se o autor se debate com 
a página em branco no momento da escrita, o leitor, esse, no momento 
da leitura, debate-se com a página escrita, maculada e carregada de 
várias camadas de signos, à procura de significados. 
A possibilidade da crítica será assim necessariamente uma 
parte da poética da leitura. Poética essa que se transforma numa 
semiótica, precisamente porque o leitor, ao ler, penetra: num mar de 
signos que começam no objeto livro composto de páginas com uma 
configuração física, um toque, uma cor, uma mancha impressa com 
determinados caracteres (signos gráficos), numa determinada língua 
(código lingüístico), com um determinado estilo (código literário) 
circunstâncias sígnicas, essas, que provocam em quem lê o despertar 
de outros níveis sígnicos, conceptuais, emocionais, ideológicos ou 
lúdicos, quer de um modo narrativo ou não narrativo (presentativo), 
quer adjetivaI ou substantivamente, podendo denunciar toda uma 
diversa estratégia de enunciação que o autor dá como sinal de desco-
dificação aos seus desconhecidos leitores. 
Deste modo, a noção peirciana de signo interpretante-como 
signo que o receptor forma na sua mente sob o estímulo dos signos 
primários ou representamen (a escritura) toma-se de capital impor-
tância para o entendimento do que seja uma poética da leitura. Inter-
pretar poderá ser assim o colocar-se entre a escrita e a subjetividade 
do indivíduo que lê. Só que é ao próprio leitor que cabe a formação 
dos signos interpretantes e a tomada de conhecimento da sua própria 
Da Crítica, a Critica - 27 
28 - Rev. Bras. Lit. Comparada, ri- 1 - 03/91 
interpretação, atingindo assim aquilo a que Peirce chama o nível da 
terceiridade. 
Assim se pode propor uma passagem interdisciplinar entre a 
semi ótica e a hermenêutica, na qual e pela qual se joga a possibilidade 
ou a impossibilidade da crítica. 
É, por isso, à luz da atual hermenêutica que devemos tentar 
entender a importância e função do signo interpretante de Peirce, 
tanto quanto ele faz parte dessa mesma hermenêutica. 
Paul Ricoeur na sua obra Teoria da interpretação chama a 
atenção para, pelo menos, três falácias correntes relativas à própria 
noção de interpretar. A primeira será a do historicismo, segundo a 
qual, interpretar é encontrar o contexto histórico-social de um signo, 
de uma palavra ou de um texto. No entanto, já Husserl nas Investiga-
ções lógicas, observava que não só os atos lógicos mas também os 
atos perceptivos, volitivos e emocionais constituem uma fenomeno-
logia objetiva e todo o ato intencional se deve descrever pelo seu lado 
noético ou seja inovador e autônomo. A não historicidade dos méto-
dos críticos de análise textual, retira daí a sua validade quanto à 
determinação da significação dum texto. Texto que não é primordial-
mente dirigido a nenhum leitor em especial, sendo sim, um objeto 
atemporal. Potencialmente um texto dirige-se a quem o puder ler. A 
objeti vidade do texto depende apenas da construção do próprio texto. 
Neste sentido, explicar um texto não tem sentido algum e compreen-
dê-lo é conhecer as leis internas que o constituem e permitem que ele 
seja um texto. 
Outro equívoco é o da apropriação do texto, como retomo à 
exigência romântica de uma coincidência com o gênio do autor. 
Trata-se, efetivamente, dum vulgar preconceito hermenêutico que 
postula, primeiramente, a identificação do eu do autor com o texto e, 
em segundo lugar, exige a identificação do eu do leitor com o eu do 
autor do texto. Assim, a única interpretação válida é a que nos revela 
o que o autor pretendeu dizer. 
Na realidade, a intenção original do autor perdeu-se como 
evento psíquico no momento da escrita e a intenção do leitor, ao tentar 
ler e interpretar um texto, constitui outro, necessariamente diferente, 
evento psíquico que, de comum com o primeiro, nada tem. Entre eles 
está o texto que é mudo e indiferente a esses eventos psíquicos, já que 
só tem sentido verbal, constituindo uma entidade que em si própria é 
apenas material, sendo por isso passível de numerosas descodifica-
ções, da responsabilidade do leitor. 
