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229 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA A declaraçªo de Camphausen na sessªo de 30 de maio (NGR, no 3, 3/6/1848) Post et non propter,2 ou seja, o sr. Camphausen tornou-se primeiro-minis- tro3 nªo atravØs da Revoluçªo de Mar- ço, mas sim depois da Revoluçªo de Março. O significado desta posteriori- dade de seu ministØrio foi revelado pe- lo sr. Camphausen de maneira solene e transcendente, com aquela, por as- sim dizer, grave corporeidade que ocul- ta as carŒncias da alma,4 a 30 de maio de 1848 à AssemblØia de Berlim, resul- tante do acordo entre ele e os eleitores indiretos.5 O ministØrio formado a 29 de mar- ço, diz o pensador amigo da história,6 A Nova Gazeta Renana KARL MARX1 1. Artigos recolhidos e traduzidos por Lívia Contrim (e-mail: lcotrim@aol.com). 2. Depois e nªo atravØs. 3. O ministØrio Camphausen substituiu, em 29 de março de 1848, o governo do conde Arnim- Boitzenburg, formado em 19 de março de 1848. O primeiro-ministro do novo governo era o banquei- ro renano Ludolf Camphausen (1803-1890), pre- sidente da Câmara de ComØrcio de Colônia, um dos líderes da burguesia liberal renana, membro, em 1847, da Dieta Unificada; o ministro das Fi- nanças era David Justus Hansemann (1790-1864), um dos representantes da grande burguesia renana, que, na primeira Dieta Unificada, de 1847, se apresentara como líder da oposiçªo liberal e, em 1848, se elegera deputado à AssemblØia Na- cional Prussiana. Esse governo via como sua tare- fa a mediaçªo entre a grande burguesia e a Coroa. 4. Do romance de Laurence Sterne, The Life and opinions of Tristram Shandy, Gentleman (A vida e as opiniıes de Tristram Shandy), vol. 1, capítulo 11. 5. A AssemblØia Nacional Prussiana foi convocada no dia 22 de maio de 1848 para entender-se com a Coroa sobre uma Constituiçªo. Apesar da lei eleitoral de 8 de abril de 1848, que previa o sufrÆ- gio universal, a AssemblØia foi eleita pela via indi- reta. A maioria dos deputados era representante da burguesia e dos burocratas prussianos. 6. Designaçªo irônica de Marx e Engels para Camphausen, aludindo ao subtítulo da obra en- tªo muito conhecida História geral do início do co- nhecimento histórico atØ nossa Øpoca. Elaborado por Karl Von Rotteck para os pensadores amigos da histó- ria, Freiburg im Breisgau, 1834. MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 230 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 reuniu-se logo depois de um aconte- cimento cujo significado nªo desconhe- cia nem desconhece.7 A afirmaçªo do sr. Camphausen, de que nªo formara o ministØrio antes do 29 de março, comprova-se nos nœme- ros dos œltimos meses da Gazeta do Es- tado Prussiana.8 E pode-se seguramente supor que uma data tenha grande sig- nificado, especialmente para o sr. Camphausen, quando constitui ao me- nos o ponto de partida cronológico de sua ascensªo. Que tranqüilidade para os combatentes mortos nas barricadas que seus frios cadÆveres figurem como marcos, como indicadores apontados para o ministØrio de 29 de março! Quelle gloire!9 Numa palavra: depois da Revolu- çªo de Março, formou-se um ministØ- rio Camphausen. Este mesmo ministØ- rio Camphausen reconhece o grande significado da Revoluçªo de Março; ao menos, nªo o desconhece. A revo- luçªo mesma Ø bagatela, mas seu signi- ficado! Ela significa, justamente, o mi- nistØrio Camphausen, ao menos post festum. Este acontecimento a forma- çªo do ministØrio Camphausen ou a Re- voluçªo de Março? Ø uma das cau- sas mais essenciais que contribuem para a transformaçªo de nossa constituiçªo política interna. Isto deve significar que a Revolu- çªo de Março Ø uma causa essencial, que contribui para a formaçªo do mi- nistØrio de 29 de março, ou seja, para o ministØrio Camphausen. Ou isto deve- ria meramente significar: a revoluçªo prussiana de março revolucionou a Prœssia? Em todo caso, uma tªo solene tautologia Ø presumível num pensa- dor amigo da história. Encontramo-nos no umbral da mesma (a saber, da transformaçªo de nossas relaçıes políticas internas), e o caminho diante de nós Ø longo, o go- verno o reconhece. Numa palavra: o ministØrio Camphausen reconhece que tem ainda um longo caminho diante de si, isto Ø, promete-se uma longa duraçªo. Breve Ø a arte, isto Ø, a revoluçªo, e longa a vida,10 isto Ø, o ministØrio que a suce- deu. E, ainda por cima, ele próprio o reconhece. Ou interpreta-se de outra maneira as palavras de Camphausen? Certamente nªo pretenderemos do pensador amigo da história a trivial ex- plicaçªo de que os povos que se encon- tram no umbral de uma nova Øpoca histórica, no umbral estªo, e que o ca- 7. Em seus artigos sobre os debates na Assem- blØia Nacional prussiana (AssemblØia Ententista), Marx e Engels utilizaram as Notas estenogrÆficas sobre os debates da AssemblØia convocada para fazer um acordo sobre a Constituiçªo Prussiana, suplemento do DiÆrio Oficial Prussiano, vol. 1-3, Berlim, 1848, publicadas mais tarde como ediçªo avulsa sob o título Debates da AssemblØia Constituin- te da Prœssia de 1848, vol. 1-8, Berlim, 1848. 8. Gazeta Geral do Estado Prussiana fundada em Berlim em 1819, de 1819 atØ abril de 1848 o órgªo semi-oficial do governo prussiano; de maio de 1848 atØ julho de 1851 foi publicada sob o título de DiÆrio Oficial Prussiano como órgªo oficial do governo prussiano. 9 . Que glória! 10. Citaçªo modificada do Fausto, de Goethe, Pri- meira Parte, Noite; ali se diz: Longa Ø a arte, e curta nossa vida. 231 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA minho que cada Øpoca tem diante de si seja tªo longo quanto o futuro. Tal Ø a primeira parte do laborio- so, grave, formal, sólido e fino discur- so do primeiro-ministro Camphausen. Resume-se em trŒs frases: Depois da Revoluçªo de Março, o ministØrio Cam- phausen. Grande significado do minis- tØrio Camphausen. Longo caminho diante do ministØrio Camphausen! Agora, a segunda parte. Mas, de maneira alguma compre- endemos a situaçªo assim, explica dou- toralmente o sr. Camphausen, como se tivesse se produzido, atravØs desse acontecimento (a Revoluçªo de Mar- ço) uma completa reviravolta, como se toda a constituiçªo de nosso Estado tivesse sido derrubada, como se todo o existente tivesse cessado de existir juridicamente, como se todas as situa- çıes precisassem ser de novo juridica- mente fundadas. Ao contrÆrio. No momento de sua reuniªo, o ministØrio concordou em considerar como uma questªo vital que a Dieta Unificada11 antes convocada se reunisse efetiva- mente, apesar das petiçıes em contrÆ- rio recebidas, e que se passasse à nova Constituiçªo a partir da Constituiçªo existente, com os meios legais que ela oferecia, sem cortar o laço que liga o velho ao novo. Este caminho incon- testavelmente certo foi seguido, a lei eleitoral foi submetida à Dieta Unificada e, com sua aprovaçªo, foi promulgada. Mais tarde, procurou-se induzir o governo a modificar a lei de moto próprio, especialmente a conver- ter o sistema eleitoral indireto no di- reto. O governo nªo cedeu a isto. O governo nªo exerceu nenhuma dita- dura; nªo pôde exercŒ-la, nªo quis exercŒ-la. A lei eleitoral foi aplicada de fato tal como existia de direito. Sobre a base desta lei eleitoral foram eleitos os eleitores e os deputados. Sobre a base desta lei eleitoral, os se- nhores estªo aqui, com plenos pode- res para entender-se com a Coroa so- bre uma Constituiçªo que, esperamos, seja durÆvel para o futuro. Um reino por uma doutrina!12 Uma doutrina por um reino! Primeiro vem o acontecimento, título envergonhado da revoluçªo. De- pois vem a doutrina e logra o aconte- cimento. O acontecimento ilegal faz do sr. Camphausen um primeiro-ministro res- ponsÆvel, uma figura que nªo tinha ne- nhum lugar, nenhum sentido no pas- sado, na Constituiçªo entªo existente.AtravØs de um salto mortale, saltamos por sobre o velho e encontramos, por sorte, um ministro responsÆvel; mas o ministro responsÆvel encontra, por mais sorte ainda, uma doutrina. Com o primeiro sopro de vida de um pri- meiro-ministro responsÆvel, a monar- quia absoluta morrera, decompusera- se. Entre suas vítimas, encontrava-se na primeira fileira a defunta Dieta 11. Era composta, mais ou menos, como a Assem- blØia dos NotÆveis da França às vØsperas de 1789, na qual estavam representadas as trŒs ordens (no- breza, clero e terceiro Estado). 12. Citaçªo modificada de Rei Ricardo III, de Shakespeare, Ato 5, cena 4; ali se diz: Um cava- lo, um cavalo! Meu reino por um cavalo!. MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 232 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 Unificada, esta repugnante mistura de delírio gótico com mentira moderna.13 A Dieta Unificada era a fiel ama- da, a besta de carga da monarquia absoluta. Assim como a repœblica ale- mª só pode festejar seu advento sobre o cadÆver do sr. Venedey,14 o ministØ- rio responsÆvel só pode festejar o seu sobre o cadÆver da fiel amada. O mi- nistro responsÆvel procura agora o ca- dÆver esquecido ou evoca o espectro da fiel amada Unificada, o qual efe- tivamente aparece, mas, desgraçada- mente, cambaleando suspenso no ar, executando as mais extravagantes ca- briolas, jÆ que nªo encontra mais ne- nhum terreno sob seus pØs, pois o an- tigo terreno do direito e da confiança fora tragado pelo terremoto do acon- tecimento. O mestre feiticeiro comu- nica ao espectro que o chamara para liquidar seu legado e poder portar-se como seu leal herdeiro. O espectro nªo poderia jamais apreciar suficientemen- te este obsequioso comportamento, pois na vida comum nªo se permite que os mortos firmem testamento postu- mamente. Sumamente lisonjeado, o espec- tro aquiesce como um pagode a tudo o que o feiticeiro ordena, faz uma reverŒn- cia à saída e desaparece. A lei da eleiçªo indireta15 Ø seu testamento póstumo. O embuste doutrinÆrio atravØs do qual o sr. Camphausen, a par- tir da Constituiçªo existente, pas- sou, com os meios legais que ela oferecia, à nova Constituiçªo efe- tuou-se da seguinte maneira: Um acontecimento ilegal faz do sr. Camphausen um primeiro-ministro res- ponsÆvel, um ministro constitucional uma pessoa ilegal no sentido da ve- lha Constituiçªo existente. O minis- tro constitucional faz, de modo ilegal, da inconstitucional, estamental fiel amada Unificada uma AssemblØia constituinte. A fiel amada Unificada faz, de modo ilegal, a lei da eleiçªo in- direta. A lei da eleiçªo indireta faz a Câmara de Berlim, e a Câmara de Berlim faz a Constituiçªo, e a Consti- tuiçªo faz todas as Câmaras seguintes para todo o sempre. Assim, o ganso torna-se ovo e o ovo, ganso. Mas, no grasnido salvador do Capitólio16 o povo reconhecerÆ, bre- ve, que os ovos dourados de Leda, que pôs na revoluçªo, foram surrupiados. O próprio deputado Milde17 nªo pare- 13. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap. XVII. 14. Venedey, Jacob (1805-1871): historiador e publicista de Colônia. Em 1848, foi membro do Parlamento Preparatório e da AssemblØia Nacio- nal de Frankfurt (centro-esquerda). 15. A lei eleitoral para a AssemblØia convocada para se entender sobre a Constituiçªo prussiana foi aprovada, por proposta do ministØrio Camphausen, em 8 de abril de 1848 pela segunda Dieta Unificada e baseava-se no sistema de elei- çªo indireta em duas etapas. 16. No ano 390 a.C., os gauleses ocuparam a cidade de Roma, com exceçªo do Capitólio, cujos defensores, segundo a tradiçªo, quando de um ataque-surpresa noturno dos inimigos, foram acordados a tempo pelo grasnido dos gansos do templo de Juno. 17. MILDE, Karl August (1805-1861): industrial tŒx- til (algodªo) em Breslau, membro da Dieta Unificada. De 26 de maio a 26 de junho, presidente da Assem- blØia Nacional de Berlim, onde pertencia à direita. De 25 de junho a 21 de setembro, foi ministro do ComØr- cio, no gabinete Auerswald-Hansemann. 233 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA ce ser o filho de Leda, o Castor que resplandece ao longe.18 O MinistØrio Camphausen (NGR, n” 4, 4/6/1848) É sabido que a AssemblØia Nacio- nal francesa de 1789 foi precedida de uma AssemblØia de NotÆveis, uma as- semblØia de composiçªo estamental como a Dieta Unificada prussiana. No decreto pelo qual convocava a Assem- blØia Nacional, o ministro Necker se referia ao desejo, expresso pelos notÆ- veis, de convocar os Estados Gerais. O ministro Necker teve uma vantagem significativa sobre o ministro Camphausen. Ele nªo precisou esperar a Tomada da Bastilha e a queda da monarquia absoluta para ulteriormen- te atar, com uma doutrina, o velho ao novo, a fim de laboriosamente manter a aparŒncia de que a França chegara à nova AssemblØia Constituinte atravØs dos meios legais da antiga Constitui- çªo. Teve ainda outra vantagem. Era ministro da França, e nªo da AlsÆcia- Lorena, ao passo que o sr. Camphausen nªo Ø ministro da Alemanha, mas da Prœssia. E com todas estas vantagens, o ministro Necker nªo conseguiu trans- formar um movimento revolucionÆrio numa tranqüila reforma. As grandes doenças nªo se curam com essŒncia de rosas.19 O sr. Camphausen conseguirÆ menos ainda mudar o carÆter do mo- vimento por meio de uma teoria arti- ficial, que traça uma ligaçªo entre seu ministØrio e as antigas condiçıes da monarquia prussiana. A Revoluçªo de Março, o movimento revolucionÆrio alemªo em geral, nªo se deixam trans- formar, mediante um artifício qual- quer, em incidentes mais ou menos importantes. Luís Felipe foi escolhido rei de França porque era Bourbon? Foi escolhido apesar de ser Bourbon? Lem- bramos que essa questªo dividiu os partidos logo depois da Revoluçªo de Julho.20 O que demonstrava esta ques- tªo? Que a revoluçªo fora posta em questªo, que o interesse da revoluçªo nªo era o interesse da classe que che- gara ao poder e de seus representan- tes políticos. A declaraçªo do sr. Camphausen, de que seu ministØrio veio ao mundo nªo atravØs da Revoluçªo de Março, senªo depois da Revoluçªo de Março, tem esse mesmo significado. 18. De acordo com o mito grego, os filhos da sobe- rana espartana Leda e de Zeus saíram de um ovo. Castor, o filho de Leda, foi uma figura heróica da GrØcia antiga. A mesma designaçªo tem uma es- trela da constelaçªo de GŒmeos. 19. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap. XXXI. 20. Quando, alguns dias antes do início da Mo- narquia de Julho, foi ponderada a questªo de se o novo rei devia adotar o nome de Felipe VII, Dupin o Velho (1783-1865) declarou que o duque de OrlØans fora chamado ao trono nªo porque, mas apesar de ser um Bourbon. MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 234 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 Queda do ministØrio Camphausen 21 (NGR, 23/6/1848) Tªo belo brilha ainda o sol, Um dia hÆ de se pôr,22 e tambØm o sol de 30 de março,23 tinto do sangue ardente dos poloneses, se pôs. O ministØrio Camphausen vestira a contra-revoluçªo com sua roupagem liberal-burguesa. A contra-revoluçªo sente-se suficientemente forte para li- vrar-se da incômoda mÆscara. Um insustentÆvel ministØrio qual- quer, de centro-esquerda, pode possi- velmente suceder por alguns dias o ministØrio de 30 de março. Seu verda- deiro sucessor Ø o ministØrio do prín- cipe da Prœssia. Cabe a Camphausen a honra de ter dado ao partido absolu- tista feudal esse seu chefe natural e, a si próprio, seu sucessor. Para que mimar ainda por mais tem- po os tutores burgueses? Nªo estªo os russos na fronteira oriental e as tropas prussianas na oci- dental? Os poloneses nªo foram con- quistados para a propaganda russa pelo obus e pela pedra infernal? Nªo foram tomadas todas as provi- dŒncias para repetir o bombardeio de Pra- ga em quase todas as cidadesrenanas? Na guerra polonesa, na dinamar- quesa, nos inœmeros pequenos confli- tos entre a tropa e o povo, o exØrcito nªo teve todo o tempo para se trans- formar numa soldadesca brutal? A burguesia nªo estÆ farta da re- voluçªo? E nªo se eleva no meio do mar o rochedo sobre o qual a contra- revoluçªo construirÆ sua igreja, a In- glaterra? O ministØrio Camphausen procura apanhar ainda alguns centavos de po- pularidade, provocar a compaixªo pœ- blica pela garantia de que se retira en dupe24 da cena do Estado. E, segura- mente, Ø um enganador enganado. A serviço da grande burguesia, teve de procurar privar a revoluçªo de seus frutos democrÆticos; em luta contra a democracia, teve de se aliar ao partido aristocrÆtico e tornar-se o instrumento de seus apetites contra-revolucionÆrios. Este estÆ suficientemente fortalecido para poder desembaraçar-se de seu protetor. O senhor Camphausen se- meou a reaçªo no sentido da grande burguesia, e colheu-a no sentido do partido feudal. Tal era a boa intençªo do homem, tal seu triste destino. Um centavo de popularidade25 para o ho- mem desiludido. 21. Depois do ataque ao arsenal, em 17 de junho de 1848, renunciaram os ministros Von Kanitz, conde Schwerin e barªo Von Arnim, e em 20 de junho todo o ministØrio Camphausen. A Nova Ga- zeta Renana viu nessa queda de Camphausen a indi- caçªo de que a grande burguesia pensava em pas- sar do período de traiçªo passiva do povo à Co- roa ao período da subjugaçªo ativa do povo sob seu domínio em aliança com a Coroa. 22. Ferdinand Raimund, A moça do mundo das fa- das ou O camponŒs como milionÆrio, Ato 11, cena 6. 23. Em 30 de março de 1848 iniciou suas ativida- des o ministØrio Camphausen, formado no dia anterior, e em cujo período de governo ocorreu a repressªo sangrenta da insurreiçªo na Posnânia. 24. Argutamente. 25. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap. XXIV. 235 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA Um centavo de popularidade! Tªo belo brilha ainda o sol, Um dia hÆ de se pôr. Mas no oriente ele renascerÆ. O MinistØrio de Açªo (NGR, n” 39, 9/7/1848) Temos uma nova crise ministerial. O ministØrio Camphausen foi derruba- do, o ministØrio Hansemann desabou. O MinistØrio de Açªo26 teve uma dura- çªo de oito dias, apesar de todas as me- zinhas caseiras, emplastros, processos contra a imprensa, prisıes, apesar do atrevimento petulante com que a bu- rocracia reergueu a cabeça de atas empoeiradas e tramou uma vingança mesquinha e brutal por seu destrona- mento. O MinistØrio de Açªo, resu- mo da pura mediocridade, estava ain- da, no início da œltima sessªo da As- semblØia Ententista,27 suficientemente confuso para acreditar em sua inabalabilidade. No final da sessªo28 estava total- mente destroçado. Esta transcendente sessªo deu ao primeiro-ministro, von Auerswald, a convicçªo de que devia apresentar sua demissªo; tambØm o mi- nistro von Schreckenstein nªo queria permanecer por mais tempo moço de recados de Hansemann, e assim ontem o ministØrio inteiro se dirigiu ao rei em Sanssouci. O que foi acertado lÆ ficare- mos sabendo atØ amanhª. Nosso correspondente berlinense afirma em um pós-escrito: Acaba de propagar-se o boato de que Vincke, Pinder, Mevissen29 foram convidados urgentemente para ajudar a compor um novo ministØrio. 26. Ao governo Camphausen seguiu-se, na Prœssia, de 26 de junho a 21 de setembro de 1848, o governo Auerswald-Hansemann, o assim chama- do MinistØrio de Açªo. Auerswald era o pri- meiro-ministro desse ministØrio, e Hansemann, a verdadeira cabeça do gabinete, continuou sendo, como sob Camphausen, ministro das Finanças. 27. Valemo-nos, aqui, da soluçªo encontrada pe- los tradutores de A burguesia e a contra-revoluçªo (Sªo Paulo, Ensaio, 1989) para o termo Vereinbarungsversammlung (N. da T.). 