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A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE LENIO STRECK

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10/11/2015 Datadez Premium ­ Sistemas Inteligentes
http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=document­frame.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 1/26
A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE
EXCESSO (ÜBERMASSVERBOT) À PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO DEFICIENTE
(UNTERMASSVERBOT) OU DE COMO NÃO HÁ BLINDAGEM CONTRA NORMAS
PENAIS INCONSTITUCIONAIS
Lenio Luiz Streck
Pós­Doutor em Direito (Universidade de Lisboa)
Professor do Mestrado e Doutorado da UNISINOS­RS
Professor Convidado da UNESA­RJ; Universidad de Valladolid­ES; Universidad Pablo D'Olavide­
ES e Universidade de Lisboa­PT
Procurador de Justiça­RS
Membro fundador e Conselheiro do Instituto de Hermenêutica Jurídica ­ IHJ
SUMÁRIO: 1. Pré­juízos e prejuízos em face da (baixa) compreensão do sentido da Constituição. 2. A
crise do Direito e a baixa aplicação da jurisdição constitucional em sede penal. 3. Do modus operandi da
filtragem hermenêutico no direito penal: o locus privilegiado do controle difuso (juízo singular e tribunais) ­
a  capilarização  da  applicatio  constitucional.  3.1.  A  extinção  da  punibilidade  do  crime  de  estupro  pelo
casamento  da  vítima  com  terceiro:  a  inconstitucionalidade  em  face  da  proteção  deficiente  do  legislador
penal. 3.2.  A  inconstitucionalidade  (parcial  sem  redução  de  texto)  do  art.  2o  da  Lei  10.259:  a  falta  de
liberdade  de  conformação  do  legislador  para  (des)classificar  crimes  de  menor  potencial  ofensivo.  A
violação do princípio da proporcionalidade por proteção deficiente. 3.3. A  inconstitucionalidade do art. 94
da Lei 10.741 (Estatuto do Idoso) ou de como o legislador não possui qualquer critério para a aferição da
danosidade de uma conduta. 3.4. A inconstitucionalidade do art. 9 da Lei do Refis (10.684/03): ainda um
caso de proibição de proteção (penal) deficiente. 3.5. A inconstitucionalidade parcial sem redução de texto
(Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung) do crime de porte de arma ­ aqui uma clara hipótese de
violação da cláusula de proibição de excesso (Übermassverbot). 4. Aportes finais.
1. PRÉ­JUÍZOS E PREJUÍZOS EM FACE DA (BAIXA) COMPREENSÃO
DO SENTIDO DA CONSTITUIÇÃO
Em  Cem  Anos  de  Solidão,  Gabriel  Garcia  Marques  conta  que,  em
Macondo, o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e
para mencioná­las precisavase apontar com o dedo. Nossa Constituição
também é muito  recente. Olhando a  imensidão de  seu  texto,  colhe­se a
nítida  impressão  que  algumas  coisas  ainda  não  têm  nome;  os  juristas
limitam­se ­ quando o fazem ­ a apontá­las com o dedo... A falta de uma
pré­compreensão  impede  o  acontecer  (Ereignen)  do  sentido.  Gadamer
sempre  nos  ensinou  que  a  compreensão  implica  uma  pré­compreensão
que,  por  sua  vez,  é  pré­figurada  por  uma  tradição  determinada  em  que
vive o intérprete e que modela os seus pré­juízos.
 
 
172      Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n. 97 ­ Março/2005
     DOUTRINA
 
A  tradição  nos  lega  vários  sentidos  de  Constituição.
Contemporaneamente,  a  evolução  histórica  do  constitucionalismo  no
mundo  (mormente  no  continente  europeu)  coloca­nos  à  disposição  a
noção  de  Constituição  enquanto  detentora  de  uma  força  normativa,
dirigente, programática e compromissária,  pois  é  exatamente  a  partir  da
compreensão  desse  fenômeno  que  poderemos  dar  sentido  à  relação
Constituição­Estado­Sociedade no Brasil, por exemplo. Mais do que isso,
10/11/2015 Datadez Premium ­ Sistemas Inteligentes
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Constituição­Estado­Sociedade no Brasil, por exemplo. Mais do que isso,
é  do  sentido  que  temos  de  Constituição  que  dependerá  o  processo  de
interpretação dos textos normativos do sistema.
Sendo um texto jurídico (cujo sentido, repita­se, estará sempre contido em
uma  norma  que  é  produto  de  uma  atribuição  de  sentido  ­ Sinngebung)
válido  tão­somente  se  estiver  em  conformidade  com  a  Constituição,  a
aferição dessa conformidade exige uma précompreensão (Vorverständnis)
acerca do sentido de (e da) Constituição, que já se encontra, em face do
processo  de  antecipação  de  sentido,  numa  co­pertença
"faticidadehistoricidade  do  intérprete  e  Constituição  ­  texto
infraconstitucional". Um texto jurídico (um dispositivo, uma lei, etc.) jamais
é interpretado desvinculado da antecipação de sentido representado pelo
sentido que o intérprete tem da Constituição.
Destarte,  uma  "baixa compreensão" acerca do sentido da Constituição  ­
naquilo  que  ela  significa  no  âmbito  do  Estado  Democrático  de  Direito  ­
inexoravelmente acarretará uma "baixa aplicação", problemática que não
é difícil de constatar nas salas de aula de expressiva maioria dos cursos
jurídicos  do  país  e  na  quotidianidade  das  práticas  dos  operadores  do
Direito. Por isto, pré­juízos inautênticos (no sentido de que fala Gadamer)
acarretam sérios prejuízos ao jurista.
Vale  aqui  o  alerta  de  que  até  mesmo  algumas  posturas  que  se
consideram  críticas  no  campo  jurídico,  embora  busquem  superar  o
formalismo  normativista  (para  o  qual  a  norma  é  uma  mera  entidade
lingüística),  terminam  por  transferir  o  locus  da  produção  do  sentido  do
objetivismo  para  o  subjetivismo,  da  coisa  para  a  mente/consciência
(subjetividade  assujeitadora  e  fundante)  e  da  ontologia  (metafísica
clássica) para a  filosofia da consciência  (metafísica moderna). E, por aí,
estacionam. 1 E congelam sentidos!
Não conseguem, assim, alcançar o patamar do ontological  turn  (viragem
ontológica),  no  interior  da  qual  a  linguagem,  de  terceira  coisa,  de mero
instrumento e veículo de conceitos, passa a ser condição de possibilidade.
Permanecem,  desse modo,  prisioneiros  da  relação  sujeito­objeto  (que  é
um problema transcendental), refratária à relação sujeito­sujeito (que é um
problema  hermenêutico).  Ou  seja,  sua  preocupação  é  de  ordem
metodológica e não ontológica (no sentido heideggeriano­gadameriano).
 
 
Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n.  97 ­ Março/2005     173
A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Não  percebem,  assim,  mesmo  aqueles  que  procuram  "superar"  o
dogmatismonormativismo,  que  a  revolução  copernicana  provocada  pela
viragem  lingüísticohermenêutica  (ou  viragem  ontológica,  no  sentido  da
fenomenologia hermenêutica)  tem o principal mérito de deslocar o  locus
da  problemática  relacionada  à  "fundamentação"  do  processo
compreensivo­interpretativo do "procedimento" para o "modo de ser".
Desse  modo,  embora  a  hermenêutica  venha  sendo  recepcionada  e/ou
adotada  pelas  diversas  concepções  da  teoria  do  direito,  é,  sem  dúvida,
com a hermenêutica da  faticidade de Gadamer,  que a  hermenêutica  vai
dar o grande salto paradigmático, porque atinge impiedosamente o cerne
da problemática que, de um modo ou de outro, deixava­a  refém de uma
metodologia, por vezes atrelada aos pressupostos da metafísica clássica
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metodologia, por vezes atrelada aos pressupostos da metafísica clássica
e, por outras, aos parâmetros estabelecidos pela  filosofia da consciência
(metafísica moderna). Enquanto  tentativa  de elaboração de um discurso
crítico  ao  normativismo,  a  metodologia  limita­se  a  procurar  traçar  as
"regras" para uma "melhor" compreensão dos juristas (v.g. autores como
Coing,  Canaris  e  Perelman),  sem  que  se  dê  conta  daquilo  que  é  o
calcanhar de Aquiles da própria metodologia (que tem a pretensão deser
normativa):  a  da  absoluta  impossibilidade  da  existência  de  um  "meta­
critério"  (sic),  espécie  de  regra  que  estabeleça  o  uso  dessas  regras.
Enfim,  não  se  dão  conta  da  impossibilidade  de Grundmethode.  2  Daí  o
contraponto  hermenêutico  que  procuro  apresentar:  o  problema  da
interpretação  não  é  epistemológico,  não  é  metodológico  e  tampouco
procedimental;  é,  antes,  fenomenológico;  e,  mais  do  que  tudo,
existencialidade.
Numa palavra, as condições de possibilidades para que o intérprete possa
compreender um texto implicam (sempre e inexoravelmente) a existência
de uma précompreensão (seus pré­juízos) acerca da totalidade (que a sua
linguagem  lhe  possibilita)  do  sistema  jurídico­político­social.  Desse
belvedere compreensivo, o  intérprete formulará (inicialmente) seus juízos
acerca  do  sentido  do  ordenamento  (repita­se,  o  intérprete  jamais
interpreta em tiras, aos pedaços, como bem alerta Eros Grau). E sendo a
Constituição o fundamento de validade de todo o sistema jurídico ­ e essa
é  a  especificidade  maior  da  ciência  jurídica  ­,  de  sua
interpretação/aplicação  (adequada  ou  não)  é  que  exsurgirá  a  sua
(in)efetividade.
Calham, pois, aqui, as palavras de Konrad Hesse, para quem "resulta de
fundamental  importância  para  a  preservação  e  a  consolidação  da  força
normativa  da  Constituição  a  interpretação  constitucional,  a  qual  se
encontra necessariamente submetida ao mandato de otimização do texto
constitucional."  Trata­se,  pois,  de  problema  fundamentalmente
hermenêutico,  muito  bem  detectado,  aliás,  por  Paulo  Bonavides,  para
quem, "para agravar a crise das Constituições, verificou­se o emprego de
uma metodologia  interpretativa  que  caiu  prisioneira  do  formalismo  e  do
jusprivatismo. Foi, portanto, um equívoco, segundo Müller, a recepção de
regras artificiais de interpretação elaboradas pelo positivismo e recolhidas
da herança romanista de Savigny,  fazendo da realização do Direito e da
concretização  da  norma  simples  operação  interpretativa  de  textos  de
norma".
 
