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HISTÓRIA DA AMÉRICA II12 UNIMES VIRTUAL Aula: 01 Temática: A sociedade colonial inglesa na América do Norte Um dos fatos mais intrigantes para todos aqueles que se debruçam sobre a história da América é a constatação das diferenças que marcam os processos de colonização, bem como as diferenças entre os Estados formados após a independência e, principalmente, a imensa diferença entre o desenvolvimento político e eco- nômico das ex-colônias inglesas da América do Norte e os demais países do chamado Novo Mundo. Para que se possa compreender tais diferenças é necessá- rio considerar o processo de colonização dos atuais Esta- dos Unidos e parte do Canadá. Já se tornou senso comum apontar para esse processo de colonização como sendo um processo de povoamento e não de exploração, diferente, portanto, do que aconteceu nas outras regiões da América, compreendendo desde a região do Méxi- co, passando pelo Caribe e a América do Sul. As formas de colonização explicam parte das diferenças. Antes de mais nada, é preciso deixar de lado a idéia de que a colonização inglesa tinha como característica inerente uma maior tolerância em relação às suas co- lônias. Se considerarmos a colonização inglesa em regiões do Caribe e em regiões da África e da Ásia ou, da mesma forma, a colonização realizada pelos holandeses, é possível observar o empreendimento colonial basea- do na extração e na agricultura voltado para a exportação, com base em grandes propriedades monocultoras e com utilização de trabalho compul- sório, tal como se estabeleceu nas regiões colonizadas pelos ibéricos. Outro ponto importante a ser considerado é que nem toda a região das Treze Colônias inglesas da América do Norte estava destinada especifi- camente ao povoamento, tal como se pode constatar pela existência do sistema de plantation nas colônias da região sul do que hoje são os Es- tados Unidos. Entretanto, muito embora se possa falar do caráter mercan- tilista da colonização inglesa, as diferenças da metrópole colonizadora em relação às metrópoles ibéricas são bastan- te relevantes e explicam parte das causas da emancipação das treze colô- nias - New Hampshire, Massassuchetts, Connecticut, Rhode Island, Nova York, Pensilvânia, New Jersey, Delaware, Maryland, Virginia, Carolina do HISTÓRIA DA AMÉRICA II 13 UNIMES VIRTUAL Norte, Carolina do Sul, Geórgia. Explica, sobretudo, que o Estado surgido desse processo tenha assumido características tão diferentes dos outros que surgiriam no continente. A maior parte dos colonizadores da região pertenciam a minorias religiosas, perseguidas desde o início da reforma religiosa inglesa, ainda no século XVI, mas principalmente, no período que se seguiu à morte de Elizabeth I, em 1603. Embora fossem maioria, os colonos não vieram apenas da Inglaterra, mas também de outras regiões da Europa. Mesmo perseguidos na metrópo- le, tais colonos não deixaram de levar para as novas terras parte da tradição política inglesa, o que implicou no estabelecimento do auto-governo e ainda a consideração da necessidade de limites ao poder do rei. O absolutismo inglês desenvolveu-se de modo muito di- ferente do que pode ser observado na área continental da Europa. A tradição de um parlamento — se não comple- tamente independente, mas atuante — e traços de igualdade jurídica já presentes na Inglaterra desde a Idade Média, influenciariam sobremaneira a organização dos colonos no Novo Mundo, bem como as idéias que leva- ram à independência e aos fundamentos do novo Estado. Para ilustrar essa diferença do absolutismo inglês com relação aos demais, observemos o que coloca Perry Anderson a respeito da justiça: Ao passo que no continente o sistema de justiça se achava geralmente dividido entre a jurisdição real segregada e as jurisdições senhoriais, em Inglaterra a sobrevivência dos tribunais populares pré-feudais proporcionara uma espécie de terreno comum em que podia conseguir-se uma mistura de ambas, pois os xerifes que presidiam aos tribunais dos condados eram de nomeação régia não-hereditária, e no en- tanto selecionados de entre a fidalguia local, não de entre uma burocracia central; e os próprios tribunais retinham vestígios de seu carácter original como as- sembléias jurídicas populares, nas quais os homens livres da comunidade rural se apresentavam perante seus iguais. (ANDERSON, 1984, p.131.) Note-se na passagem acima o peso do local — da comunidade — na tra- dição judiciária inglesa e, ainda, do princípio de igualdade que, se não era suficiente para eliminar todos os privilégios conferidos às classes nobres, ao menos reconhecia a todos os homens livres, a possibilidade de se fazer representar. Como veremos mais adiante, a valorização do local, da co- munidade, bem como o direito de representação estendido a todos, eram parte do ideário dos colonos que promoveram a independência. HISTÓRIA DA AMÉRICA II14 UNIMES VIRTUAL Há ainda que se considerar que, muito embora a confissão religiosa ocupasse um aspecto central na sociedade que se formou nas Treze Colônias, não houve nelas o peso ou a in- fluência da religião que houve na América ibérica. Essa ausência pode ser explicada pela herança inglesa, uma vez que, a ruptura entre Henrique VIII e a autoridade papal, com a posterior criação de uma religião do Estado submetida à autoridade do rei, livrou a Inglaterra e suas colônias da influ- ência e do poder da Igreja de Roma, permitindo o surgimento de estruturas políticas e sociais diferenciadas em relação às que se pode observar na América ibérica. Ainda a respeito da religião, boa parte dos colonos das terras inglesas da América do Norte era protestante. Max Weber, em sua análise sobre o desenvolvimento do capitalismo no Ocidente e sua relação com o ethos protestante, fez a seguinte colocação: Ainda mais notável, […], é a relação entre uma filosofia da vida religiosa e o mais intenso de- senvolvimento da perspicácia comercial entre as seitas cujo alheamento da vida se tornou tão proverbial quanto a sua riqueza, principalmente entre os quakers e os menonitas. O papel que os primeiros tiveram na Inglaterra e na América do Norte coube aos segundos na Holanda e na Ale- manha. (WEBER, 2001, p.23.) Como se pode notar pelo trecho acima e, como veremos mais adiante, a influência do ethos (do grego Ethos – lugar, modo de discurso) protestante, com todos os seu elementos de ascese, valorização do trabalho, da pou- pança, da disciplina do corpo e da mente permaneceram na configuração do Estado que surgiu depois da independência. Ainda sobre o protestantismo e suas concepções de mundo é importante atentar para o este outro trecho em Weber: À organização social-orgânica, do tipo fiscal. monopo- lista adotada pelo anglicanismo sob os Stuarts, […], a essa ligação do Estado e da Igreja com os monopo- listas, fundamentada numa ética social cristã – opu- nha o calvinismo, […], os motivos individualistas da aquisição racional e legal através da habilidade e da inciativa de cada um, que – […] – teve uma parte ponderável e decisiva no desenvolvimento industrial que se deu apesar da, e contra a, autoridade do Esta- do. (Id. Ibid, p.98.) HISTÓRIA DA AMÉRICA II 15 UNIMES VIRTUAL O trecho acima diz respeito à oposição dos calvinistas na Inglaterra à di- reção dada pelos Stuarts à economia, e revela a mesma disposição moral entre a maior parte dos colonos na América. Para além das questões políticas, ideológicas e culturais, mas relaciona- da a todas elas, existe uma outra questão fundamental,que diz respeito à economia desenvolvida nas Treze Colônias ou em parte delas. Como já se colocou, as colônias do Sul, Maryland, Virgínia, Carolina do Norte, Carolina do Sul e Geórgia, desenvolveram, principalmente, uma economia voltada para o mercado externo,nos moldes do pacto colonial, tal como se pôde observar em outras áreas da América — nas colônias ibéricas, ou mesmo nas áreas de colonização francesa, inglesa e holandesa nas Antilhas, por exemplo. No entanto, nas colônias do Norte e do Centro,a economia se desenvolveu de outro modo. No Norte e no Centro as condições climáticas e geográficas muito semelhantes às da Europa impediram o desenvolvi- mento de uma agricultura ou de atividades extrativistas de produtos tropicais que interessassem ao mercado europeu. Dessa manei- ra, não foi imposto às tais colônias o modelo de administração típico das áreas coloniais da América, baseado num estrito controle das metrópoles. Floresceu, então, nessas regiões a atividade mercantil voltada para o mer- cado interno e para o mercado externo, livre das amarras da fiscalização metropolitana. O mesmo se deu com a atividade manufatureira. Empurrados por necessidades de expansão — já que ocupavam uma es- treita faixa de terra — pelo dinamismo da economia e pelo crescimento da população, os colonos iniciaram um movimento de ocupação de terras mais ao Norte, na direção do Canadá. O conflito entre os colonos ingleses e a França que dominava a região contribuiu para a Guerra dos Sete Anos (1756-1763) entre esse país e a Inglaterra. A guerra, que se desenrolou também na Europa e na Ásia, envolvendo aliados dos dois principais impé- rios, contou com uma intensa participação dos colonos. Entretanto, apesar da