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Autora: Profa. Angélica L. Carlini Colaboradora: Profa. Amarilis Tudella Trabalho e Sociabilidade Professora conteudista: Angélica L. Carlini Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutora em Educação pela PUC-SP. Mestre em Direito Civil pela UNIP. Mestre em História Contemporânea pela PUC-SP. Graduada em Direito pela PUC-SP. Pós-doutorado em Direito Constitucional pela PUC-RS. Docente da área de Direito da UNIP. Professora colaboradora do programa de mestrado em Administração da UNIP. Membro da Comissão de Qualificação e Avaliação da UNIP. Professora e Coordenadora do MBA de Gestão Jurídica de Seguros e Inovação da Escola de Negócios e Seguros (ENS). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). Membro do Conselho Científico do Comitê Ibero Latino-Americano da Associação Internacional de Direito de Seguro (Aida). Advogada e parecerista. Pesquisadora na área de inovação e seguro pelo centro de pesquisa e economia do seguro da Escola de Negócios e Seguros. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C282t Carlini, Angélica L. Trabalho e Sociabilidade / Angélica L. Carlini. – São Paulo: Editora Sol, 2021. 148 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Sociedade. 2. Organização. 3. Trabalho. I. Título. CDU 301.188.1 U511.73 – 21 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Bruno Barros Aline Ricciardi Sumário Trabalho e Sociabilidade APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO TRABALHO NAS SOCIEDADES ORGANIZADAS ...............................9 1.1 Formação do Estado e das formas de governo ........................................................................ 20 1.2 O absolutismo ........................................................................................................................................ 22 1.3 Revoluções burguesas: Inglaterra, Estados Unidos e França .............................................. 26 1.4 Os principais pensadores do Estado moderno .......................................................................... 31 1.5 A Revolução Industrial ....................................................................................................................... 43 2 PENSAMENTO LIBERAL E PENSAMENTO MARXISTA: PRODUÇÃO E TRABALHO .................... 50 3 ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL E A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA ......................................... 59 4 CAPITALISMO HEGEMÔNICO E GLOBALIZAÇÃO ................................................................................. 70 Unidade II 5 DEFINIÇÃO DE TRABALHO: FORMAS DE ORGANIZAÇÃO EMPRESARIAL DO TRABALHO ...................................................................................................................................................... 79 5.1 Formas de organização empresarial ............................................................................................. 86 6 TECNOLOGIA, SOCIEDADE E PRODUÇÃO ECONÔMICA .................................................................... 96 7 NOVAS FORMAS DE PRODUÇÃO E TRABALHO: PLATAFORMAS DIGITAIS, EMPREENDEDORISMO DIGITAL E NECESSIDADE DE PROTEÇÃO JURÍDICA E SOCIAL DO TRABALHADOR ........................................................................................................................106 8 TRABALHO E SOCIABILIDADE ...................................................................................................................126 8.1 O papel do serviço social na sociedade 4.0 .............................................................................133 7 APRESENTAÇÃO É um momento histórico importante para estudarmos trabalho e sociabilidade, tão relevantes para a vida humana, porque estamos em uma fase de transição migrando para uma sociedade cada vez mais conectada e digital. As novas tecnologias de informação tornaram a sociedade mais dinâmica, em condições de saber em tempo real tudo o que acontece em qualquer parte do planeta, sempre com imagens que circulam rapidamente pelo mundo como também circulam pessoas, bens de consumo, vírus, novos hábitos, tendências culturais e políticas. Esse mundo tecnológico já foi chamado de muitas formas diferentes pelos estudiosos: sociedade pós-moderna, sociedade em rede, sociedade de informação, sociedade de inovação entre outros. Mas o mais importante não é a denominação que possa ser dada ao conjunto de características da sociedade contemporânea. O mais importante é nos dedicarmos à reflexão de como essas novas características da sociedade afetam as relações sociais e, muito em especial, as relações de produção e trabalho. Com aportes teóricos, reflexões e análises da realidade, o percurso pretende iluminar a prática dos profissionais de serviço social, para que ela se concretize de forma muito positiva em um mundo marcado por transformações importantes que precisam ser conhecidas, analisadas e compreendidas. A atuação dos profissionais de serviço social, assim como em outras categorias profissionais, educação, por exemplo, precisa estar afinada com as transformações dos modos de produção e da organização da vida em sociedade, para que os projetos e a construção das políticas públicas levem em conta as possibilidades e particularidades do nosso tempo. Nosso olhar atento de estudiosos das relações sociais deve percorrer os diferentes aspectos que na atualidade caracterizam o mundo em que vivemos, como esses aspectos impactam o Brasil e sua sociedade e que reflexões poderemos construir para concretizarmos um país mais livre, justo e solidário que a Constituição Federal determinou como objetivo maior a ser alcançado. INTRODUÇÃO O fio condutor de nossos estudos são as relações que se constroem a partir do mundo do trabalho. É um objetivo vigoroso e complexo que vai exigir nossos melhores esforços de estudo, pesquisa e reflexão. Para que possamos dar conta dos objetivos, vamos estudar, primeiramente, a trajetória histórica do trabalho nas sociedades organizadas; o pensamento liberal e o pensamento marxista nas relações de produção e de trabalho; e o estado de bem-estar social e os fundamentos da doutrina social da Igreja, que foram relevantes para a regulação das relações de trabalho. Vamos finalizar com a análise sobre o capitalismo como prática hegemônica e a globalização que vivemos no mundo a partir do fim da Guerra Fria, em 1989. 8 Depois, vamos nos dedicar a compreender a sociedade contemporânea, tecnológica e de informação e como se dá a produção nesse novo cenário. Em seguida, vamos analisar o mundo dotrabalho e suas relações nesse ambiente de predomínio tecnológico, em especial a terceirização, o teletrabalho, o trabalho intermitente, os novos espaços de trabalho (coworking e home office), e como os instrumentos tecnológicos impactam as relações de trabalho, com o uso da inteligência artificial, das máquinas que aprendem (machine learning) e outras tecnologias de produção. Vamos encerrar refletindo sobre as novas formas de trabalho nas plataformas digitais, as relações sociais na sociedade em rede e, em especial, sobre o papel do profissional de serviço social nesse mundo em transição. 9 TRABALHO E SOCIABILIDADE Unidade I 1 TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO TRABALHO NAS SOCIEDADES ORGANIZADAS Os estudos históricos e antropológicos apontam que os seres humanos sempre viveram em grupos. As pesquisas que conhecemos sobre a história da humanidade relatam que os homens sempre viveram em grupo para sobreviver, porque juntos possuíam maior força física para solucionar os problemas da alimentação, abrigo e defesa contra animais, contra outros grupos humanos e a defesa contra os imprevistos da natureza. O grande temor dos primeiros habitantes humanos da Terra foram os fenômenos naturais, como chuvas, terremotos, raios e trovões, ou ainda o frio ou calor intensos que provocam riscos para a sobrevivência. Foi preciso utilizar força física, inteligência e capacidade de organização do grupo para garantir alimentação e abrigo para enfrentar as diferentes dificuldades naturais. Em grupos, os homens se protegeram, se defenderam e se organizaram para produzir de forma eficiente o necessário para sua sobrevivência, inclusive para a procriação de filhos para se constituírem em novos componentes do grupo. Os estudos da área de antropologia, sociologia e outros permitem o conhecimento sobre as diferentes formas de organização social nas quais os homens criaram sua experiência no planeta Terra. Em decorrência da existência desses estudos, pudemos saber que a história da humanidade foi construída por sociedades muito organizadas, outras, nem tanto; em alguns momentos pela predominância do poder matriarcal e, em outros, pelo predomínio do poder patriarcal. Tivemos grupos nômades e outros que se fixaram em territórios; conhecemos grupos que se relacionavam facilmente com outros e, ao contrário, outros grupos que não estabeleceram relações amistosas ou que demoraram paraEcoexistir com outros grupos organizados. A história da humanidade é a história da diversidade nas formas de organização social e, principalmente, da diversidade de opções na produção, sobrevivência e bem-estar. Cada grupo social construiu maneiras diversas de organização social, de distribuição do poder e da produção e, por isso, refletir sobre essas diferentes formas é um ótimo exercício para compreendermos a sociedade como a conhecemos no mundo contemporâneo. Vamos fazer uma rápida passagem por importantes marcos da história da humanidade, que certamente você já estudou em outros momentos, mas que agora servirão de balizadores para nossas reflexões