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Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 277-286, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 277 A IMPORTÂNCIA DA FOLIA DE REIS COMO TRADIÇÃO IDENTITÁRIA DO MUNICÍPIO DE CANÁPOLIS – MG Roberta Santana Braga* Ana Lúcia Martins Kamimura** Resumo O presente trabalho apresenta a Folia de Reis, uma das festas mais importantes da cultura popular, como um espaço para o resgate e consolidação da memória e a reconstrução de um jeito de ser, de pensar e de agir que funciona como âncora identitária da comunidade rural da Soledade do município de Canápolis-MG. Tem como encaminhamento metodológico pesquisa bibliográfica teórica e documental, além de depoimentos de sujeitos residentes no município de Canápolis-MG. Faz um breve esboço da dinâmica societal contemporânea e apresenta as festas religiosas como mecanismos que contrapõem a esse estilo de vida que individualiza, desagrega e despersonaliza. Palavras-chave: Folia de Reis. Tradição. Identidade. 1. INTRODUÇÃO O município de Canápolis, Estado de Minas Gerais, insere-se na microrregião do Triângulo Mineiro localizada na mesorregião do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Distante 475 quilômetros de Brasília e 671 quilômetros de Belo Horizonte, possui uma população de 11.313 habitantes e uma área de 845,24 quilômetros quadrados1. O município tem sua economia voltada para o comércio e algumas indústrias de grande porte, predominando a pecuária e agricultura com plantações de abacaxi e cana-de-açúcar. Por ser um município novo, com 60 anos de fundação, a cidade guarda, até os dias atuais, características do mundo rural no tocante aos seus costumes e tradições. Como todas as cidades do interior mineiro, mais pontualmente da região do Triângulo Mineiro, a sociedade se formou sob os auspícios da religião católica e, ainda hoje, mantém os seus ritos e festas. Durante o ano são celebradas as festas em homenagem aos santos devocionais, destacando-se, dentre elas: Festas em Louvor a Nossa Senhora de Fátima e São Sebastião, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e a Festa da Folia de Reis da Soledade. * Aluna do curso de Pós-graduação em Gestão de Cultura e Políticas Públicas da Faculdade Católica de Uberlândia. ** Professora orientadora, Graduada em Serviço Social e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora do curso de Serviço Social da Faculdade Católica de Uberlândia. E-mail: ana_kamimura@hotmail.com. 1 Censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, 2007. Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 277-286, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 278 A escolha do universo de pesquisa voltado para a Folia de Reis e a Festa de Reis da Soledade está relacionada com a falta de estudos ou mesmo de uma documentação sociológico histórica sobre a representatividade desse rito na comunidade rural e sua importância como tradição identitária do município, responsável pelo importante papel de guardiã de um saber muito especial, passado de geração para geração e vivo até os dias atuais. 2. UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA DA FOLIA DE REIS A Folia de Reis é um festejo de origem portuguesa ligado às comemorações do culto católico do Natal. Trazido para o Brasil ainda nos primórdios da formação da identidade cultural brasileira, ainda hoje mantém-se vivo nas manifestações folclóricas de muitas regiões do país. O eixo central da Folia de Reis é a viagem Epifânica realizada pelos magos do Oriente. Tendo à frente uma bandeira com a estampa dos Santos Reis (que também é chamada de guia), os foliões passam de casa em casa, revivendo a caminhada dos magos que partiram do Oriente rumo à cidade de Belém em busca do Menino-Deus. Os foliões repetem esse caminho, referendados pelo texto do evangelista Mateus (Mt 2, 1-2).: “Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia no tempo do rei Herodes, eis que vieram magos do Oriente a Jerusalém, perguntando: ‘onde está o rei dos judeus recém-nascido? Com efeito, vimos a sua estrela no céu surgir e viemos homenageá-lo” Segundo Cascudo (1980, p.336) “Era no Portugal velho uma dança rápida, ao som do pandeiro ou adufe, acompanhada de cantos”. No entanto, desde o seu surgimento na Península Ibérica, até o presente momento, é possível perceber que muitas mudanças e adaptações foram ocorrendo no seu ritual. As Folias de Reis da atualidade preservam os elementos de sua origem que remontam às denominadas epifanias2. Nelas estão incluídos os festejos pela passagem bíblica que relata a visita dos três Reis Magos ao filho de Deus. Em suas origens não havia data específica para essas comemorações que aconteciam em diferentes momentos. A unificação do calendário cristão foi feita pelo Papa Julio I, em 367 d.C. que fixou a data de 25 de dezembro para a festa do nascimento de Cristo e dia 6 de janeiro para celebração e adoração dos Reis Magros. No Brasil a área de maior incidência dessas comemorações, tem sido a região Sudeste. 