vitória inglesa, o rei Jorge III proibiu o acesso dos colonos americanos às terras do vale do Ohio. Além disso, as despesas com a conflito impli- caram na elevação da carga tributária para os colonos, o que aumentou a revolta entre eles. Ademais, em função das despesas do Estado e dos novos ventos que so- pravam na economia inglesa, com o franco desenvolvimento da Revolução Industrial, a disposição da metrópole mudou em relação às suas colônias, aumentando a fiscalização sobre elas para evitar o contrabando e garantir mercado para os produtos industrializados e o fornecimento de matéria prima. O súbito recrudescimento do pacto colonial e a negativa inglesa de assegurar às colônias a participação de seus representantes nos proces- HISTÓRIA DA AMÉRICA II16 UNIMES VIRTUAL sos decisórios metropolitanos que lhe diziam respeito lançaram as bases para a independência. Nesta aula pudemos ver como algumas das características ide- ológicas e culturais presentes nas colônias inglesas da Amé- rica do Norte foram importantes para o estabelecimento das diferenças sociais, políticas e econômicas em relação à América Ibérica. A esse respeito reflita: Qual é o lugar das questões ideológi- cas e culturais na determinação dos processos históricos? Tais questões são sempre determinadas pelos aspectos econômicos? HISTÓRIA DA AMÉRICA II 17 UNIMES VIRTUAL Aula: 02 Temática: A independência das Treze Colônias e a formação do Estado Tal como visto na aula anterior, questões objetivas como o recrudescimento do pacto colonial da metrópole inglesa com relação às suas colônias na América do Norte, empur- rou-as para o processo de independência. É importante lembrar que nesse primeiro momento o I Congresso da Filadélfia que foi realizado em 1774 estabeleceu como objetivo a participação dos colonos nas decisões da metrópole, no que dissesse respeito a eles e seus negócios. Este mesmo processo será visto em boa parte da América Ibérica no processo das independências, ou seja, o objetivo inicial muitas vezes não era a emanci- pação, e sim, alcançar um outro status de mais liberdade e participação junto à metrópole. A esse respeito coloca Arendt, Em outras palavras, devemos nos voltar para as Re- voluções Francesa e Americana, e devemos levar em conta que ambas foram protagonizadas, em seus es- tágios iniciais, por homens que estavam firmemente convencidos de que não fariam outra coisa senão res- taurar uma antiga ordem de coisas que fora perturba- da e violada pelo despotismo de monarcas absolutos ou por abusos do governo colonial. Eles alegavam, com toda sinceridade, que desejavam o retorno dos velhos tempos em que as coisas eram como deviam ser. (ARENDT, 1988, p. 35.) Vimos que a influência de outros fatores de natureza ideológica que defi- niram o meio social da colônia e continuaram exercendo influência sobre o Estado constituído na região. Entretanto, é importante ressaltar que, no contexto do processo que levou à independência, a influência das idéias do Iluminismo foi fundamental. No conjunto dos movimentos políticos con- siderados revolucionários, tais como a Guerra de libertação das Treze Colô- nias a Revolução Francesa e, até mesmo, movimentos de menor alcance e importância como a Inconfidência Mineira de 1789, é possível perceber a sua influência do movimento das Luzes. Ideais como liberdade, e igualdade, no que diz respeito aos direitos; o anticolonialismo e, no caso da Independência dos Estados Unidos, o anti- despotismo podem ser observados. A esse respeito vejamos, O horror ao despotismo foi o traço de união de todos HISTÓRIA DA AMÉRICA II18 UNIMES VIRTUAL os filósofos da Ilustração. Voltaire combateu a tirania religiosa e a exercida pelo aparelho judicial arcaico dos parlamentos: Montesquieu pregou o princípio da divisão dos poderes com a finalidade principal de evitar a tirania que resultaria da supremacia de um dos poderes, e foi o mais veemente crítico, em geral, do despotismo, forma de governo cujo princípio é o medo, em contraste com a república, cujo princípio é a virtude, e a aristocracia, cujo princípio é a honra.( ROUANET In: NOVAES, 1992, p. 336.) Ora, se considerarmos as causas objetivas da independên- cia, bem como o fato de que nos seus primeiros momentos o que desejavam os colonos não era independência, mas a “não taxação sem representação”. Veremos que o que de fato animou a luta por uma maior participação nas decisões e, em seguida pela inde- pendência, foi o horror ao despotismo e à tirania inspirado pelas idéias iluministas. Em 1775, no II Congresso da Filadélfia, sem o atendimento das reivindi- cações dos colonos pela metrópole, a idéia de separação começa a ser gestada. Em 1776 é publicada a Declaração de Independência, da qual se reproduz um trecho a seguir. Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário um povo dissolver laços políticos que o ligavam a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, posição igual e separada, a que lhe dão di- reito as leis da natureza e as do Deus da natureza, o respeito digno às opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os levam a essa separação. Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalie- náveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne des- trutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela for- ma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade. Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituí- dos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que HISTÓRIA DA AMÉRICA II 19 UNIMES VIRTUAL os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abo- lindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguin- do invariavelmente o mesmo objeto, indica o desígniode reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos-Guardas para sua futura segurança. Tal tem sido o sofrimento paciente destas colônias e tal agora a necessidade que as força a alterar os sistemas anteriores de governo. A história do atual Rei da Grã-Bretanha compõe-se de repetidos danos e usurpações, tendo todos por objetivo direto o esta- belecimento da tirania absoluta sobre estes Estados. Para prová-lo, permitam-nos submeter os fatos a um cândido mundo. (DECLARAÇÃO de independência, 1776, online)1 É possível, a partir desse trecho da declaração redigida por Thomas Jeffer- son, verificar claramente algumas das idéias colocadas acima a respeito das condições objetivas e subjetivas que conduziram à independência dos Estados Unidos. A partir da ruptura então declarada, têm início a Guerra de Independência, de 1776 a 1783. O comando do exército libertador foi entregue a George Washington. A partir de 1778 foi estabelecida uma aliança entre o Estados Unidos e a França. Esta última via na guerra e no apoio aos revolucionários a possibilidade de enfraquecer a hegemonia da Inglaterra. Em 1783, der- rotada, a Inglaterra reconhece a independência dos Estados Unidos. Tal Independência, para alguns, surge como sendo a principal fonte de inspiração para os movimentos de libertação que surgiriam na América depois. Outros consideram que foi um movimento que influenciou a Revo- lução Francesa. No entanto, com relação aos movimentos de libertação da América, à exceção talvez da Inconfidência Mineira, em 1789, movimento como já se disse de alcance e importância reduzidos,2 todos os outros movimentos parecem ter sido muito mais influenciados pela Revolução Francesa, além dos fatores relacionados às guerras napoleônicas do sécu- lo XIX, do que pelo movimento dos Estados Unidos. A respeito do alcance da Revolução Americana, vejamos o que coloca Arendt: 1 Para consulta à Declaração da Independência dos Estados Unidos de 1776 na íntegra, acesse o endereço no site da Embaixada Americana, http://www.embaixada-americana.org.br/index.php?action=materia&id=645&s 2 A este respeito afirma Rouanet: “Com exceção do semiproletário Joaquim José da Silva Xavier e do filho de artesão que foi José Joaquim Maia, os inconfidentes foram em geral proprietários e exprimiram interesses e preocupações de proprietários: Para alguns a Inconfidência teria sido exatamente isso: uma conjuração em favor da propriedade.” (ROUANET, in: NOVAES , 1992, p. 342.) HISTÓRIA DA AMÉRICA II20 UNIMES VIRTUAL Foi a Revolução Francesa e não a Americana, que ateou fogo ao mundo, e foi, conseqüentemente, do curso da Revolução Francesa, e não do desenrolar dos acontecimentos na América, ou dos atos dos “Pais Fundadores” que o atual uso da palavra revolu- ção recebeu suas conotações e matizes em todos os lugares, inclusive nos Estados Unidos. A colonização da América do Norte e o governo republicano dos Es- tados Unidos constituem talvez o maior e, certamente, o mais audacioso empreendimento do povo europeu; contudo, os Estados Unidos tiveram efetivamente a iniciativa de sua própria história por pouco mais de cem anos, em esplêndido, ou não tão esplêndido, iso- lamento do continente-mãe. […] A triste verdade da questão é que a Revolução Francesa que redundou em desastre, tenha feito história no mundo, ao pas- so que a Revolução Americana, tão triunfantemente vitoriosa, tenha permanecido um acontecimento de importância quase que apenas local. (ARENDT, 1988, p. 44-45.) A independência não alterou significativamente a estrutura social e econô- mica