em torno do trabalhos e da sociabilidade. Parece ser possível afirmar que os homens sempre trabalharam mesmo no período que definimos como fase anterior à agrícola, e, para desenvolverem seu trabalho, produziram várias formas de 10 Unidade I conhecimento em relação ao meio em que viviam. Yuval Noah Harari, doutor em História pela Universidade de Oxford e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, faz importantes observações a respeito desse período. Leia com atenção: Que generalizações podemos fazer sobre a vida no mundo pré-agrícola, então? Parece seguro afirmar que a grande maioria das pessoas vivia em pequenos bandos compostos de várias dezenas ou, no máximo, várias centenas de indivíduos e que todos esses indivíduos eram humanos. É importante observar esse último aspecto, porque ele está longe de ser óbvio. A maioria dos membros de sociedades agrícolas e industriais são animais domesticados. [...] A maioria dos bandos de sapiens vivia se deslocando, vagando de um lado para outro em busca de alimentos. Seus movimentos eram influenciados pela mudança de estações, pela migração anual de animais e pelo ciclo de crescimento das plantas. Eles costumavam viajar de um lado para outro no mesmo território, uma área cuja extensão ficava entre várias dezenas de muitas centenas de quilômetros quadrados. Na maioria dos habitats, os bandos de sapiens se alimentavam de maneira versátil e oportunista. Eles saíam à procura de cupins, coletavam bagas, desenterravam raízes, capturavam coelhos e caçavam bisões e mamutes. Apesar da imagem difundida de “caçador”, a coleta era a atividade principal dos sapiens e lhe fornecia a maior parte de suas calorias, além de matérias-primas como sílex, madeira e bambu. Os sapiens não saiam apenas à procura de alimentos e materiais. Também saíam à procura de conhecimento. Para sobreviver, precisavam de um detalhado mapa mental de seu território. Para maximizar, a eficiência de sua busca cotidiana por alimento, precisavam de informações sobre padrões de crescimento de cada planta e os hábitos de cada animal. Precisavam saber quais alimentos eram nutritivos, quais eram nocivos e quais podiam ser usados como remédio e de que forma. Precisavam conhecer o progresso das estações do ano e os sinais de alerta que precediam a uma tempestade ou um período de seca. Estudavam cada correte, nogueira, caverna de urso e depósito de sílex nas redondezas. Cada indivíduo precisava entender como fabricar uma faca de pedra, como remendar um manto rasgado, como preparar uma armadilha para um coelho e como enfrentar avalanches, picadas de cobra ou leões famintos. O domínio de cada uma dessas habilidades requeria anos de aprendizado e prática. [...] 11 TRABALHO E SOCIABILIDADE Em outras palavras, o caçador-coletor médio tinha conhecimentos mais abrangentes, mais profundos e mais variados de seu meio imediato do que a maioria de seus descendentes modernos. Hoje, a maioria das pessoas nas sociedades industriais não precisa saber muito para sobreviver. [...] Há alguns indícios de que o tamanho médio do cérebro de um sapiens efetivamente diminuiu desde a era dos caçadores-coletores. A sobrevivência naquela época requeria de cada indivíduo habilidades mentais sofisticadas (HARARI, 2016, p. 54). Figura 1 É importante refletir sobre o fato de que os Homo sapiens não eram meros coletores da natureza, mas também desenvolviam atividade de construção de conhecimento para aprender habilidades que pudessem garantir sua subsistência. Isso, de fato, é muito semelhante ao que fazemos na atualidade em nossas atividades de trabalho: desenvolvemos o intelecto na construção de conhecimento a fim de desempenhar atividades pelas quais somos remunerados e pagar o que é necessário para uma vida digna como alimentos, moradia, roupas e outros. O trabalho e suas diversas formas ao longo da história parece ser um importante fio condutor para compreendermos a trajetória da humanidade e das relações sociais. 12 Unidade I Observação Alguns trabalhos do professor Yuval Harari têm como característica não serem escritos em formato acadêmico, tanto que se tornaram livros muito vendidos em todo o mundo, verdadeiros best sellers. Isso não retira deles o caráter científico e metodológico das informações, pois o currículo do professor Harari é muito bom e seu trabalho reflete a excelência de seus estudos e de sua formação. Escrever de forma simples e que facilite a compreensão de leigos não diminui a seriedade e confiabilidade das informações. Vale a pena conhecer as reflexões desse importante autor contemporâneo. Vamos prosseguir acompanhando a linha do tempo da humanidade e suas relações como trabalho. Adhermar Marques afirma: As primeiras civilizações desenvolveram-se em um período conhecido tradicionalmente como História Antiga. Esse período histórico engloba a Antiguidade Oriental e a Antiguidade Ocidental. Durante aAntiguidade Oriental desenvolveram-se as sociedades que, de acordo com uma determinada concepção historiográfica, são consideradas “históricas”, uma vez que já dominavam a escrita. Entre elas, destacaram-se as sociedades egípcia e mesopotâmica, consideradas civilizações agrícolas dos grandes rios. Além destas, destacaram-se, também, na região do Oriente Próximo, as civilizações desenvolvidas pelos fenícios, persas e hebreus. Diferentemente dos demais povos das civilizações agrícolas, os fenícios destacaram-se como grandes navegadores, tendo no comércio marítimo a sua principal atividade econômica. Isso os habilitou a manter um intenso contato com outros povos, dos quais assimilaram valores culturais. [...] Aos fenícios é atribuída a criação do alfabeto, necessário para a elaboração de uma documentação simplificada essencial aos seus negócios. Esse alfabeto, que acabou substituindo os complicados sistemas hieroglífico dos egípcios e cuneiforme dos mesopotâmicos, foi posteriormente aperfeiçoado por gregos e romanos, sendo considerado, por muitos historiadores, o maior legado dessa civilização. 13 TRABALHO E SOCIABILIDADE Os persas construíram o maior império da Antiguidade Oriental, que se estendeu do Rio Nilo ao Rio Indo, diferentemente das civilizações agrícolas e da civilização marítima dos fenícios, tiveram como base de sua economia a atividade nômade-pastoril (MARQUES, 2006, p. 10). Repare que tanto os fenícios como os persas desenvolveram atividades de produção – agrícola ou de comércio marítimo – e por meio delas, desenvolveram suas relações sociais e de organização. A necessidade de sobrevivência incentivou os grupos sociais para a produção de alimentos e de bens para sua proteção. Com o tempo, a sobrevivência deixou de ser a única razão do trabalho e da produção, surgindo novas necessidades sociais e de ampliação de domínios territoriais que levaram a humanidade por caminhos de sempre cada vez maior e intensa produção. O trabalho está na base do da organização e da sobrevivência da humanidade e, nesse sentido, Adhemar Marques ressalta: Todas as sociedades da Antiguidade Oriental desenvolveram-se a partir da chamada “Revolução Agrícola”, ocorrida há, aproximadamente, 8 mil anos. Tratou-se de um processo histórico que permitiu a fixação os grupos humanos em determinadas regiões (sedentarização), o que contribuiu para um significativo aumento demográfico em função do crescimento da oferta de alimentos (agricultura e criação de animais). Observaram-se também, nesse momento, uma complexidade maior da técnica aplicada às atividades produtivas e uma especialização do trabalho (MARQUES, 2006, p. 12). Em razão das técnicas de cultivo – agricultura – e da criação de animais com a finalidade de contribuir para o trabalho e também para o alimento, grupos sociais puderam se fixar em determinadas regiões quase sempre mais produtivas, com facilidade de acesso à água, terras férteis e terrenos que viabilizem o plantio, ou seja, pouco pedregosos e inclinados, de forma a tornar a produção mais eficiente. Ao mesmo tempo, a fixação no mesmo território de grande quantidade de pessoas tornou relevante a organização dos grupos sociais e fez surgir a hierarquia entre os homens, classes sociais e outras formas de organização que os historiadores estudam incessantemente. Adhemar Marques afirma que nas civilizações da chamada Antiguidade Oriental, algumas características merecem destaque, como, por exemplo: — Economia baseada na agricultura e com a produção de excedentes. — Construção de grandes obras de engenharia, como canais de irrigação e diques. — Crescente divisão do trabalho e início da exploração social, uma vez que alguns homens passaram a se apropriar permanentemente dos excedentes produzidos. 