A terceira falácia é a de que, assim sendo, toda a interpretação 
recai no campo da subjetividade do leitor, perdendo-se a relação com 
o autor e com a função do texto, como signo dum tempo e dum devir 
histórico-social. 
Encontramo-nos assim num círculovicioso, em que a apropria-
ção dum signo ou destrói esse mesmo signo, tornando-o noutra coisa, 
ou se torna manifestamente impossível. Frege e Husserl, perante este 
problema, notaram que um "significado" (dum signo, duma frase, 
dum texto) não é uma idéia que alguém tenha na sua mente, não é um 
conteúdo psíquico, mas um objeto ideal que pode ser identificado e 
reidentificado por diferentes indivíduos, em tempos diferentes, como 
sendo um só e o mesmo. Esta identidade não é, nem física, nem 
psíquica, mas está ligada à sua representação, ou seja, à sua materia-
lidade que se constitui em signo ou conjunto de signos. Essa repre-
sentação é a manifestação do caráter noético do próprio significado. 
Interpretar parece ser, assim, a construção duma nova repre-
sentação que sirva a quem a produz. O signo interpretante de Peirce 
estará, deste modo, sujeito a todos estes condicionamentos e, quando 
afirmamos o valor de um signo, é a uma representação da repre-
sentação que nos estamos a referir. 
Eis, assim, como semiótica e hermenêutica se interligam atra-
vés da deslizante e ambígua noção de "representação". Por que, o 
que é "representar"? 
Para além da facilidade do caráter repetitivo do prefixo re, 
segundo o qual representar é presentar, ou apresentar, ou fazer pre-
sente uma segunda vez, as conotações de representação incluem 
fortes alusões ao teatro ou seja ao "fazer de conta", ao criar uma 
realidade que se sobrepõe a outra, ao estabelecer relações entre os 
fatos ou as pessoas, ou os seus signos, que só existem enquanto se 
realizam. 
Representar será, assim, criar uma realidade cuja existência é 
instantânea, mas que, enquanto existe, funciona como autêntica e 
totalizadora. 
Representar será, assim, criar um fato, como se ele fosse pos-
sí vel e real. 
Daí que, toda a interpretação, sendo representação, só se pode 
realizar COMO SE se pudesse realizar e só existe enquanto é criada 
(isto é, representada) pelo leitor ou pelo crítico. 
A hermenêutica torna-se, deste modo, o próprio terreno do 
instável e do ficcional imagético, uma vez que toda a representação 
é por sua vez geradora de imagens e todas as imagens são, em si 
próprias, desmaterializadas e fugidias. 
Poderá agora dizer-se que os resultados desta análise filosófica 
se repercutem na praxis da escrita da crítica, retirando-lhe todo o 
valor normativo, pois eles se conjugam subrepticiamente numa dilui-
ção epistemológica que afeta, desde as raízes, toda a atual produção 
literária, gerando uma síndrome de insegurança e de mal estar: 
Da Critica, a Critica - 29 
30 - Rev. Bras. Lit. Comparada, n2 1 - 03/91 
Miguel Tamen, no notável ensaio "Hermenêutica e mal estar" 
publicado em 1987, estuda esta questão, em termos universais e com 
referências literárias de várias literaturas, inclusive da portuguesa, 
mostrando como questões deste teor fazem parte da estrutura da 
literatura moderna ocidental. A aproximação deste livro com o ensaio 
recentemente publicado "Presenças reais" de George Steiner, pare-
ce-me um exercício esclarecedor da profunda preocupação com essa 
síndrome do mal estar que toca a quem, neste fim de século, pratica 
a literatura e a crítica literária, acreditando que elas correspondem a 
um exercício necessário e, particularmente, que a crítica detém uma 
função ou complexo de funções, mas que, ao mesmo tempo, sente 
resvalarem e desagregarem-se os fundamentos dessas mesmas fun-
ções. 
Tais questões poderão ser sistematizadas, embora provisoria-
mente e em resumo, do seguinte modo: 
1 º - Dificuldade de definição do objeto da crítica. O que é 
literário e o que não o é? quais os limites? a tendência é para se 
assumir que os limites são fluidos e para apresentar a qualidade ou a 
literalidade como escapatória de avaliação crítica. 