28. Ao tØrmino da sessªo de 4 de julho de 1848, na qual se debateu novamente sobre a Comissªo para a Investigaçªo dos Acontecimentos na Posnânia, a AssemblØia Nacional Prussiana deci- diu conceder plenos poderes àquela comissªo. Tomar essa decisªo significava uma derrota para o ministØrio Auerswald-Hansemann. Os represen- tantes da ala direita procuraram, entªo, contra as regras parlamentares, impor uma nova votaçªo, e justamente sobre a proposta jÆ rejeitada com a primeira decisªo, a de limitar os plenos poderes da comissªo. Em sinal de protesto, os deputados da ala esquerda deixaram a sala de sessıes. A direita aproveitou-se disso e aprovou a proposta de negar à comissªo o direito de ir à Posnânia e interrogar testemunhas e especialistas no próprio local. Com isso, a decisªo original da AssemblØia foi ilegalmente anulada. 29. Vincke, Georg Freiherr Von (1811-1875): polí- tico liberal prussiano; em 1848, um dos líderes da ala direita da AssemblØia Nacional de Frankfurt; mais tarde, ex-liberal. Pinder: funcionÆrio pœblico prussiano, liberal mode- rado; em 1848, chefe de administraçªo da SilØsia, de- putado à AssemblØia Nacional Prussiana (direita) e membro da AssemblØia Nacional de Frankfurt. Mevissen, Gustav Von (1815-1899): banqueiro em Colônia, um dos líderes da burguesia liberal renana; em 1848 foi membro da AssemblØia Nacio- nal de Frankfurt (centro-direita). MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 236 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 Se o boato se confirmar teremos chegado, pois, finalmente, de um mi- nistØrio de mediaçªo, atravØs do Mi- nistØrio de Açªo, a um ministØrio da contra-revoluçªo. Finalmente! O curtís- simo tempo de vida desta contra-re- voluçªo ministerial seria suficiente para mostrar ao povo, em todo seu tama- nho natural, o anªo que, ao menor ven- to de reaçªo, ergue novamente a cabecinha. A crise ministerial (NGR, n” 40, 10/7/1848) O ministØrio Hansemann protelou por alguns dias, com grande teimosia, sua dissoluçªo. O ministro das Finan- ças em particular parece patriótico de- mais para querer entregar a mªos inÆ- beis a administraçªo do Tesouro pœ- blico. Falando parlamentarmente, o mi- nistØrio estÆ liquidado, e no entanto ainda existe de fato. Em Sanssouci pa- rece ter sido deliberada a tentativa de prolongar sua vida. A própria Assem- blØia Ententista que, num momento, estÆ prestes a dar no ministØrio o gol- pe mortal, no momento seguinte estre- mece de novo de medo, assusta-se com seus próprios desejos, e a maioria pa- rece pressentir que, se o ministØrio Hansemann ainda nªo Ø o ministØrio de seu coraçªo, um ministØrio de seu coraçªo Ø ao mesmo tempo um minis- tØrio da crise e da decisªo. Daí suas debilidades, suas inconseqüŒncias, suas invectivas petulantes, que se trans- formam repentinamente em arrepen- dimento. E o MinistØrio de Açªo acei- ta, com imperturbÆvel e quase cínica serenidade, uma tal vida emprestada, posta em questªo a cada momento, hu- milhada, alimentada pela esmola dos fracos. Duchâtel! Duchâtel! O inevitÆvel naufrÆgio desse ministØrio, apenas adiado penosamente por alguns dias, serÆ tªo inglório quanto sua existŒn- cia. Em nosso nœmero de hoje, traze- mos aos leitores um artigo mais longo de nosso correspondente em Berlim em que Ø avaliada essa existŒncia. Po- demos descrever em uma palavra a sessªo ententista de 7 de julho. A As- semblØia troça do ministØrio Hansemann, dÆ-se o prazer de derrotÆ-lo a meias, humilha-o meio sorridente, meio rancorosamente, mas na despedida a alta assemblØia grita- lhe: Nªo leve a mal! e o estóico triunvirato Hansemann-Kühlwetter- Milde murmura de volta: Pas si bŒte! Pas si bŒte!30 Projeto de lei sobre a regovaçªo dos encargos feudais 31 (NGR, n” 60, 30/7/1848) Se alguma vez um renano pôde es- quecer o que deve à dominaçªo es- trangeira, à opressªo do tirano 30. Nªo [somos] tªo tolos! 31. O Projeto de Lei sobre a Revogaçªo sem In- denizaçªo de diversos encargos e tributos feu- dais foi enviado à AssemblØia Nacional Prussiana em10 de julho de 1848; seus motivos foram ex- postos na sessªo de 18 de julho de 1848. 237 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA corso,32 que leia o projeto de lei so- bre a revogaçªo sem indenizaçªo dos diferentes encargos e tributos que o senhor Hansemann, no ano da graça de 1848, envia à consideraçªo de seus ententistas. Suserania, juros alodiais, falecimento, direito de mªo morta, mortalha, direito de proteçªo, direito de justiça, tributo de trŒs coi- sas, tributo de criaçªo, tributo do selo, tributo do gado, dízimo sobre as abe- lhas etc. quªo estranhos, quªo bÆr- baros soam estes nomes absurdos a nossos ouvidos civilizados pela des- truiçªo franco-revolucionÆria do feu- dalismo, atravØs do Code NapolØon!33 Quªo incompreensível nos Ø toda esta miscelânea de prestaçıes e tributos medievais, este gabinete de história natural das velharias carcomidas da Øpoca antediluviana! E contudo, patriota alemªo, descal- ça-te, pois pisas um solo sagrado! Es- tas barbaridades sªo os escombros da glória germano-cristª, sªo os œltimos elos de uma corrente que perpassa a história e te une à grandeza de teus pais, remontando às florestas teutôni- cas! Este ar confinado, este lodo feu- dal, reencontrados aqui em sua clÆssi- ca pureza, sªo os produtos mais origi- nais de nossa pÆtria e aquele que for um verdadeiro alemªo deve exclamar com o poeta: É este sim o ar de minha pÆtria! Minha face ardente o sentiu! E este barro dos grandes caminhos, É a crosta de minha pÆtria!34 Percorrendo este projeto de lei, pa- rece à primeira vista que nosso minis- tro da Agricultura, sr. Gierke,35 sob as ordens do sr. Hansemann, faz um gran- de gesto audacioso,36 que suprime de uma só penada a Idade MØdia inteira, e tudo grÆtis, Ø claro! Se, em contrapartida, examinamos os Considerandos do projeto, vemos que iniciam demonstrando que, na realidade, nenhuma obrigaçªo feudal pode ser abolida sem indenizaçªo portanto, com uma afirmaçªo audacio- sa, em contradiçªo direta com o ges- to audacioso. Entre estas duas audÆcias, a timi- dez prÆtica do sr. ministro manobra com prudŒncia e precauçªo. À esquer- da o bem pœblico e as exigŒncias do espírito do tempo, à direita os direi- tos bem adquiridos dos proprietÆrios senhoriais, ao centro o louvÆvel pen- samento de um desenvolvimento mais livre da vida rural, encarnado no pudico embaraço do sr. Gierke que conjunto! 32. Na Renânia, onde a influŒncia da Revoluçªo Francesa era muito forte, as relaçıes feudais fo- ram suprimidas durante o domínio de Napoleªo I e nªo foram restabelecidas depois de 1815. No restante da Prœssia, ao contrÆrio, foram conserva- das, no essencial, atØ 1848. 33. Código Napoleônico. 34. HEINE, Alemanha. Um conto de inverno, cap. VIII. 35. Gierke: liberal; em 1848 foi deputado à As- semblØia Nacional prussiana (centro-esquerda), ministro da Agricultura da Prœssia de março a setembro de 1848. 36. A expressªo um gesto audacioso fora utili- zada originariamente nos debates da AssemblØia Nacional de Frankfurt pelo deputado Mathy e pelo presidente Gagern, e rapidamente se tornou popular. MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 238 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 Basta. O sr. Gierke reconhece ple- namente que os encargos feudais em geral só podem ser abolidos mediante uma indenizaçªo. Assim, os encargos mais pesados, os mais disseminados, os mais essenciais subsistem, ou, onde jÆ foram suprimidos de fato pelos cam- poneses, serªo restabelecidos. Mas, observa o sr. Gierke, se, nªo obstante, relaçıes particulares cujo fun- damento intrínseco for insuficiente, ou cuja continuidade for incompatível com as exigŒncias do espírito do tempo e do bem pœblico, forem revogadas sem indenizaçªo, que os atingidos saibam reconhecer que fazem alguns sacrifícios nªo somente em prol da prosperidade geral como tambØm em prol de seus próprios interesses bem-compreendi- dos, a fim de que as relaçıes entre os que tŒm direitos e os que tŒm deveres resultem pacíficas e cordiais, e sobre- tudo para preservar à propriedade fundiÆria sua posiçªo no Estado, con- veniente ao bem de todos. A revoluçªo no campo consistia na aboliçªo efetiva de todos os encargos feudais. O MinistØrio de Açªo, que re- conhece a revoluçªo, reconhece-a no campo aniquilando-a sub-repticiamen- te. Restaurar completamente o antigo status quo Ø impossível; os campone- ses assassinariam imediatamente seus senhores feudais, como o próprio sr. Gierke reconhece. Portanto, revoga-se uma pomposa lista de encargos feudais insignificantes e pouco disseminados, e restabelece-se a principal obrigaçªo feudal, que se resume na simples pala- vra corvØia. Com a aboliçªo de todos estes di- reitos a nobreza nªo sacrifica nem 50 mil tÆleres por ano e salva vÆrios mi- lhıes. E ainda, espera o ministro, tam- bØm se reconciliarÆ com os campone- ses, e no futuro, quando das eleiçıes para a Câmara, obterÆ inclusive seus votos. De fato, o negócio seria bom, se o sr. Gierke nªo cometesse erros de cÆlculo! Desse modo, as objeçıes dos cam- poneses seriam afastadas, bem como as da nobreza, na medida em que ava- liasse corretamente sua situaçªo. Resta ainda a Câmara, os escrœpulos de chica- neiros jurídicos e radicais. A diferença entre os encargos que podem e os que nªo podem ser abolidos que nªo Ø outra senªo a existente entre os encar- gos completamente sem valor e os mui- to valiosos deve, por amor da Câ- mara, receber uma aparŒncia de fun- damentaçªo jurídica e econômica. O sr. Gierke tem de mostrar que os encar- gos a abolir: 1. tŒm um fundamento intrínseco insuficiente, 2. estªo em con- tradiçªo com o bem pœblico, 3. com as exigŒncias do espírito do tempo e 4. que sua revogaçªo, no fundo, nªo Ø uma violaçªo do direito de propriedade, nªo Ø uma