14 Unidade I — Surgimento de uma elite formada por líderes militares, sacerdotes e membros da realeza e nobres. — Regime de trabalho predominantemente compulsório, prestado por servos e escravos. — Centralização político-administrativa, que culminou com a constituição do Estado, no qual o poder encontrava-se institucionalizado e era exercido sobre o conjunto da sociedade num determinado território. Essa instituição foi importante para a mobilização de numerosos contingentes de trabalhadores indispensáveis à realização de obras de drenagem e irrigação e para a “agricultura de regadio” (MARQUES, 2006, p. 13). Podemos perceber que algumas questões que atormentam a sociedade até hoje têm sua origem em um passado muito distante e que, nem por isso, conseguimos encontrar a solução para problemas como regime de trabalho compulsório ou escravo; surgimento de elite; e exploração social de alguns homens em relação a outros. O trabalho como atividade humana de subsistência está presente em todas as diferentes épocas da história da humanidade como teremos oportunidade de analisar detalhadamente. Da produção agrícola inicial dos primeiros tempos históricos da agricultura, passando pela Revolução Industrial até chegar ao momento em que vivemos: a chamada sociedade de inovação, com automação da produção industrial e de muitas áreas de prestação de serviços, a Indústria 4.0. O trabalho e os trabalhadores foram e continuam sendo elementos essenciais para construirmos um diálogo com a organização do Estado e com as formas de governo, a fim de podermos analisar a história e contribuir para a construção do futuro. No campo das relações de trabalho, os problemas e tensões precisam ser solucionados de forma institucional, ou seja, por meio da aprovação de normas para organização e proteção do trabalhador, da remuneração e para possibilidades de empregabilidade. A prevalência da força de alguns grupos sobre outros – povos conquistadores sobre conquistados –, ou da elite sobre os homens comuns não foi uma solução capaz de viabilizar harmonia e paz social. Ao contrário, os atritos na área das relações de trabalho sempre existiram e até hoje causam consequências sociais, econômicos e políticas. O trabalho foi sempre uma relação essencial para a sociedade nas diferentes épocas históricas que a humanidade vivenciou. Da mesma maneira foi essencial para a formação do Estado e das formas de governo, bem como para a organização dos diferentes grupos humanos que agem em cada sociedade. A ideia de Estado surge exatamente da necessidade de organizar os grupos sociais para que eles respeitem uma determinada ordem e, desse modo, vivam em paz e com oportunidade de garantir sobrevivência e bem-estar. Subjacente a essa ideia de organização está, evidentemente, a ideia de poder, como ele se constitui, se organiza e se mantém. 15 TRABALHO E SOCIABILIDADE Quem deve exercer o poder em um determinado grupo social? Seja em uma tribo ou em uma cidade-Estado, como viviam os gregos, ou em um império, como viveram os romanos durante um largo período de tempo, não importa a forma como tenham se organizado, quem é que tem legitimidade para mandar e exigir obediência às suas ordens? O poder deve ser exercido por aqueles que tenham mais força física ou por aqueles que tenham mais capacidade intelectual? O poder deve ser exercido isoladamente por um único membro do grupo ou deve ser exercido por diferentes membros em sistema de alternância? O poder deve ser absoluto ou seguir regras votadas por todo o grupo? Como podemos perceber, existem muitas questões a serem discutidas e decididas pelos diferentes grupos sociais em todo o mundo, sob pena de não conseguirem se organizar de forma eficiente e adequada para suas necessidades e para manutenção de seus valores. Todas essas questões que estamos começando a discutir estão na base da ideia de Estado politicamente organizado e, até hoje, podemos afirmar que não foi possível encontrar uma forma de governo que atenda todas as necessidades dos homens, que satisfaça todos os anseios de uma vida em paz e com garantia de qualidade de vida adequada para atender todas as necessidades dos seres humanos. Ao contrário,quanto mais avançamos nas questões de produção e de consumo, quanto mais complexas se tornaram as relações na sociedade contemporânea, mais difícil é encontrar uma forma de organização de Estado e de governo que agrade a todos os cidadãos, que traga paz social e condições dignas de vida para todos. Na atualidade, em muitos países do mundo, assistimos diariamente a um desfile de problemas que estão diretamente relacionados com a organização do Estado e do governo, problemas variados e complexos que nos evidenciam que embora tenhamos avançado bastante enquanto sociedades organizadas, ainda não conseguimos encontrar formas de garantia da paz e do bem-estar para todos. A história da humanidade é repleta de conflitos políticos e sociais que nada mais foram do que disputas pelo poder. No século XX, duas guerras mundiais convulsionaram a Europa em razão da luta pela tentativa de organização de um poder hegemônico, que dominasse grande parte daquele território, como pretendeu o nacional-socialismo ou nazismo, como ficou conhecido o movimento liderado por Adolf Hitler. Mas no século XXI, ou seja, nesse exato momento em que vivemos e estudamos sobre trabalho e sociabilidade, a mesma Europa vivencia a triste experiência de assistir a grupos de refugiados políticos que se lançam em perigosas travessias marítimas ou terrestres para poderem chegar a outros países. Alimentam a esperança de encontrar em novos países meios melhores para viver. 16 Unidade I Figura 2 Observe a seguir os dados da Agência da Organização das Nações Unidas (ACNUR) sobre refugiados em todo o mundo no ano de 2019. Figura 3 São milhares de pessoas que deixaram a Síria, por exemplo, para fugir de uma guerra civil que teve início em 2010 e que ainda não terminou e gera grande número de mortos e feridos a cada ano, além de pessoas que não se sentem seguras naquele país e se refugiam em outro lugar até que a guerra termine. 17 TRABALHO E SOCIABILIDADE Repare que os sírios foram em 2019 o maior contingente de refugiados segundo o quadro da ACNUR, com seis milhões e seiscentos mil pessoas que se tornaram refugiados. Parte dos europeus é favorável à chegada dos refugiados e defende que eles devem receber ajuda humanitária e que esforços sejam realizados para que eles sejam plenamente integrados nos novos países. A Turquia, por exemplo, foi o país do mundo que mais recebeu refugiados segundo dados da ACNUR. Existem, porém, países contrários ao recebimento de refugiados, seja em decorrência de problemas econômicos que possuem e que poderão vir a ser potencializados em razão da chegada de mais pessoas, seja porque temem que entre os refugiados estejam membros de grupos extremistas com intenção de viabilizar práticas terroristas. Os refugiados são diferentes dos imigrantes. Refugiados abandonam seu país porque estão em risco, porque podem ser atingidos por guerras internas, atos terroristas, perseguição de governos que se opõem às suas tendências políticas ou até mesmo a sua identidade étnica. Refugiados também fogem da escassez de alimentos e condições mínimas de vida segura, como acontece nas regiões devastadas por acidentes da natureza como terremotos, por exemplo. O Haiti é um dos exemplos mais frequentes de país com alto número de refugiados em decorrência das precárias condições sanitárias e de segurança alimentar decorrentes de terremotos que devastaram grandes áreas daquele país. Imigrantes procuram novas opções de vida, de trabalho ou experiências culturais pelas quais se sentem atraídos. São diferentes dos refugiados que a rigor, não têm mais opção de vida com segurança em seus países e aceitam correr o risco de fugir para outro país em que nem sempre são bem recebidos ou morar em acampamentos de refugiados em condições muito precárias. Figura 4 – Acampamento de refugiados da ACNUR 18 Unidade I O que fazer com os refugiados? Esse é um problema complexo para o qual a humanidade não encontrará soluções simples. E não é um problema tão distante da realidade brasileira como foi no passado. Leia a nota a seguir publicada no portal da ACNUR (2020) em janeiro de 2020: A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) parabenizou hoje o Governo do Brasil pelo reconhecimento de cerca de 17 mil venezuelanos como refugiados. A decisão faz parte do procedimento facilitado de prima facie aprovado em dezembro de 2019 pelo Comitê Nacional para Refugiados (CONARE). Desde que a primeira decisão do Comitê foi tomada, no início de dezembro, venezuelanas e venezuelanos solicitantes da condição de refugiado que atenderem aos critérios necessários terão seu procedimento acelerado, sem a necessidade de entrevista. Com a decisão de hoje, foram considerados elegíveis para a condição de refugiado pessoas que tiveram até uma saída do Brasil desde 2016. Até o momento, mais de 37 mil venezuelanas e venezuelanos foram reconhecidos no Brasil, tornando-se o país com o maior número de refugiados venezuelanos reconhecidos na América Latina. As pessoas não podem ter qualquer tipo de permissão de residência, devem ter mais de 18 anos, possuir um documento de identidade venezuelano e não ter antecedentes criminais. Tal medida reforça o papel do Brasil na proteção de refugiados na região, e deriva do reconhecimento, em junho de 2019, da situação de grave e generalizada violação de direitos humanos na Venezuela, em linha com a Declaração de Cartagena de 1984 sobre os refugiados. “O procedimento facilitado para o reconhecimento do status de refugiado é uma forma muito eficaz de garantir maior proteção a essas milhares de pessoas”, disse o representante da ACNUR no Brasil, José Egas, em Brasília. “Essa postura reforça o compromisso do governo brasileiro em garantir direitos às milhares de pessoas venezuelanas que buscam proteção no Brasil”, ressaltou (ACNUR, 2020). Como sabemos, a Venezuela tem vivido período histórico de grave crise política e consequentemente econômica, que fez com que milhões de pessoas deixassem aquele país na condição de refugiados para tentar viver de forma mais segura e digna em outros países. A proximidade geográfica tornou o Brasil um dos destinos mais procurados pelos venezuelanos. 