 
174      Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n. 97 ­ Março/2005
     DOUTRINA
 
Desse modo,  partindo  da  premissa  de  que  hermenêutica  é  condição  de
ser  no  mundo,  que  hermenêutica  é  existência,  e  que  o  processo  de
interpretação  tem  como  condição  de  possibilidade  a  compreensão,  no
interior  da  qual  o  sentido  já  vem  antecipado  pela  précompreensão
(Vorverständnis), a pergunta que se impõe é:
como é possível olhar o novo (texto constitucional de 1988), se os nossos
préjuízos  (pré­compreensão)  estão  dominados  por  uma  compreensão
inautêntica  do  Direito,  onde,  no  campo  do  direito  constitucional,  pouca
importância tem sido dada ao estudo da jurisdição constitucional?
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2. A CRISE DO DIREITO E A BAIXA APLICAÇÃO DA JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL EM SEDE PENAL
Passados  quinze  anos  desde  a  promulgação  da  Constituição,  não  há
indicativos de que tenhamos avançado no sentido da superação da crise
por que passa a operacionalidade do Direito em terra brasilis. Persistimos
atrelados a um paradigma penal de nítida feição liberal­individualista, isto
é, preparados historicamente para o enfrentamento dos conflitos de índole
interindividual; não engendramos, ainda, as condições necessárias para o
enfrentamento  dos  conflitos  (delitos)  de  feição  transindividual,  os  quais
compõem majoritariamente  o  cenário  desta  fase  de  desenvolvimento  da
Sociedade  brasileira.  Basta,  para  tanto,  verificar  a  ineficácia  do
establishment  jurídico­penal  na prevenção  ­  e mesmo no  combate  ­  aos
cognominados crimes do "colarinho branco".
Há, nitidamente, uma crise que envolve a concepção de bem jurídico em
pleno Estado Democrático de Direito. 3 Urge, pois, um redimensionamento
na  hierarquia  dos  bens  jurídicos  como  forma  de  adaptá­los  à  sua
dignidade constitucional. 4
 
 
Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n.  97 ­ Março/2005     175
A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Verifica­se,  no  particular,  uma  grave  controvérsia  acerca  da  extensão  e
das  funções  desse  conceito  (bem  jurídico)  a  partir  do  dissenso  surgido
entre  a  postura  dos  penalistas  liberais,  que  defendem  uma  função
limitadora  do  conceito,  e  aqueles  de  orientação  comunitarista­garantista,
cuja posição quanto à funcionalidade dessa instituição jurídica assenta­se
em uma concepção organizativa,  interventiva e atenta à realidade social.
Essa contenda não foi ainda suficientemente percebida e apreendida pelo
conceito dogmático de bem jurídico, e este conflito acarreta uma confusão
quanto  aos  bens  que  devem  prevalecer  numa  escala  hierárquica
axiológica,  para  fins  de  serem  relevantes  penalmente  e,  portanto,
merecedores de tutela dessa natureza. 5
A transferência desta ­ ainda não resolvida ­ controvérsia para as práticas
legislativas  e  judiciais  faz  com  surjam  leis  (v.g.,  Leis  10.259/01  e
10.741/03)  6  em que bens  jurídicos que claramente  traduzem  interesses
de  grandes  camadas  sociais  são  rebaixados  axiologicamente  e
equiparados a outros bens de relevância meramente individual. Mais uma
vez  privilegia­se  o  individual  em  detrimento  do  coletivo,  questão  que  se
demonstra  sutilmente  presente  na  legislação  que  trata  dos  crimes  de
sonegação  fiscal,  como  é  possível  perceber  até  mesmo  na  recente  Lei
10.684/03, sancionada já no governo Luis Inácio Lula da Silva.
O  que  tem  ocorrido  de  concreto  nesse  aspecto  e  dado  margem  ao
aquecimento  do  debate  entre  penalistas  liberais  e  comunitaristas,  é  que
estes  (comunitaristas)  buscam  introjetar,  na  concepção  de  bem  jurídico
penal,  a  idéia  de  que  uma  série  de  valores  constitucionais  de  feição
coletiva  necessitam  de  proteção  penal,  enquanto  aqueles
(liberaisiluministas), ainda presos às matrizes penais iluministas clássicas,
resistem a tanto, obstaculizando a extensão da função de proteção penal
10/11/2015 Datadez Premium ­ Sistemas Inteligentes
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aos  bens  de  interesse  da  comunidade,  sob  o  argumento  de  que  tal
concepção  implicaria  uma  "indesejada  antecipação  das  barreiras  do
Direito Penal".
Os penalistas liberais­iluministas continuam a pensar o Direito a partir da
idéia  segundo  a  qual  haveria  uma  contradição  insolúvel  entre  Estado  e
Sociedade  ou  entre  Estado  e  indivíduo.  Para  eles,  o  Estado  é
necessariamente  mau,  opressor,  e  o  Direito  (Penal)  teria  a  função  de
"proteger" o indivíduo dessa opressão. Por isso, boa parte dos penalistas ­
aqui denominados de liberais­iluministas ­, em pleno século XXI e sob os
auspícios do Estado Democrático de Direito ­ no interior do qual o Estado
e o Direito assumem (um)a função transformadora ­ continuam a falar na
mítica figura do Leviatã, repristinando ­ para mim de forma equivocada ­ a
problemática  que  contrapõe  o  Estado  (mau)  à  (boa)  sociedade,
dicotomia/separação Estado­Sociedade.
 
 
176      Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n. 97 ­ Março/2005
     DOUTRINA
 
Tais  considerações,  à  evidência,  acarretam compromissos  e  inexoráveis
conseqüências no campo da formulação e aplicação das leis. Para tanto,
parto da premissa ­ e não há nenhuma novidade em dizer isto ­ de que a
Constituição  de  1988  é  dirigente  e  compromissária,  apresentando  uma
direção vinculante para a Sociedade e para o Estado. 7 Logo, em assim
sendo,  continuo  a  insistir(e  acreditar)  que  todas  as  normas  da
Constituição  têm  eficácia,  e  as  assim  denominadas  normas
"programáticas"  ­  como  as  que  estabelecem  a  busca  da  igualdade,  a
redução  da  pobreza,  a  proteção  da  dignidade,  etc.  ­  comandam  a
atividade  do  legislador  (inclusive  e  logicamente,  do  legislador  penal),
buscando alcançar o objetivo do constituinte.
Esse comando (ordem de legislar) traz implícita ­ por exemplo, no campo
do  Direito  Penal  ­  a  necessária  hierarquização  que  deve  ser  feita  na
distribuição dos crimes e das penas, razão pela qual o estabelecimento de
crimes, penas e descriminalizações não pode ser um ato absolutamente
discricionário, voluntarista ou produto de cabalas.
Em outras palavras, não há liberdade absoluta de conformação legislativa
nem mesmo  em matéria  penal,  ainda  que  a  lei  venha  a  descriminalizar
condutas consideradas ofensivas a bens fundamentais. Nesse sentido, se
de um  lado há a proibição de excesso  (Übermassverbot), de outro há a
proibição  de  proteção  deficiente  (Untermassverbot).  Ou  seja,  o  direito
penal  não  pode  ser  tratado  como  se  existisse  apenas  uma  espécie  de
garantismo negativo, a partir da garantia de proibição de excesso.
 