expropriaçªo sem indeniza- çªo. Para demonstrar a insuficiente fun- damentaçªo destes tributos e presta- çıes, o sr. Gierke mergulha nas regiıes mais sombrias do direito feudal. Todo o desenvolvimento, inicialmente mui- to lento, dos estados alemªes desde um milŒnio Ø evocado por ele. Mas em que isto ajuda o sr. Gierke? Quanto mais se aprofunda, quanto mais revolve o lodo bolorento do direito feudal, tanto mais 239 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA este lhe demonstra uma fundamenta- çªo nªo insuficiente, mas muito sólida, do ponto de vista feudal, dos encargos em questªo; o infeliz ministro nªo faz senªo expor-se à hilaridade geral quan- do se esfalfa para extrair, do direito feu- dal, orÆculos de direito civil moderno, e para fazer pensar e julgar o barªo feu- dal do sØculo XII como o burguŒs do sØculo XIX. O sr. Gierke herdou, felizmente, o princípio do sr. Von Patow: abolir sem indenizaçªo tudo o que seja emanaçªo da suserania e da servidªo, mas todo o restante apenas sob resgate. Mas aca- so o sr. Gierke acha necessÆria grande dose de sagacidade para demonstrar que os encargos a serem abolidos sªo tambØm, em geral, emanaçıes da suse- rania feudal? Nªo Ø preciso acrescentar que o sr. Gierke, para ser conseqüente, introduz clandestinamente conceitos jurídicos modernos entre as disposiçıes jurídi- cas feudais; e, em caso de extrema ne- cessidade, Ø sempre a estes conceitos que apela. Mas, se o sr. Gierke mede alguns destes encargos segundo as fi- guras do direito moderno, Ø incompre- ensível por que nªo faz o mesmo com todos. Mas nesse caso, certamente, as corvØias passariam por maus bocados diante da liberdade do indivíduo e da propriedade. Mas o sr. Gierke alcança resultados ainda piores com suas diferenciaçıes quando invoca o argumento do bem pœblico e as exigŒncias do espírito do tempo. Entretanto, Ø evidente por si mesmo: se estes encargos insignifican- tes sªo um obstÆculo ao bem pœblico e contradizem as exigŒncias do espíritodo tempo, tanto mais o serªo as corvØias, prestaçıes, direitos de con- cessªo etc. Ou o sr. Gierke considera extemporâneo o direito de depenar os gansos dos camponeses (§ 1, n” 14), mas contemporâneo o direito de depenar os próprios camponeses? Segue-se a demonstraçªo de que a revogaçªo em causa nªo viola o direi- to de propriedade. Naturalmente, a prova desta gritante falsidade tem de ser fictícia, e, com efeito, só pode ser apresentada demonstrando-se à no- breza que estes direitos sªo desprovi- dos de valor para ela, o que só apro- ximadamente pode ser demonstrado. O sr. Gierke faz entªo, com o maior zelo, o cômputo de todas as dezoito seçıes do primeiro parÆgrafo, sem perceber que, na mesma medida em que consegue demonstrar o desvalor dos encargos em questªo, prova tam- bØm o desvalor de seu projeto de lei. Bravo sr. Gierke! Quanto nos custa arrancÆ-lo de sua doce ilusªo e ani- quilar seu diagrama arquimØdico-feu- dal! Mas ainda hÆ uma dificuldade! Quando do anterior resgate dos en- cargos que agora devem ser abolidos, e como em todo resgate, os campone- ses foram terrivelmente prejudicados, em benefício da nobreza, por comis- sıes corruptas. Eles reclamam agora a revisªo de todos os contratos de res- gate firmados sob o antigo governo, e tŒm toda razªo! Mas o sr. Gierke nªo pode admiti- lo. A isto se opıem direitos e leis for- mais, que se opıem sobretudo a todo MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 240 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 progresso, jÆ que cada nova lei revoga uma antiga e um velho direito formal. As conseqüŒncias disto sªo segu- ramente previsíveis: proporcionar van- tagens aos submissos por uma via con- trÆria aos princípios jurídicos de to- dos os tempos (revoluçıes tambØm contradizem os princípios jurídicos de todos os tempos) traria incalculÆveis calamidades a uma enorme parcela dos proprietÆrios fundiÆrios do Esta- do, e portanto (!) ao próprio Estado! E entªo o sr. Gierke demonstra, com uma seriedade comovente, que um tal procedimento pıe em ques- tªo e abala toda a situaçªo jurídica da propriedade fundiÆria, o que, ligado com os inœmeros processos e custos,37 infligiria à propriedade fundiÆria, fun- damento essencial da prosperidade da naçªo, uma ferida da qual ela dificil- mente se recuperaria; que Ø um aten- tado aos princípios jurídicos da vali- dade dos contratos, um ataque contra as relaçıes contratuais indiscutíveis, em conseqüŒncia do qual toda a con- fiança na estabilidade do direito civil seria abalada e, assim, todas as rela- çıes comerciais seriam, ameaçadora- mente, postas em perigo!!! Portanto, o sr. Gierke vŒ aqui um atentado ao direito de propriedade que abalaria todos os princípios jurídicos. E por que a aboliçªo sem indenizaçªo dos encargos em questªo nªo Ø um atentado? Aqui se trata nªo somente de relaçıes contratuais indiscutíveis, como de um direito incontestÆvel, irrecusavelmente aplicado desde um tempo imemorial, enquanto os contra- tos questionados no pedido de revi- sªo nªo sªo de modo algum incontes- tÆveis, jÆ que os subornos e os abusos sªo notórios e, em muitos casos, demonstrÆveis. É impossível negar: por muito in- significantes que sejam os encargos abolidos, o sr. Gierke, abolindo-os, proporciona aos submissos vantagens por uma via contrÆria aos princípios jurídicos de todos os tempos, à qual se opıem diretamente a lei e o direi- to formal; ele desorganiza toda a si- tuaçªo jurídica da propriedade fundiÆria, ataca, na raiz, direitos in- discutíveis. De fato, sr. Gierke, valeu a pena co- meter tªo graves pecados para atingir um resultado tªo pauvre?38 Certamente, o sr. Gierke ataca a propriedade Ø inegÆvel mas nªo a propriedade moderna, burguesa, e sim a feudal. Ele reforça a proprieda- de burguesa, que se ergue sobre as ru- ínas da propriedade feudal, destruin- do a propriedade feudal. E Ø somente por isso que nªo quer revisar os con- tratos de resgate, porque, por meio destes contratos, as relaçıes feudais de propriedade sªo transformadas em re- laçıes burguesas, porque nªo pode, portanto, revisÆ-los sem ao mesmo tem- po violar formalmente a propriedade burguesa. E a propriedade burguesa Ø naturalmente tªo sagrada e inviolÆvel 37. Nas notas estenogrÆficas: custos inestimÆveis e inœmeros processos. 38. Pobre. 241 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA quanto a propriedade feudal Ø atacÆvel e, segundo as necessidades e a cora- gem dos senhores ministros, violÆvel. Em síntese, qual Ø o sentido desta longa lei? É a prova mais concludente de que a revoluçªo alemª de 1848 Ø apenas a paródia da Revoluçªo Francesa de 1789. Em 4 de agosto de 1789,39 trŒs se- manas após a tomada da Bastilha, em um dia o povo francŒs deu cabo dos encargos feudais. Em 11 de julho de 1848, quatro me- ses após as barricadas de março, os en- cargos feudais deram cabo do povo ale- mªo, teste Gierke cum Hansemanno.40 A burguesia francesa de 1789 nªo abandonou um só instante seus aliados, os camponeses. Ela sabia que a base de sua dominaçªo era a destruiçªo do feu- dalismo no campo, a criaçªo de uma classe de camponeses livres e proprie- tÆrios. A burguesia alemª de 1848 traiu sem qualquer decoro os camponeses, seus aliados mais naturais, a carne de sua carne, e sem os quais ela Ø impo- tente ante a nobreza. A persistŒncia, a sançªo dos direi- tos feudais sob a forma de um (ilusó- rio) resgate, eis afinal o resultado da revoluçªo alemª de 1848. Eis o parco resultado de tanta agitaçªo! A crise e a contra-revoluçªo41 (NGR, n” 100, 12/9/1848) Quem ler nosso correspondente de Berlim poderÆ dizer se nªo previmos com exatidªo o desenrolar da crise mi- nisterial. Os velhos ministros renunci- am; o plano do ministØrio, de se man- ter por meio da dissoluçªo da Assem- blØia Ententista, por meio de leis mar- ciais e canhıes, parece nªo ter alcança- do o aplauso da camarilha. Os junkers ardem de desejo por um conflito com o povo, pela repetiçªo das cenas do ju- nho parisiense nas ruas de Berlim; mas eles nªo vªo se bater pelo ministØrio Hansemann, e sim pelo ministØrio do príncipe da Prœssia. Radowitz,42 Vincke e outros semelhantes indivíduos dig- nos de confiança serªo convocados; a nata da cavalaria prussiana e westfaliana, ao que tudo indica associ- ada com alguns honestos burgueses da extrema direita, com um Beckerathe e consortes, a quem se pode confiar as prosaicas operaçıes comerciais do Es- tado eis o ministØrio do príncipe da 39. Na noite de 4 de agosto de 1789 a AssemblØia Nacional francesa, sob a pressªo do crescente movimento camponŒs, anunciou solenemente a supressªo de uma sØrie de encargos feudais, que àquela Øpoca jÆ haviam sido eliminados na prÆti- ca pelos camponeses sublevados. A lei promul- gada logo depois, no entanto, só suprimia sem indenizaçªo os encargos pessoais. A eliminaçªo de todos os encargos feudais sem nenhuma inde- nizaçªo só foi efetivada no período da ditadura jacobina, pela lei de 17 de julho de 1793. 40. Testemunhado por Gierke e Hansemann. 41. O segundo, terceiro e quarto artigos dessa sØrie traziam, na Nova Gazeta Renana, o título A Crise. 