19 TRABALHO E SOCIABILIDADE No passado recente e por motivos semelhantes, foram os bolivianos que deixaram seu país e vieram para o Brasil. Segundo dados da Polícia Federal e da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, são mais de 75 mil bolivianos vivendo na capital do estado (apud SP2, 2020). Os refugiados abandonam seus países, famílias, pertences, sua cultura, porque não enxergam mais possibilidades de vida digna onde estão. Precisam sair para poder tentar uma vida mais segura e com melhor qualidade. Quase sempre por trás dessa decisão difícil, estão problemas políticos e econômicos e, muitas vezes, é difícil saber qual deles começou primeiro: se o econômico ou o político. Mesmo quando se trata de eventos da natureza como furacões, tufões ou terremotos, em países de governos mais estáveis e economia produtiva, a recomposição da situação é razoavelmente rápida e as vítimas são assistidas naquilo que necessitam, sem que seja preciso fugir. Em países nos quais a estrutura econômica e estatal é precária, corroída pela corrupção e pelas práticas de governo pouco honestas, não existem recursos para atender as vítimas de tragédias da natureza. Nesses casos, fugir é a única solução para muitas pessoas. A organização política e governamental está, quase sempre, na base dos problemas que a humanidade enfrenta e que geram milhões de vítimas em muitas partes do mundo. Mesmo no Brasil vivemos nos últimos trinta anos problemas políticos e econômicos que têm em sua origem dificuldades para organizar o Estado e as formas de governo. Já há algum tempo que o debate sobre corrupção, impeachment (perda do mandato por crime de responsabilidade, entre outros motivos previstos na Constituição Federal), recursos financeiros para campanhas políticas, caixa dois(dinheiro não contabilizado para fins tributários) e lavagem de dinheiro tomaram conta do cenário político brasileiro, desvendaram práticas de corrupção muito antigas e de desvio de dinheiro público lamentáveis e motivaram a população brasileira a participar de manifestações de rua que poucas vezes haviam ocorrido com tanta intensidade e quantidade. Foram muitos momentos na história recente do país em que a população se organizou. Atualmente, por meio das redes sociais, foi às ruas das principais cidades do país e manifestou seu intenso desagrado pelas práticas de políticos e partidos, pela corrupção em empresas que eram ícones em produtividade, como a Petrobras e, principalmente, pelo mau uso do dinheiro público em muitos setores da administração governamental. Essas manifestações amplamente divulgadas pela imprensa mostraram que o país vive um período verdadeiramente democrático, em que a manifestação do pensamento é livre para todos e não pode ser proibida, salvo se praticada com irresponsabilidade ou com destruição de patrimônio público ou privado. Em todas essas situações – guerras, refugiados, corrupção de políticos – as questões de Estado e formas de governo estão presentes e são um dos principais pontos do debate. Afinal, a forma de organização do Estado e do governo repercute no âmbito político, social e econômico, na geração de empregos, na distribuição de renda, na viabilidade de acesso de cada cidadão a uma vida digna ou marcada por condições precárias. 20 Unidade I A depender da forma como o Estado e as formas de governo se organizam e atuam, os cidadãos terão melhores condições de acesso à saúde, à educação, à seguridade social, ao emprego, à aposentadoria, entre outros direitos sociais que no Brasil estão expressamente colocados no artigo 6º da Constituição Federal, lei mais importante do país. Assim, é essencial conhecer a formação histórica e política do Estado e as formas de governo, porque isso pode aprimorar nossa percepção sobre diferentes situações políticas, históricas e sociais e auxiliar a construir opiniões críticas e propostas profissionais mais adequadas e eficientes em serviço social. 1.1 Formação do Estado e das formas de governo A ideia de Estado está entre as mais antigas no pensamento político mundial. Como vimos anteriormente, a opção por viver em grupo e de forma organizada foi adotada pelos primeiros seres humanos que habitaram o planeta Terra, mas, nem por isso, deixou de ser uma forma de vida marcada por embates e tensões, porque a luta pelo poder é um traço marcante na vivência dos diferentes grupos sociais. Os estudos e pesquisas apontam que em cada um dos períodos da história da humanidade, existiram grupos e lideranças que foram responsáveis pela organização social, com o objetivo de garantir a preservação e a sobrevivência da espécie humana. É razoável pensar que nos períodos mais antigos, o poder fosse exercido pelos mais fortes, por aqueles em melhores condições físicas para impor pela força a liderança das atividades sociais. Mas as atribuições dos grupos sociais foram se tornando complexas com a incorporação da tecnologia na agricultura, produção de excedentes, necessidade de construção de habitações nos lugares em que a produção agrícola era mais importante, organização dos grupos sociais que passaram a dividir o mesmo espaço territorial e a produção, ou seja, uma gama de novas necessidades que a cada momento eram incorporadas à vida dos homens e dos grupamentos sociais. O desenvolvimento de técnicas e instrumentos para a prática da agricultura marca um importante momento da história da humanidade e, quase sempre, é tratado de forma muito detalhada pelos historiadores que associam as práticas agrícolas com melhoria de vida para a humanidade que, afinal, passava a ter o domínio da produção de alimentos e não estaria mais sob o risco de passar fome ou ter que usar a força física para ter acesso a meios de sobrevivência. Há, no entanto, quem discorde do fato de que as técnicas e instrumentos agrícolas tenham sido benéficos para a humanidade. Essa opinião polêmica é de Yuval Noah Harari e é importante conhecê-lo porque o confronto de ideias é sempre uma forma positiva para construirmos reflexões ampliadas e que nos permitam avaliar diferentes pontos de vista. 21 TRABALHO E SOCIABILIDADE Harari polemiza ao afirmar: Acadêmicos um dia declararam que a Revolução Agrícola foi um grande salto para a humanidade. Eles contaram uma história de progresso alimentado pela capacidade intelectual humana. A evolução, pouco a pouco, produziu pessoas cada vez mais inteligentes. As pessoas acabaram por se tornar tão inteligentes que foram capazes de decifrar segredos da natureza, o que lhes permitiu domar ovelhas e cultivar trigo. Assim que isso ocorreu, elas abandonaram alegremente a vida espartana, perigosa e muitas vezes parca dos caçadores-coletores, estabelecendo-se em uma região para aproveitar a vida farta e agradável dos agricultores. Essa história é uma fantasia. Não há indícios de que as pessoas tenham se tornado mais inteligentes com o tempo. Os caçadores-coletores conheciam os segredos da natureza muito antes da Revolução Agrícola, já que sua sobrevivência dependia de um conhecimento íntimo dos animas que eles caçavam e das plantas que eles coletavam. Em vez de prenunciar uma nova era de vida tranquila, a Revolução Agrícola proporcionou aos agricultores uma vida em geral mais difícil e menos gratificante que a dos caçadores-coletores. Estes passavam o tempo com atividades mais variadas e estimulantes e estavam menos expostos à ameaça de fome e doença. A Revolução Agrícola certamente aumentou o total de alimentos à disposição da humanidade, mas os alimentos extras não se traduziram em uma dieta melhor ou em mais lazer. Em vez disso, se traduziram em explosões populacionais e elites favorecidas. Em média, um agricultor trabalhava mais que um caçador-coletor e obtinha em troca uma dieta pior. A Revolução Agrícola foi a maior fraude da história (HARARI, 2016, p. 88). Sem dúvida é uma opinião polêmica e exatamente por isso é tão importante. Provoca reflexões e propõe que façamos mais pesquisa sobre o tema para aprofundar nosso conhecimento e conseguir opinar com fundamentação. De todo modo, para nós que estamos estudando trabalho e sociabilidade ao longo da trajetória histórica da humanidade, a compreensão de que a agricultura não foi apenas solução, mas também fonte de conflitos entre os diferentes atores históricos, é muito importante. Aliás, conflitos que em boa medida ainda não foram satisfatoriamente solucionados no mundo contemporâneo em muitas regiões do planeta, como no Brasil, em que ainda temos expressivos conflitos sobre o uso e a posse da terra, latifúndios, áreas improdutivas e tantos outros problemas. Voltaremos a esse tema um pouco mais à frente. 22 Unidade I Figura 5 Os diferentes períodos de organização social foram se sucedendo, das tribos para grupos maiores e produtores até chegar à sociedade em que vivemos e à organização política do Estado como conhecemos em nossos dias, a trajetória da humanidade foi longa e marcada por muitas tentativas e erros. Nosso maior interesse, nesse momento, é o estudo do Estado, sua formação e suas principais características, porque o objetivo é explorar esse conhecimento a partir da perspectiva das relações de trabalho e sociabilidade. É o Estado por meio de leis que organiza as relações de trabalho e muitas outras relações sociais, mesmo as de caráter mais privado como casamento, separação, sucessão de bens, guarda de filhos e outras. A presença do Estado é antiga na história da humanidade e é importante compreender como essa ideia se consolidou. Para isso vamos precisar de aportes teóricos das ciências políticas, da sociologia, do direito. Todas essas ciências têm contribuições para que seja possível estabelecer amplo diálogo com o serviço social e, assim, alargar as condições de análise e projetosde ação. Vamos estudar a fase do absolutismo, as revoluções liberais e a formação do Estado a partir de pensadores que se destacaram na construção de importantes abordagens e conceitos. 