2 Festividade religiosa comemorativa da aparição ou manifestação Divina. 4. ed. revista e ampliada do mini- dicionário Aurélio, 2001. Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 277-286, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 279 Geralmente, os grupos de Folias de Santos Reis têm uma unidade ritual autônoma. Não estão submetidos à orientação da Igreja institucional, ocorre fora dos seus templos e sem a presença do clero. Mesmo que um grupo inspire-se num outro já existente, dificilmente se vê unidade de rito e significações, isso porque os códigos de relações, as normas, a estrutura da festa e o imaginário vão sendo construídos entre os homens e mulheres da própria Companhia, mediada pela experiência vivida no cotidiano. É por isso que, apesar de terem um único eixo, elas se diferenciam no ritual, nas construções simbólicas e nos papéis desempenhados por seus foliões. As folias brasileiras têm suas origens nas matrizes ibéricas, mas com o passar do tempo foram se modificando e na atualidade possuem características próprias. Câmara Cascudo (1998, p.402) define Folia como: [...] um grupo de homens, usando símbolos devocionais, acompanhando com cantos o ciclo [...] festejando-lhe às vésperas e participando do dia votivo [...] não tem em Portugal o aspecto precatório da folia brasileira, mineira e paulista [...] é uma espécie de confraria, meio sagrada, meio profana, instituída para implorar a proteção divina contra pragas malignas que às vezes infestam os campos [...] Há o rei, o pajem, o alferes, dois mordomos e seis fidalgos. Nesta definição é possível observar a presença dos símbolos, do sagrado e profano e, principalmente, a existência de uma ressignificação da folia vinda de Portugal. Não é possível pensar em uma tradição cultural de Folia de Reis em Canápolis - MG, tal qual existia em Portugal, nem mesmo iguais as de outras partes do Brasil. Os grupos de foliões do município guardam muitas especificidades que apontam para influências das culturas africanas da época da escravidão. Como a performance dos palhaços, o uso de instrumentos de percussão, muita cor e alegria no ritual: Tudo é simbolicamente usado para retratar a história seguida pela fé cristã: objetos, personagens, campos, roupas e cores [...] acreditando no caráter religioso atribuído popularmente aos três Reis Magos, protetores das famílias, das criações, das lavouras e dos bens terrestres” (TIRAPELI, 2003: 40). Num tempo em que a tradição perde força e a unidade familiar em torno da crença torna- se cada vez mais rara, a Folia de Reis figura como um exemplo vivo de fé e devoção, passadade pais para filhos e assim, sucessivamente. No entanto, como a cultura não pode ser congelada, a própria tradição faz-se dinâmica (Ferretti, 1995), porque as pessoas não se limitam apenas a reproduzir, mas a construir, através de sua subjetividade, de sua interpretação e ressignificação, uma realidade simbólica. Nesse sentido, muitas informações e Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 277-286, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 280 ponderações apresentadas aqui foram obtidas da Folia de Reis da Soledade, município de Canápolis-MG. 3. A FESTA DE REIS DA SOLEDADE A região da Soledade, comunidade rural situada ao leste do município de Canápolis, clima temperado, destaca-se na história do mesmo por apresentar um grande número de moradores que bem antes da fundação da cidade concentrava suas colônias, empórios, padarias e farmácias na região. Nas fazendas da região da Soledade além da pecuária destaca- se a plantação de cana-de-açúcar, abacaxi, soja, milho, algodão e sorgo. A região é rica por apresentar terra fértil e potencial hídrico. A Festa de Reis da Soledade evidencia uma situação bem interessante. Em 1965 houve uma grande seca na região, os córregos secando e o gado morrendo por falta d’água, motivo este que levou o Sr. José Costa Oliveira, proprietário da Fazenda Nossa Senhora Aparecida – Soledade – Carro de Boi a fazer uma promessa a seus santos de devoção, os Três Reis do Oriente, comprometendo-se que enquanto vida tivesse, sairia com a Folia de Reis pela região, e que seus filhos, netos, familiares e amigos continuariam a cumprir sua promessa após a sua morte, se não faltasse mais chuva para que o gado e as plantações sobrevivessem. Naquela mesma semana choveu em abundância e o Sr. José da Costa Oliveira e sua esposa Maria Cândida Oliveira