2º - Se criticar é interpretar, então o que é interpretar? a asso-
ciação com o sentido musical de interpretar faz-nos recair numa outra 
falácia, pois acabaremos por tentar dizer o mesmo por outras pala-
vras, o que em relação à obra literária, isto é, ao poema, é irrelevante, 
introduzindo fatores subjeti vos que só aumentam a imprecisão. 
3º - Se interpretar é julgar, nos dois sentidos de julgar, isto é, o 
de "conjecturar ou pensar como" e o de "avaliar", como poderemos 
ter a certeza dum julgamento? Se meramente conjecturamos ou ima-
ginamos o que uma obra é, acabamos por dela nos afastar. Se a 
julgamos, que medida ou que escala de valores inquestionáveis vali-
darão o nosso juízo? 
A crítica atual assume estas incertezas como uma base episte-
mológica, isto é, exerce rigorosamente uma ação que sabe ser incerta, 
tal como interpreta o que sabe não ser interpretável. 
4º - Se recorremos à noção de rigor como um objetivo a atingir 
pelo crítico, então, a crítica desse rigor vem-nos do lado das próprias 
ciências rigorosas, através do chamado "teorema de Godel" que nos 
diz que, dentro dum sistema coerente de proposições, existem algu-
mas que só são demonstráveis através de proposições que não per-
tencem a esse mesmo sistema, o que equivale a dizer que o rigor não 
se basta a si próprio, mas precisa de apoios externos, mesmo nas 
ciências matemáticas. 
A procura de rigor na crítica literária pode ser detetada desde 
meados do século XIX, passando primeiro pela adoção de modelos 
da ciência histórica, depois da ciência biológica e, finalmente, das 
ciências matemáticas. Tal rigor encontra-se hoje altamente compro-
metido, pois como poderá o crítico apelar para o rigor da sua análise, 
se só fora do objeto analisado ele poderá fundamentar a sua análise? 
Análise que se refere ao poema; poema que é autotélico e original. 
Assim sendo, o poema nada tem que esteja fora de si próprio, nem 
existe além de si próprio, isto é, além da sua própria literalidade e dos 
materiais com que é construído. No entanto, o crítico, continua falan-
do como se a sua intervenção tivesse fundamentos e prossegue criti-
cando segundo valores que estão fora do próprio poema e, por isso, 
só indiretamente lhe dirão ou não dirão respeito. 
Uma situação semelhante se pássa com a noção de qualidade. 
Esta tem indiscutivelmente fatores subjetivos e manifesta-se num 
discurso altamente conotativo, onde as hipóteses dialogais são quase 
nulas. No entanto, dispomos, hoje, de uma noção universal de quali-
dade como "fitness to purpose" ou seja, qualidade como adequação 
ao objetivo ou função finalidade. No caso da qualidade literária, tal 
conceito desloca a questão para se saber qual é o objetivo, a finalidade 
e a função da obra literária, isto é, do poema. Assim, a própria noção 
de qualidade literária fica à mercê de conceitos e valores obviamente 
não literários. Ora, nós sabemos que o poema é por definição a 
condensação do especificamente literário, o que faz com que ele seja 
e contenha a sua própria finalidade. A poesia, se não tem função que 
não seja poética, contém em si a sua própria qualidade, o que sendo 
uma tautologia, propõe a questão crucial de: como julgar um poema 
de um ponto de.vista fora de si próprio? 
Daí que, quanto mais realizado ou mais especificamente poé-
tico for o poema, menos será possível julgá-lo em termos de qualida-
de, pois ele contém a sua própria finalidade, objetivo e função. 
É George Steiner quem nos adverte que o ato de leitura se 
baseia numa hipótese instável: "devemos ler como se ... como se o 
texto tivesse um sentido ... um sentido que não será o único se o texto 
for um texto sério, que nos obriga a responder à sua força de vida ... 
mas não será um sentido de estrutura histórico-cultural, nem obtido 
por acumulação de consensos; sobretudo o sentido para o qual se 
tende não será um sentido que a exegese, o comentário, a tradução, a 
paráfrase, a descodificação psicanalítica ou sociológica, poderão 
alguma vez esgotar ou definir como total. É que só os maus poemas 
podem ser exaustivamente interpretados e compreendidos. Só nos 
textos triviais ou de circunstância é que o sentido total é igual à soma 
das suas partes" . 