1.2 O absolutismo O final do período histórico da Idade Média foi marcado pelo ressurgimento das práticas de comércio e muito em especial pela organização de grandes feiras em diferentes regiões da Europa, com a presença de inúmeros mercadores. Em razão da atividade comercial, surgiram importantes cidades, muitas das quais conhecemos até hoje, como Veneza e Gênova, na Itália; Bruges, na Bélgica; Colônia, na Alemanha, entre outras. 23 TRABALHO E SOCIABILIDADE Saes e Saes explicam como se organizava a atividade econômica nessas regiões: Diferentemente do campo, nas cidades não existia servidão. E, embora muitas cidades tivessem se formado em terras de senhores feudais (devendo obrigações em relação a eles), a grande maioria tornou-se autônoma com base em uma carta de franquia concedida pelo senhor territorial (ou obtida por compra ou pela força das cidades). A organização da atividade econômica nas cidades seguia um padrão geral que comportava desvios em função das características peculiares de algumas delas. O artesanato e o comércio estruturavam-se nas chamadas corporações de ofício (guildas). A corporação tinha o monopólio do exercício do ofício no âmbito municipal. Assim, para cada ofício havia uma corporação que define as regras de acesso ao ofício. Em cada ofício, havia uma hierarquia: mestres, companheiros e aprendizes. Os mestres eram os únicos autorizados a manter uma oficina ou loja na cidade. Para ser considerado mestre do ofício, era preciso, antes de mais nada, ter completado o aprendizado do ofício e demonstrá-lo perante o governo da corporação. Em certas circunstâncias, a corporação poderia fazer outras exigências, inclusive de natureza econômica, se houve interesse em restringir o número de mestres naquele ofício. Portanto, ao controlar o número de mestres de ofício, a corporação também controlava o volume de produção, estabelecendo o monopólio da corporação sobre aquele tipo de produto. Além disso, a corporação também podia impor normas sobre o preço e a qualidade do produto, evitando qualquer tipo de concorrência entre os mestres vinculados à corporação. Os aprendizes eram jovens, em geral filhos ou familiares de mestres, que viviam em suas casas e trabalhavam em suas oficinas com o objetivo de aprender o ofício. Concluído o aprendizado – e não sendo admitidos à condição de mestre – caracterizavam-se como companheiros: artesãos já qualificados para o ofício, mas que deviam trabalhar para um mestre em troca de remuneração (e, muitas vezes, vivendo na própria casa do mestre) (SAES; SAES, 2013, p. 65). Vários aspectos importantes podem ser extraídos desse trecho da obra de Saes e Saes. O primeiro é a descrição do funcionamento das corporações de ofício ou guildas, que mostra a existência de uma hierarquia muito bem organizada e com o objetivo de estabelecer reserva de mercado, ou seja, restrição ao surgimento da concorrência. A hierarquia das corporações de ofício era forte a ponto de determinar quem poderia e quem não poderia exercer determinada atividade profissional e quem poderia ou não organizar uma loja ou oficina de trabalho. Essas ideias seriam insustentáveis no mundo em que vivemos, marcado pela liberdade da atividade profissional e empresarial e pela forte concorrência como forma de proteção 24 Unidade I dos consumidores, porque, afinal, onde há concorrência, há, teoricamente, disputa para oferecer a melhor qualidade pelo melhor preço e, com isso, conquistar maior número de consumidores. Outro aspecto relevante da lição de Saes e Saes é a prática do nepotismo, o favoritismo de parentes, que costumamos encontrar em práticas escusas na administração pública contemporânea – políticos eleitos que indicam parentes como assessores ou secretários de gabinete –, mas que nas corporações de ofício eram praticados pelos próprios organizadores em benefícios de seus filhos ou familiares próximos. É importante observar, ainda, que a organização dos trabalhadores é antiga e teve início antes do processo de industrialização. No plano político, o final da Idade Média, séculos XI a XV, foi marcado pela centralização do poder. O poder fragmentado dos senhores feudais e a universalidade da Igreja foi substituído pela centralização política exercida pela monarquia que passa a ter o poder político, militar e administrativo. Essa passagem de modelo de organização social não ocorre ao mesmo tempo em todas as regiões da Europa, mas, paulatinamente, ganha força e se estabelece como forma predominante. Figura 6 – Porto de Gênova, Itália O absolutismo não se firmou apenas por razões de ordem política, militar ou administrativa. A produção econômica exerceu influência marcante como explica Adhemar Marques: [...] a centralização também atendeu às aspirações da nascente burguesia, interessada na unificação dos mercados e da moeda, na proteção contra a concorrência de comerciantes estrangeiros e na existência de uma legislação única, válida para todo o território nacional (MARQUES, 2016, p. 97). 25 TRABALHO E SOCIABILIDADE De fato, uma das correntes históricas que explica o fortalecimento do absolutismo fundamenta suas explicações no fato de a burguesia ter se aliado aos reis para conseguir melhores condições para o comércio. Saes e Saes ao analisarem essa hipótese histórica relatam: A fragmentação política típica da época feudal havia criado unidades autônomas em grande número, o que dificultava a circulação mercantil (...). Por exemplo, o transporte de mercadorias entre dois pontos da Europa exigia a passagem por várias unidades políticas autônomas (principados, ducados, condados etc.), com a cobrança, em cada uma delas, de pedágios e outros tributos. Além disso, a diversidade de moedas também tornava mais difícil o comércio entre várias regiões. A unificação de uma área mais ou menos vasta num Estado centralizado reduziria os problemas decorrentes da excessiva fragmentação política. Nesse sentido, é plausível afirmar que havia alguma oposição de interesses entre a nobreza feudal e a burguesia comercial em certas esferas da atividade econômica, justificando a ligação entre monarcas absolutos emergentes e a burguesia comercial. Ou seja, a burguesia daria seu apoio a um nobre pertencente a uma velha dinastia monárquica (ou a qualquer nobre com a pretensão de se tornar rei) na luta contra a nobreza feudal. Por seu turno, o rei (ou aquele que pretendia se tornar rei) dependia de recursos, em grande parte fornecidos pela burguesia comercial (SAES; SAES, 2013, p. 82). O poder dos monarcas foi construído, assim, com o apoio da Igreja, cujos clérigos ocupavam lugar de destaque junto aos reis, pela burguesia comercial, que tinha interesse em aumentar seus lucros e diminuir impostos e também pelos membros da aristocracia, que tinham interesse em possuir privilégios que variavam da isenção de impostos a cargos de representação política. Uma aliança que vigorou por um bom tempo, mas que foi substituída quando novos interesses começaram a se construir de maneira mais forte. Souto Maior traça as principais características do absolutismo e, com isso, facilita a nossa compreensão sobre as razões que levaram esse sistema a ser modificado. Ele afirma: [...] o absolutismo estabeleceu-se apoiado na burguesia, havendo a realeza dominado a antiga nobreza feudal. Teoricamente fora inspirado pelos legistas da Idade Média e posteriormente pelos juristas modernos, os quais, baseados no princípio fundamental de que a “ordem” é o bem supremo de qualquer sociedade, afirmavam também governarem os reis por direito divino. De Deus receberiam os soberanos os seus mandamentos, competindo aos seus súditos obediência passiva à vontade de seu governante (SOUTO MAIOR, 1976, p. 309). Tanto poder não demorou a causar conflitos, em especial,com a burguesia, que desejava maior liberdade para desenvolver suas atividades de comércio. As revoluções contra o absolutismo foram chamadas de revoluções burguesas exatamente por isso: foram lideradas por burgueses insatisfeitos 26 Unidade I com as práticas despóticas dos reis e, principalmente, com as regras que os impediam de ter maior lucratividade com suas atividades mercantis. Vamos conhecer brevemente os principais aspectos das três revoluções mais importantes que determinaram o fim do absolutismo e a construção do Estado das leis, com alguma semelhança com o que conhecemos na atualidade. 1.3 Revoluções burguesas: Inglaterra, Estados Unidos e França A primeira revolução burguesa correu no período de 1640 a 1688, na Inglaterra. Aquela sociedade fortemente hierarquizada e pródiga em manter privilégios de nascimento – apenas para os membros da realeza –, começava a perder a força. Os revolucionários eram homens que queriam assumir o protagonismo das decisões políticas e econômicas e não queriam mais se sujeitar aos mandos e desmandos de reis e rainhas. Além disso, desejavam maior estabilidade do poder político sem tantas guerras entre os descendentes da realeza para estabelecer de quem seria o poder, porque a instabilidade política era muito negativa para o desenvolvimento das atividades econômicas. A burguesia e a realeza tinham projetos políticos e econômicos diferentes, e a forma encontrada para conciliá-los foi a criação de uma monarquia constitucional, ou seja, o rei poderia continuar reinando, porém, teria que obedecer às leis criadas por representantes do povo, eleitos para essa finalidade. Com isso, o arbítrio seria menor, porque as leis eram conhecidas de todos e a estabilidade poderia ser alcançada. De certa forma, o poder político mudou de mãos porque o rei não decidia mais sozinho, precisava obedecer à Constituição e tinha que ouvir o povo e dialogar com o Poder Legislativo. A burguesia, os pequenos proprietários de terras e as massas populares apoiaram o poder legislativo e, em consequência, o poder absoluto do rei ficou enfraquecido. A Declaração