começaram a cumprir sua promessa em janeiro de 1966. Desde então, os foliões saem todo dia 29 de dezembro e percorrem as fazendas até o dia 05 de janeiro, visitando aproximadamente 150 residências. No dia 06 de janeiro, data em que se comemora o dia dos Três Reis Magos faz-se a cerimônia da chegada da Folia às 14:00 horas na propriedade escolhida para a festa, onde é celebrada a Missa Sertaneja. Após a missa é servido um jantar seguido de doces caseiros a todos os visitantes. Em seguida acontece o leilão dos donativos arrecadados durante a caminhada como bezerros, porcos, prendas, dentre outros, intercalando o leilão com baile e coroação dos três festeiros escolhidos para a realização da festa do próximo ano. Os donativos e a renda da Festa são revertidos em cadeiras de roda, cadeiras para banho e cestas básicas, a serem doadas às pessoas carentes ou entidades. A Festa da Folia de Reis da Soledade é realizada a cada ano em uma propriedade diferente, buscando oportunizar a participação de todos os moradores da região. Os habitantes da região da Soledade bem como ex-moradores unem-se a cada ano e fazem trabalhos Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 277-286, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 281 voluntários para a realização da Festa, como: ajudantes de cozinha, montagem de tendas, ornamentação, segurança e ajudantes para estacionamento. No período de caminhada para a arrecadação de donativos, quando os foliões chegam em alguma residência em que o proprietário alega não ter condições para fazer doação, a própria folia já começa a fazer caridade, doando àquela família mantimentos que já foram arrecadados para a festa3. Os instrumentos utilizados pela Folia de Reis da Soledade são: acordeom, caixas, cavaquinho e pandeiro. Também fazem parte da composição: o alfer, 1º e 2º capitães, 1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª vozes, o tenente e os palhaços. A alegria dos palhaços dá um brilho especial à jornada a ser cumprida. Momentos de emoção e fé contagiam a todos que acompanham de perto a caminhada da Folia de Reis da Soledade. Além da esmola e dos versos inspirados na história bíblica do nascimento de Cristo, os foliões, lançando mão de uma criatividade ímpar, improvisam, na cantoria, as tristezas, as dificuldades, as alegrias, as saudades e a solidariedade vivida pelas pessoas, no dia-a-dia4. A festa envolve foliões e turistas dos municípios de Canápolis, Ituiutaba, Capinópolis, Prata, Uberlândia e todo o Triângulo Mineiro. Nos seis últimos dias de cada ano, essas pessoas que hoje residem em várias cidades do estado ou até mesmo em outros estados têm um encontro marcado. Há uma revitalização dos laços familiares, uma vez que a Folia de Reis traz de volta os filhos que saíram do lugar onde nasceram. A cada ano cerca de 3.000 pessoas participam da tradicional Festa de Reis da Soledade. No ano de 2007 a Folia de Reis da Soledade foi catalogada como bem imaterial através do inventário do acervo cultural do município de Canápolis enviado ao IEPHA-MG5. Se entendermos que a função da raiz é fixar o organismo vegetal e retirar do substrato os nutrientes e a água necessários para a planta, vamos entender o porquê dessas pessoas terem um encontro marcado e repetirem, anualmente, esse ritual. O objetivo maior da Festa é continuar a cumprir a promessa do Sr. José Costa de Oliveira, já falecido, deixando que essa tradição religiosa e cultural não se extinga, e ajudando o próximo através de doações, mas a Festa de Reis da Soledade vai além do cumprimento da promessa do Sr. José Costa. Nota-se 3 Dados coletados através de memória oral. Entrevistada: Maria Cândida Oliveira, moradora da Comunidade Soledade – Fazenda Nossa Senhora Aparecida – Soledade – Carro de Boi, 2008. 4 Dados coletados através de memória oral. Entrevistada: Rosimar Aparecida Gervásio – alfer da Folia de Reis da Soledade e organizadora da Festa da Folia de Reis da Soledade, 2008. 5 Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 277-286, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 282 que a Folia de Reis é um espaço e a Festa de Reis da Soledade é o lugar para reencontrarem os amigos, fazerem memória de um tempo, dando ao mesmo novo significado. Como a grande maioria das pessoas engajadas na folia tem uma origem rural, o ritual recria o espaço da ruralidade. São os arcos de bambus, as folhas de coqueiros ou bananeiras, as comidas feitas nos tachos, o próprio cardápio e a forma de fazer a comida, que são também recuperados. Em cada casa, venda, roçado e quintal nos quais a folia entra, há um encontro dos santos peregrinos, com os devotos que recebem a bandeira. Mas o encontro maior acontece nas casas onde se dá o almoço e o jantar (pouso), que são sempre festivos. Para que a Festa de Reis da Soledade possa acontecer, existe uma responsabilidade solidária daqueles que possuem uma situação privilegiada em relação aos demais participantes, que é traduzida nas vacas que são ofertadas, nas leitoas, nos frangos e grãos que são oferecidos. Desde os ínfimos valores em moeda corrente, que são colocados na bandeira, a um ovo que é doado, um dia de trabalho nos tachos de comida, a uma barraca que é levantada ou um altar que é enfeitado, é possível perceber uma adesão voluntária que contrapõe o mundo contemporâneo individualizador e mercantilizado. Existe um intercâmbio de favores onde o mutirão é regido pelas relações interpessoais de obrigações morais. Nele, não apenas o trabalho é partilhado, mas as dificuldades, as preocupações, os sonhos, os projetos, as dores e aprendizagens. São as receitas da culinária, dos chás e das simpatias que circulam e são ensinados. Segundo Bosi (1994, p.55) “Halbwachs amarra a memória da pessoa à memória do grupo; e esta última à esfera maior da tradição, que é a memóriacoletiva da sociedade”. A autora assegura que o fato de lembrarmos ou esquecermos determinados fatos depende dos grupos de convívio ou de referências, porque fazer memória é mais do que lembrar, é refazer, reconstruir. Ou seja, memória é trabalho. Nesse sentido os fatos que são testemunhados são objetos de lembranças e conversas e, logo, são revividos, recriados e legitimados pelo grupo. “O grupo é suporte da memória se nos identificamos com ele e fazemos nosso seu passado” (BOSI, 1994, p. 414). O mutirão solidário que acontece na Festa de Reis da Soledade, geralmente, gira em torno da comida que é sempre farta e alimenta a todos. A comida é um elemento importante, porque é a somatória dos esforços materiais e afetivos da comunidade. Outro fato importante é que a Folia de Reis e a devoção aos santos Magos do Oriente figuram como um elemento identificador entre os moradores da comunidade da Soledade. Percebe-se que ser folião é partilhar de um sentimento comum, de uma mesma crença, de uma paixão conjunta que é fortalecida pelo rito anualmente repetido. Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 277-286, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 283 A Festa de Reis da Soledade é um tempo e espaço para fazer memória de fatos passados, de ensinamentos que estão adormecidos, mas são despertados pela coletividade e atualizados na vida de cada um. 4.MEMÓRIA COLETIVA NA CONTEMPORÂNEIDADE: DESAFIOS PRESENTES O mundo contemporâneo criou um espaço urbano desagregador que inviabiliza o fortalecimento da rede de solidariedade. Como um dos exemplos de desagregação causada pela dinâmica imposta nas últimas décadas, pode-se citar o próprio cerimonial da comida. Cenas de famílias reunidas em torno de uma mesa têm sido cada vez mais raras. O relógio impiedoso, com seus ponteiros desgovernados e horários diversos, tem impossibilitado o encontro familiar. Nas grandes cidades, o almoço tem sido substituído pelas refeições rápidas, feitas na lanchonete mais próxima. Ou ainda, aqueles que moram distante do trabalho levam marmita e fazem a sua refeição na sua seção de trabalho ou nos canteiros de obras. Uma outra mudança tem ocorrido na forma de preparação da comida. Na zona rural e nas pequenas cidades, o fogão à lenha tem sido substituído pelo fogão a gás. Nas cidades maiores, o fogão a gás já perde função para o forno de micro-ondas. A culinária, aos poucos, vai sendo substituída pelos produtos pré-cozidos ou congelados e os rituais tradicionais acabam suplantados por outros costumes. Um dos costumes do povo mineiro, que atualmente já está caindo em desuso, é a reunião dos familiares e amigos para as grandes pamonhadas. Nesses eventos, há todo um ritual para cortar o milho, limpar e ralar as espigas e amarrar as pamonhas. Atualmente, as pamonharias multiplicam-se. Pode-se comprar o produto acabado ou a massa pronta para não se ‘perder tempo’. Afinal, numa sociedade capitalista, tempo equivale a dinheiro. No entanto, não se pode negar que o mutirão em torno do feitio da comida ou mesmo o fato de sentar-se à mesa ou em torno de uma churrasqueira (costume ainda preservado) abre- se o espaço para as conversas, para a resolução de conflitos, para a evocação das lembranças. “Comemos com nossas lembranças (...). Comemos as lembranças que nos garantem mais segurança, condimentadas com ternura e ritos, ou seja, as que marcaram nossa pequena infância” (MOULIN apud RIVIÈRE, 1996, p. 256). “Comer juntamente com os outros ensina a viver juntos, a manipular um sistema de sinais e compartilhar uma cultura ao mesmo tempo em que o objeto alimentar” (RIVIÈRE, 1996, p. 260). O mutirão, movido