que já havia no período colonial. Os estados do Sul mantiveram a eco- nomia de base escravista, enquanto o Norte prosseguiu com as mesmas características de sociedade baseada nas médias e pequenas propriedades, com as atividade voltadas também para o mercado interno e com signifi- cativa produção manufatureira. A independência não alterou as condições sociais porque elas não faziam parte do movimento revolucionário. Estas questões, na sua forma mais política e econômica do que social, só surgi- riam de fato como causas na Guerra de Secessão de 1860 a 1865. Socialmente vimos, então, que nada, ou muito pouco se al- terou. O que nos permite, então, falar da Revolução Ameri- cana? Na verdade a grande e maior novidade está na forma e nos princípios fundadores do Estado. A experiência absolutamente nova da fundação de uma república, tal como a que surgiu na América do Norte, provocou a curiosidade e o fascínio de estudiosos da época. Atualmente ainda pode ser visto como um feito sem precedentes. Para que se possa compreender algumas das características essenciais desse Estado que surge e seus princípios fundadores é interessante considerar alguns dos princípios estabelecidos pela Constituição promulgada em 1787, que im- plementou como forma de governo a república federativa, a divisão dos poderes, o mandato de quatro anos para o presidente da nação, dentre outros princípios fundamentais fortemente influenciados pelo ideário ilumi- nista e que, até então, não existiam.,. Os Estados Unidos transformara-se, portanto, em uma república única e sem precedentes na história, do ponto de vista dos seus fundamentos. HISTÓRIA DA AMÉRICA II 21 UNIMES VIRTUAL Em 1789, um outro documento, a Carta de Direitos composta pelas dez pri- meiras emendas à Constituição foi redigida, sendo ratificada pelos estados em 17913.Tal documento, dentre outros direitos, estabeleceu o direito à liberdade de culto, o direito de possuir armas, o direito a julgamento rápido e público entre outros. Essencialmente a Carta de Direitos estabelece os direitos individuais, impondo limites à ação do Estado, assegurando aos cidadãos a defesa contra o poder do Estado. A luta contra a tirania deveria continuar no Estado independente e sem monarca. Defender-se dela é a tarefa dos cidadãos que devem zelar e lutar por seus direitos. Vimos nesta aula as características essenciais do proces- so de independência das chamadas Treze Colônias inglesas que deu origem á República dos Estados Unidos da Amé- rica. Como foi demonstrado, grande foi a influência do ideário Iluminista nesse processo. Para trabalhar um pouco mais a questão do ideário por trás do movimento de libertação dos Estados Unidos, identifique no trecho da Declaração de Independência destacado nessa aula as evidências mais fortes de tal influência. 3 Para consulta ao texto integral da Constituição dos Estados Unidos e da Carta de Direi- tos acesse o site da Embaixada dos Estados Unidos em Brasília, http://www.embaixada- americana.org.br Tocqueville: a Realidade da Democracia e a Liberdade Ideal Célia Quirino dos Santos Texto disponível em www.iea.usp.br/artigos As opiniões aqui expressas são de inteira responsabilidade do autor, não refletindo necessariamente as posições do IEA/USP. 1 Tocqueville: a Realidade da Democracia e a Liberdade Ideal Célia Nunes Galvão Quirino dos Santos Um dos aspectos mais interessantes do pensamento político de Alexis de Tocqueville é sua constante tentativa de ajustar o seu ideal de Liberdade à realidade sócio- política de seu tempo. Suas análises da democracia americana e da revolução francesa, seus discursos e toda sua atividade política como deputado e durante a revolução de 1848 denotam essa constante preocupação. Aparentemente, sua missão parecia ser uma só: como seria possível adequar o que considerava fundamental para a existência de qualquer ser humano, a liberdade de cada um, tanto como indivíduo quanto como cidadão, à realidade sócio-política existente? No processo de defesa de seu ideal,obrigatoriamente, o primeiro passo deveria ser o de desvendar o que seria essa realidade. Era preciso, inicialmente, conhecer o terreno, tal como se apresentava, onde deveria florescer a liberdade. Em segundo lugar, considerando- se a realidade em questão, investigar quais deveriam ser as ações políticas adequadas para a construção de uma situação que permitisse o nascimento e a permanência da liberdade. Em terceiro lugar, como num manifesto especialmente, dirigido aos franceses, mostrar como a atividade mais importante de qualquer ser humano é a atividade da política, na sua conotação do público e universal, ou seja, aquela atividade que se exerce no espaço público da palavra e da ação, lembrando a linguagem e muito próximo dos atuais ensinamentos de Hannah Arendt. Mas era preciso também desvendar por que em determinadas situações concretas os indivíduos, ou melhor, os indivíduos-cidadãos, poderiam encontrar maiores possibilidades de usufruir da realização do seu ideal de liberdade. É, entretanto, a partir da realidade tal como ela se apresenta que, pela ação dos homens, o seu ideal de liberdade vai encontrar uma forma de existência ao construir uma nova realidade. Embora, as reais condições de vida, a econômica, a social e a política de indivíduos, de classes sociais, de um povo, de uma nação e mesmo de um Estado, para Tocqueville, sejam fatores determinantes e condicionantes da atividade pública, os homens não poderiam abandonar a busca pela concretização de um ideal. Assim, ele não descarta o fato de uma realidade ser condicionadora da concretização, ou não, do ideal libertador e liberal. No entanto, ela não pode ser considerada como um fator impeditivo da realização desse ideal. Essa contradição 2 lógica e histórica parece ter atormentado toda sua trajetória intelectual e está presente em toda sua obra e vida pública. Diferentemente da filosofia política que o antecede e apesar da clara influência nos seus trabalhos da obra de Montesquieu e por vezes faça citações e demonstre certas preferências ou antipatias, por determinados autores como Maquiavel, Rousseau, Burke e mesmo Hegel, as leituras de Tocqueville demonstram muito mais seu interesse pelos historiadores, sobretudo franceses e contemporâneos. Admirava os ensinamentos de Maquiavel e por vezes os aplicava, mas sua conhecida crítica moralista sempre estava presente. Sua oposição mais evidente e mais constante parece ter sido a Rousseau. Talvez o drama teórico tocquevilliano estivesse inteiramente ancorado na proposição rousseauniana sobre a questão da liberdade e da igualdade. Burke poderia ter sido uma inspiração maior, sobretudo nos assuntos relativos à tirania da maioria e da sociedade de massa, mas em suas críticas aos ensinamentos de Burke, nas suas reflexões sobre a revolução francesa, considerava-os válidos apenas para a Inglaterra, pois lá as transformações democráticas poderiam ter-se passado das revoluções. Não era o caso da França, onde as revoluções pareciam ter sido necessárias. Em carta da Alemanha a seu amigo Corcelle, em 1854, portanto depois do golpe de Luis Bonaparte, quando se afastou completamente da política, Tocqueville critica a filosofia de Hegel. Segundo alguns de seus comentadores, dificilmente Tocqueville teria tido acesso direto às obras de Hegel. Além disso, suas críticas a Hegel parecem ter saído de idéias e comentários mais comuns e correntes nesse período, na Alemanha. Sobretudo porque, nos advertem em notas os organizadores dessa correspondência entre os dois amigos, essas manifestações de Tocqueville sobre Hegel são confusas e endossam os argumentos, tanto os da direita quanto os da esquerda, contra esse filósofo. Em suas obras, Tocqueville, não parece querer mostrar o que poderia ou deveria ser uma nova organização política, um novo sistema de organização de poderes ou uma nova filosofia explicativa do nascimento e do desenvolvimento da dominação e do poder político no mundo. Tampouco busca indicar como devem se comportar os homens para adquirir poder. Talvez por isso não apareça para a maioria dos seus comentadores como um filósofo político. Suas investigações estão sempre voltadas para poder compreender e explicar uma dada realidade sócio-política. E, apesar de arriscar-se a apresentar cada uma como parte de um processo mais geral, não é particularmente favorável à construção de grandes teorias explicativas sobre o desenvolvimento da humanidade. Além disso, é a defesa de um ideal, enquanto realização de uma idéia, como valor principal que pudesse se 3 concretizar, que o move enquanto analista e homem público. Sem dúvida, seus primeiros trabalhos e análises de realidades, ainda quando muito jovem, nada mais são do que comentários de um estudioso da história e dos costumes de alguns povos. Assim, aos 21 anos, ao escrever sobre sua viagem à Sicília, já desenvolve uma longa argumentação sobre as condições sócio-econômicas do país. Procura explicar a pobreza da região estabelecendo uma correlação entre o tamanho do país, muito pequeno, em contraposição à existência de grandes propriedades e logo generaliza esse raciocínio. Aproximando-se muito das análises de Montesquieu sobre a possibilidade da democracia vir a se desenvolver melhor em países