de Direitos de 1689, conhecida em inglês como Bill of Rights, foi o marco principal da Revolução Inglesa. Trata-se de uma declaração de direitos com o objetivo de limitar o poder do monarca e aumentar a influência do poder legislativo, ou parlamento, como esse poder é chamado até hoje na Inglaterra. A Declaração de Direitos foi aprovada no ano de 1689 e procurou garantir: • que a estrutura do sistema de poder fosse organizada pela existência de três poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, em que o primeiro-ministro escolhido pelo Parlamento governava e o rei apenas representava o Estado. Esse modelo permanece em vigor até hoje na Inglaterra. A rainha tem obrigações de representação do país, mas não governa. O poder de governar é do primeiro-ministro escolhido pelo parlamento; • que os cidadãos dispusessem de direitos individuais, em especial o de ter direito à propriedade privada de bens; 27 TRABALHO E SOCIABILIDADE • que houvesse liberdade de imprensa; • que as leis só pudessem entrar em vigor se aprovadas pelo poder legislativo; • que o poder judiciário tivesse independência para julgar sem nenhuma interferência do rei; • que o rei não obtivesse e nem utilizasse recursos públicos para uso pessoal, sem prévia aprovação do Poder Legislativo. Em resumo, o documento denominado Bill of Rights colocou o rei no mesmo patamar de importância e de direitos do cidadão comum, representado no parlamento e protegido pelas leis. Isso foi uma mudança extraordinária e representou um marco na luta por igualdade de direitos e por organização justa das sociedades. A revolução burguesa da Inglaterra foi um exemplo para outros países e contribuiu para incentivar a luta por mudanças, tanto na esfera de poder político como na autonomia para as atividades econômicas. A segunda revolução burguesa ocorreu nos Estados Unidos da América e culminou com a Declaração de Independência, em 4 de julho de 1776, quando os norte-americanos declararam sua liberdade em relação à Inglaterra, de quem até então eram colônia. O conflito que culminou com a revolução pela independência teve origem em razões de ordem econômica. A Inglaterra havia passado muito tempo em guerra e estava com suas finanças corroídas, por isso aumentou impostos em relação às mercadorias produzidas nos Estados Unidos, que à época era chamado de Treze Colônias, também reduziu a liberdade econômica da colônia. Os norte-americanos não estavam dispostos a pagar maiores tributos e nem a reduzirem sua liberdade mercantil, por isso declararam a independência em relação à Inglaterra e afirmaram no texto da Declaração de Independência que o que o rei inglês havia violado os direitos mais básicos da liberdade, o que tornava insustentável a continuidade da relação colonial. A Declaração de Independência norte-americana é semelhante ao relatório de uma sentença judicial, porque menciona os fatos um a um para concluir, ao final, que não existia outra opção a não ser a Declaração de Independência. É no mínimo uma forma elegante de separação política, porque permitiu aos ingleses conhecerem, de forma objetiva e muito clara, a motivação da separação política que estava sendo concretizada. Vale a pena conhecer um trecho da Declaração de Independência norte-americana. Leia atentamente para poder analisar: 28 Unidade I Quando, no curso dos acontecimentos humanos, se torna necessário a um povo dissolver os laços políticos que o ligavam a outro, e assumir, entre os poderes da Terra, posição igual e separada, a que lhe dão direito as leis da natureza e as do Deus da natureza, o respeito digno para com as opiniões dos homens exige que se declarem as causas que os levam a essa separação. Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, Cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade. Na realidade, a prudência recomenda que não se mudem os governos instituídos há muito tempo por motivos leves e passageiros; e, assim sendo, toda experiência tem mostrado que os homens estão mais dispostos a sofrer, enquanto os males são suportáveis, do que a se desagravar, abolindo as formas a que se acostumaram. Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, perseguindo invariavelmente o mesmo objeto, indica o desígnio de reduzi-los ao despotismo absoluto, assistem-lhes o direito bem como o dever de abolir tais governos e instituir novos Guardiães para sua futura segurança. Tal tem sido o sofrimento paciente destas colônias e tal agora a necessidade que as força a alterar os sistemas anteriores de governo. A história do atual rei da Grã-Bretanha compõe-se de repetidas injúrias e usurpações, tendo todas por objetivo direto o estabelecimento da tirania absoluta sobre estes Estados (HANCOCK, [s.d.]). Os norte-americanos decidiram que seriam um Estado independente no qual viveriam homens que haviam sido criados iguais e dotados pelo Criador dos mesmos direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à procura da felicidade. O governo passaria a ser instituído com o objetivo de preservar esses direitos inalienáveis e, nos casos em que o governo se tornasse destrutivo desses fins, poderia o povo estabelecer um novo governo, sempre baseado nesses princípios imutáveis e importantes para todo o povo. 29 TRABALHO E SOCIABILIDADE Figura 7 – Monumento no Monte Rushmore, noestado de Dakota do Sul, em homenagem a presidentes famosos dos Estados Unidos, entre eles George Washington, primeiro presidente, no período de 1789 a 1797 A terceira revolução denominada burguesa foi a Revolução Francesa que teve início com o episódio que ficou conhecido como Queda da Bastilha, em 14 de julho de 1789. A Bastilha era uma prisão situada em Paris, capital da França, e seu prédio foi demolido. Simbolicamente, na atualidade, no lugar em que se encontrava a Bastilha, existe um prédio estatal; na praça em frente ao prédio, há uma torre, que tem na ponta uma estátua que representa a liberdade. Os historiadores apontam que o absolutismo na França foi marcado por inúmeros exemplos de irresponsabilidade e arbítrio dos reis, que resultaram em miséria e revolta do povo francês. Isso explica em parte porque a monarquia era odiada pelo povo e a violência imperou na revolução. Além da camada popular que vivia na miséria em razão dos desmandos da monarquia, também a burguesia estava insatisfeita, porque esses mesmos desmandos impediam o desenvolvimento das atividades econômicas, em especial do comércio. Os reis franceses acreditavam que o poder se resumia à vontade deles e, em consequência, se consideravam no direito de vida e morte sobre as pessoas e de se apropriarem de todos os bens que considerassem necessários para seu bem-estar. Isso não poderia durar muito tempo e, de fato, não durou. Afinal, grande parte da população vivia em situação de total penúria, sem ter o mínimo necessário para sua sobrevivência. De outro lado, a burguesia na França era muito forte, porque tinha o controle sobre o comércio, a indústria e as finanças, mas não tinha o poder político que desejava. O caminho mais curto para concretizar o projeto burguês de maior liberdade para agir foi derrubar a monarquia e, para isso, se uniu ao povo. A motivação era diferente, porém, naquele momento, a união de interesses foi mais forte e o resultado, positivo. Depois disso, a burguesia angariou maior poder, e a população voltou a sofrer com as dificuldades de subsistência. 30 Unidade I As palavras que marcam a Revolução Francesa são “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. E a exemplo dos ingleses e norte-americanos, a revolução também produziu uma Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, votada pelos parlamentares franceses em 26 de agosto de 1789. Foi, sem dúvida, inspirada nas duas declarações anteriores. Vale a pena conhecer as primeiras linhas da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão da França, de 1789: Os representantes do povo francês, reunidos em Assembleia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos governos, resolveram expor, em uma Declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que essa Declaração, constantemente presente junto a todos os membros do corpo social, lembre-lhes permanentemente seus direitos e deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser, a todo instante, comparados ao objetivo de qualquer instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reivindicações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, estejam sempre voltadas para a preservação da Constituição e para a felicidade geral (DECLARAÇÃO..., [s.d.]). Como é possível constatar, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão colocou a lei acima de tudo, para ser cumprida por governantes e pelos cidadãos, de forma a garantir o que eles denominaram de “felicidade geral”. As revoluções burguesas marcaram o fim do absolutismo. É possível perceber, ainda, que o surgimento do Estado da forma como o conhecemos hoje, com estabelecimento de leis de cumprimento obrigatório para todos, e de poderes que devem atuar de forma independente e colaborativa – Legislativo, Executivo e Judiciário –, foi decorrente de inúmeras mudanças ocorridas na ordem social, econômica e política ao longo da história. As diversas maneiras como os grupos sociais se organizaram, produziram economicamente para sua subsistência e para a troca quando tiveram excedentes, e a forma como estabeleceram regras para o poder político, tudo isso criou as bases para a formação do Estado como o conhecemos hoje. Lembrete Absolutismo é o período histórico que se caracteriza pelo fato de que os reis detinham poder de vida e morte sobre seus súditos. Os reis acreditavam que eram ungidos por Deus para ocupar o poder. O fim do absolutismo foi o momento propício para o nascimento do Estado fundado em leis que estabeleciam direitos e deveres para todos. 