 
Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n.  97 ­ Março/2005     177
A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Aliás,  parcela  expressiva  do  segmento  que  abriga  os  penalistas  críticos
brasileiros  fazem  essa  leitura  do  garantismo  tão­somente  pelo  viés
negativo.  Com  efeito,  a  partir  do  papel  assumido  pelo  Estado  e  pelo
Direito  no  Estado  Democrático  de  Direito,  o  direito  penal  deve  ser
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(sempre)  examinado  também a  partir  de  um garantismo positivo,  isto  é,
devemos nos indagar acerca do dever de proteção de determinados bens
fundamentais através do direito penal.  Isto  significa dizer que, quando o
legislador não realiza essa proteção via direito penal, é cabível a utilização
da  cláusula  "proibição  de  proteção  deficiente"  (Untermassverbot).  Tais
questões  ficam  bem  claras  a  partir  da  discussão  da  descriminação  do
aborto  na  Alemanha,  problemática  igualmente  debatida  no  plano  da
justiça constitucional na Espanha e em Portugal.
Não há, pois, qualquer blindagem que "proteja" a norma penal do controle
de  constitucionalidade  (entendido  em  sua  profundidade,  que  engloba  as
modernas  técnicas  ligadas  à  hermenêutica,  como  a  interpretação
conforme, a nulidade parcial sem redução de texto, o apelo ao legislador,
etc.).  Ou  isto,  ou  teríamos  que  considerar  intocável,  por  exemplo,  um
dispositivo  legal que viesse a descriminalizar a corrupção, a  lavagem de
dinheiro,  os  crimes  fiscais  (de  certo  modo  isto  já  ocorre,  desde  a  Lei
9.249,  confirmada  agora  pela  Lei  10684),  os  crimes  sexuais  (estupro  e
atentado  violento  ao  pudor)  em  face  do  casamento  (sic)  da  vítima  com
terceira  pessoa  (art.  107,  VIII,  do  Código  Penal),  tudo  em  nome  do
princípio  da  legalidade,  como  se  a  vigência  de  um  texto  jurídico
implicasse,  automaticamente,  a  sua  validade,  problemática  que,
paradoxalmente,  coloca  do  mesmo  lado  penalistas  dogmático­
normativistas e liberais­iluministas.
Nenhum  campo  do  Direito  está  imune  dessa  vinculação  constitucional.
Conseqüentemente, na medida em que a Constituição figura como o alfa
e  o omega do  sistema  jurídico­social,  ocorre  uma  sensível  alteração  no
campo  de  conformação  legislativa.  Ou  seja,  a  partir  do  paradigma
instituído  pelo  novo  constitucionalismo  e  a  partir  daquilo  que  o  Estado
Democrático  de  Direito  representa  na  tradição  jurídica,  o  legislador  não
mais  detém  a  liberdade  para  legislar  que  tinha  no  paradigma  liberal­
iluminista.
Nesse (novo) contexto, a  teoria do bem jurídico, que sustenta a  idéia de
tipos  penais  no  Direito  Penal,  igualmente  passa  a  depender  da
materialidade da Constituição. Não pode restar qualquer dúvida no sentido
de  que  o  bem  jurídico  tem  estrita  relação  com  a  materialidade
constitucional,  representado pelos preceitos e princípios que encerram a
noção  de Estado Democrático  e Social  de Direito. Não  há  dúvida,  pois,
que as baterias do Direito Penal do Estado Democrático de Direito devem
ser  direcionadas  preferentemente  para  o  combate  dos  crimes  que
impedem a concretização dos direitos fundamentais­sociais. Neste ponto,
aliás, entendo que é neste espaço que reside até mesmo uma obrigação
implícita de criminalização, ao lado dos deveres explícitos de criminalizar
constantes no texto constitucional.
3. DO MODUS OPERANDI DA FILTRAGEM HERMENÊUTICO NO
DIREITO PENAL: O LOCUS PRIVILEGIADO DO CONTROLE DIFUSO
(JUÍZO SINGULAR E TRIBUNAIS) ­ A CAPILARIZAÇÃO DA
APPLICATIO CONSTITUCIONAL
Como visto, uma nova postura hermenêutica  ­ sustentada no ontological
turn (viragem ontológica) e na revolução copernicana (Jorge Miranda) que
atravessou  o  Direito  Constitucional  a  partir  do  segundo  pós­guerra  ­    8
implica a necessária diferenciação entre texto e norma 9 e entre vigência e
validade.  Este  é  o  ponto  de  partida  e  de  chegada  da  filtragem
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validade.  Este  é  o  ponto  de  partida  e  de  chegada  da  filtragem
hermenêutico­constitucional.
 
 
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     DOUTRINA
 
Nesse  sentido,  adquire  especial  significado  o  controle  difuso  de
constitucionalidade. Em vigor desde a Constituição de 1891, a  forma de
controle  difuso  permite  uma  capilaridade  no  processo  aplicativo  da
Constituição,  possibilitando que  juízes  singulares e  os  diversos  tribunais
possam deixar  de  aplicar  leis  ou  dispositivos  de  leis  inconstitucionais,  a
partir do exame do caso concreto. Assim, sempre que o juiz entender que
a  discussão  da  constitucionalidade  é  uma  "questão  prejudicial",  pode
deixar  de aplicar  a  lei.  10 É evidente que o efeito  é  apenas  inter  partes.
Mas,  seguramente,  trata­se  de  importantíssimo  mecanismo  que
democratiza o acesso à jurisdição constitucional, retirando o monopólio do
Supremo Tribunal Federal.
Se  o  juiz  tem  o  poder  de  deixar  de  aplicar  a  lei  considerada
inconstitucional,  o  mesmo  não  se  aplica  aos  órgãos  fracionários
(Câmaras,  Turmas)  dos  Tribunais.  11  Como  se  sabe,  o  art.  97  da
Constituição  consagra  o  full  bench,  o  que  quer  dizer  que,  afora  as
exceções  previstas  no  art.  481,  parágrafo  único  do  CPC,  os  órgãos
fracionários  não  estão  dispensados  de  suscitar  o  incidente  de
inconstitucionalidade.
Também  quando  a  lei  for  anterior  a  Constituição  os  órgãos  fracionários
estão dispensados da suscitação,  isto porque, a partir da ADIn nº 2, e a
questão  de  ordem  da  ADIn  438,  o  Supremo  Tribunal  Federal  fixou
entendimento  de  que  o  nosso  sistema  jurídico  não  admite
inconstitucionalidade superveniente. Como conseqüência, leis anteriores à
Constituição,  que  com  ela  conflitem,  são  simplesmente  não­
recepcionadas.  Logo,  desnecessário  qualquer  incidente  para  tal
declaração. Igualmente há dispensa de suscitação do incidente per saltum
nos casos  interpretação conforme a Constituição e nulidade parcial  sem
redução de texto. 12
 
 
Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n.  97 ­ Março/2005     179
A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Registre­se,entretanto ­ e tal circunstância é conformadora do fenômeno
da baixa constitucionalidade em  terra brasilis ­ que o controle difuso não
tem sido utilizado com a  freqüência e com a constância que um sistema
jurídico  em  crise  como  o  brasileiro  exige.  13  Com  efeito,  se  já  é  difícil
convencer os operadores jurídicos do uso do controle difuso para aplicar a
cláusula  da  proibição  de  excesso  ­  circunstância  mais  comum  para  a
declaração  das  inconstitucionalidades  no  âmbito  do  direito  penal  ­,
imagine­se o comportamento destes no que concerne ao controle difuso
de constitucionalidade (e o mesmo vale para o controle concentrado feito
pelo  STF)  quando  se  está  diante  de  uma  hipótese  de  aplicação  da
cláusula  da  proibição  de  proteção  deficiente,  quando  é  colocada  em
xeque  ­  de  forma  mais  delicada,  porque  feita  em  sentido  contrário  ­  a
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liberdade de conformação legislativa..
Há  que  se  ter  claro,  portanto,  que  a  estrutura  do  princípio  da
proporcionalidade  não  aponta  apenas  para  a  perspectiva  de  um
garantismo  negativo  (proteção  contra  os  excessos  do  Estado),  e,  sim,
também  para  uma  espécie  de  garantismo  positivo,  momento  em  que  a
preocupação do sistema jurídico será com o fato de o Estado não proteger
suficientemente determinado direito fundamental, caso em que estar­se­á
em  face  do  que,  a  partir  da  doutrina  alemã,  passou­se  a  denominar  de
"proibição  de  proteção  deficiente"  (Untermassverbot).  Este  conceito,
explica  Bernal  Pulido,  refere­se  à  estrutura  que  o  princípio  da
proporcionalidade  adquire  na  aplicação  dos  direitos  fundamentais  de
proteção.  A  proibição  de  proteção  deficiente  pode  definir­se  como  um
critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, com cuja
aplicação pode determinar­se se um ato estatal  ­ por antonomásia, uma
omissão ­ viola um direito fundamental de proteção. 14
 
 
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     DOUTRINA
 
Trata­se de entender,  assim,  que a proporcionalidade possui  uma dupla
face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a
inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em
que  determinado  ato  é  desarrazoado,  resultando  desproporcional  o
resultado  do  sopesamento  (Abwägung)  entre  fins  e  meios;  de  outro,  a
inconstitucionalidade  pode  advir  de  proteção  insuficiente  de  um  direito
fundamental­social,  como  ocorre  quando  o  Estado  abre mão  do  uso  de
determinadas  sanções  penais  ou  administrativas  para  proteger
determinados  bens  jurídicos.  Este  duplo  viés  do  princípio  da
proporcionalidade  decorre  da  necessária  vinculação  de  todos  os  atos
estatais à materialidade da Constituição, e que tem como conseqüência a
sensível diminuição da discricionariedade  (liberdade de conformação) do
legislador.
Ou  seja,  "a  noção  de  proporcionalidade  não  se  esgota  na  categoria  da
proibição de excesso, já que vinculada igualmente a um dever de proteção
por  parte  do  Estado,  inclusive  quanto  a  agressões  contra  direitos
fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de
dimensões  que  reclamam  maior  densificação,  notadamente  no  que  diz
com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no
campo  jurídico­penal  e,  por  conseguinte,  na  esfera  da  política  criminal,
onde  encontramos  um  elenco  significativo  de  exemplos  a  serem
explorados." 15
Nesse sentido, veja­se alguns exemplos de incidência da necessidade de
sindicância  constitucional,  tanto  no  sentido  de  alcançar  excessos
legislativos  (Übermassverbot)  como  de  deficiências  de  proteção  através
do direito penal (Untermassverbot):
 