de menor extensão territorial, Tocqueville argumenta que, pequenos países não podem prosperar se apenas alguns poucos possuírem grandes propriedades. Ao contrário, a grande propriedade só seria compatível e possível de criar riquezas em países de grandes extensões de terra. Discussões deste tipo são uma constante em suas obras, procurando sempre estabelecer correlações entre as questões econômicas e a situação social e política de um povo. A maneira pela qual se dá a produção de riquezas no antigo regime ou no moderno sistema capitalista não é, para ele, nem o objeto central de seus estudos, nem o cerne da questão que pretendia elucidar. Na verdade, não há em Tocqueville uma preocupação maior em relacionar a democracia com fatores essencialmente econômicos. Apesar de, se apresentar como um crítico da industrialização, pelos males sociais e culturais que produzia ou que poderia vir a produzir, também, como bom herdeiro do iluminismo, era capaz de levar em consideração as benesses que as velhas e novas formas de produção de riqueza eram capazes de criar. No entanto, para ele, essa análise não aparecia como o ponto de partida, fundamentalmente necessário para explicar a sociedade que lhe era contemporânea ou mesmo o fenômeno da democracia. Sem dúvida, a questão da produção industrial, nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França, foi, por ele, analisada como fator importante para o crescimento da nação e de suas riquezas. Mas, era também um grande perigo ameaçador para o futuro do desenvolvimento dos homens, pela sua massificação, pelo seu embrutecimento e conseqüente impossibilidade de virem a ser cidadãos livres no pensar e agir. A produção industrial era um fato dado irreversível. Era a responsável pela criação de uma nova forma de desigualdade social, a seu ver, das piores. Mas o processo de democratização também, apesar de claudicante, era irreversível. Sua fama advém, sobretudo, de seus escritos, de suas análises sobre situações concretas e de regiões bem definidas: a democracia na América, o antigo regime e a revolução na França, a colonização da Argélia, o estado social e político das classes trabalhadoras em Birmingham e em Manchester ou simplesmente notas, idéias e 4 observações sobre a Inglaterra, o colonialismo inglês na Índia, etc.. Mas Tocqueville parece realizar todos esses estudos com um único fito, pelo qual parece estar sempre conclamando a todos para que lutem porele da única forma possível, isto é, agindo politicamente. É de uma práxis política que ele reclama. No entanto, é apenas sua obra escrita que parece ter alguma importância e por isso é ainda hoje lembrado. E embora houvesse tido uma ativa vida política e enquanto deputado fosse sempre reeleito, pelo menos até o golpe de Luis Napoleão, mesmo para seus contemporâneos sua atividade política não aparece como a de alguém que quisesse ou pudesse mudar o rumo da história. Sozinho, ou com poucos adeptos, nunca chegou a encontrar um partido político, no qual pudesse se sentir confortável com suas idéias, apesar de quase todas as tendências terem tentado cooptá-lo. Afinal, sua família era da antiga nobreza, aliada dos Bourbons e, sem dúvida, esses o viam como se fosse membro nato dos Legitimistas. Por não ser um adepto da revolução, o partido da Ordem e os Orleanistas pensavam em atraí-lo e mesmo liberais mais independentes, como Lamartine ou seu amigo Beaumont, o viam como parte de seu grupo. Desde sua primeira eleição como deputado preferia se colocar solitariamente nos assentos que eram definidos, na Câmara, como centro-esquerda. Aliás, depois do golpe de Luis Napoleão, ele próprio reconheceu que havia se saído muito melhor na sua produção escrita, sobretudo no que se referia à elaboração de análises de realidades, do que em seus discursos e atividade política. Enfim, havia sido melhor intelectual, sociólogo, historiador e analista político, do que homem político. Sem dúvida, para Tocqueville o ideal, como importância e constância, vinha em primeiro lugar e, por isso mesmo, deveria ser a meta final. Uma vez que o processo igualitário, a democracia, é a categoria definidora e providencial da realidade do desenvolvimento da história das nações, a única e verdadeira luta que é preciso ser vivida e que diz respeito a toda humanidade é aquela que os homens realizam para ser e se manter livres. Essa liberdade, embora pudesse aparecer como genérica e vaga, era fundamentalmente a liberdade política, porque é esta que permite aos homens manter sua liberdade. Isto é, poderem ser livres para se manifestar social e politicamente, livres para se realizar como cidadãos de uma nação também livre e independente. No cerne da questão pode-se encontrar o problema clássico de Rousseau. Não a Vontade Geral obrigando os homens a ser livres, mas em Tocqueville o apelo é feito a cada um e a todos para que exerçam uma ação política organizada, adequada a cada realidade, de tal forma que o agir na esfera pública seja o ato mais importante de cada cidadão. Sobretudo, sem jamais ser 5 indiferente à atuação na vida pública. Os negócios públicos, os negócios do Estado, são também da responsabilidade de todos os cidadãos. Porém não é possível imaginar essa atividade se realizando sem um conhecimento anterior e necessário da realidade em que se quer atuar. Ou seja, para Tocqueville, era necessário realizar pesquisas e análises sobre as relações econômicas, sociais e políticas entre as diferentes classes sociais, enquanto costumes, hábitos, instituições, leis, valores, crenças, atividades produtivas, sistema de governo, etc. Era ainda preciso investigar a história da nação, seu prestígio e poder e a própria situação dos nacionais, pois afinal uma nação que não é livre e independente não pode produzir cidadãos livres. Embora desde Maquiavel já se apelasse para a necessidade do conhecimento da história e das condições reais de um povo para o exercício da ação política adequada e embora Maquiavel salientasse como a "fortuna" poderia ser transformada sob a ação correta de um Príncipe "virtuoso", da mesma forma, em Tocqueville, a realidade aparece como determinante da existência e da situação sócio-política dos indivíduos e, também, pode e deve ser modificada pela ação dos homens. Em Tocqueville, no entanto, pelo menos em relação à política, essa ação é própria de todo cidadão e deve ser realizada como uma constante na sua vida social e política para atingir e manter o ideal de liberdade, para que a liberdade não se perca por acomodação ou abandono. É essa visão tocquevilliana do desenvolvimento do processo histórico-político que explica porque a atividade principal e mais importante de todo o cidadão deva ser a atividade da política, entendida enquanto esfera pública. Ao contrário de uma política de defesa de "laissez-faire”, como se apresentava ou se costuma ainda hoje pensar, a idéia liberal na economia, o liberalismo político em Tocqueville tem um caráter de ação, de intervenção na realidade, de atividade importante e absolutamente necessária para todos. Transformando-se pouco a famosa frase de Jefferson, aliás, citada por Tocqueville, se "o preço da liberdade é a eterna vigilância" esta não poderia ser passiva e requer um combate constante enquanto prática política por excelência. 1. A ANÁLISE DO REAL, ENQUANTO MOMENTO DADO E ENQUANTO PROCESSO DEMOCRÁTICO INEVITÁVEL Aparentemente, duas questões se apresentam e são necessárias para se compreender o pensamento político de Tocqueville. A primeira refere-se ao real, àquilo que existe, à sua própria realidade, vivida a qual buscava conhecer e analisar. Essa apesar de se manter em constante movimento, pois que se desenvolve como um processo, inevitável e, por isso 6 mesmo, não depende da ação dos homens. A segunda diz respeito ao fator transformador e depende inteiramente da ação dos homens. Sua curiosidade em conhecer os meandros do mundo sócio-político não se restringiu ao que ocorria na França. A América do Norte atraia-o, sobretudo porque se apresentava, naquele momento, como sendo a mais nova experiência política realizada pelos homens em um determinado país. A democracia americana surgia como uma situação exemplar e, como tal, era percebida como o futuro da humanidade. Era lá também que a democracia parecia se realizar mais plenamente. Os Estados Unidos, por isso, seriam o locus privilegiado para o desenvolvimento de uma sociedade mais igualitária que a européia. Além disso, o povo americano havia conseguido se manter livre, ao construir essa democracia. Como seria possível conhecer essa realidade, onde a democracia se realizava? Quais seriam as condições sócio-políticas reais? Qual a relação dessa situação com a realidade francesa, naquele momento e em relação à sua história, uma vez que eram dois povos com história, costumes, instituições e situação bastante diferentes. A comparação surgia para Tocqueville como necessária para pensar seu próprio país, para analisar e compreender o que estava acontecendo e qual poderia ser o futuro da França. E, foi isso que ele se propôs fazer, para que os franceses pudessem saber como agir em relação ao futuro do seu povo e de seu país. Acabou fazendo mais. Ao criar uma teoria do processo democrático, ao analisar a realidade