42. Radowitz, Joseph Maria Von (1797-1853): gene- ral e político prussiano, representante da camari- lha reacionÆria da corte; em 1848 foi um dos líderes da direita na AssemblØia Nacional de Frankfurt. MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 242 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 Prœssia, com que tencionam nos pre- sentear. Enquanto isso lançam cente- nas de boatos, talvez mandem chamar Waldeck43 ou Rodbertus,44 desorientam a opiniªo pœblica, e nesse meio tempo fazem seus preparativos militares e, quando for a hora, aparecerªo publi- camente. Caminhamos para uma luta decisi- va. As crises simultâneas em Frankfurt e Berlim, as œltimas resoluçıes das duasassemblØias, obrigam a contra- revoluçªo a travar sua œltima batalha. Se em Berlim ousarem esmagar sob os pØs o princípio constitucional da maio- ria, se puserem diante dos 219 votos da maioria o dobro de canhıes, se ou- sarem, nªo somente em Berlim, mas tambØm em Frankfurt, desmentir a maioria por um ministØrio, o que dian- te das duas assemblØias Ø impossível se provocarem, pois, a guerra civil entre a Prœssia e a Alemanha, os de- mocratas sabem o que tŒm de fazer. (NGR, n” 101, 13/9/1848) Enquanto o novo ministØrio do im- pØrio, como informamos ontem, foi confirmado tambØm por outras fontes, e talvez jÆ hoje ao meio dia recebamos a notícia de sua configuraçªo definiti- va, a crise ministerial continua em Ber- lim. Essa crise só pode ser solucionada por dois caminhos: Ou um ministØrio Waldeck, reconhecimento da autoridade da As- semblØia Nacional alemª, reconheci- mento da soberania do povo; Ou um ministØrio Radowitz- Vincke, dissoluçªo da AssemblØia de Berlim, negaçªo das conquistas revo- lucionÆrias, constitucionalismo de fa- chada ou mesmo a Dieta Unificada.45 Nªo o ocultemos de nós mesmos: o conflito que irrompeu em Berlim nªo Ø um conflito entre os ententistas e os ministros, Ø um conflito entre a Assem- blØia, que pela primeira vez se apre- 43. Waldeck, Benedikt Franz Leo (1802-1870): conselheiro do Supremo Tribunal em Berlim, de- mocrata; em 1848 foi um dos líderes da esquerda e vice-presidente da AssemblØia Nacional prus- siana; mais tarde, progressista. 44. Rodbertus-Jagetzow, Johann Karl (1805-1875): latifundiÆrio prussiano, economista político, ideólogo dos junkers aburguesados; em 1848 foi líder da centro-esquerda na AssemblØia Nacional prussiana, ministro da Educaçªo no gabinete Auerswald; posteriormente, teórico do socialis- mo de estado junker-prussiano. 45. A primeira Dieta Unificada se reuniu, graças a uma patente real, de 11 de abril de 1847 a 26 de junho de 1847. Representava a uniªo de todas as oito Dietas Provinciais existentes, era convocada a critØrio do rei e se dividia em duas câmaras. A câmara do estamento senhorial consistia em 70 representantes da alta nobreza, a câmara dos trŒs estamentos restantes abrangia 237 representantes da cavalaria, 182 das cidades e 124 dos municípios rurais. As atribuiçıes da Dieta Unificada limita- vam-se à autorizaçªo de novos emprØstimos em tempos de paz e à votaçªo de novos impostos ou aumento de impostos. Com sua instituiçªo, o monarca prussiano queria evitar o cumprimento das promessas constitucionais que fizera e as de- terminaçıes da lei sobre as dívidas estatais. Na Dieta manifestou-se uma forte oposiçªo liberal, vinda dos representantes da grande burguesia renana (Hansemann, Camphausen, Von Beckerath) e de uma parte da nobreza da Prœssia oriental (Von Vincke, Von Auerswald). Como a Dieta se declarou incompetente para autorizar um emprØs- timo, o rei mandou-a de volta para casa. 243 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA senta como constituinte, e a Coroa. Terªo coragem de dissolver a As- semblØia, ou nªo? Tudo depende dis- so. Mas a Coroa tem o direito de dis- solver a AssemblØia? É certo que, nos estados constitucionais, a Coroa, em caso de conflito e sobre a base da Cons- tituiçªo, tem o direito de dissolver a câmara legislativa convocada e apelar ao povo por meio de novas eleiçıes. A AssemblØia de Berlim Ø uma câ- mara constitucional, legislativa? Nªo. Ela foi convocada para en- tender-se com a Coroa sobre a consti- tuiçªo prussiana, sobre a base nªo de uma constituiçªo, mas de uma revolu- çªo. Nªo recebeu de modo algum seu mandato da Coroa ou de seus minis- tros responsÆveis, mas sim somente de seus eleitores e de si mesma. A Assem- blØia era soberana como a legítima ex- pressªo da revoluçªo, e o mandato que o sr. Camphausen, junto com a Dieta Unificada, lhe expediu na lei eleitoral de 8 de abril,46 nªo passava de um voto piedoso, sobre o qual a AssemblØia ti- nha de deliberar. No início, a AssemblØia acolheu em maior ou menor medida a teoria ententista.47 Ela viu como, desse modo, foi lograda pelos ministros e pela ca- marilha. Finalmente, realizou um ato de soberania por um momento, apresentou-se como AssemblØia Cons- tituinte, nªo mais como Ententista. Como AssemblØia soberana da Prœssia, tinha pleno direito para isso. Mas uma assemblØia soberana nªo Ø dissolœvel por ninguØm, nªo estÆ sub- metida às ordens de ninguØm. E mesmo como mera AssemblØia Ententista, mesmo de acordo com a própria teoria do sr. Camphausen, ela se encontra em posiçªo de igualdade com a Coroa. Ambas as partes celebra- ram um acordo nacional, ambas as par- tes tŒm a mesma cota de soberania, esta Ø a teoria de 8 de abril, a teoria Camphausen-Hansemann, portanto a teoria oficial reconhecida pela própria Coroa. Se a AssemblØia estÆ em posiçªo de igualdade ante a Coroa, a Coroa nªo tem nenhum direito de dissolver a As- semblØia. Caso contrÆrio, conseqüentemente, a AssemblØia teria do mesmo modo o direito de depor o rei. A dissoluçªo da AssemblØia seria, pois, um golpe de estado. E o 29 de julho de 1830 e o 24 de fevereiro de 1848 mostraram como se responde a um golpe de estado. Dir-se-Æ que a Coroa poderia, sim, apelar novamente aos mesmos eleito- res. Mas quem nªo sabe que hoje os 46. A Lei eleitoral para a AssemblØia convocada para entender-se sobre a constituiçªo prussiana foi, por proposta do ministØrio Camphausen, apro- vada em 8 de abril de 1848 pela segunda Dieta Unificada e baseava-se no sistema eleitoral indire- to em duas etapas. 47. A teoria ententista, com a qual a burguesia prussiana, na pessoa de Camphausen e Hansemann, procurou justificar sua traiçªo à revoluçªo, consistia em que a AssemblØia Nacional prussiana, permanecendo no terreno do direito, devia se limitar à fundaçªo de uma ordem constitucional por meio da conciliaçªo com a Coroa. MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 244 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 eleitores elegeriam uma AssemblØia totalmente diferente, uma AssemblØia que faria muito menos cerimônias com a Coroa? É evidente: se após a dissoluçªo desta AssemblØia só Ø possível o apelo a eleitores muito diferentes dos de 8 de abril, entªo nªo Ø mais possível ne- nhuma outra eleiçªo, a nªo ser a que serÆ proposta sob a tirania do sabre. Portanto, nªo tenhamos ilusıes: Se a AssemblØia vencer, se impu- ser o ministØrio da esquerda, entªo o poder da Coroa ao lado da AssemblØia serÆ quebrado, o rei voltarÆ a ser ape- nas o servidor pago do povo, e estare- mos novamente na manhª de 19 de março caso o ministØrio Waldeck nªo nos traia, como tantos antes dele. Se a Coroa vencer, se impuser o mi- nistØrio do príncipe da Prœssia, entªo a AssemblØia serÆ dissolvida, o direito de associaçªo suprimido, a imprensa amordaçada, uma lei eleitoral censitÆria decretada, talvez atØ mesmo, como dis- semos, a Dieta Unificada evocada mais uma vez tudo sob a proteçªo da di- tadura militar, dos canhıes e das baio- netas. A vitória de uma das partes depen- derÆ da atitude do povo, especialmen- te da atitude do partido democrÆtico. Os democratas tŒm de optar. Estamos em 25 de julho. Ousar-se- Æ decretar as ordenanças que sªo pre- paradas em Potsdam? O povo serÆ pro- vocado a dar o salto de 26 de julho a 24 de fevereiro em um dia?48 Boa vontade com certeza nªo falta, mas a coragem, a coragem! (NGR, n” 102, 14/9/1848) A crise em Berlim avançou mais um passo: o conflito com a Coroa, que on- tem ainda só podia ser designado como inevitÆvel, aconteceu de fato. Nossos leitores encontram logo adi- ante a resposta do rei ao pedido de re- nœncia dos ministros.49 Por meio desta carta, a própria Coroa passa para o pri- meiro plano, toma partido a favor dos ministros, contrapıe-se à AssemblØia. Vai mais longe ainda:constitui um ministØrio estranho à AssemblØia, con- voca Beckerath, que em Frankfurt sen- ta-se à extrema-direita e que em Berlim, como o mundo inteiro sabe por antecedŒncia, jamais poderÆ contar com uma maioria. O ofício do rei Ø rubricado pelo sr. Auerswald. O sr. Auerswald devia se responsabilizar por ter, assim, empur- miam a liberdade de imprensa, declaravam dis- solvida a Câmara e alteravam a lei eleitoral de modo que reduzia os eleitores em trŒs quartos. Essas medidas extraordinÆrias do governo de Carlos X foram o motivo da revoluçªo burguesa de 1830 na França, a qual, em 29 de julho, supri- miu o domínio dos Bourbon. 49. Em sua mensagem de 10 de setembro de 1848, Frederico Guilherme IV, concordando com a opi- niªo dos ministros, declarou que a resoluçªo da AssemblØia Nacional prussiana de 7 de setembro de 1848 representava uma violaçªo do princípio da monarquia constitucional, e ratificou a reso- luçªo do ministØrio Auerswald-Hansemann de re- nunciar em sinal de protesto contra esse procedi- mento da AssemblØia. 