Isto quer dizer,em última análise, que a crítica só se pode 
executar sobre a poesia que não é poesia e que a crítica, a realizar-se, 
deve fazer-se como se se pudesse realizar. Está assim aberto o cami-
nho, que parece sempre ter existido em maior ou menor grau, para a 
Da Crítica, a Crítica - 31 
32 -Rev. Bras. Lit. Comparada, ng 1 - 03/91 
anarquia interpretativa e de julgamento literário, onde os valores 
subjetivos preponderam à solta e onde a opinião dos sábios vale tanto 
como a dos ignorantes, apenas se distinguindo uma da outra, pelo 
estilo da enunciação e pela bagagem ou parafernália referencial e 
erudita. Situação, esta, que não pode deixar de gerar uma sensação 
de estranho mal estar. 
Miguel Tamen, na já referida obra, observa: • à hipótese primei-
ra (mas não a mais importante) deste trabalho deriva da questão da 
possibilidade de uma ciência feliz e da íntima suspeita de que do 
"procurar compreender" faz parte uma dimensão considerável de 
mal estar-talvez, quem sabe, por este ser na maior parte dos casos 
um procurar compreender tudo" . 
George Steiner, por seu lado, observa: "A relatividade, o arbi-
trário de todas as proposições estéticas, de todos os julgamentos de 
valor, são inerentes à consciência e à palavra humana. Qualquer 
pessoa pode dizer o que quiser sobre qualquer coisa" . 
Assim, afirmar que a poesia de Fernando Pessoa não tem 
interesse, ou que Camões poderia ter escrito o Ulisses, são afirmações 
verdadeiramente irrefutáveis no seu relativismo primário, como ma-
nifestações de uma posição subjetiva e incomunicável e, portanto, de 
um estado não cultural. 
Também, todas as teorias críticas assentam num ato consciente 
ou não, manifesto ou implícito, de uma adesão ou recusa subjetivas, . 
verdadeiramente indemonstráveis e, por isso, inquestionáveis. Intui-
ções profundas, essas, a que só posteriormente se poderá chamar de 
crítica, quando passarem ao nível das formulações racionais ou pa-
raracionais, explicitamente expressas, de um modo dialógico e dia-
logante. Por isso poderemos falar em ficção crítica, póis, de fato, a 
teorização literária releva de uma tentativa de inventar ou construir 
razões escriturais para as próprias intuições do teorizador e, entender 
ou compreender o que isso possa ser. Esta, é a questão que está no 
cerne mesmo daquilo a que se convencionou chamar a "crise da 
linguagem" protagonizada, duma forma aguda, -pela poesia, desde a 
segunda metade do século XIX até hoje e pelas vozes filosófico-re-
flexivas de Nietzsche, Freud, Heidegger, Walter Benjamin, Wittgens-
te in e também Fernando Pessoa. 
É que, se interpretar é julgar, o julgamento é o lugar do próprio 
efêmero, pois não saberemos, nem como realizar tal ação, nem pode-
remos julgar tudo e para sempre. Assim, desde as origens estóicas e 
talmúdicas, a hermenêutica tomou-se na ciência do instável, ou seja, 
a ciência que inclui a ausência das suas próprias bases científicas: 
instabilidade e ausência estas que se refletem na atual crítica literária. 
Por isso, só se pode ler, como se se soubesse ler; só se pode 
entender, se não desejarmos entender tudo; só se pode julgar, como 
se não fizessemos umjuizo. Colocados que estamos em tal situação, 
que sentido poderá fazer, hoje, a atividade crítica, se não o sentido da 
própria ausência de sentido, que caracteriza a epistemologia desli-
zante deste fim de século? 
Mas tal situação, para a qual a própria palavra crise já não 
parece ser suficiente, não será, por outro lado, um indício ou sintoma 
duma já imparável mudança de paradigma nas funções da relação dos 
homens consigo próprios e por isso da linguagem, com a própria 
linguagem? 
Da Crítica, a 0iIica - 33 
Referências bibliog-
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M. de. Pmugal, critica e 
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Lisboa: hnprensa Nacio-
nal. - Casa da Moeda, 
1987. 