 
Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n.  97 ­ Março/2005     181
A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
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3.1. A extinção da punibilidade do crime de estupro pelo casamento
da vítima com terceiro: a inconstitucionalidade em face da proteção
deficiente do legislador penal
A previsão de extinção de punibilidade pelo casamento (sic) da vítima com
terceira pessoa nos casos de crimes sexuais (interessando, aqui, os casos
de  estupro  e  atentado  violento  ao  pudor,  porque  hediondos  16),  está
prevista no art. 107, VIII, do Código Penal. Trata­se de dispositivo inserido
no  Código  Penal  em  1977,  pelo  qual  extingue­se  a  punibilidade  pelo
casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior,
se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida
não requeira o prosseguimento do  inquérito policial ou da ação penal no
prazo de 60 dias a  contar da  celebração,  17  consolidando  jurisprudência
do  Supremo  Tribunal  Federal.  Mais  grave  que  o  disposto  no  aludido
dispositivo são as decisões de alguns tribunais, que estendem a benesse
aos  casos  de  concubinato  18  e  até  a  união  estável.  Nesse  sentido,  a
criticável decisão do STF, que, embora não aplique a referida modalidade
de  extinção  de  punibilidade,  reconhece,  inclusive,  sua  extensão  ao
concubinato:
 
 
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     DOUTRINA
 
"RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. Penal. Processo Penal.
Estupro. Negativa de Autoria Erro de  tipo. Vida desregrada da ofendida.
Concubinato.
(...)
4.  O  casamento  da  ofendida  com  terceiro,  no  curso  da  ação  penal,  é
causa de extinção da punibilidade (CP, art. 107, VIII). Por analogia, poder­
se­ia admitir, também, o concubinato da ofendida com terceiro. Entretanto,
tal  alegação  deve  ser  feita  antes  do  trânsito  em  julgado  da  decisão
condenatória.  O  recorrente  só  fez  após  o  trânsito  em  julgado"  (RHC
79.788­1  ­  Rel.  Min.  Nelson  Jobim  ­  2ª  Turma  do  STF  ­  julgado  em
02/05/2000).
Ora,  não  é  possível  que  tal  modo  de  ver  a  mulher  possa  permanecer
(congelado) no  imaginário dos  juristas mesmo após  todas as conquistas
por ela obtidas nas últimas décadas. Não quero acreditar que, em pleno
século  XXI,  continue­se  a  (mal)tratar  a  mulher  desta  forma  19.  Não  se
pode olvidar, ainda, a relevante circunstância de que os crimes de estupro
e  atentado  violento  ao  pudor  são  hediondos.  Assim,  é  possível  concluir
que o art. 107, VIII, do CP, não foi recepcionado pela Constituição, eis que
incompatível com a principiologia constitucional.
Desse modo, em que pese o anacrônico e  inconstitucional art. 107, VIII,
apontar em direção diversa, entendo ­ e peço desculpas antecipadas pela
ironia  ­  que  o  princípio  da  dignidade  da  pessoa  humana  (art.  1º,  III,  da
CF),  um  dos  principais  direitos  fundamentais  assegurados  em  nossa
Constituição,  também  se  aplica  às  mulheres!  Trata­se,  pois,  de  típico
exemplo  de  aplicação  da  proibição  de  proteção  deficiente
(Untermassverbot).  A  Constituição  brasileira  aponta,  inequivocamente,
para a obrigação de o Estado proteger a dignidade da pessoa humana,
além de outras garantias principiológicas conquistadas nesta fase do pós­
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além de outras garantias principiológicas conquistadas nesta fase do pós­
positivismo  (ou  neoconstitucionalismo).  Portanto,  há  uma  via  demão
dupla  na  proteção  dos  direitos  humanos­fundamentais:  de  um  lado,  o
Estado  deve  protege­los  contra  os  excessos  praticados  pelo  "Leviatã"
(como  alguns  penalistas  liberais­iluministas  preferem  ainda  chamar  o
Estado nesta quadra da história!); mas, de outro, o Estado deve também
protege­los contra as omissões (proteção deficiente), o que significa dizer
que há casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção através
do direito penal para a proteção do direito fundamental.
 
 
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A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Há,  pois,  uma  sensível  alteração  no  papel  do  Direito  e  do  Estado,  que
ocorre  exatamente  quando  o  Estado,  de  potencial  opositor  a  direitos
fundamentais, torna­se seu protetor e, o mais incrível é "que o Estado se
torne  amigo  dos  direitos  fundamentais".  20  Por  tudo  isto,  não  é
desarrazoado afirmar, com Paulo Ferreira da Cunha, que o direito penal
do  Estado  Democrático  e  Social  de  Direito  pode  ser  visto  como  uma
espécie de "braço armado da Constituição": "não armado para servir a ela,
mas para, imbuído dos seus princípios, servir a sociedade. Ou seja, não é
direito  de  duplicação,  mas  direito  que  fundamentalmente  estrutura  a
ordem jurídica e lhe dá uma especial feição. Isto é: não se trata apenas do
conhecido  fenômeno  de  constitucionalização  do  direito  penal,  mas  do
reconhecimento  do  mesmo  como  matéria  que,  não  sendo  de  Direito
Constitucional próprio sensu, é juridicamente constitucional, ou fundante".
21
De  registrar,  por  fim,  que  o  aludido  dispositivo  nunca  sofreu
questionamento  por  parte  da  doutrina  e  da  jurisprudência.  Entrementes,
nos autos do processo nº 70006451827 ­ 5ª Câmara Criminal do TJ­RS,
pela  primeira  vez  sustentei  a  sua  inconstitucionalidade  (não  recepção),
cujo julgamento ainda pende de diligência. Esperemos, pois, o resultado.
3.2. A inconstitucionalidade (parcial sem redução de texto) do art. 2o.
da Lei 10.259: a falta de liberdade de conformação do legislador para
(des)classificar crimes de menor potencial ofensivo. A violação do
princípio da proporcionalidade por proteção deficiente
Instituídos  pela  Lei  9.099/95,  os  Juizados  Especiais  sofreram  radical
alteração  no  ano  de  2001,  através  da  edição  da  Lei  10.259,  que,  entre
outras novidades, acrescentou, a partir do mesmo critério utilizado na Lei
9.099, que são considerados infrações penais de menor potencial ofensivo
"os  crimes que a  lei  comine pena máxima não  superior  a  dois  anos,  ou
multa". Desde  então,  duas  questões  ficaram em aberto:  é  constitucional
estabelecer  como  critério  de  aferição  do  que  seja  menor  ou  maior
potencial ofensivo o montante da pena (mínima de um ano na Lei 9.099 e
máxima  de  2  anos,  na  Lei  10.259?  Tem  o  legislador  carta  branca para
estabelecer, sem  limitações no que concerne a  teoria do bem  jurídico, o
que é delito de menor potencial ofensivo?
 
 
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De  pronto,  parece­me  não  aceitável,  nem  tampouco  válido,  que  uma
penada  legislativa  equipare  bens  culturalmente  tão  diversos  dentro  de
uma solução que, provavelmente,  face ao quadro de descrédito geral da
população  em  relação  ao  sistema  penal  e  aos  poderes  públicos,  venha
suscetibilizar ainda mais o sentimento de  reconhecimento dos  indivíduos
como pertencentes a uma comunidade de Direito. O direito penal também
tem esta função de, mediante a proteção de determinados bens jurídicos
gerar este sentimento de reconhecimento.
Não  vacilo,  pois,  em  afirmar  que  a  possibilidade  de  transação  penal
estendida a bens  jurídicos  tão diversos  ­ porque desclassificados para o
âmbito da "menor ofensividade" ­, através de uma artificial isonomia legal,
lentamente  irá corromper alguns valores de  relevante  importância dentro
do nosso pacto social e jurídico.
É  nesta  verdadeira  "isonomia"  às  avessas  (ou  isonomia  ad­hoc)  que
reside, pois, a primeira violação da Constituição Federal, uma vez que, se
a Constituição estabelece que o Brasil é uma República Federativa, que
se  institui  como  Estado  Democrático  de  Direito,  é  porque,  seguindo  o
moderno  constitucionalismo,  fica  implícito  que  estamos  diante  de  uma
Constituição  normativa  e  dirigente.  Isto,  à  evidência,  acarreta
compromissos  e  inexoráveis  conseqüências  no  campo  da  formulação,
interpretação e aplicação das leis.
Não  há  dúvida,  pois,  que  as  baterias  do  Direito  Penal  do  Estado
Democrático  de  Direito  devem  ser  direcionadas  preferentemente  para  o
combate  dos  crimes  que  impedem  a  realização  dos  objetivos
constitucionais  do  Estado  e  aqueles  que  protegem  os  direitos
fundamentais  e  os  delitos  que  protegem  bens  jurídicos  inerentes  ao
exercício  da  autoridade  do  Estado  (desobediência,  desacato),  além  da
proteção  da  dignidade  da  pessoa,  como  os  crimes  de  abuso  de
autoridade, sem falar nos bens jurídicos de índole transindividual como os
delitos  praticados  contra  o  meio  ambiente,  as  relações  de  consumo,
crimes tributários, etc..
Conseqüentemente,  torna­se  necessário  que  diferenciemos  bens
individuais  de  bens  sociais,  para  que  se  torne  possível  uma  adequada
tutela dos mesmos por via de  lei penal, o que não se verificou na  lei nº
10.259. Isto implica a renúncia da neutralidade estatal liberal, uma vez que
o  Estado  neutro  não  pode  defender  adequadamente  o  ambiente  social
necessário para a autodeterminação.
Nesse sentido, não parece razoável supor que delitos como porte ilegal de
arma  (alterado  recentemente  pela  Lei  10.826),  abuso  de  autoridade,
desacato,  desobediência,  crimes  contra  crianças  e  adolescentes,  crimes
contra a ordem tributária, crimes nas licitações, para citar apenas alguns,
possam ser epitetados como de menor potencial ofensivo (sic) a partir de
uma simples formalidade legislativa.
Desse modo, o legislador ordinário, ao estabelecer que qualquer infração
cuja pena máxima não ultrapasse 02 (dois) anos é uma infração de menor
potencial ofensivo, sem exigir qualquer outro  requisito de ordem objetiva
ou subjetiva, violou, frontal e escandalosamente, preceitos fundamentais e
a principiologia do Estado Democrático de Direito previsto na Constituição.
Mais do que  isto, violou o princípio da proporcionalidade, ao proteger de
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Mais do que  isto, violou o princípio da proporcionalidade, ao proteger de
forma deficiente, bens jurídicos relevantes.
 