48. Em 26 de julho de 1830 foram publicados os decretos (ordenanças) reais que, na França, supri- 245 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA tendo a Coroa e incitando à repœblica! O princípio constitucional!, gritam os ministros. O princípio constitucio- nal!, grita a direita. O princípio consti- tucional!, geme o eco surdo da Gazeta de Colônia. O princípio constitucional! Esses senhores sªo mesmo, entªo, suficien- temente tolos para acreditar que se possa afastar o povo alemªo da tem- pestade do ano de 1848, do colapso cada dia mais iminente de todas as ins- tituiçıes históricas tradicionais, com a carcomida divisªo dos poderes de Montesquieu-Delolme,50 com frases desgastadas e ficçıes hÆ muito desmas- caradas? O princípio constitucional! Mas os mesmos senhores que querem sal- var o princípio constitucional a qual- quer custo deveriam antes de mais nada reconhecer que em uma situaçªo pro- visória ele só pode ser salvo com ener- gia! O princípio constitucional! Mas o voto da AssemblØia de Berlim, as coli- sıes entre Potsdam e Frankfurt, os dis- tœrbios, as tentativas da reaçªo, as pro- vocaçıes da soldadesca nªo mostraram hÆ muito que, apesar de todas as fra- ses, nós ainda estamos no terreno re- volucionÆrio, que a ficçªo de que jÆ es- tÆvamos no terreno da constituinte, da monarquia constitucional acabada, nªo leva a nada alØm de colisıes, as quais jÆ agora o princípio constitucional conduziu à beira do abismo? Toda situaçªo política provisória posterior a uma revoluçªo exige uma ditadura, e mesmo uma ditadura enØr- gica. Criticamos Camphausen desde o início por nªo ter agido ditatorialmen- te, por nªo ter destruído e removido imediatamente os restos das velhas ins- tituiçıes. Assim, enquanto o sr. Camphausen se embalava no sonho constitucional, o partido vencido for- talecia as posiçıes na burocracia e no exØrcito, e ousava mesmo, aqui e aco- lÆ, a luta aberta. A AssemblØia fora convocada para se entender sobre a constituiçªo. Ela estava em posiçªo de igualdade com a Coroa. Dois poderes em posiçªo de igualdade em um go- verno provisório! Precisamente a divi- sªo dos poderes com que o sr. Camphausen procurava salvar a liber- dade, precisamente essa divisªo dos poderes devia, em um governo provi- sório, levar a colisıes. AtrÆs da Coroa se ocultava a camarilha contra-revolu- cionÆria da nobreza, dos militares, da burocracia. AtrÆs da maioria da Assem- blØia estava a burguesia. O ministØrio procurava conciliar. DØbil demais para defender decididamente os interesses da burguesia e dos camponeses e des- truir, de um só golpe, o poder da no- breza, da burocracia e dos líderes mi- litares, desajeitado demais para nªo ferir sempre a burguesia com suas me- rado a Coroa à sua frente para cobrir sua ignominiosa retirada, por ter pro- curado se esconder, ante a Câmara, atrÆs do princípio constitucional ao mesmo tempo que esmagava sob os pØs o princípio constitucional, comprome- 50. Delolme, Jean-Louis (1740-1806): especialista em direito pœblico e jurista suíço, defendia a dou- trina da divisªo dos poderes. MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 246 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 didas financeiras, nªo chegou a nada alØm de se tornar impossível para to- dos os partidos e provocar justamente a colisªo que queria evitar. Em toda situaçªo nªo-constituída o decisivo nªo Ø este ou aquele princí- pio, mas sim somente a salut public, o bem pœblico. O ministØrio só poderia evitar a colisªo da AssemblØia com a Coroa se reconhecesse o princípio do bem pœblico, mesmo correndo o risco de colidir ele próprio com a Coroa. Mas preferiu manter-se possível em Potsdam. Contra a democracia, nunca vacilou em tomar medidas em prol do bem pœblico (mesures de salut public), medidas ditatoriais. Ou foi outra coisa a utilizaçªo das velhas leis sobre cri- mes políticos, mesmo quando o sr. Märker51 jÆ havia reconhecido que es- ses parÆgrafos do Direito Nacional (Landsrecht)52 deveriam ser suprimi- dos? Foram outra coisa as prisıes em massa em todas as partes do impØrio? Mas em oposiçªo à contra-revolu- çªo o ministØrio guardou-se bem de tomar providŒncias em prol do bem pœblico! E justamente dessa tibieza do mi- nistØrio ante a contra-revoluçªo, que se tornava dia a dia mais ameaçadora, nasceu a necessidade, para a Assem- blØia, de ditar ela mesma medidas em prol do bem pœblico. Uma vez que a Coroa, representada pelo ministro, era dØbil demais, a AssemblØia mesma de- via tomar providŒncias. Ela o fez com a resoluçªo de 9 de agosto.53 Mas o fez de uma forma ainda muito suave, dando aos ministros apenas uma advertŒncia. Os ministros nªo fize- ram caso disso. 51. Märker, Friedrich August (1804-1889): juiz do Tribunal Criminal em Berlim, liberal; em 1848, f o i d e p u t a d o à A s s e m b l Ø i a N a c i o n a l prussiana (centro) e ministro da Justiça (ju- nho a setembro). 52. O Direito Nacional (Landsrecht) Geral para os Estados Prussianos de 1794 era uma sœmula do direito burguŒs, do direito de comØrcio, de troca, marítimo e de segurança, alØm do direito penal, religioso, pœblico e administrativo; consolidava o carÆter reacionÆrio da Prœssia feudal no âmbito jurídico e partes essenciais dele vigoraram atØ a introduçªo do Código Civil, em 1900. 53. Em 3 de agosto de 1848 ocorreu, na fortaleza Schweidnitz, um ataque de surpresa das tropas da fortaleza contra a Guarda Civil, no qual quatorze cidadªos foram mortos. Provocada por esse sempre reacionÆrio comportamento das tro- pas prussianas, a AssemblØia Nacional aprovou, em 9 de agosto, sob inclusªo de algumas propos- tas de alteraçªo, uma moçªo do deputado Stein com as seguintes palavras: O sr. ministro da Guerra deve declarar, em um decreto ao exØrcito, que os oficiais permaneçam longe de todas as tentativas reacionÆrias, nªo apenas evitando conflitos de todo tipo com os civis, mas sim mostrando, pela apro- ximaçªo aos cidadªos e uniªo com eles, que que- rem colaborar com franqueza e abnegaçªo para a efetivaçªo de um estado de direito constitucional, e que aqueles oficiais cujas convicçıes políticas nªo estejam de acordo com isto considerem um dever de honra desligar-se do exØrcito. O minis- tro da Guerra Schreckenstein nªo promulgou, ape- sar da resoluçªo da AssemblØia, nenhuma ordem semelhante. Por isso Stein repetiu sua moçªo na sessªo da AssemblØia Nacional de 7 de setembro; a maioria dos deputados aderiu à intimaçªo ao ministØrio para cumprir rapidamente essa resolu- çªo. Diante deste resultado da votaçªo, o minis- tØrio Auerswald-Hansemann renunciou. No perí- odo do ministØrio Pfuel, que o sucedeu, a ordem foi finalmente dada, em uma forma atenuada, mas ficou só no papel. 247 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANAMas tambØm como eles poderiam tŒ-la acolhido? A resoluçªo de 9 de agosto esmaga sob os pØs o princípio constitucional, Ø uma usurpaçªo do poder legislativo contra o executivo, destrói a divisªo e o controle mœtuo dos poderes, tªo necessÆrios no inte- resse da liberdade, transforma a As- semblØia Ententista na Convençªo Na- cional! E eis agora um fogo cerrado de ameaças, um apelo atroador ao medo dos pequeno-burgueses, a perspectiva aberta de governo de terror com gui- lhotina, impostos progressivos, confis- co e bandeira vermelha. A AssemblØia de Berlim uma Convençªo! Que ironia! Mas esses senhores nªo estªo to- talmente equivocados. Se o governo continuar como atØ agora, nªo demo- rarÆ muito para termos uma Conven- çªo nªo apenas para a Prœssia, mas para toda a Alemanha , uma Con- vençªo que serÆ obrigada a reprimir com todos os meios a guerra civil de nossos 20 vendeanos54 e a inevitÆvel guerra russa. Agora certamente estamos mesmo na paródia da Consti- tuinte! Mas como os senhores ministros que apelam ao princípio constitucional mantiveram este princípio? Em 9 de agosto, eles deixaram a AssemblØia se dispersar calmamente, na boa-fØ de que cumpririam a resolu- çªo. Nem pensaram em comunicar à AssemblØia sua negativa, e muito me- nos em renunciar a seus cargos. Refletiram durante um mŒs inteiro e finalmente, sob ameaça de vÆrias in- terpelaçıes, notificaram laconicamente à AssemblØia: evidentemente nªo cum- pririam a resoluçªo. Depois, quando a AssemblØia, nªo obstante, ordenou aos ministros que cumprissem a resoluçªo, eles se entrin- cheiraram atrÆs da Coroa, provocaram um rompimento entre a Coroa e a As- semblØia e incitaram assim à repœblica. E esses senhores ainda falam do princípio constitucional! Em resumo: A inevitÆvel colisªo entre dois po- deres em posiçªo de igualdade em um governo provisório ocorreu. O minis- tØrio nªo soube conduzir de modo su- ficientemente enØrgico o governo, dei- xou de tomar as necessÆrias medidas em prol do bem pœblico. A AssemblØia nªo fez mais do que sua obrigaçªo ao intimar o ministØrio a cumprir seu de- ver. O ministØrio tomou isto por uma violaçªo à Coroa, e ainda a compro- meteu no momento de sua demissªo. A Coroa e a AssemblØia se contrapıem uma à outra. A conciliaçªo levou à divisªo, ao conflito. CaberÆ talvez às armas decidir. Quem tiver mais coragem e conse- qüŒncia vencerÆ. 54. VendØia província francesa em que, durante a Revoluçªo Francesa, na primavera de 1793, irrompeu uma insurreiçªo contra-revolucionÆria sob a liderança da nobreza, que se apoiou no campesinato dessa regiªo economicamente atra- sada. VendØia Ø, por isso, utilizada generalizadamente para tendŒncias contra-revolucionÆrias. MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 248 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 (NGR, n” 104, 16/9/1848) A crise ministerial entrou outra vez em um novo estÆgio, nªo graças à che- gada e aos inœteis esforços do impos- sível sr. Beckerath, mas sim devido à revolta militar em Potsdam e Nauen.55 O conflito entre democracia e aristo- cracia irrompeu no próprio seio da Guarda: os soldados viram na resolu- çªo da AssemblØia do dia 7 sua liber- taçªo da tirania dos oficiais, enviaram- lhe mensagens de agradecimento, de- ram um Viva! a ela. Assim a espada foi arrancada das mªos da contra-revoluçªo. Agora nin- guØm ousarÆ dissolver a AssemblØia, e se isso nªo for feito nªo restarÆ nada mais do que ceder, cumprir a resolu- çªo da AssemblØia e convocar um mi- nistØrio Waldeck. Provavelmente a revolta dos solda- dos de Potsdam nos economizou uma revoluçªo. O ministØrio Pfuel56 (NGR, n” 116, 14/10/1948) Quando o ministØrio Camphausen caiu, dissemos: O ministØrio Camphausen vestira a contra-revoluçªo com sua roupagem liberal-burguesa. A contra-revoluçªo sente-se suficientemente forte para li- vrar-se da incômoda mÆscara. Um in- sustentÆvel ministØrio qualquer, de centro-esquerda (Hansemann), pode possivelmente suceder por alguns dias o ministØrio de 30 de março. Seu ver- dadeiro sucessor Ø o ministØrio do prín- cipe da Prœssia (N[ova] G[azeta] R[enana], n” 23, de 23 de junho). E re- almente ao ministØrio Hansemann su- cedeu o ministØrio Pfuel57 (de Neufchâtel58). O ministØrio Pfuel maneja as frases constitucionais como o poder central em Frankfurt maneja a unidade ale- mª. Se compararmos o corpus delicti, o verdadeiro corpo desse ministØrio, 55. Em 13 de setembro, os 1” e 2” Regimentos da Guarda em Potsdam se revoltaram contra as me- didas arbitrÆrias de seus oficiais. O motivo princi- pal foi o embargo, pelos oficiais, de uma mensagem de agradecimento ao deputado Stein e à AssemblØia Nacional prussiana pela resoluçªo de 7 de setembro. Os soldados chegaram a construir barricadas. Em Nauen, os couraceiros da Guarda ali estacio- nados recusaram-se, em 10 de setembro, a se lan- çar contra os cidadªos por ordem de seus oficiais. 