SUJEITO E 
IDENTIDADE CULTURAL 
Eneida Maria de Souza 
Quando, nos últimos anos, publica-se na França grande quanti-
dade de textos sobre a questão da alteridade nas Ciências Hmnanas (e cito, 
particulannente, Nous et les autres, de T. Todorov, e Étrangers à nous-mi-
mes, de J. Kristeva) 1, percebe-se que algo de novo anda acontecendo para 
além das fronteiras nacionais. A comemoração do bicentenário da Revo-
lução Francesa e a proximidade da efetiva unificação européia poderiam 
explicar o ressurgimento de tais preocupações, sem mencionar a própria 
situação da Europa (e da França, principalmente), onde á pluralidade racial 
(e étnica) prolifera e atrapalha a "perfeita ordem" das cidades. Espaços, 
portanto, em qUe o espírito colonizador ainda não desapareceu de todo, 
repetindo-se, de forma diferente, na ámeaça existente pela invasão dos 
"bárbaros". Os dois autores acima citados, estrangeiros em Paris, têm 
razão e conhecimento para discorrer sobre a questão da alteridade' ao 
tomarem como base a reflexão francesa sobre o assunto. 
Repensar a alteridade conduz, necessariamente, ao exame do 
problema da identidade, assim como traz implícita uma série de 
associações binárias, ligadas às categorias de razão e instinto, nação 
e indivíduo, universal e particular, e assim por diante. Seguindo esse 
raciocínio, entende-seque a noção de identidade cultural estaria em 
concordância com as transformações sócio-políticas, construindo-se 
ora como efeito, ora como participação simultânea dessas mudanças. 
As manifestações artísticas, por sua vez, entendidas ou como reflexo 
do fato histórico-equívoco difícil de ser sanado-ou como parte 
1. TOOOROV, Tzvetan. 
Nous et les autres: la ré-
flexion française sur la 
diversité humaine. Paris: 
Seuil, 1989. 
KRm'EVA, lJIia. Étran-
gers à rious-mêmes. Pa-
ris: Fayard,1988. 
2 FERRY, Luc e RE-
NAUT, ALain. Pensa-
mento 68: ensaio sobre o 
anti-humanismo con-
temporâneo. S. PauLo: 
Ensaio, 1968. 
Sujeito e Identidade Cultural- 35 
integrante do acontecimento, sempre se apresentaram em posição 
crítica diante das contradições de seu tempo. 
Para o tema de discussão deste ensaio-revolução e identidade 
nacional-proponho-me a examinar alguns tópicos ligados à Teoria 
Literária e à Literatura Comparada, centralizando-me na leitura da 
noção de sujeito, seu lugar no discurso da crítica contemporânea, 
marcado por conotações históricas e contextuais. Essa postura, deve-
dora da revolução do pensamento crítico dos anos 60 nas Ciências 
Humanas, possibilita a abertura para se pensar a identidade cultural, 
tal como ela é interpretada por pesquisadores nacionais e estrangei-
ros. A Literatura Comparada, dentre os vários objetivos a que se 
propõe, incide na relação entre culturas, reacendendo a polêmica da 
dependência cultural como forma de se repensar a própria identidade, 
encarada numa perspectiva que envolve a literatura e outros discursos 
a ela relacionados. Ao sujeito que se expõe como ator na cena enun-
ciati va se justapõe o conceito de identidade cultural construído simul-
taneamente à encenação conjunta da realidade histórico-social e 
literária. 
O reconhecimento de que a revolução cultural, processada 
pelos acontecimentos de maio na França-com sua repercussão em 
outros países, principalmente no Brasil~, contou com a participação, 
mesmo que indireta, dos filósofos, se explica pela reunião da crítica 
ao humanismo com o horizonte histórico, como aftrmava J. Derrida, 
em conferência sobre os "fins do homem" . Na esteira de Freud, Marx 
e Heidegger, Deleuze, Bourdieu, Foucault e Althusser-para citar 
alguns dos mais importantes autores da desconstrução do sujeito 
filosóftco-contribuíram para a instauração de vários postulados, 
segundo teóricos do pensamento de maio de 68: a) o tema do ftm da 
filosofia; b) o paradigma da genealogia; c) a dissolução da idéia de 
verdade; d) a historicizaçãodas categorias e a relativização da refe-
rência ao universal? 