 
Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n.  97 ­ Março/2005     185
A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Em  face do exposto,  venho propondo  22  que,  na aplicação do parágrafo
único do art. 2º da Lei 10.259 seja declarada a nulidade parcial do aludido
dispositivo  sem  redução  de  texto,  afastando­se  a  sua  incidência  nas
hipóteses  de  infrações  penais  que,  efetivamente,  não  podem  ser
classificadas como de menor potencial ofensivo. À toda evidência, a tarefa
de especificar  o  elenco de delitos  que devem ser  excluídos não é  nada
fácil. Se de um lado há um leque de infrações que, nitidamente, devem ser
excluídas  do  rol  dos  crimes  que  tenham  menor  potencial  ofensivo,  há
outro conjunto de infrações que ficam em uma zona cinzenta.
De todo modo, como setrata de aplicar a técnica da inconstitucionalidade
parcial  sem  redução  de  texto,  pela  qual  retiraremos  a  incidência  do
parágrafo  único  do  artigo  2o  em  alguns  tipos  penais,  é  possível  deixar
assentado, desde já e com razoável margem se segurança, um rol  inicial
de  delitos  que  jamais  poderiam  ter  sido  epitetados  como  "de  menor
potencial  ofensivo".  Assim:  Infrações  previstas  no  Código  Penal:
exposição  ou  abandono  de  recém  nascido  (art.  134)  e  subtração  de
incapazes  ­  que  equivale,  mutatis  mutandis,  a  um  seqüestro  (art.  249);
violação de domicílio, cometido durante a noite ou em lugar ermo, ou com
o  emprego  de  violência  ou  de  arma  ou  por  duas  ou mais  pessoas  (art.
150, par. 1º); atentado ao pudor mediante fraude (art. 216); desacato (art.
331),  desobediência  (art.  359)  e  fraude  processual  (art.  347);  infrações
previstas em leis esparsas: crimes contra a ordem tributária (art. 2º da Lei
8.137); crimes ambientais (art. 45 da Lei 9.605); crimes cometidos contra
criança e adolescente (arts. 228, 229, 230, 232, 234, 235, 236, 242, 243 e
244  da  Lei  8.069);  "crime  de  porte  ilegal  de  arma"  23(art.  10,  caput,  e
parágrafo  primeiro,  incisos  I,  II  e  III,  da  10.437);)  crimes  ocorridos  nas
licitações (arts. 93, 97 e 98 da Lei 8.666); crimes de abuso de autoridade.
24
 
 
186      Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n. 97 ­ Março/2005
     DOUTRINA
 
Ou  seja,  a  pergunta  que  cabe  é:  a  transgressão  a  um  delito  que  está
umbilicalmente ligado a um bem jurídico protegido pela Constituição pode
ser (des)classificado como de menor potencial ofensivo? Se a resposta for
negativa,  está  diante  de  uma  indevida  inclusão  no  rol  estabelecido  pela
Lei  10.259. Ou  seja, está­se  assim em  face  da  violação  do  princípio  da
proporcionalidade  por  proteção  deficiente  do  bem  jurídico  através  do
direito penal.
Dito de outro modo, não se ignora que a proteção de bens jurídicos não se
realiza somente através do Direito Penal. O Direito Penal não deve intervir
quando há outros meios de proteger os bens em questão  (aqui  também
não  deve  ser  esquecido  e  nem  subestimado  o  valor  simbólico  que
representa o Direito Penal enquanto interdito, enquanto limite que separa
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a civilização da barbárie, questão bem assinalada na metáfora do contrato
social  em  Hobbes  e  na  figura  do  superego  freudiano).  A  pena  tem  a
missão de proteger subsidiariamente os bens jurídicos.
Entretanto,  não  há  precedentes  que  comprovem que  bens  jurídicos  não
insignificantes  possam  ser  protegidos  tão  somente  por  medidas
administrativas ou simulacros de "penas alternativas", como é o caso da
institucionalização das cestas básicas. Por  isto, não era  livre o  legislador
pátrio  para  "dispor"  do  grau  de  lesividade"  de  determinadas  infrações,
desclassificando  a  intensidade  dessa  lesividade  a  partir  de  um  critério
linear  representado  pela  graduação  da  pena,  com  o  que  foram
"isonomizadas", v.g.,  infrações como  lesões corporais  leves, perturbação
do sossego, maus  tratos em animais, notoriamente  tidas e  reconhecidas
como  "de menor potencial ofensivo",  com  infrações como sonegação de
tributos,  crimes  contra  crianças  e  adolescentes,  abuso  de  autoridade  e
porte ilegal de arma, notoriamente reconhecidas na tradição como sendo
de média e alta potencialidades lesiva.
Nesse  sentido,  considero  correta  a  assertiva  de  Roxin,  para  quem  o
legislador  deve  recorrer,  subsidiariamente,  à  contravenção  e  à  multa
administrativa,  em  vez  da  incriminação  e  à  pena,  somente  quando  a
perturbação  social  pode  ser  anulada  com  a  sanção  menos  onerosa.  É
evidente que esse limite é difícil de traçar. Entretanto, assevera, no campo
nuclear  do  Direito  Penal  as  exigências  de  proteção  subsidiária  de  bens
jurídicos requerem necessariamente um castigo penal em caso de delitos
de um certo peso. Em contrapartida, diz Roxin, ainda que em princípio se
incluam condutas como o furto e a fraude (estafa) neste "âmbito nuclear"
de exigência de punição por parte do Direito Penal, nada se oporia a que
os casos de bagatelas neste campo (p. ex., furto de gêneros comestíveis)
fossem tratadas como contravenções. 25
 
 
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A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Observe­se, desse modo, que a discussão dos limites entre condutas que
devem  ser  consideradas  como  crimes  e  as  que  devem  ser  epitetadas
como  contravenção,  primeiramente  é  de  tipo  quantitativo;  entretanto,
quando  se  ultrapassa  o  terreno  das  condutas  "bagatelares"  ­  assim
entendidas na  tradição  jurídica  ­ a discussão  necessariamente  assumirá
foros qualitativos.  E  é  neste  ponto  que  a Constituição  deve  ser  o  topos
conformador dos critérios de aferição do conceito de "delitos puníveis com
pena  de  prisão,  substituíveis  por  restritivas  de  direito  ou  não,  e  as
condutas  que  podem  ficar  no  âmbito  contravencional  ou  no  terreno  da
transação penal". 26
De certo modo, delitos de menor potencial ofensivo nada mais são do que
condutas contravencionais.  O  problema,  portanto,  enquanto  permanecer
no terreno das infrações que, de fato, não oferecem maior potencialidade
lesiva, pode ficar restrito ­ e ser resolvido ­ a partir de critérios objetivos­
quantitativos; no entanto, quando se tratar de infrações que atinjam bens
jurídicos  que  longe  estão  daquilo  que  a  tradição  tem  classificado  como
infrações  bagatelares,  está­se,  inexoravelmente,  diante  de  uma  aferição
qualitativa,  razão  pela  qual  deverão  ser  discutidas  as  condições  de
possibilidade, à luz do conceito material de delito, da inclusão ou exclusão
de  determinadas  infrações  do  conceito  de  "menor,  médio  ou  maior
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de  determinadas  infrações  do  conceito  de  "menor,  médio  ou  maior
potencial ofensivo".
Ou  seja,  o  critério  quantitativo  ­  utilizado  na  Lei  10.259  ­  somente  pode
vingar  no  âmbito  de  uma  certa  homogeneidade  de  infrações;  na
ocorrência de uma heterogeneidade, o critério deve ser qualitativo. Nesse
sentido,  calha a advertência de Stratenwerth,  em  sua  palestra  inaugural
das Jornadas de Professores de Direito Penal realizadas em Basiléia em
1993: "Que haya que renunciar a la pena, que es la sanción..., más dura
que  conece  nuestro  Derecho,  precisamente  allí  donde  estás  en  juego
intereses  vitales  no  sólo  de  los  individuos,  sino  de  la  humanidad  en  su
totalidad, es algo que considero... inadmisible".
 