democrática americana e ao compará-la com o processo francês, criou um modelo, um "tipo ideal" de democracia. Também conseguiu anunciar aos franceses, através de seus estudos e de seus discursos políticos, o que lhes iria acontecer. Toda sua obra parecia um grande manifesto político. Desde o início de seus preparativos para realizar a pesquisa, já a considerava a grande obra de sua vida. Além de procurar se instruir, por meio de leituras de historiadores e de comentaristas de sua época, procurou se informar com pessoas que, por algum motivo, pudessem lhe fornecer conhecimentos mais precisos sobre a América. Sua pesquisa se desenvolveu com a sofisticação de uma enquete moderna. A indagação tocquevilliana sobre como conhecer a realidade sócio-política americana para poder compreender a democracia não parece ser explicitada teoricamente. Pouquíssimassão suas referências à maneira pela qual está se realizando seu aprendizado e não há nenhuma declaração formal de como deverá realizar o seu processo de conhecimento da realidade sócio-política americana. Talvez ele próprio não pensasse ser necessário explicar os seus métodos, uma vez que as longas entrevistas que realizou, os questionário que elaborou e mesmo os dados estatísticos que considerou mais importantes foram, na sua grande maioria, 7 cuidadosamente preservados em seus "cadernos", em suas anotações e até em sua correspondência íntima, ou são claramente apresentados nas suas obras. De uma certa forma, parece ter realizado um trabalho ao mesmo tempo de antropólogo, sociólogo e cientista político modernos. Apesar de não haver nenhuma explicitação de como teria ocorrido sua coleta de dados ou que tipo de metodologia teria usado, no entanto, ao construir os seus conceitos o faz a partir de um projeto bem elaborado, cuidadoso e utilizando-se de todo tipo de investigação a que pudesse ter acesso e que considerasse necessário para atingir seu objetivo, assim como um excelente cientista social moderno analisa e critica as realidades estudadas com rigor e adequação. Em sua correspondência com amigos e parentes, especialmente com Gustave de Beaumont, com quem parte em viagem, para os Estados Unidos, para realizar a grande obra, e com quem já vinha discutindo os detalhes da futura pesquisa, procura mostrar como esta deveria ser desenvolvida para que pudessem conhecer como funcionam realmente as instituições americanas, das quais todo mundo fala e ninguém conhece e, ainda como este estudo deveria ser detalhado e científico o quanto possível. Mas, como um pensador político preocupado com o futuro do seu país e de seus compatriotas, evidentemente ancorado em seus claros valores, como advertência e recomendação, procura mostrar aos seus leitores, quais seriam as soluções possíveis, para determinadas e diferentes situações. Em outras palavras, conclama, através de sua análise-manifesto, à realização de atividades políticas adequadas para se atingir determinados fins, fundados no que considera o mais precioso valor humano universal, a preservação da liberdade de cada um, face à realidade de uma sociedade moderna, massificante e a um Estado centralizador. Em abril de 1831, Tocqueville parte para os Estados Unidos. Havia pouco mais de dois anos que Andrew Jackson havia sido eleito presidente. Ainda nesse período de expansão e formação da nação, Jackson ficou famoso como o mais populista dos presidentes americanos e como responsável pelo caráter mais democrático do governo. A ascensão de Jackson é sempre apresentada como o momento que marcou a profunda mudança que vinha ocorrendo na sociedade americana e a nítida ruptura com o passado representada pela eleição de 1828. Desaparecera o decoro federalista de Washington e John Adams e a democracia cortês virginiana de Jefferson.1 1 Nye, R.B. e Morpurgo, J.E.. História dos Estados Unidos, ed. Ulisseia, Lisboa, 1955, vol.II, p. 52. 8 Sem qualquer formação política mais elaborada, se comparado aos Adams, Jefferson e Madison que o antecederam, os temas fundamentais de sua campanha e da democracia jacksoniana foram apenas um nacionalismo militante e um igualitarismo no acesso aos postos burocráticos. Segundo Hofstadter, a eleição de Jackson foi mais um resultado, que uma causa do desenvolvimento da democracia e a ‘revolução de 1828’ foi mais uma reviravolta de pessoal [nos postos públicos] do que de idéias ou programas.2 Em relação às eleições de 1824, quando apenas 355.000 homens votaram, o número de eleitores, em 1828, havia crescido bastante, passando para 1.155.000. O período entre essas duas eleições parece ter sido de enorme aumento de interesse da população, não apenas pelas eleições, mas também pelas coisas da política em geral. É verdade que, desde 1812, as massas de não proprietários haviam começado, no início silenciosamente e quase sem nada obstruir, a entrar na política. Entre 1812 e 1821 seis estados do oeste haviam decidido se incorporar à União com a condição de que se estabelecesse o sufrágio universal para o homem branco. Entre 1810 e 1821, quatro dos estados mais antigos, consideravelmente deixaram cair a condição de proprietário para ser eleitor.3 A qualidade do eleitor vinha pois mudando. Pode-se dizer que a democratização do voto parecia se desenvolver com a participação de novo tipo de eleitor, da entrada de novos estados na União e do aparecimento de novas profissões, nos velhos estados. Ainda, segundo Hofstadter, os Estados Unidos, no início dos anos 30, quando Tocqueville aí aporta, apesar de já possuir uma indústria nascente e mesmo que determinadas produções fossem bem desenvolvidas, como por exemplo, a naval, era ainda uma nação de fazendeiros e pequenas cidades. As indústrias, que já haviam se expandido em algumas áreas, não estavam ainda organizadas como num sistema fabril. A maior parte 2 Hofstadter, Richard. The American Political Tradition, vintage books, N.Y., 1948. p. 55. 3 Idem, Ib., p.50. 9 da produção era realizada em pequenas unidades nas quais o patrão era uma espécie de artesão supervisionando seus aprendizes. A possibilidade de passar de empregado a patrão parecia muito próxima. O desenvolvimento dos transportes e a possibilidade de se ampliar o comércio para fronteiras cada vez mais distantes possibilitava essa visão otimista do processo. O florescimento da manufatura no leste, o rápido povoamento do oeste preencheram largamente o espírito de empresa. O americano típico era um promissor capitalista, um duro trabalhador, uma pessoa ambiciosa para quem a empresa era uma espécie de religião e por toda parte ele encontrava estímulos para ampliar o seu negócio. Se algum ódio de classe existia era voltado contra os bancos e os banqueiros que dificultavam os empréstimos e tornavam a vida mais difícil e cara.4 O momento era de total otimismo econômico, parecia que todos igualmente poderiam enriquecer e se tornariam capitalistas. A comparação que Hofstadter faz desse período com o do "New Deal" de Roosevelt é muito interessante. O movimento jacksoniano e o 'New Deal' foram ambos lutas de amplos setores da comunidade contra uma elite empresarial e seus aliados... Mas, os dois movimentos se diferenciavam num aspecto muito importante: O 'New Deal' foi intencionalmente baseado na premissa de que a expansão econômica tinha chegado a um fim e as oportunidades econômicas estavam desaparecendo. Essa política foi implementada numa tentativa de estabelecer uma ascendência do governo sobre os negócios particulares. O movimento Jacksoniano aumentou as oportunidades que já se expandiam e veio ao encontro do desejo comum de alargá-las ainda mais, removendo as restrições e os privilégios que tiveram suas origens em atos de governos anteriores. Com algumas qualificações era essencialmente um movimento de "laissez-faire", uma tentativa de divorciar o governo dos negócios. A era jacksoniana é comumente 4 Idem, Ib., p.57. 10 reconhecida no folclore histórico americano como uma fase de expansão da democracia, mas é muito pouco lembrado que foi também uma fase na expansão do capitalismo liberado.5 Em A Era Jacksoniana, Sellers, May e McMillen defendem a idéia de que com a posse de Andrew Jackson, as forças do igualitarismo assumiram o poder no governo federal [...]No dia da posse, Jackson abriu a Casa Branca a uma multidão turbulenta de bem nascidos e humildes chocando a sociedade oficial mais antiga, mas anunciando inconfundivelmente a convicção do novo regime de que o homem comum era tão bom como o aristocrata.6 Essa posse é sempre descrita como o marco simbólico da ascensão de novas classes sociais e de sua novas posições na política americana. Ela é apresentada como uma invasão de bárbaros, como se a cidade de Washington tivesse sido inundada por gentes das terras do interior, rudes, turbulentas, vestidas de pano grosseiro, que percorriam as ruas embriagadas no meio de grande alarido [...] Jackson foi a pé e de cabeça descoberta através das ruas enlameadas até o Capitólio para prestar juramento [...] “o reinado da população parecia triunfante”.7 É conhecida a maneira pela qual Jackson começou seu governo distribuindo cargos públicos aos que o haviam eleito sem nenhuma preocupação com suas capacidades. Para ele qualquer cidadão honesto poderia ocupar postos administrativos e muito bem servir o seu país. Os jacksonianos gostavam de afirmar que o poder político não podia ser usado para obter privilégios econômicos: "Direitos iguais para todos, privilégios especiais para ninguém". 