Reproduzindo as idéias defendidas por L. Ferry e A. Renaut, 
no livro Pensamento 68, e reconhecendo aí a presença de um pensa-
mento conservador diante do sujeito, entende-se <tue a crítica ao 
discurso filosóftco realiza-se no interior da própria filosofia. Tal fato 
irá concorrer para a desconstrução do cogito racional, da "morte do 
sujeito" e do apagamento da origem, algumas das mais contundentes 
dissoluções do pensamento moderno. Embora pregando, como Fou-
cault, a prática da análise genealógica nas Ciências Humanas, inver-
tia-se o objeto de estudo ao se desprezar a indagação sobre o conteúdo 
do discwfso, enfocandomals as suas" condições exteri.Óles deptoou-
ção". O desaparecimento do sujeito da "ciência" era, por sua vez, 
. tributário da retomada da posição nietzschiana sobre o conhecimento, 
quando se postula a inexistência de fatos e a presença, apenas, de 
36 -Rev. BImI.lit. Comparada, ~ 1 - 03/91 
interpretações. Em acirrada crítica aos discursos universalistas, es-
pecificamente centrados na razão ordenadora, procurava-se, como 
Foucault, contextualizar historicamente cada particularidade discur-
siva, tendo como princípio o recorte descontínuo, em oposição à 
causalidade positivista das práticas anteriores. A causalidade estru-
tural, substituindo a causalidade factual, inaugura, defmiti vamente, 
o novo campo epistemológico fundado em categorias-mestras da 
Modernidade: o descontínuo, a diferença e a ruptura. 
Some-se a esse panorama desconstrutor a lição da antropologia 
lévi-straussiana, no combate ao etnocentrismo, ao se descobrir o 
""Outro" , selvagem e primitivo, como possuidor do mesmo esquema 
mental do civilizado. Mdda-se o objeto de pesquisa, uma vez que a 
alteridade passa constituir elemento instaurador de diferenças no 
próprio método de análise. Os discursos das Ciências Humanas rece-
bem novo tratamento, e a crítica literária notadamente a dos países 
periféricos, encontra eco para suas inquietações. A gradativa não 
hierarquização dos discursos propiciava, felizmente, o permanente 
mal-estar trazido pelas incertezas da interpretação. 
Toma-se obsoleta a busca do sentido pleno, como obsoleta é 
toda tentativa de captação da totalidade do objeto. Interpretado en-
quanto categoria capaz de instaurar o sentido, o paradoxo rompia com 
o caráter unívoco do objeto, na medida em que a pluralidade inter-
pretativa diluía a idéia de sentido como verdade absoluta. O texto se 
dá a ler pelas brechas e fendas, fissuras e silêncios que a psicanálise 
lacaniana soube muito bem captar, e que J. Derrida transpõe para a 
sua definição de escritura: ausência e presença contínuas do "logos" , 
mutilação do fantasma paterno e território de interditos. 
O sujeito, assim mal instalado, despe-se das roupas metafísicas 
do sujeito cartesiano (e filosófico) e se dissolve na superfície chapada 
da linguagem, na qual toda e qualquer noção de fundamento e prin-
cípio toma-se vazia. Efeito de discurso e da "máquina desejante" do 
sistema (nas palavras de Deleuze e Guattari, no Anti-Édipo), esse 
sujeito se manifesta como diferença e alteridade, e se posiciona como 
ator, na cena enunciativa do discurso social e político . 
. Se a pSicanálise, na produção de conceitos e teorias, recuperou 
a metáfora teatral, notadamente no que se refere ao estatuto do sujeito 
como ator no discurso, a Sociologia política e a História irão também 
se utilizar dessa metáfora para a interpretação dos fatos. A conhecida 
reflexão de Valéry sobre a literatura, vista como a figuração do teatro 
mental, em que se processa a encenação de subjetividades - teoriza-
ção retomada por Luiz Costa Lima em Sociedade e discurso ficcional 
(1986)-, tem como objetivo distinguir o sujeito empírico do ficcio-
nal, pela maior ou menor intensidade de representação e distancia-
mento no discurso. Esse sujeito-ator relaciona-se ao sujeito que se 
3.ARENDT.Hannah. 
Da~. n.d.F.D. 
VIeÜa. São PIuIo: ÁIi-
CII/UNB. 1988. P. 84. 