 
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     DOUTRINA
 
3.3. A inconstitucionalidade do art. 94 da Lei 10.741 (Estatuto do
Idoso) ou de como o legislador não possui qualquer critério para a
aferição da danosidade de uma conduta
Por  último,  vale  lembrar  que  o  mesmo  raciocínio  aplicado  retro  à  Lei
10.259 vale para a recente Lei 10.741 (Estatuto do Idoso), pela qual (art.
94) inacreditavelmente foram rebaixados a categoria de "crimes de menor
potencial ofensivo" todos os crimes previstos naquela lei, desde de que a
pena, abstratamente considerada, não ultrapasse a 4 anos.  Isto  faz com
que  crimes  como  "deixar  de  prestar  assistência  a  idoso",  com  resultado
morte,  "expor  a  perigo  a  integridade  e  a  saúde,  física  ou  psíquica,  do
idoso,  submetendo  a  condiçõesdesumanas",  com  a  sujeição  deste  a
trabalho escravo e disso  resultando  lesão corporal grave, sejam  levados
aos  juizados  especiais  criminais,  estando  aptos  a  receber  benesse  da
transação  penal,  através  da  qual,  mediante  o  pagamento  de  uma  ou
algumas cestas básicas, a persecutio criminis estará esgotada!
Pelos  argumentos  já  expostos,  tenho  como  absolutamente
inconstitucional,  por  violação  da  cláusula  de  proibição  de  proteção
deficiente (Untermassverbot), o dispositivo ­ art. 94 ­ que remete os delitos
do  Estatuto  do  Idoso  aos  Juizados  Especiais.  Sejamos  claros:  estamos
diante  de  uma  arrematada  ficção  metafísica,  onde  se  perde  totalmente
aquilo  que  na  fenomenologia  hermenêutica  chamamos  de  diferença
ontológica.  O  legislador  parece  ter  recebido  uma  nítida  inspiração
sofística­nominalista,  como  a  de  um  personagem  de  Alice  no  País  das
Maravilhas, que diz: "Eu dou às palavras o sentido que quero"!. Ou seja:
Não há tradição (no sentido hermenêutico). Há uma nominação! Ou seja,
para  o  legislador,  o  crime  não  é  de menor  ou maior  potencial  ofensivo
porque  exsurgente  de  uma  relação  tipo  penal­bem  jurídico,  mas,  sim,
porque a lei o nomina de "menor potencial ofensivo".
Ora, é evidente que, se por um lado, um crime não é um crime porque o
tipo  penal,  ontologicamente  (ontologia  clássica),  refletiria  a  essência  da
coisa  designada  (concepção  realista  das  palavras  de Platão,  a  partir  da
qual, p. ex., na palavra estupro estaria a  "essência" da  "estuprez"  ­ sic),
por outro, também parece evidente que um delito não tem sua concepção
de  lesividade alterada  simplesmente  porque  recebeu nova denominação
(no caso, o epíteto de menor potencial ofensivo). Para não ir muito longe,
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(no caso, o epíteto de menor potencial ofensivo). Para não ir muito longe,
até  mesmo  a  semiologia  de  Saussure  poderia  dar  uma  resposta  ao
problema.  Afinal,  como  dizia  o  mestre  genebrino,  se  queres  saber  o
significado  de  um  significante,  pergunte  por  aí...!  Dizendo  de  um modo
mais simples: perguntemos por ai se o cidadão considera que a exposição
a  perigo  da  vida  de  um  idoso  ou  a  sua  privação  de  alimentos,  é  uma
infração  de  natureza,  quiçá,  levíssima,  a  ponto  de  poderem  ser
transacionadas por cestas básicas (sic)? 27 Ora, ora.
 
 
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A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Não  tenho  dúvidas  em  afirmar  que,  desta  vez  (ou  uma  vez  mais),  o
legislador foi além de suas chinelas. Logo, deve ser corrigido, através da
jurisdição constitucional.
A questão, pois, é muito mais grave do que possa parecer. O art. 94 da
Lei  10.741  é  típico  exemplo  de  um  pragmatismo  inconseqüente  que
destrói a diferença. Esse pragmatismo vira ceticismo, porque, na medida
em que cada ato humano tem um conteúdo fático, tornase absolutamente
problemático  o  processamento  da  validade  desse  ato.  Com  efeito,  se
elimino  o  elemento  diferencial  que  identifica  cada  ato  (valorado  como
delito), caio no cinismo, uma vez que tanto faz qual o delito do extenso rol
epitetato  como  de menor  potencial  ofensivo  que  vou  cometer,  porque  a
punição é a mesma, produto de uma transação.
Por isso, insisto, está­se diante de um pragmatismo irresponsável. Ora, a
delinqüência ocorre quando um ato vulnera algum valor. No momento que
a vulnerabilidade é subsumida em uma espécie de "impunidade de cunho
universalizante"  ­  em  face  da  equiparação  ad  hoc  de  infrações
absolutamente díspares e discrepantes entre si ­ desaparece a função do
Direito enquanto interdito. A lei se auto­suprime, em face da possibilidade
de todos não mais cumpri­la; logo, não será mais "lei". Essa "impunidade
de  cunho  universalizante"  nada  mais  é  do  que  o  produto  de  uma
pasteurização  das  transgressões,  no  interior  do  qual  não  dá  mais  para
distinguir um ente de outro.
Remeter condutas com penas de até 4 anos para o rol dos crimes "quase­
bagatelares" ou "proto­insignificantes", misturando os mais variados tipos
de  delitos,  é  uma  inequívoca  demonstração  de  que,  para  o  sistema
jurídico, é possível delinqüir de 50 ou mais modos diferentes, tendo como
contrapartida uma mesma sanção... Enfim, está­se diante de uma  "zona
cinzenta", em que todos os gatos são pardos.
Numa palavra: apontando apenas a inconstitucionalidade do art. 94, deixo
de referir, neste momento, outras inconstitucionalidades que poderiam ser
apontadas na citada  lei, especialmente no que  tange ao apenamento de
algumas  infrações,  que  seguramente  lesam  o  princípio  da  proibição  de
proteção  deficiente,  como  é  o  caso  do  art.  97,  parágrafo  único,  que
determina como pena para o caso de morte do idoso o máximo de 3 anos,
pena  que  é  inferior  até  mesmo  ao  cometimento  de  um  estelionato
simples...!  De  qualquer  modo,  isto  não  deve  gerar  muita  surpresa,
mormente se  levarmos em conta que o crime de adulteração de chassis
de automóvel pode acarretar uma pena que varia entre 3 e 8 anos...!
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3.4. A inconstitucionalidade do art. 9 da Lei do Refis (10.684/03):
ainda um caso de proibição de proteção (penal) deficiente
Seguindo  a  tradição  inaugurada  pela  Lei  9.249,  que,  no  art.  34,
estabelecia  a  extinção  de  punibilidade  dos  crimes  fiscais  pelo
ressarcimento do montante sonegado antes do recebimento da denúncia,
foi promulgada, já no governo Luis Inácio Lula da Silva, a Lei 10.684, que
no seu art. 9., estabeleceu a suspensão da pretensão punitiva do Estado,
referentemente aos crimes previstos nos arts. 1o. e 2o. da Lei 8.137/90, e
nos  arts.  168­A  e  337­A  do Código Penal,  durante  o  período  em  que  a
pessoa  jurídica  relacionada  com  o  agente  dos  aludidos  crimes  estiver
incluída no regime de parcelamento. Mais ainda, estabeleceu a nova lei a
extinção  da  punibilidade  dos  crimes  antes  referidos  quando  a  pessoa
jurídica  relacionada  com  o  agente  efetuar  o  pagamento  integral  dos
débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.
De  pronto,  cabe  referir  que  inexiste  semelhante  favor  legal  aos  agentes
acusados da prática dos delitos do art. 155, 168, caput e 171 do Código
Penal, igualmente crimes de feição patrimonial não diretamente violentos.
Tal circunstância demonstra,  já de início, a visão de mundo do legislador
(e do Poder Executivo) acerca da teoria do bem jurídico. Ou seja, para o
establishment,  é mais grave  furtar e praticar estelionato do que sonegar
tributos e contribuições sociais.
Na esteira do que venho sustentando até este momento, calha novamente
a  pergunta:  tinha  o  legislador  discricionariedade  (liberdade  de
conformação)  para,  de  forma  indireta,  descriminalizar  os  crimes  fiscais
(lato  sensu,  na  medida  em  que  estão  incluídos  todos  os  crimes  de
sonegação  de  contribuições  sociais  da  previdência  social)?  Poderia  o
legislador retirar da órbita da proteção penal as condutas dessa espécie?
Creio que a resposta a tais perguntas deve ser negativa. Nesse sentido, é
importante trazer à colação parte da sentença 55/96, do TC da Espanha,
que, ao meu sentir,  fere com precisão a discussão da matéria. Segundo
aquele  Tribunal,  desde  a  perspectiva  constitucional  somente  cabe
classificara norma penal como não necessária (isto é, a não intervenção
do direito  penal)  quando,  à  luz  do  raciocínio  lógico,  de  dados empíricos
não controvertidos e do conjunto de sanções que o mesmo legislador tem
estimado como necessárias para alcançar os  fins de proteção análogos,
resulta  evidente  a  manifesta  suficiência  de  um  meio  alternativo  menos
restritivo de direitos para a consecução igualmente eficaz das finalidades
desejadas pelo legislador.
No  caso  presente,  não  há  qualquer  justificativa  de  cunho  empírico  que
aponte  para  a  desnecessidade  da  utilização  do  direito  penal  para  a
proteção  dos  bens  jurídicos  que  estão  abarcados  pelo  recolhimento  de
tributos, mormente quando examinamos o grau de sonegação no Brasil.
Mais  do  que  isto,  para  abrir  mão  ­  mesmo  que  de  forma  indireta  ­  da
proteção penal do bem jurídico ínsito a idéia de Estado Social, o legislador
deveria  demonstrar,  antes,  que  os meios  alternativos  à  sanção,  como  o
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deveria  demonstrar,  antes,  que  os meios  alternativos  à  sanção,  como  o
pagamento  do  tributo  antes  do  recebimento  da  denúncia,  tenha,  nos
últimos anos ­ mormente a partir da Lei 9.249 ­ proporcionado resultados
que  apontem,  de  forma  efetiva,  para  a  diminuição  da  sonegação  de
tributos.  28  Ao  contrário,  parece  que,  com  a  instituição  da  previsão  de
extinção  da  punibilidade  prevista  desde  a  Lei  9.249,  e  a  conseqüente
retirada do direito penal dessa esfera de proteção do bem jurídico, houve
considerável  aumento  na  sonegação,  a  ponto  de,  agora,  introduzir­se  a
fórmula do REFIS, pelo qual o sonegador é aquinhoado com prazos que,
por vezes, chegam a mais de cem anos (sic). 29
 