pela Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 277-286, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 284 responsabilidade solidária, o cardápio, os “causos”, as lembranças, as saudades, os ensinamentos... São elementos que podem ressignificar uma vida vazia de sentido e evitar o caos desestruturador, porque “o homem é um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu” (GEERTZ, 1989, p. 15). Na Festa de Reis da Soledade o ritual do feitio da comida para o dia da festa ainda é preservado, valorizando o ritual e os costumes do povo mineiro. Sem dúvida, só cabe à comunidade preservar aquilo que lhe é próprio, que ela reconhece como um bem que possui valor identitário, então, convém que a mesma busque, juntamente com os grupos de Reis locais, os representantes da municipalidade e do clero, a preservação dessa tradição cultural. Cabe destacar que, seria também a partir das políticas de preservação do patrimônio cultural imaterial6, por meio da investigação dos costumes, melodias, festas, línguas, rituais, lugares, entre outros, que os saberes transmitidos às gerações, seria viabilizado como forma de dar continuidade àquele bem identificado como relevante pelas comunidades, com vistas ao respeito e à diversidade cultural. 5. CONSIDERAÇÕES FENAIS Ao estudar a Folia de Reis no município de Canápolis como tradição identitária nota-se um dado interessante. A maioria de seus participantes foram levados pelos avós, pelos pais ou familiares. Esse dado evidenciado neste trabalho revela que a tradição contribui de maneira básica para a segurança do ser humano. Isso se dá porque o tempo presente representa a continuidade do passado e a esperança do futuro. Nesse sentido, é possível afirmar que o ritual da Folia de Reis cumpre um importante papel: o de reunir antigos moradores do lugarejo que hoje vivem em várias cidades e estados. E, ao encontrar os amigos, reviver as saudades, ativar a memória que foi construída pela coletividade, reavivar também os valores e crenças. Essa é uma forma de construir um grupo social. 6 Entende-se por Patrimônio Cultural Imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este Patrimônio Cultural Imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL, 2005. Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 277-286, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 285 Nesse grupo social, existe um jeito próprio de ser que está carregado de sentimentos, de percepções e atravessados por valores e visões de mundo que funcionam como âncoras identitárias. Num tempo, em que o dia de domingo não pode mais ser assegurado como o dia de descanso, o comércio não fecha e as indústrias não param, criar um tempo de convivência, de trabalho, de oração e de festa é reforçar um mecanismo que contrapõe ao mundo individualizado, mercantilizado e dividido. “A nostalgia se transforma então numa vontade partilhada de produzir um lugar, com sua identidade local, reconstruindo para esse fim os signos do seu passado como elementos fundadores do seu futuro” (JEUDY, 1990, p. 120). Concluindo, é possível apontar o ritual da Folia de Reis da Soledade como um mecanismo integrador e identitário no município de Canápolis, mesmo que temporário. Em primeiro lugar, porque oportuniza a reunião dos familiares, o encontro dos amigos, reencontro dos parentes e vizinhos. Em segundo lugar, porque, ao fazer memórias, reavivar as crenças, os valores e reviver as saudades, a pessoa entra em contato com a unidadeperdida de si mesma, refaz-se, reconstrói-se e combate o grande vazio existencial da contemporaneidade. Ser o mais inteiro possível, eis um desafio ousado para esse tempo de intenso trânsito e fragmentação. Referências A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1985. BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3 ed. São Paulo: Companhia das letras, 1994. CASCUDO, L.da C. Dicionário do folclore brasileiro. vol. 5 CUNHA. M.C.da. Patrimônio imaterial e biodiversidade. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Nº 32/2005. DURKHEIM, É. As formas elementares da vida religiosa. Trad. Joaquim Pereira Neto. 2 ed. São Paulo: Paulus, 1989. FERREIRA, M.N. (org). A tradição e seu significado para o turismo cultural: o Vale do Paraíba. São Paulo: CELACC, 1999. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. Revista da Católica, Uberlândia, v. 2, n. 3, p. 277-286, 2010 – catolicaonline.com.br/revistadacatolica 286 JEUDY, H.-P. Memórias do social. Trad. Márcia Cavalcanti. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. RIVIÈRE, C. Os ritos profanos. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1996. TIRAPELI, P. Festas da fé: Brasil. São Paulo: Metalivros, 2003.
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