31 TRABALHO E SOCIABILIDADE 1.4 Os principais pensadores do Estado moderno Maquiavel, Hobbes, Locke e Rousseau são considerados os principais pensadores teóricos da formação do Estado moderno. Conhecer o pensamento e as teorias que eles construíram será importante para a compreensão do que estamos estudando: o trabalho e a sociabilidade ao longo da trajetória histórica da humanidade. Entre as várias teorias criadas para explicar o Estado, talvez a mais conhecida seja a teoria do contrato social, que tem na obra de Jean-Jacques Rousseau que leva o mesmo nome – O contrato social –, um estudo até hoje bastante debatido entre os estudiosos. Mas Rousseau não foi o primeiro estudioso a propor essa ideia. Antes dele, dois outros pensadores justificaram a organização política social a partir da formação de um contrato entre as pessoas que desejavam viver em sociedades organizadas e, com isso, abrir mão de uma parte de sua liberdade em troca de segurança e garantia para seus direitos. Essa é a ideia central que orienta a formação do Estado: todos terão direitos e deveres, o que significa que terão de agir em conformidade com as leis aprovadas por aquele grupo social e que serão de cumprimento obrigatório para todos, independentemente do poder econômico, político ou social de cada um. O primeiro a estudar e teorizar sobre o Estado foi Thomas Hobbes, inglês, nascido em 1588 e falecido em 1679. Foi filósofo e cientista político e viveu em um período especialmente conturbado da história da Inglaterra, marcado por guerras e disputas de poder político. Hobbes escreveu uma obra considerada fundamental para a compreensão do Estado, o livro se chama Leviatã e faz alusão a um monstro bíblico. A capa da primeira edição do livro em 1642 tinha a imagem do Leviatã. O Leviatã, na visão de Hobbes, representaria o Estado como um homem artificial dotado de escamas, que são seus súditos. Hobbes era um adepto do absolutismo, e o Leviatã representava que a vontade dos súditos deve ser restrita. Por meio de um pacto social, os súditos outorgariam ao Estado o poder soberano para que o exercesse conforme a vontade do governante. Hobbes tinha seu entendimento no sentido de que a humanidade, naturalmente, tende a viver em conflito porque todos os homens desejam ter direitos ilimitados. O exercício de direitos ilimitados gera luta pelo poder, insegurança e guerras. Por acreditar nessa tendência natural da humanidade, Hobbes afirmava que “O homem é o lobo do homem”, frase que ficou bastante famosa e, não raro, é utilizada ainda em nossos dias. Para esse pensador, o homem em estado de natureza é um ser que age na concretização de seus próprios interesses, sem se importar com os demais. Para obter o que acredita que tem direito, o homem emprega a força e pode, inclusive, matar outros homens, pois não há limites para a sua ação. 32 Unidade I Se a tendência natural do homem é pelo uso da força para garantia de direitos ilimitados, a necessidade de autopreservação faz com que o homem concorde em viver sob o comando de um Estado, ao qual caberá organizar direitos e deveres com o objetivo de preservar a segurança de todos. O Estado para Hobbes é o poder comum que garante segurança para todos os homens, que reduz os direitos de forma coercitiva porquepune aqueles que não cumprem as regras, mas, ao mesmo tempo, se aplica a todos. Os homens concordam em se submeter voluntariamente ao poder do Estado para alcançar o objetivo de viver em paz, harmonia e construir progresso material por meio do desenvolvimento de atividades econômicas. Saiba mais Pesquise na internet a capa do livro Leviatã para conhecer a figura do monstro bíblico e suas escamas de pessoas. É uma imagem impactante que vale a pena conhecer e que nos provoca interessantes reflexões. Assista também ao filme que propõe importantes temas de reflexão sobre a relação do cidadão comum com o Estado: LEVIATÃ. Direção: Andrey Zvyagintsev. Rússia: Non-Stop Productions; A Company Russia, 2015. 140 minutos. John Locke, que nasceu em 1632, em Bristol, Inglaterra, e faleceu em 1704, é outro importante pensador da teoria do Estado. Ele estudou em Westminster e Oxford, escolas inglesas muito tradicionais onde estudaram os representantes da elite econômica e política. Exerceu vários cargos políticos e viveu na França de 1674 a 1679. Depois foi obrigado a se exilar na Holanda, em 1683, em decorrência de perseguições políticas, e só retornou à Inglaterra em 1689. Suas principais reflexões ocorreram durante o período de conflitos vividos pela Inglaterra no século XVII. Locke se opunha ao absolutismo e foi exatamente por isso que teve de se refugiar na Holanda durante um período de tempo. Só retornou à Inglaterra após o triunfo da revolução burguesa e a mudança das relações de poder naquele país. Para Locke, o homem vivia em um estado de natureza onde era livre e só concorda em sair dessa situação para firmar um acordo, um contrato social, por meio do qual todas as pessoas terão direitos e obrigações, sem privilégios de nascimento ou de qualquer outra natureza. A diferença no pensamento de Hobbes e de Locke é que, para este, o estado de natureza não era o espaço de conflitos e de medo; ao contrário, era uma situação de relativa paz e harmonia. Para Locke, a guerra entre os homens no estado de natureza era apenas uma possibilidade, porque não acreditava na teoria de que os homens poderiam se destruir por qualquer motivo. A possibilidade existia, mas não foi o medo o fator determinante para que os homens decidissem viver no regime de direitos e 33 TRABALHO E SOCIABILIDADE deveres, sob a organização do Estado. O fator que determina a opção pela organização da vida em um Estado é a garantia de estabilidade no governo e a tranquilidade social. Viver em sociedade é melhor para Locke com a organização de um poder central e a escolha de juízes para solucionarem eventuais conflitos. Um aspecto muito importante para os nossos estudos é que Locke define a propriedade como um direito amplo, que inclui a vida, a liberdade e os bens. Por isso é que as sociedades precisam de um governo que proteja o direito de propriedade de seus cidadãos. O mais importante direito do estado de natureza é mantido pelo Estado, que é o direito de propriedade; e o único direito retirado dos homens é o de realizar justiça por conta própria utilizando a força física. Esse direito é subtraído dos indivíduos, mas é garantido ao Estado, porque Locke acredita que este deve possuir poder de vida e morte sobre aqueles que a ele se submetem. Para Locke, ao ingressar na vida em sociedade, os indivíduos conservam o direito de propriedade que nasce no estado de natureza, na medida que é um direito que não depende do reconhecimento de outros, mas da ação do trabalho. Ele se refere à propriedade da terra e acredita que ela deve pertencer àqueles que nela trabalham e produzem. Ele defende, ainda, que o Estado não tem poder contra a propriedade e deve respeitá-la e protegê-la. Podem imaginar como essas ideias agradaram a burguesia? É claro que agradaram porque a burguesia tinha como objetivo que a propriedade fosse respeitada por todos, inclusive pelo Estado, a quem caberia também defendê-la de ameaças. Não há produção econômica sem segurança política! Aliás, uma lição que se mantém até hoje na sociedade contemporânea em que vivemos. John Locke acredita que a propriedade é um direito que os homens possuem pelo simples fato de existirem. Não é o Estado e nem a sociedade que criam a propriedade privada, é a capacidade de trabalho de cada ser humano. Ao Estado, compete apenas respeitar e fazer respeitar o direito de propriedade. Para ele, o homem se torna proprietário da terra pelo trabalho e deve ser dono do local em que trabalha. Ele destaca que é o esforço pelo trabalho que torna o homem proprietário da terra, por isso, ela é um direito natural. Assim, para Locke, a vida na sociedade organizada tem por objetivo principal proteger o direito natural, que é, fundamentalmente, o direito de propriedade. Ele afirma que o Estado será tirânico todas as vezes em que desrespeitar a propriedade, e nessas situações o indivíduo terá direito de resistir, de se voltar contra o Estado porque estará ancorado em um direito natural. Por essas ideias e convicções, John Locke é considerado o fundador da doutrina política liberal, que vamos estudar aqui. 34 Unidade I As ideias de Locke nos permitem refletir sobre o fato de que a propriedade como um direito natural de quem trabalha nela é uma concepção muito antiga na trajetória da humanidade. Com o passar do tempo, nos países de matriz econômica capitalista, essa ideia foi substituída por propriedade como direito de quem a adquire, e não de quem trabalha. Esse é um ponto de conflito ainda presente em muitos países como no Brasil, por exemplo. A maior parte dos trabalhadores na agricultura e na pecuária não são donos da terra e nem sempre são remunerados de forma adequada para garantir sua subsistência com dignidade. Ao mesmo tempo, na atualidade, a produção econômica globalizada incentiva a utilização de tecnologia na agricultura e na pecuária, o que torna os investimentos mais vultosos e acessíveis apenas aos grandes grupos econômicos. Figura 8 O último pensador importante da teoria do contrato social como fundamento para a organização Estado é Jean-Jacques Rousseau, que nasceu em 1712 em Genebra, que era uma república protestante, e faleceu em 1778, em Paris. Sua mãe morreu no seu parto e seu pai era um relojoeiro sem muitas posses, por isso Rousseau teve infância pobre, seu pai teve que se exilar por motivos políticos. Sem o pai, ele foi obrigado a viver com um familiar e depois em abrigos e orfanatos, uma vida difícil e sofrida, que marcou sua existência. Rousseau viveu no chamado Século das Luzes, ou seja, no século XVIII, período em que a ciência e o conhecimento passaram a ser muito valorizados como resultado da ação humana, da racionalidade e do uso do método científico, comprobatório das teorias e experiências. Foi um período em que a humanidade abandonou as ideias de predeterminação próprias da Idade Média e passou a valorizar o uso da razão, da ciência, como forma de conseguir progresso. 