 
Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n.  97 ­ Março/2005     191
A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Não se ignora que a determinação acerca do tipo de proteção (sanção) a
ser aplicada aos bens jurídicos é tarefa precípua do legislador. Isto parece
mais  do  que  óbvio,  sob  pena  de  violação  do  princípio  da  reserva  legal.
Entretanto, como ficou bem assentado pelo Bundesverfassungsgericht na
discussão  do  acórdão  BVerfGE  88,  203,  é  também  verdade  que  o
legislador deverá observar a proibição de proteção deficiente, sendo que,
sob  tais  circunstâncias,  estará  ele  sujeito  ao  controle  jurisdicional  de
constitucionalidade, uma vez que ­ e aqui vem a questão principal daquele
julgamento, "as prescrições que o legislador expede devem ser suficientes
a  uma  adequada  e  efetiva  proteção,  devendo  estar  fundamentadas  em
cuidadosas investigações e em avaliações plausíveis". 30
 
 
192      Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n. 97 ­ Março/2005
     DOUTRINA
 
Isto porque, muito embora o direito penal deva ser utilizado apenas como
ultima ratio, parece evidente que existem situações e hipóteses em que o
bem  jurídico  não  estaria  suficientemente  protegido,  mormente  em  uma
comparação com outras formas de proteção. 31 Nesse sentido, não tenho
dúvidas em afirmar que a medida alternativa ­ pagamento do tributo antes
do  recebimento  da  denúncia  ­  não  reúne  condições  de  ser  eficaz  para
atingir  os  fins  do  Estado,  que  é  a  arrecadação  de  tributos,  para
implementar  políticas  públicas  a  qual  está  obrigado  pela  fórmula  do
Estado Social prevista na Constituição.
Por outro lado, deveria causar espanto à comunidade jurídica o fato de o
legislador  não  abrir  mão  do  direito  penal  para  combater  delitos  menos
relevantes  ­  no  que  pertine  a  sua  danosidade  social  ­  como  o  furto  e
apropriação indébita, e, nos casos de crimes mais graves como os crimes
fiscais,  agir  de  outro modo,  oferecendo  a  possibilidade  de  o  sonegador
efetuar  o  ressarcimento  do  valor  amealhado  dos  cofres  públicos.  32  No
limite, poder­se­ia propor, na medida em que a fórmula adotada pela Lei
10.826  (pagamento  do  valor  sonegado  ­  portanto,  de  forma  indireta,
subtraída) se mostre eficaz para a proteção do bem  jurídico, a extensão
dessa  fórmula  aos  demais  crimes  contra  o  patrimônio,  desde  que
cometidos  sem  violência  ou  grave  ameaça...!  Ou  seja,  poder­se­ia
também permitir que o ladrão e o estelionatário devolvessem a res furtivae
­ até em suaves prestações (espécie de REFIS da patuléia) ­ extinguindo­
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se, ipso facto, a punibilidade, nos mesmos termos dos crimes fiscais!
No  fundo,  a  previsão  do  art.  9  da  Lei  10.684  nada  mais  faz  do  que
estabelecer a possibilidade de converter a conduta criminosa ­ prenhe de
danosidade social  ­  em pecúnia,  favor que é negado a outras condutas.
Neste ponto, calha registrar a objeção feita por Ferrajoli a "monetarização"
do direito penal:
"ningún bien considerado fundamental hasta el punto de justificar la
tutela  penal  puede  ser  monetarizado,  de  modo  que  la  previsión
misma de delitos  sancionados  con penas pecuniarias  evidencia  o
un  defecto  de  punición  (si  el  bien  protegido  es  considerado
fundamental) o, más  frecuentemente, un exceso de prohibición  (si
tal bien no es fundamental)". 33
Desse modo, quando o  legislador protege deficientemente determinados
bens  fundamentais  ­ e ninguém pode negar que os crimes  fiscais  lesam
direitos  fundamentais de diversas dimensões ­ a  jurisdição constitucional
deve  intervir,  declarando  a  invalidade  da  referida  lei  que  protege
deficientemente os bens jurídicos.
 
 
Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n.  97 ­ Março/2005     193
A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Vale  lembrar  que o Procurador­Geral  da República  ingressou  com Ação
Direta  de  Inconstitucionalidade  contra  o  aludido  art.  9  (ADin  3002).  O
fundamento  aponta  para  fato  de  que  o  texto  padece  de
inconstitucionalidades  de  índole  formal  e  material.  Segundo  anotou  o
Procurador­Geral da República "o art. 9º da Lei nº 10.684, de 30 de maio
de 2003,  fere o princípio  republicano  (arts.  1o.  e 3o.  da Constituição da
República),  bem  como  seus  subprincípios  concretizadores,  como  a
igualdade  (art.  5o,  caput),  a  cidadania  (art.  1o.,  II  e  par.  único)  e  a
moralidade  (art.  37,  caput)",  isso  porque  "os  benefícios  fiscais  que
suspendem  a  exigibilidade  do  crédito  tributário,  de  um modo  geral,  e  o
parcelamento  tributário,  de  modo  específico,  engendram  regras  que
excepcionam  o  princípio  republicano,  pois,  "com  a  República,
desaparecem  os  privilégios  tributários  de  indivíduos,  de  classes  ou  de
segmentos da sociedade",  razão pela qual  "todos devem ser alcançados
pela tributação".
Registre­se,  ainda,  a  decisão  do  Juiz  Federal  de  Porto  Alegre,  Paulo
Vieira  Aveline,  que,  em  sede  de  controle  difuso,  deixou  de  aplicar  o
aludido dispositivo, sob o argumento de que a Lei 10.684 teve origem na
conversão  de  medida  provisória  em  lei,  violando,  assim,  as  normas
constitucionais que regulam o respectivo processo legislativo. Apesar de a
decisão  ser  elogiável,  entendo  que  a  fundamentação  da
inconstitucionalidade feriu apenas a questão secundária do problema. Ou
seja,  mesmo  que  o  processo  legislativo  fosse  fielmente  seguido,  ainda
assim o dispositivo careceria de validade constitucional.
Com  efeito,  mais  do  que  a  violação  formal  das  normas  que  tratam  do
processo legislativo, o art. 9 da Lei 10.684 é inconstitucional porqueviola
o princípio da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Afinal, o
legislador  federal  não  tem  liberdade  de  conformação  para  retirar  a
proteção  penal  dos  crimes  de  sonegação  de  tributos,  que  são  bens
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proteção  penal  dos  crimes  de  sonegação  de  tributos,  que  são  bens
jurídicos  de  nítida  feição  transindividual.  Assim  como  o  legislador  deve
observar  a  devida  proporcionalidade  no  que  concerne  à  proibição  de
excesso  (Übermassverbot),  a  idéia  matriz  de  Estado  Democrático  de
Direito  aponta  para  a  necessidade  de  também  ser  observada  a  devida
proporcionalidade  no  dever  de  proteger  bens  jurídicos  fundamentais
através do direito penal.
3.5. A inconstitucionalidade parcial sem redução de texto
(Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung) do crime de porte
de arma ­ aqui uma clara hipótese de violação da cláusula de
proibição de excesso (Übermassverbot)
Após  acirrados  debates  no  Congresso  Nacional  ­  havia  propostas
proibindo  a  própria  comercialização  de  armas  no  território  nacional  ­,  e
depois que a Lei 10.259, no ano de 2001, alçara o crime de porte ilegal de
arma  à  categoria  de  "infração  de  menor  potencial  ofensivo"  (sic),  foi
aprovado, no dia 22 de dezembro de 2003, o Estatuto do Desarmamento
(Lei  nº  10.826/03),  aumentando  as  penas  e  estabelecendo  outros
regramentos  acerca  da  matéria,  inclusive  a  proibição  de  concessão  de
fiança (art. 14, parágrafo único).  34
 