5 Idem, Ib., p.56. 6 Sellers, May e Macmillen. Uma reavaliação da História dos Estados Unidos, Zahar ed., Rio de Janeiro, 1985, p.138. 7 Nye, R.B. e Mopurgo, J.E. op. cit., p.52. 11 Mas, embora Jackson defendesse a presença das novas classes emergentes na política como uma visão da importância da participação popular, o que poderia aparecer como uma posição favorável à descentralização, era um forte defensor da União Federal. Os jacksonianos pareciam manter uma posição ambivalente em relação ao federalismo. Por um lado, percebiam vagamente que a concentração de poder em Washington poderia trazer consigo a centralização, a estratificação e, possivelmente privilégios especiais e uma hierarquia; por outro, concordavam com a importância que deveria ter o governo federal enquanto salvaguarda da nação. Assim, mantinham tanto uma ligação profunda com o governo nacional, quanto uma enorme suspeita em relação ao Estado centralizado ou burocrático. Não que os jacksonianos temessem, realmente, o Estado; temiam, em vez disso, que o controle desse Estado pudesse um dia ficar na posse de um grupo minoritário com interesses especiais.8 Essas modernas descrições da democracia americana do período jacksoniano são bastante próximas dos depoimentos e das análises de Tocqueville quando de sua viagem aos Estados Unidos. Sempre comparando com a situação das classes sociais na França, Tocqueville anota em seus cadernos, em novembro de 1831: A relação entre as diferentes posições na América é bastante difícil de compreender e os estrangeiros normalmente são capazes de cometer dois grandes erros: ou eles pensam que nos Estados Unidos não existe distinção entre pessoas, com exceção daquelas com méritos próprios ou, chocados com a importância que aqui se dá à riqueza, acreditam que em muitas monarquias européias, na França, por exemplo, usufrui-se de uma igualdade mais real e mais completa do que nas repúblicas americanas. Acredito que há um exagero nas duas maneiras de se enxergar o problema.9 8 Idem, Ib., p.57. 9 Tocqueville, Alexis. Voyages en Sicile et aux États Unis , Gallimard, Paris, 1957. p.278 a 280. 12 O olhar de Tocqueville, ao apresentar a democracia americana como uma sociedade de homens mais iguais, parece ter se fixado em três aspectos importantes e os ter eleitos como aqueles que são significativos para que se pudesse compreender o fenômeno democracia. O primeiro foi definido e classificado como o de "igualdade de condições". O segundo diz respeito à igualdade de oportunidades. O terceiro, não menos importante, é aquele que faz com que a sociedade americana não possua, ou pelo menos não aparente possuir, uma estratificação social rígida, nem permita haver qualquer impedimento social, legal ou político à ascensão social. Isto é, os americanos se encaram como iguais não apenas perante a lei, mas também ao exercer qualquer atividade social. De início é bom limitar bem o problema: Não é sobre a igualdade perante a lei que se está referindo, esta é completa na América; ela não é apenas um direito, mas é também um fato. Pode-se mesmo afirmar que, se a desigualdade existe em qualquer lugar nos Estados Unidos, há na esfera política uma ampla compensação em favor das classes médias e inferiores que, juntamente com os nomes tradicionais, preenchem quase todos os postos eletivos. Falo da igualdade nas relações sociais. Esta igualdade que faz com que certos indivíduos se reúnam nos mesmos lugares, compartilhem suas idéias e seu prazeres, unam suas famílias. É neste aspecto que é preciso distinguir entre a França e a América. As diferenças se tornam essenciais.10 No entanto, reconhece Tocqueville que as pessoas que possuem as mesmas profissões, as mesmas idéias, a mesma educação escolhem-se e se reúnem por uma espécie de instinto. Mas, a diferença é que nenhuma regra arbitrária e inflexível preside esse arranjo. [...] Assim, na América, observa-se menos que em 10 Idem, Ib., p.279. 13 qualquer outra parte esse desejo ardente de uma classe partilhar não apenas os direitos políticos mas também os prazeres das outras. Esta é a boa distinção da sociedade americana da nossa.11 Apesar de Tocqueville considerar essa igualdade como típica das sociedades democráticas e apesar de apresentar as vantagens que essa igualdade pode representar no desenvolvimento dos povos democráticos, também pondera os malefícios que dela podem advir social e politicamente. Em primeiro lugar, ela pode criar o seu contrário. Pode desenvolver a pior das desigualdades, a conferida pela riqueza, tal como já se observa na sociedade americana. O dinheiro cria na sociedade uma verdadeira classe privilegiada que se mantém à parte e procura demonstrar às outras sua preeminência.12 Sem dúvida, nesse caso, o acúmulo de riqueza poderia fazer nascer, por exemplo, uma classe de capitalistas mais abastada que viesse a se perpetuar como uma elite com modelos de vida, ambições e valores burgueses, onde o lucro seria o único bem. Porém, observa Tocqueville que, se por um lado, essa distinção poderia vir a criar uma nova elite, a qual traria conseqüências ainda piores para a existência da liberdade que aquelas desenvolvidas pela aristocracia européia, por outro, essa diferença, numa sociedade democrática, poderia ser menos funesta que os preconceitos de nascimento e de profissão, pois, as desigualdades de classe não são consideradas pelos americanos como definitivas ou permanentes. Em resumo, os homens, na América, como entre nós [na França], estão organizados de acordo com determinadas categorias no transcurso da vida social. Os hábitos comuns, a educação e, sobretudo a riqueza estabelecem essas classificações. Mas, essas regras não são nem absolutas, nem inflexíveis, nem permanentes. Elas estabelecem distinções passageiras e não formam classes propriamente ditas. Elas não concedem qualquer superioridade, 11 Idem, Ib., pp. 279-280. 12 Idem, Ib., p.280. 14 mesmo de opinião, de um homem sobre outro, de tal modo que, mesmo se dois indivíduosnão se vejam jamais nos mesmos salões, se eles se encontrarem em uma praça pública um olhará o outro sem orgulho e o outro sem inveja. No fundo eles se sentem iguais e o são.13 Essa idéia de democracia como uma sociedade igualitária é muito bem definida por Tocqueville a partir, tanto da existência real de uma situação de igualdade de costumes, quanto da perspectiva de que a sociedade, como um todo, possuía dela própria. Assim, embora Tocqueville considerasse, como um dado importante, as diferenças de classe social que a riqueza confere, certamente, não seria na igualdade econômica que a democracia buscaria seus alicerces. Portanto, mesmo que a riqueza pudesse ser vista como um fator gerador de desigualdade, outros fatores e valores mais significativos, para o povo americano, podem impedir que essa desigualdade venha a afetar, no seu âmago, as igualitárias e determinantes relações sociais da sociedade democrática. Também seria preciso considerar que, nessa democracia jacksoniana, a riqueza é vista como algo que pode ser adquirido e, nesse momento pelo menos, não é a única forma de se obter poder. O exemplo do presidente do país, como um autêntico "self-made man" e de seus partidários é para ser observado e seguido. Tudo parece ser possível a qualquer um e a todos. É evidente que nada disso é válido para os escravos. Embora a escravidão ainda não tivesse aparecido como o grande problema que iria dividir a nação, Tocqueville já a aponta como a grande responsável pela futura e imensa tragédia americana. Esse tema é longamente desenvolvido por Tocqueville, pois afinal a escravidão existia também em colônias francesas. Suas manifestações antiescravistas mostram a preocupação em mostrar, na questão das diferenças, como os escravos negros continuariam a ser discriminados, mesmo numa sociedade democrática, após a libertação. Em segundo lugar, essa igualdade de condições e o desenvolvimento do processo igualitário, pontos centrais para se compreender o que é a democracia para Tocqueville, podem também ser responsáveis, pelo aparecimento de uma sociedade, por excelência, massificante e aborrecida, sem criatividade, sem pensadores, sem artistas. Era dessa forma que os europeus se referiam aos americanos e ao que ocorria nos Estados Unidos. 13 Idem, Ib., p.280. 15 É bastante difundida a maneira pela qual Stendhal se refere, pela fala de seu personagem Lucien Leuwen sobre a América como “um país aborrecido”, povoada por homens justos, razoáveis, porém grosseiros e incapazes de produzir idéias finas.14 Entretanto, a construção dessa desagradável democracia, como geradora de uma sociedade massificante, produtora de uma população sem outro interesse que o de acumular fortuna, indiferente às coisas públicas, poderia ser evitada e seus males já existentes corrigidos, pela própria ação dos homens na defesa da liberdade. Sem dúvida, ao passar da análise da realidade para uma proposta de ação como solução para os males que a sociedade democrática possa apresentar, Tocqueville procura discutir como e porque os homens seriam capazes de agir para modificar sua própria realidade. 