4. Idem, P. IS. 
Sujeito e Identidade Cultural- 37 
eXibe em público, exercendo um papel e estabelecendo-se a ponte 
entre representação teatral e social. 
Nas palavras de Hannah Arendt, presentes no seu livro Da 
revolução3, era comum o emprego da metáfora orgânica nas descri-
ções e interpretações das revoluções: Marx, por exemplo, fazia refe-
rência "às dores do parto da revolução"; contudo, entre aqueles que 
efetivamente atuaram, a metáfora era retirada da linguagem do tea-
tro. Cria-se a metáfora política, a persona, própria do vocabulário 
teatral, correspondente à máscara dos antigos atores e significando, 
ao mesmo tempo, esconder ou substituir a própria face e expressão 
do ator, de tal forma que fosse possível ouvir sua voz. Explica-se, 
dessa maneira, a diferença entre ~ comum e cidadão; esSe 
último, ao usar a máscara, desempenhava um papel na sociedade. 
Como exemplo d~a prática, Hannah Arendt associa na Revo-
lução Francesa, o retirar "a máscara da hipocrisia" à outra figura, a 
do hipócrita, distinto da persona, por representar o próprio ator. Este, 
não mostrando nada sob a máscara, pelo simples fato de não se utilizar 
dela, finge fi papel que interpreta e, ao entrar no jogo cênico da 
sociedade, o faz sem qualquer idéia de representação teatral. A más-
cara é empregada com a intenção de fraude e não como .. tábua de 
salvação para a verdade". 4 
A título de exemplo, cite-se o filme ligações perigosas. basea-
do na obra homônima de Laclos. Guardando as devidas diferenças 
entre o artifício e o embuste praticados pelo jogo social e a arte, reino 
do artifício, verifica-se, contudo, o elo criado entre o verossímil no 
palco e o verossímil na rua, pela indistinção entre o papel dos atores 
sociais e artísticos. Ao se encenar certo moralismo próprio do século 
XVllI, a hipocrisia tira a máscara e o espectador não cogita sobre 
critérios possíveis de moralidade ou imoralidade encenados. O arti-
fício supera tais categorias, entendendo ser a arte representação astuta 
e amoral do jogo cênico da sociedade. 
Tr3nsportando a metáfora teatral para o final do século XIX e 
início da Modernidade, a situação do sujeito é a de se expor no 
espetáculo da rua e do discurso. Época marcada pela eloqüência das 
mudanças e pelo fantasma do progresso, pelas grandes exposições e 
inaugurações, esse sujeito irá também reaparecer de forma exposta, 
objeto a ser contemplado, desprovido de profundidade intimista ou 
de verdade interior. Nas obras da Modernidade persiste, de igual 
forma, a configuração do sujeito como "hipérbole da vacuidade", 
perdido que está na arquitetura fugidia dos espaços da cidade e de sua 
escrita. O caráter fragmentário e efêmero dos "tempos modernos", 
o crescimento desordenado das cidades, onde se vive sob a ilusão do 
novo e da máquina, a velocidade superando as distâncias e o tempo 
se espacializando, permitem a inserção desse sujeito-persona na pai-
38 -Rev. Bras. Lit. Comparada,n2 1- 03/91 
sagem como peça de uma memória desértica e labiríntica. Robô ou 
manequim, exposto aos olhares públicos, esse personagem incorpo-
ra-se ao teatro da cidade e se reflete nas maquinarias desejantes do 
discurso. 
A crítica literária, seguindo o passo das manifestações artísti-
cas e das transformações processadas no interior das Ciências Huma-
nas, realiza a passagem do sujeito "máquina mental" do 
estruturalismo para o "sujeito vigilante" e em espetáculo, da fase 
mais atual, segundo afirmações de Luiz Costa Lima. O veto ao sujeito 
respondia à necessidade de "suspensão do juízo" em favor da neu-
tralidade interpretativa, isolando-se, para tal, as questões relativas à 
própria construção da análise. Ao colocar a produção artística em 
posição de maior importância do que a recepção recalcava-se a figura 
do sujeito-leitor como co-criador do saber enunciativo.s . S.Emvezdeumsujeito, 
pura e transparente má-
Afirmar, contudo, que a história, a subjetividade e o indivíduo quina mental, passei 
estiveram ausentes das pesquisas

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