56. De acordo com o decreto de Frederico Guilher- me IV, de 21 de setembro de 1848, o ministØrio Pfuel foi constituído com a seguinte composiçªo: Von Pfuel, primeiro-ministro; Eichmann, ministro do Interior; Von Bonin, ministro das Finanças; con- de Von Dönhoff, ministro do Exterior; Muller, ministro da Justiça. Era um ministØrio de funcio- nÆrios e oficiais reacionÆrios, que aparentemente ia ao encontro do desejo da AssemblØia Nacional, mas enquanto isso organizava abertamente as forças da contra-revoluçªo. Depois da queda de Viena, o ministØrio Pfuel foi substituído, em 8 de novembro, pelo ministØrio do conde Von Brandenburg, que realizou o golpe de Estado con- tra-revolucionÆrio (estado de sítio em Berlim, disso- luçªo da Guarda Civil e da AssemblØia Nacional). 57. Pfuel, Ernst Heinrich Adolf Von (1779-1866): general prussiano, representante da camarilha militar reacionÆria, governador de Neuchâtel (1832-1848); em março de 1848 foi comandante em Berlim, dirigiu em abril e maio a repressªo à insurreiçªo na Posnânia; primeiro-ministro e mi- nistro da Guerra (setembro a novembro de 1848). 58. Neuchâtel (ou Neufchâtel) designaçªo fran- cesa para o cantªo suíço Neuenburg, formado do 249 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA com seu eco, suas declaraçıes consti- tucionais, seus abrandamentos, medi- açıes, conciliaçıes na AssemblØia de Berlim, só podemos dizer sobre ele uma palavra, a palavra de Falstaff: Quªo sujeitos estamos os velhos ao vício da mentira!59 Ao ministØrio Pfuel só pode suce- der um ministØrio da revoluçªo. Vitória da contra-revoluçªo em Viena (NGR, n” 136, 7/11/1848) A liberdade e a ordem croata ven- ceram e celebraram sua vitória com in- cŒndios, violaçıes, pilhagens, com atro- cidades de uma infâmia inominÆvel. Viena estÆ nas mªos de Windischgrätz, Jellachich e Auersperg.60 Hecatombes de sacrifícios humanos que fariam vi- rar em seu tœmulo o velho traidor Latour. Todas as mais sombrias previsıes de nosso correspondente de Viena61 se confirmaram, e talvez neste momento ele mesmo jÆ tenha sido trucidado. Por um momento esperamos a li- bertaçªo de Viena do socorro hœn- garo, e os movimentos do exØrcito hœngaro ainda nos parecem enigmÆ- ticos. Traiçıes de todo tipo prepararam a queda de Viena. Toda a história do parlamento e do Conselho Municipal desde 6 de outubro nªo passa de uma contínua história de traiçªo. Quem es- tava representada no parlamento e no Conselho Municipal? A burguesia. Uma parte da Guarda Nacional de Viena, logo no início da Revoluçªo de Outubro, tomou abertamente o parti- do da camarilha. E no final da Revolu- çªo de Outubro encontramos outra parte da Guarda Nacional em luta con- tra o proletariado e a Legiªo AcadŒ- antigo principado Neuenburg e Valendis. Por de- cisªo do Congresso de Viena, Neuchâtel, como estado indivisível e totalmente separado da mo- narquia prussiana,foi adjudicado ao rei da Prœssia e admitido como 21” cantªo da Confede- raçªo HelvØtica. Em 1831, uma tentativa dos re- publicanos em Neuchâtel de forçar, por meio de uma insurreiçªo, uma modificaçªo na Constitui- çªo e a total separaçªo da Prœssia foi reprimida com grande violŒncia pelo plenipotenciÆrio do rei prussiano, general Von Pfuel. Depois disso, Pfuel foi nomeado governador prussiano de Neuchâtel. Imediatamente após a Revoluçªo de Fevereiro de 1848, irrompeu novamente uma insurreiçªo re- publicana. Foi constituído um governo provisó- rio, Neuchâtel foi declarada repœblica, e pôs-se um fim, na prÆtica, ao domínio da Prœssia. Em 1857 o rei prussiano teve de renunciar oficialmen- te a suas pretensıes a Neuchâtel. 59. Shakespeare, Rei Henrique IV, Segunda Parte, Ato 3, cena 2. 60. Windischgrätz, Alfred, príncipe de (1787- 1862): marechal-de-campo austríaco, em 1848-49 foi um dos líderes da contra-revoluçªo na `us- tria; em 1848 dirigiu a repressªo às insurreiçıes de junho em Praga e de outubro em Viena; depois esteve à cabeça do exØrcito austríaco que comba- teu contra a revoluçªo hœngara. Jellachich, Josip, conde de Buzim (1801-1859): general austríaco, tomou parte ativa na repres- sªo às revoluçıes de 1848-49 na `ustria e na Hungria. Auersperg, Karl, conde de (1793-1859): general austríaco, em 1848 foi comandante da guarniçªo de Viena, participou ativamente na repressªo da insurreiçªo de outubro. 61. Muller-Tellering. MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 250 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 mica,62 em entendimento secreto com os bandidos do imperador. Quem per- tence a esta fraçªo da Guarda Nacio- nal? A burguesia. Mas na França a burguesia passou para a ponta da contra-revoluçªo de- pois de ter derrubado todos os obstÆ- culos que se punham no caminho da dominaçªo de sua própria classe. Na Alemanha ela se encontra rebaixada a caudatÆria da monarquia absoluta e do feudalismo, antes de ter ao menos garantido as condiçıes vitais bÆsicas de sua própria liberdade civil e domi- naçªo. Na França ela se apresentou como dØspota e fez sua própria con- tra-revoluçªo. Na Alemanha ela se apresentou como escrava e fez a con- tra-revoluçªo de seus próprios dØspo- tas. Na França ela venceu para humi- lhar o povo. Na Alemanha ela se hu- milhou para que o povo nªo vencesse. A história inteira nªo mostra outra misØria ignominiosa como a da burgue- sia alemª. Quem fugiu de Viena aos bandos e abandonou à generosidade do povo a vigilância das riquezas deixadas para trÆs, para caluniar seu serviço de guar- da durante a fuga e no regresso assis- tir a seu massacre? A burguesia. Os segredos íntimos de quem ma- nifestava o termômetro que descia a cada sopro de vida do povo de Viena e subia a cada estertor de morte dele? Quem falou na língua rœnica da cota- çªo da bolsa? A burguesia. A AssemblØia Nacional alemª e seu poder central traíram Viena. Quem eles representavam? Sobretudo a burguesia. A vitória da ordem e liberdade croata em Viena estava condicionada pela vitória da repœblica honesta em Paris. Quem venceu nas jornadas de junho? A burguesia. Com a vitória em Paris, a contra- revoluçªo europØia começou a come- morar sua orgia. Nas jornadas de fevereiro e março o poder armado fracassou por toda parte. Por quŒ? Porque ele nªo repre- sentava nada alØm do próprio gover- no. Depois das jornadas de junho ele venceu por toda parte, porque por toda parte a burguesia se entendera secreta- mente com ele, enquanto, por outro lado, tinha em suas mªos a direçªo ofi- cial do movimento revolucionÆrio e to- mou todas aquelas meias medidas cujo fruto natural Ø o aborto. O fanatismo nacional dos tchecos foi a ferramenta mais poderosa da ca- marilha vienense. Os aliados jÆ se de- sentenderam. Nossos leitores encontra- rªo neste nœmero o protesto da depu- taçªo de Praga contra a impertinŒncia vil com a qual foi saudada em Olmütz. Este Ø o primeiro sintoma da guer- ra que começarÆ entre o partido eslavo e seu herói Jellachich e o partido da simples camarilha, posta acima de toda nacionalidade, e seu herói Windischgrätz. Por seu lado, o campo- 62. A Legiªo AcadŒmica era constituída de estu- dantes universitÆrios e era a mais radical das or- ganizaçıes militares burguesas. 251 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA nŒs alemªo na `ustria ainda nªo estÆ pacificado. Sua voz serÆ atravessada es- tridentemente pela assuada nacional austríaca. E por um terceiro lado, a amÆvel voz do czar serÆ ouvida atØ em Pest; seus carrascos aguardam a pala- vra decisiva no principado do Danœbio. Finalmente, só a œltima resoluçªo da AssemblØia Nacional alemª em Frankfurt, que incorpora a `ustria ale- mª ao reino alemªo, devia levar a um enorme conflito, se o poder central ale- mªo e a AssemblØia Nacional alemª nªo acreditassem ter cumprido sua tarefa ao entrar no palco para serem vaiados pelo pœblico europeu. Apesar de sua resignaçªo religiosa, a luta na `ustria assumirÆ dimensıes gigantescas, como a história mundial ainda nªo viu. Agora mesmo foi representado em Viena o segundo ato do drama, cujo primeiro ato foi representado em Pa- ris sob o título: As Jornadas de Ju- nho. Em Paris mobilizados, em Viena croatas em ambos lazzaronis, o lumpem-proletariado armado e com- prado contra o proletariado trabalha- dor e pensante. Em Berlim presencia- remos em breve o terceiro ato. Posto que a contra-revoluçªo viveu em toda a Europa pelas armas, ela morreria em toda a Europa pelo dinhei- ro. O fato que cassaria a vitória seria a bancarrota europØia, a bancarrota do Estado. Nos escolhos econômicos as pontas das baionetas quebram-se como pavio macio. Mas o desenvolvimento nªo espe- ra o dia do vencimento da letra de câm- bio que os Estados europeus sacaram contra a sociedade europØia. Em Paris o contragolpe que aniquilou a revolu- çªo de junho serÆ vencido. Com a vitó- ria da repœblica vermelha em Paris os exØrcitos serªo lançados do interior dos países sobre as fronteiras, e o po- der real dos partidos em luta se reve- larÆ claramente. Entªo nos lembrare- mos de junho, de outubro, e tambØm nós clamaremos: Vae victis!63 A carnificina inœtil desde as jorna- das de junho e outubro, a enfadonha festa de sacrifício desde fevereiro e março, o canibalismo da própria con- tra-revoluçªo convencerªo o povo de que só hÆ um meio para encurtar, sim- plificar, concentrar as terríveis dores da agonia da velha sociedade e as san- grentas dores do nascimento da nova sociedade, só um meio o terroris- mo revolucionÆrio. A crise em Berlim64 (NGR, n” 138, 9/11/1848) A situaçªo parece muito complica- da, mas Ø muito simples. O rei, como a Nova Gazeta 63. Ai dos vencidos! Grito de Brennus antes da toma- da e destruiçªo de Roma pelos gauleses (390 a.C.). 