2. A LUTA PELO IDEAL DE LIBERDADE ENQUANTO REAL FATOR TRANSFORMADOR A segunda grande questão tocquevilliana parece ser sua tentativa para definir qual seria o real fator transformador da história das sociedades. Uma vez que a história e a própria democracia, são, para ele, um processo igualitário, que se realiza como um impulso natural da humanidade, como então interpretá-lo? Esse processo, visto como condutor do próprio desenvolvimento igualitário, poderia ser considerado como o "motor da história" e, como tal, transformador da própria história. Mas esse impulso dos homens ao igualitarismo também era, afirmava Tocqueville, um processo "providencial" que nenhum ser humano poderia impedir de se realizar. Este, porém, não era o único agente modificador. Pois, mesmo que esse agente transformador conduzisse os homens a sempre caminhar para uma situação mais igualitária, os homens não se encontravam numa situação totalmente determinada pela sua realidade sócio-política. Em suas próprias palavras: É verdade que a providência traça em torno de cada homem um círculo fatal, do qual ele não pode sair, mas nos seus vastos limites, o homem é poderoso e livre. Assim são também os povos.15 14 Stendhal. Lucien Leuwen, coll. Folio, Gallimard, Paris, 1973, vol.I, p.138. 15 Tocqueville, Alexis. De la Démocratie en Amérique, Gallimard, Paris, 1961, p.339. 16 Muito se tem discutido sobre o uso que faz Tocqueville da palavra "providência". A idéia de que ele estaria se referindo a vontade divina é das mais difundidas, sobretudo porque suas considerações sobre religião, muitas vezes, parecem demonstrar que ele permanecia com as crenças que lhe haviam incutido na infância. No entanto, é comum encontrar em sua correspondência e em diversos comentários e posições assumidas nos seus trabalhos de homem público, manifestações suas de como havia perdido sua fé religiosa na juventude, quando ainda no Liceu, em Metz. Sem dúvida, ao designar o processo igualitário como providencial, Tocqueville parecia querer mostrar a existência de um certo determinismo histórico, como se fosse uma fatalidade. Mas, como esse processo poderia ser transformado pela ação "virtuosa" dos homens, talvez, a comparação mais provável seria com a própria idéia de "fortuna" em Maquiavel. Mélonio sugere que ele apenas havia querido explicar, enfaticamente, aquilo que não seria geometricamente demonstrável.16 De qualquer forma, as longas discussões de Tocqueville com Stuart Mill sobre esse assunto parecem apresentar a grande preocupação que ambos possuíam em relação a uma idéia de "processo irresistível", em oposição à ação dos homens como transformadora.17 Isto é, a idéia de que a história e a própria democracia se cumpririam mesmo sem a vontade dos homens não o impedia de mostrar que, talvez, mais importante ainda que o próprio processo igualitário seria a transformação provocada pela ação política dos homens, movidos que fossem por um ideal, o ideal da liberdade. Seria então esse o verdadeiro motor da história. Por isso, para ele, a realização desse ideal só poderia se dar pela prática política adequada e necessária à própria existência dos cidadãos, da nação e do próprio Estado, enquanto livres e soberanos. Embora o real não seja imutável, pelo contrário, é mesmo capaz de por si se transformar, o caminho que percorre e que deverá percorrer, apesar de ser apenas um, apresenta duas faces, a da sociedade e a do Estado, que poderão se tornar ameaçadoras: de um lado, a sociedade, representada pela sua maioria, ao desenvolver cada vez mais sua situação de igualdade de condições, obriga os homens a se comportar igualmente. De outro lado, essa situação de igualitarismo extremo, pode fazer nascer um Estado todo poderoso que obrigará, cada vez mais, o maior número de cidadãos, a simplesmente e igualitariamente, obedecer às regras e leis criadas unicamente por ele próprio. O Estado, a sociedade, a maioria nesse caso, obrigaria os homens a serem iguais. 16 Mélonio, Françoise. Tocqueville et les Français, Aubier, Paris, 1993. p.32. 17 Sobre essa discussão ver Célia N. Galvão Quirino dos Santos. Liberdade e igualdade no pensamento político de Alexis de Tocqueville, tese apresentada ao D.C.S., USP, 1982. mímeo. p.193. 17 Essa sua teoria da tirania da maioria, mais especificamente de uma tirania de umasociedade de massa, emprestada em parte de Burke, mais do que qualquer outra das teorias tocquevillianas, é que permitiu a muitos de seus comentadores aproximarem-no de uma posição conservadora e anti-revolucionária. No entanto, não é com Burke que Tocqueville estava travando esse diálogo. Ele, na verdade, estava muito mais preocupado em enfrentar tanto a questão da Vontade Geral, tal como a havia colocado Rousseau, quanto a sombra do "Terror" que ainda apavorava os franceses e, é claro, ele próprio. No dizer de Françoise Melónio, Tocqueville em 1835 estava obcecado por Rousseau. Assustado com a onipotência da soberania popular, todo seu esforço será realizado no sentido de apresentar uma concepção anti- rousseaniana, mostrando como essa soberania é compatível com a liberdade.18 Por isso, seu liberalismo, oporá a um conceito de soberania "una e indivisível" e a um Estado todo poderoso, um poder estatal descentralizado, dividido, mas sobretudo organizado em vários grupos ou associações de cidadãos agindo cívica e politicamente, ou seja, preocupados com a esfera pública. É verdade que esse processo de desenvolvimento da democracia, como processo igualitário, como responsável pela formação de uma futura sociedade de massa, onde toda a produção seria apenas voltada à constante melhoria do bem estar material, para Tocqueville, também é uma realidade. É a concretização dessa perversa democracia, apesar de já ter sido percebida sua existência, que precisa ser evitada. Dessa forma, se a democracia pode criar essa situação que é real e que faz parte desse processo de igualização, mesmo sem que os indivíduos contribuam necessariamente para isso, a prática da idéia de liberdade, como e enquanto defesa do ideal, permite escapar a essas ameaças do futuro. Embora ambos os movimentos possam parecer contraditórios, na verdade, não apenas se completam, mas um depende da existência do outro para se realizar plenamente. Assim, a democracia sem liberdade pode se transformar em totalitarismo, em tirania. É verdade que também a liberdade sem democracia, portanto, apenas para alguns poucos, faz nascer uma nova aristocracia, uma nova elite. 18 Mélonio, Françoise, op. cit., p. 37. 18 No seu momento histórico, nos dois mundos de Tocqueville, o europeu e o americano, essa nova elite só poderia surgir pelo enriquecimento, pela produção industrial etc., mais uma vez desenvolvendo-se a partir de valores materiais, impeditivos do crescimento da moral e da virtude pública. O reino da igualdade e da liberdade só será alcançado se o processo igualitário estiver acompanhado da prática da liberdade pela ação política dos indivíduos-cidadãos. Não ignorava Tocqueville que o processo de destruição do antigo regime e o desenvolvimento industrial na França eram parte do mesmo processo que havia feito nascer as terríveis desigualdades que tanto temia. Tocqueville reconhecia ainda que, na Inglaterra a manifesta desigualdade entre a situação de miséria da classe operária em relação à riqueza dos capitalistas era não só a contradição necessária que enriquecia uma determinada classe, mas também era a que possibilitava o enorme enriquecimento da nação e fazia aumentar o poder do Estado e do país internacionalmente. Porém, a existência de situações tão desiguais em dados momentos, eram percalços pelos quais passa o desenvolvimento democrático. Evidentemente, conforme suas realidades específicas, cada nação percorre seu próprio caminho. Contudo, apesar do desenvolvimento da igualdade ser inevitável, poderia no caminhar do processo além de produzir outros tipos de desigualdades, também vir a embrutecer os homens. Entretanto, todas essas tragédias poderiam ser evitadas. Tocqueville reconhece a contradição de sua teoria do desenvolvimento igualitário face à realidade que tem sob os olhos em 1835, em sua segunda viagem à Inglaterra. Ao visitar Manchester, depara-se com a pujança das fábricas que, no mesmo cenário, apresentavam a céu aberto à miséria da vida dos trabalhadores e a imensa riqueza dos proprietários industriais. Após descrever a situação de total penúria, sujeira e abandono do local em que viviam os trabalhadores classificando-a de novo inferno, que contrastava com "os imensos palácios da indústria", comenta: Estas vastas construções impedem o ar e a luz de penetrar nas habitações humanas que dominam; elas a envolvem em uma perpétua neblina; aqui o escravo, lá o senhor; lá as riquezas de alguns poucos; aqui, a miséria do maior número; lá, as forças organizadas de uma multidão produzem para o lucro de um só, isto que a sociedade não havia ainda sabido oferecer; aqui, a fraqueza individual se mostra mais débil e mais desprotegida ainda que no 19 meio dos desertos; aqui, os efeitos, lá as causas [...] Uma espessa e negra nuvem cobre a cidade. O sol aparece através da fumaça como um disco sem raios. É no meio deste dia incompleto que se