35 TRABALHO E SOCIABILIDADE Essa fase histórica, que também é chamada de Iluminismo, foi marcada pela utilização do raciocínio lógico e objetivo em todas as áreas do conhecimento e pelo abandono das crendices e superstições, que não combinavam com a racionalidade que era vista como a base do desenvolvimento econômico, científico e social. Lembrete O Iluminismo foi um período marcante para a construção das grandes ideias sobre política e sociedade. Muitos filósofos importantes como Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784), D’Alembert (1717-1783), entre outros, contribuíram com suas reflexões para a formação do Estado moderno e da organização social e política que conhecemos até nossos dias. Apesar de ter vivido nesse período, Rousseau acreditava que o homem selvagem, ou seja, quando vivia no estado de natureza, sem leis e sem a organização do Estado, era livre e feliz porque tinha plena liberdade. Para ele, o homem natural é o bom selvagem, ideia totalmente diferente daquela que aprendemos em Hobbes, para quem“o homem era o lobo do homem”. Por qual razão, então, o homem teria concordado em viver em sociedade e sob um regime de leis se ele era mais feliz antes? Bem, Rousseau acreditava que a apropriação de conhecimento nas áreas de metalurgia e agricultura tinha sido possível apenas para alguns homens, e não para todos. Isso teria criado uma divisão no trabalho e, em consequência, os homens com maior conhecimento de técnicas agrícolas e de metalurgia haviam se tornado mais poderosos que os demais. Para ele, é nesse momento que os bens da natureza, antes disponíveis para o uso de todos, passam a ser propriedade somente de alguns. E, no pensamento de Rousseau, disso decorrem a escravidão e a miséria e também os conflitos sociais. É importante refletir sobre como as ideias de Rousseau são atuais e ainda podem estar na base da compreensão do mundo contemporâneo, principalmente para a construção da crítica da meritocracia, tema sobre o qual refletiremos adiante. No livro O contrato social, Rousseau reflete sobre a possibilidade de construção de uma nova ordem jurídica, política e social. Uma sociedade radicalmente democrática, fundamentada na vontade geral como elemento fundamental de sua existência e organização. Para ele, a vontade geral dos homens é a única vontade legítima, e a vida em sociedade deve ter por função a realização do bem comum. Para Rousseau, o Estado deve ser o resultado da participação ativa dos homens, e o governo deve ser subordinado ao povo e exercido pelos membros da sociedade. Ele acredita que a participação política do povo deve ocorrer de forma direta e contínua e que, para isso, todos deverão ter boa educação e formação moral. Essas são, para Rousseau, as ferramentas essenciais para que o povo se previna de governos tirânicos, mantenha sua liberdade e garanta sempre a proteção do bem comum. 36 Unidade I Novamente, nesse aspecto, a abordagem é muito semelhante àquela que temos na sociedade contemporânea, principalmente em relação à necessidade de educação com qualidade para que a população possa exercer corretamente seus direitos e, principalmente, possa cobrar os deveres das autoridades. Também é fundamental que a educação capacite a população para escolher corretamente seus representantes em todos os níveis políticos: federal, estadual e municipal. As fotografias a seguir são do Panteão, em Paris, local em que está enterrado o corpo de Jean-Jacques Rousseau. Esse lugar presta uma homenagem a grandes pensadores, cientistas e políticos que fizeram a glória da França e de seu povo. Justa homenagem a esse pensador tão importante. Figura 9 – Panteão, em Paris, França Figura 10 – Túmulo de Rousseau no Panteão em Paris, França 37 TRABALHO E SOCIABILIDADE Vamos alinhar as ideias mais importantes? São três importantes pensadores – Hobbes, Locke e Rousseau – chamados de contratualistas porque têm em comum a ideia de explicar a formação do Estado, do governo, das leis que estabelece direitos e deveres para cada indivíduo, a partir da noção de um contrato que todos teriam concordado em cumprir. O homem abandona a liberdade plena do chamado estado de natureza para viver em uma sociedade organizada, com leis de cumprimento obrigatório para todos, que limitam a liberdade, mas trazem, em contrapartida, respeito aos direitos e, em especial, ao direito à vida e à propriedade. Assim surge a ideia central para explicar o que hoje entendemos como Estado. O espaço de organização política, social e econômica no qual nossa liberdade é limitada por leis que definem o que podemos e não podemos fazer, ou seja, o que são nossos direitos e nossos deveres. Essa organização social deve nos garantir, em tese, segurança e possibilidades de acesso a tudo que é essencial para que nossa vida tenha qualidade e dignidade. Os estudos de De Cicco e Gonzaga sobre Estado apontam que: O termo Estado advém do substantivo latino status, relaciona-se com o verbo stare, que significa estar firme. Uma denotação possível, portanto, é que Estado está etimologicamente relacionado à ideia de estabilidade. Daí que o conceito de Estado chegou a ser utilizado para designar sociedade política estabilizada por um senhor soberano que controla e orienta os demais senhores. Historicamente, o termo Estado foi empregado pela primeira vez por Nicolau Maquiavel, no início de sua obra O Príncipe, escrita em 1513 e publicada em 1532. Uma definição abrangente que apresentamos de Estado seria “uma instituição organizada política, social e juridicamente, que ocupa um território definido e, na maioria das vezes, sua lei maior é uma Constituição escrita. É dirigido por um governo soberano reconhecido interna e externamente, sendo responsável pela organização e pelo controle social, pois detém o monopólio legítimo do uso da força e da coerção (DE CICCO; GONZAGA, 2015, p. 113). Maquiavel teria sido o primeiro a utilizar a expressão Estado. Ele é um pensador importante cujo nome deu origem à expressão “maquiavélico”. Vamos conhecer um pouco mais sobre esse importante pensador político? Nicolau Maquiavel nasceu em Florença em 1469 e faleceu em 1527. Florença nasceu como uma colônia romana em 59 a.C. e na Idade Média tornou-se uma cidade-Estado independente. No século XIII, foi um dos polos comerciais mais importantes do mundo, assim como um notável centro cultural e intelectual da Europa. Além da riqueza econômica, Florença também foi detentora de enorme 38 Unidade I riqueza artística e intelectual, porque Dante Alighieri, Petrarca, Maquiavel, Botticelli, Michelangelo e Donatello foram pensadores e artistas florentinos. Maquiavel foi funcionário público do governo de Florença durante vários anos e foi, também, escritor, historiador e músico. Mas, sem nenhuma dúvida, ele foi, principalmente, um pensador político que exerceu influência em razão de suas ideias. Ele recebeu educação clássica já com vistas a uma futura carreira pública, mas, como a vida política em Florença era muito conturbada, sua trajetória profissional sofreu impacto desses conflitos e nem sempre foi muito bem-sucedida. Ele trabalhou para o governo que expulsou os Médici de Florença e, mais tarde, serviu aos Médici quando estes retornaram ao poder. Os Médici foram uma poderosa família de Florença que viveu seu apogeu político entre os séculos XV e XVII. Sua riqueza era oriunda do comércio de produtos têxteis e da participação na guilda da Arte della Lana. Alguns dos Médici foram banqueiros, políticos, nobres, clérigos e até papa, Giovanni Médici (1475-1521), que foi o papa Leão X. Maquiavel escreveu o livro O príncipe em 1513 e dedicou a obra a Lorenzo, filho de Piero de Médici. Provavelmente, sua intenção com a obra tenha sido agradar os governantes da época e obter benefícios políticos. As imagens a seguir são de Florença, a cidade em que Maquiavel nasceu e viveu. Uma é da Catedral de Florença, e a outra, de uma parte do Palácio dos Médici. Figura 11 – Catedral de Florença, Itália 39 TRABALHO E SOCIABILIDADE Figura 12 – Parte do Castelo dos Médici, em Florença, na Itália Maquiavel em suas reflexões políticas separava a virtude política da virtude moral. Além disso, não acreditava em poder político como ação política orientada pelo sentido divino, ou seja, para ele, a política é uma ação exclusivamente humana. Mas essa ruptura com o poder oriundo da igreja não rendeu bons resultados para Maquiavel. A Igreja Católica como reação passou a utilizar o termo “maquiavélico” como sinônimo daquilo que é ruim ou perverso. Até hoje, em pleno século XXI, nós utilizamos essa expressão para designar uma pessoa ardilosa, que usa métodos pouco transparentes para obter os resultados que deseja. Referimo-nos a pessoas que articulam de forma obscura para obter vantagens. O termo é sempre utilizado em sentido pejorativo, como crítica, ou, até mesmo, ofensa. Maquiavel defendia a ideia de que um governante deve ter um conjunto de qualidades que possibilitem o exercício do poder e destacava,
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