64. O artigo A crise em Berlim e a sØrie de arti- gos A contra-revoluçªo em Berlim, de Karl Marx, sªo um eco imediato da preparaçªo e do começo do golpe de estado contra-revolucionÆrio em Berlim. Em 8 de novembro, o rei destituiu o ministØrio Pfuel e nomeou o ministØrio Brandenburg-Manteuffel, abertamente contra-re- volucionÆrio. Em 9 de novembro foi anunciada à AssemblØia Nacional prussiana uma mensagem suprema do rei, que ordenava seu adiamento e MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 252 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 Prussiana65 corretamente observa, as- senta sobre os mais amplos fundamen- tos seus direitos hereditÆrios pela graça de Deus. Do outro lado, a AssemblØia Nacional nªo se assenta sobre absolutamente nenhum fundamento, ela deve primeiro constituir, estabelecer o fundamento. Dois soberanos! O elo de ligaçªo entre ambos Ø Camphausen, a teoria ententista. Logo que os dois soberanos nªo puderem ou nªo quiserem mais conci- liar, elesse transformarªo em dois so- beranos inimigos. O rei tem o direito de atirar a luva à AssemblØia, e a As- semblØia tem o direito de atirar a luva ao rei. O maior direito estÆ do lado do maior poder. O poder se compro- va na luta. A luta se comprova na vi- tória. Ambos os poderes só podem fazer valer seu direito pela vitória, seu nªo-direito só pela derrota. AtØ agora, o rei nªo Ø um rei cons- titucional. É um rei absoluto, que se decide ou nªo pelo constitucionalismo. AtØ agora, a AssemblØia nªo Ø cons- titucional, Ø constituinte. AtØ agora ela tentou constituir o constitucionalismo. Ela pode desistir ou nªo de sua tentativa. Ambos, o rei e a AssemblØia, sub- meteram-se provisoriamente aos ritu- ais constitucionais. A reivindicaçªo do rei, de consti- tuir ao seu arbítrio um ministØrio Brandenburg,66 apesar da maioria da Câmara, Ø a reivindicaçªo de um rei absoluto. A pretensªo da Câmara de proibir ao rei, por meio de uma deputaçªo di- reta, a constituiçªo de um ministØrio Brandenburg Ø a pretensªo de uma Câmara absoluta. O rei e a AssemblØia pecaram con- tra a convençªo constitucional. O rei e a AssemblØia, cada um em seu âmbito originÆrio, recuaram, o rei conscientemente, a Câmara inconscien- temente. A vantagem estÆ do lado do rei. O direito estÆ do lado do poder. A frase sobre o direito estÆ do lado da impotŒncia. O ministØrio Rodbertus seria o zero, em que mais e menos se paralisam. A contra-revoluçªo em Berlim (NGR, n” 141, 12/11/1848) O ministØrio Pfuel foi um mal-en- tendido; seu verdadeiro sentido Ø o transferŒncia de Berlim para a cidadezinha pro- vinciana de Brandenburg. Era o começo do golpe de Estado, consumado com a dissoluçªo da As- semblØia Nacional prussiana e a outorga de uma constituiçªo em 5 de dezembro de 1848. A Nova Gazeta Renana fez tudo para mobilizar as massas populares para a luta contra este golpe de Estado contra-revolucionário. 65. Nova Gazeta Prussianajornal diÆrio publicado em Berlim desde junho de 1848; foi o órgªo da camarilha contra-revolucionÆria da corte e dos junkers prussianos. Esse jornal tambØm era conhe- cido pelo nome de Gazeta da Cruz, porque trazia em seu título uma cruz de ferro, circundada pelas palavras Avante com Deus pelo Rei e pela PÆtria. 66. Brandenburg, Friedrich Wilhelm, conde de (1792-1850): general e estadista prussiano, pri- meiro-ministro contra-revolucionÆrio (novembro de 1848 a dezembro de 1850). 253 MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 A NOVA GAZETA RENANA ministØrio Brandenburg. O ministØrio Pfuel foi a indicaçªo do conteœdo, o ministØrio Brandenburg Ø o conteœdo. Brandenburg na AssemblØia e a As- semblØia em Brandenburg.67 Eis o epitÆfio da casa Brandenburg!68 O imperador Carlos V ficou surpre- so por ter sido enterrado vivo.69 Uma piada de mau gosto cinzelada em sua lÆpide afirma que isto Ø mais do que a pena capital, que o imperador Carlos V incluiu em seu Código Penal.70 Brandenburg na AssemblØia e a As- semblØia em Brandenburg! No passado um rei da Prœssia com- pareceu à AssemblØia. Nªo era o ver- dadeiro Brandenburg. O marquŒs de Brandenburg, que anteontem compa- receu à AssemblØia, era o verdadeiro rei da Prœssia. O Corpo da Guarda na AssemblØia, a AssemblØia no Corpo da Guarda! isto Ø: Brandenburg na AssemblØia, a AssemblØia em Brandenburg! Ou a AssemblØia em Brandenburg como se sabe, Berlim fica na provín- cia de Brandenburg serÆ o senhor... sobre o Brandenburg na AssemblØia? Brandenburg procurarÆ proteçªo na AssemblØia, como no passado Capeta em outra AssemblØia?71 Brandenburg na AssemblØia e a As- semblØia em Brandenburg Ø uma ex- pressªo dœbia, ambígua, prenhe de destino. É sabido que os povos dªo cabo com facilidade infinitamente maior dos reis do que das assemblØias legislativas. A história possui um catÆlogo de revol- tas inœteis do povo contra as assemblØi- as nacionais. Oferece apenas duas gran- des exceçıes. O povo inglŒs pulverizou o longo parlamento na pessoa de Cromwell, o povo francŒs o corpo legislativo na pessoa de Bonaparte. Mas o longo parlamento jÆ se tornara havia muito uma carcaça, o corpo legislativo havia muito um cadÆver. Seriam os reis mais felizes do que os povos nas sublevaçıes contra as as- semblØias legislativas? Carlos I, Jakob II, Luís XVI, Carlos X retratam ancestrais pouco promissores. Mas na Espanha, na ItÆlia hÆ antepassados mais felizes. E recente- mente em Viena? 67. Alusªo às palavras de Frederico Guilherme IV a respeito do ministØrio Brandenburg: Ou Brandenburg na Câmara, ou a Câmara em Brandenburg. A Nova Gazeta Prussiana, em seu nœmero de 9 de novembro, ajustou: Brandenburg na Câmara e a Câmara em Brandenburg. 68. A dinastia dos Hohenzollern, que em 1417 recebeu o marquesado de Brandenburg como feudo hereditÆrio. 69. O imperador Carlos V, segundo a tradiçªo, pou- co antes de sua morte, organizou as cerimônias de seu próprio funeral e tomou parte pessoal- mente nessas solenidades fœnebres. 70. O Código Penal de Carlos V (Constitutio criminalis carolina), aprovado em 1532 pelo par- lamento em Ratisbona, destacava-se por suas penas extraordinariamente cruØis. 71. O rei francŒs Luís XVI (Louis Capet), durante a insurreiçªo popular de 10 de agosto de 1792, que derrubou a monarquia na França, procurou proteçªo na AssemblØia Nacional. No dia seguin- te, o rei foi preso. A Convençªo, que se reunia como tribunal acima de Luís XVI, declarou-o cul- pado de conspiraçªo contra a liberdade da naçªo e a segurança do Estado e o condenou à morte. MARGEM, SÃO PAULO, No 14, P. 229-259, DEZ. 2002 254 MARGEM No 16 – DEZEMBRO DE 2002 Mas nªo devemos nos esquecer de que em Viena tinha assento um Con- gresso popular e que os representan- tes do povo eslavo, com exceçªo da Polônia, marcharam alegremente para o acampamento imperial.72 A guerra da camarilha vienense contra o parlamento era ao mesmo tem- po a guerra do parlamento eslavo con- tra o parlamento alemªo. Na Assem- blØia de Berlim, ao contrÆrio, nªo sªo os eslavos que formam uma cisªo, mas somente os escravos, e escravos, escra- vos nªo sªo um partido, sªo no mÆxi- mo a retaguarda de um partido. A desertora direita berlinense73 nªo leva nenhuma força ao campo inimigo, e sim o infecta com uma doença mortal, com a traiçªo. Na `ustria o partido eslavo ven- ceu com a camarilha; ele agora lutarÆ com a camarilha pelo botim. Se a ca- marilha berlinense vencer, nªo terÆ de dividir a vitória com a direita e a farÆ valer contra a direita; ela lhe darÆ uma gorjeta e um pontapØ. A Coroa prussiana estÆ em seu di- reito quando enfrenta a AssemblØia como uma Coroa absoluta. Mas a As- semblØia estÆ no nªo-direito, porque nªo enfrenta a Coroa como uma As- semblØia absoluta. Acima de tudo ela deveria prender os ministros por alta traiçªo, por alta traiçªo contra a sobe- rania do povo. Deveria pôr sob vigi- lância, fora da lei, todo funcionÆrio que desse ouvidos a outras ordens que nªo as suas. Assim seria possível que a fraque- za política com que a AssemblØia Naci- onal se reuniu em Berlim se transfor- masse em sua força burguesa nas pro- víncias. A burguesia teria transformado com muito prazer a monarquia feudal em uma monarquia burguesa pelo ca- minho amistoso. Depois de arrancar ao partido feudal os brasıes e títulos ofensivos a seu orgulho burguŒs e os rendimentos pertencentes à proprieda- de feudal que violam o modo de apro- priaçªo burguŒs, ela teria com todo o prazer se casado com o partido feudal e subjugado o povo junto com ele. Mas a alta burocracia nªo quer decair cria- da de uma burguesia, de quem fora, atØ agora, a despótica mestre-escola. O partido feudal nªo quer queimar no altar da burguesia suas distinçıes e seus interesses. E, finalmente, a Coroa vŒ nos elementos da velha sociedade feu- dal, de que Ø a mais alta emanaçªo, seu
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