movem sem cessar 300.000 criaturas humanas [...] É no meio desta cloaca infecta que o maior rio da indústria humana vai alimentar e fecundar o universo. Deste esgoto imundo jorra o ouro puro. É ali que o espírito humano se aperfeiçoa e se embrutece; que a civilização produz suas maravilhas e que o homem civilizado se torna quase selvagem. Considera ainda Tocqueville o que poderia ocorrer a esses operários que trabalham 69 horas por semana: Que ser inteiramente "material" deve necessariamente se tornar um homem que faz a mesma coisa durante doze horas, quase todos os dias de sua vida, com exceção do domingo? E, no entanto, À testa das manufaturas, a ciência, a indústria, o amor do lucro. o capital inglês [...] é assim que se dá a reunião de um povo pobre e de um povo rico, de um povo esclarecido e de um povo ignorante, da civilização e da barbárie.19 Desde sua primeira viagem à Inglaterra, Tocqueville havia se preocupado em analisar a situação sócio-política inglesa. Ele havia pensado que poderia encontrar nesse país a origem das instituições e costumes da democracia americana. O que pôde observar, no entanto, nessa segunda viagem, quando a primeira parte da Democracia já havia sido publicada, foi a grande diferença entre os processos, de desenvolvimento igualitário inglês e francês. Já em 1833, quando da sua primeira viagem àquele país, havia percebido a distância que separava a situação da aristocracia inglesa da francesa. Por exemplo, de que 19 Tocqueville, Alexis. Voyage en Angleterre, Irlande, Suisse et Algérie, Gallimard, Paris, 1958, ps. 78-81- 82. 20 maneira aquela não havia perdido a dominação de valores e costumes ao se confundir com a burguesia enriquecida, ao contrário da francesa, que se havia aburguesado. É só nessa segunda viagem, que percebe o horror da condição do trabalhador industrial na Inglaterra, talvez não tão diferente da francesa mas, bem mais avassaladora, pelo simples fato do processo de industrialização francês não ser tão desenvolvido. Contudo, mesmo na Inglaterra, o processo democrático estaria se realizando, aliás, para Tocqueville, com mais sucesso que na França, pois lá não haveria mais necessidade de revoluções, enquanto que na França, o caminho da construção da democracia parecia precisar, necessariamente, passar ainda por outras revoluções. A revolução francesa não havia acabado e a França, muito mais centralizada que a Inglaterra, com instituições e costumes muito pouco liberais, poderia facilmente ainda vir a ter governos e Estado muito fortes, o que impediria a ação livre dosseus cidadãos na criação da boa democracia. CONCLUSÃO Ao fazer um estudo comparativo do que ocorria na França e na Inglaterra, Tocqueville está procurando apontar as diferenças de situação face ao desenvolvimento democrático de cada um desses povos. Está, sobretudo, querendo mostrar a enorme distância em que se encontram da democracia americana. Não são apenas realidades diferentes, são também situações diferentes do processo democrático. Tocqueville não procura negar aquilo que considera como realidades distintas de cada povo. Ele as reconhece como situações reais da existência de cada um deles, como fato dado. Porém, assim como as revoluções na França aproximaram e tornaram mais iguais nobres e burgueses, não vê como esse fenômeno poderia estacionar nesse ponto. Ao prognosticar, antes de 1848, que novas revoluções, como parte do processo igualitário francês, iriam acontecer ou que na Inglaterra esse caminhar se daria mais pacificamente, mostra, como essa marcha ininterrupta, embora trôpega por vezes, seria inevitável. Uma vez que a realidade é condicionante e limita a ação dos indivíduos e dos povos, é preciso conhecê-la para poder agir adequadamente dentro desses limites. O estudo, a pesquisa de países e de povos diferentes e as comparações que são possíveis de se estabelecer são passagens obrigatórias para que se possa agir corretamente. É isso que procura fazer e faz, nas suas obras maiores, como parte de sua atividade política. Mas isso não é nem suficiente, nem o ponto de partida para o que pretende seja sua advertência ou manifesto aos franceses. 21 Em primeiro lugar, para se adequar o ideal tocquevilliano de liberdade ao fenômeno da democracia, seria preciso mostrar a importância desse ideal como guia para a ação cívico-política dos homens. A atividade pública, para Tocqueville, para não ser atabalhoada, precisa ser conduzida por uma idéia, melhor dizendo, por aquele ideal de liberdade que é o único capaz de construir a boa democracia. Em segundo lugar, e só então, é que se pode, no interior do círculo condicionador de cada realidade, encontrar a ação adequada e transformadora do seu mundo real, pronta a edificar uma democracia na qual seus cidadãos sejam livres. Portanto, para Tocqueville, os homens precisariam agir no sentido de conciliar a liberdade, que é frágil e pela qual é preciso lutar, com a democracia que se move por um forte impulso e é fatal. Portanto, seria preciso adequar, em primeiro lugar, o ideal à realidade e, em segundo lugar a ação política inovadora que se encontra em constante defesa da liberdade ao processo igualitário que é real e incessante. Se a prática do ideal é conduzir a democracia, é preciso também que haja um modelo exemplar em direção ao qual a democracia deva ser levada. A realidade americana aparecia como a mais próxima desse ideal. Era onde a democracia se realizava. Era, também, onde a prática da liberdade havia encontrado o melhor terreno para florescer. Era preciso conhecê-la para construir o modelo. Minha finalidade, afirma Tocqueville, tem sido mostrar, pelo exemplo da América, que as leis e sobretudo os costumes podem permitir a um povo democrático permanecer livre.20 20 Apud Mélonio. op.cit., p.35, nota 37. A Declaração de Independência dos EUA No Congresso, 4 de julho de 1776 Declaração Unânime dos Treze Estados Unidos da América Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário um povo dissolver laços políticos que o ligavam a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, posição igual e separada, a que lhe dão direito as leis da natureza e as do Deus da natureza, o respeito digno às opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os levam a essa separação. Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar- lhe a segurança e a felicidade. Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objeto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito, bem como o dever, de abolir tais governos e instituir novos-Guardas para sua futura segurança. Tal tem sido o sofrimento paciente destas colônias e tal agora a necessidade que as força a alterar os sistemas anteriores de governo. A história do atual Rei da Grã-Bretanha compõe-se de repetidos danos e usurpações, tendo todos por objetivo direto o estabelecimento da tirania absoluta sobre estes Estados. Para prová-lo, permitam-nos submeter os fatos a um cândido mundo. Recusou assentimento a leis das mais salutares e necessárias ao bem público. Proibiu aos governadores a promulgação de leis de importância imediata e urgente, a menos que a aplicação fosse suspensa até que se obtivesse o seu assentimento, e, uma vez suspensas, deixou inteiramente de dispensar-lhes atenção. Recusou promulgar outras leis para o bem-estar de grande distritos de povo, a menos que abandonassem o direito à representação no Legislativo, direito inestimável para eles temível apenas para os tiranos, Convocou os corpos legislativos a lugares não usuais, ser conforto e distantes dos locais em que se encontram os arquivos públicos, com o único fito de arrancar-lhes, pela fadiga o assentimento às medidas que lhe conviessem. Dissolveu Casas de Representantes repetidamente porque: opunham com máscula firmeza às invasões dos direitos do povo. Recusou por muito tempo, depois de tais dissoluções, fazer com que outros fossem eleitos; em virtude do que os poderes legislativos incapazes de aniquilação voltaram ao povo em geral para que os exercesse; ficando nesse ínterim o Estado exposto a todos os perigos de invasão externa ou convulsão interna. Procurou impedir o povoamento destes estados, obstruindo para esse fim as leis de naturalização de estrangeiros, recusando promulgar outras que animassem as migrações para cá e complicando as condições para novas apropriações de terras. Dificultou a administração da justiça pela recusa de assentimento a leis que estabeleciam poderes judiciários. Tornou os juízes dependentes apenas da vontade dele para gozo do cargo e valor e pagamento dos respectivos salários. Criou uma multidão de novos cargos e para eles enviou enxames de funcionários para perseguir o povo e devorar-nos a substância. Manteve entre nós, em tempo de paz, exércitos permanentes sem o consentimento de nossos corpos legislativos. Tentou tornar o militar independente do poder civil e a ele superior. Combinou com outros sujeitar-nos a jurisdição estranha à nossa Constituição e não reconhecida por nossas leis, dando assentimento a seus atos de pretensa legislação: por aquartelar grandes corpos de tropas entre nós; por protegê-las por meio de julgamentos simulados, de punição por assassinatos que viessem a cometer contra os
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