 
194      Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n. 97 ­ Março/2005
     DOUTRINA
 
Não  se  coloca  em  dúvida,  ab  initio,  a  necessidade  de  criminalizar
determinadas  condutas  relacionadas  ao  emprego  de  armas,  sua
fabricação, vendas, etc. Parece que ninguém é contra a criminalização do
uso indiscriminado de armas. O que deve cientificamente ser questionado
é  a  tábula  rasa  que  fez  o  legislador  (des)valorar,  com  o  mesmo  rigor,
condutas  como  possuir,  deter,  portar,  fabricar,  adquirir,  vender,  alugar,
expor  à  venda ou  fornecer,  receber,  ter  em depósito,  transportar,  ceder,
ainda  que  gratuitamente,  emprestar,  remeter,  empregar,  manter  sob
guarda  e  ocultar  arma  de  fogo  (art.  16).  Fez  o  legislador,  pois,  uma
isonomia  às  avessas  (como  o  fez  também  na  recente  Lei  9.714,  ao
colocar  no  mesmo  patamar  delitos  como  sonegação  de  impostos  e
corrupção, que lesam bens de índole transindividual, com delitos de índole
inter­individual, como furto e estelionato!)
De pronto,  cabe  referir  (e  denunciar)  a  extrema vagueza e ambigüidade
com que está redigido o dispositivo. Qual a diferença, por exemplo, entre
possuir e deter uma arma? Qual a diferença entre possuir uma arma em
casa  e  transportá­la  em  veículo  automotor?  Além  disso,  o  dispositivo  é
antigarantista,  porque  estabelece,  em  outras  palavras,  que  quem­
dequalquer­modo­se­aproximar­de­arma­de  fogo estará  sujeito  às  penas
da lei!!! Não bastasse isso, como se verá mais adiante, trata­se de um tipo
penal  que  incrimina  mera  conduta,  estabelecendo  crimes  de  perigo
abstrato, incompatíveis com o moderno Estado Democrático de Direito.
Não  é  difícil  chegar  a  conclusão  que  o  simples  fato  de  alguém  "possuir
arma de  fogo sem autorização"  (tendo­a em casa ou a  transportando no
seu veículo, por exemplo) não pode significar ­ de per si ­ lesão a qualquer
bem  jurídico. Nesse  sentido,  concordo  com Paulo Eduardo Bueno,  para
quem o delito em  tela deve ser examinado sob o prisma da danosidade
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quem o delito em  tela deve ser examinado sob o prisma da danosidade
social:  "nas mãos de um criminoso, a arma é um  instrumento altamente
perigoso,  mas,  nas  mãos  de  um  cidadão  honesto,  a  arma  é  um
instrumento  de  defesa. O  grande  problema  da  Lei  10.826  é  ter  atingido
substancialmente não os criminosos, mas aqueles cidadãos honestos que
mantinham  uma  arma  exclusivamente  para  a  própria  defesa,  mesmo
porque  aqueles  que  vivem  à  margem  da  lei,  via  de  regra,  não  se
subordinam  às  regulamentações  administrativas.  Na  prática,  portanto,  o
desejado controle de armas de  fogo veio prejudicar as possibilidades de
defesa dos cidadãos honestos e não  resolveu o problema da violência".
Sem  considerar  o  elevado  valor  da  tarifa  cobrado  para  registrar  a  arma
(R$ 300,00), requerer o porte (R$ 1.000,00).
 
 
Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n.  97 ­ Março/2005     195
A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Mais ainda, é de registrar, por relevante ­ e o pensamento de Bueno (op.
cit.) vai no mesmo sentido ­ que a simples hipótese de guardar ou possuir
arma de fogo sem registro não constitui qualquer violação a bem jurídico.
Desnecessário dizer que não há crime sem vítima. E não se venha dizer
que a vítima desse  "crime é a sociedade, porque a sociedade é sempre
vítima  (a  idéia  de  crime  implica  de  per  si  uma  conduta  anti­social).  Ou
seja,  é  muito  simplório  dizer  que  a  vítima,  no  caso  sub  análise,  seja  a
sociedade.  E  a  criminalização  não  pode  ser  produto  de  simples
discricionariedade do legislador!
Vários princípios constitucionais, no caso em pauta, estão sendo violados:
o princípio da subsidiariedade, variante do princípio da proporcionalidade,
o  princípio  da  razoabilidade  (afinal,  é  razoável  punir  alguém  com  pena
entre  2  e  4  anos,  porque  possui,  por  exemplo,  uma  espingarda  ou  um
revólver guardados em um armário da sua residência?), além do princípio
da  secularização  (não  se esquecer que o Estado não pode punir meras
condutas e comportamentos).
Assim, não se pode admitir que o legislador incrimine meras atividades (e
comportamentos) como  ilícitos, sem exigir um efetivo dano a algum bem
jurídico. Dito de outro modo, o art. 16, em algumas de suas modalidades,
introduz em nosso direito uma nova modalidade de crime: o crime de dano
normativo! Ora, será demais  lembrar que somente a  lesão concreta ou a
efetiva possibilidade de uma  lesão  imediata a algum bem  jurídico é que
pode  gerar  uma  intromissão  penal  do  Estado? Caso  contrário,  estará  o
Estado estabelecendo responsabilidade objetiva no direito penal, punindo
condutas  in  abstracto,  violando  os  já  explicitados  princípios  da
razoabilidade,  da  proporcionalidade  e  da  secularização,  conquistas  do
Estado Democrático de Direito. Onde está a razoabilidade da punição de
um  cidadão  que  guarda  em  sua  casa  uma  espingarda  ou  um  revólver,
ainda que sem autorização? E o que dizer dos camponeses que têm em
casa  velhas  espingardas  e  que mesmo  assim  estão  sendo  condenados
por "possuírem" ou "transportarem" armas sem autorização legal?
Não se deve olvidar que o Código Penal estabelece que o cidadão tem o
direito de se defender, em caso de agressão atual ou iminente. É o caso,
pois,  da  conhecida  legítima  defesa.  A  vingar  a  tese  da  tábula  rasa
produzida pelo  tipo penal previsto no art. 16, estar­seá, metafisicamente,
estabelecendo  uma  universalização  abstrata,  impedindo,  desde  logo,  a
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estabelecendo  uma  universalização  abstrata,  impedindo,  desde  logo,  a
possibilidade de o cidadão exercer o direito penal­constitucional de auto­
defesa.Assim, entender que o simples possuir, deter ou transportar (sem qualquer
violação concreta de um bem jurídico) constituem crime, é o mesmo que
estabelecer  uma  universalização  metafísico­essencialista  (aristotélico­
tomista)  ao  texto  da  lei,  perdendo­se  o  necessário  caráter  ôntico­
ontológico  (e  portanto,  hermenêutico)  da  interpretação.  Em  síntese,
criminalizar  de  forma  objetivista  e  abstrata  a  conduta  de  possuir  arma,
v.g., é dar ao texto um sentido­em­si­mesmo, enfim, aquilo que se chama
na moderna hermenêutica de "fetichização da lei" (é como se o texto da lei
­ no caso, os verbetes "possuir", "deter", "transportar", para citar alguns ­
já  trouxesse  em­si­mesmo  o  seu  sentido,  a­histórico,  atemporal  e
descontextualizado).  Ao  mesmo  tempo,  ter­se­ia  uma  espécie  de
essencialidade  legal­textual,  onde  o  papel  do  intérprete  ficaria  restrito  a
uma mera subsunção (metafísica). 35
 
 
196      Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n. 97 ­ Março/2005
     DOUTRINA
 
Em face de tudo isso, como resolver o presente caso?
Declarar  a  inconstitucionalidade  do  art.  16,  da  Lei  nº  10.826,  em  sua
totalidade  é  impossível,  uma  vez  que  somente  em  parte,  fere  a
Constituição.  Aliás,  já  de  antanho  Lucio  Bittencourt  36  afirmava  que
"quando,  portanto,  uma  parte  da  lei  é  inconstitucional,  esse  fato  não
autoriza os tribunais a declarar também ineficaz a parte restante".
Assim,  há  que  se  buscar  no  direito  alienígena  e  na  jurisprudência  de
nosso  Supremo  Tribunal  Federal  os  caminhos  para  a  solução  da
controvérsia.  Do  direito  alemão  aprendemos  que,  por  vezes,  podemos
salvar um texto jurídico, não o declarando inconstitucional, a partir de uma
adição  de  sentido.  É  o  caso  da  verfassunsgskonforme  Auslegung
(interpretação  conforme  a  Constituição).  Em  outros,  retira­se  uma  das
incidências da norma, isto é, na hipótese de se querer expungir da norma
um dos sentidos que são contrários a Constituição. Neste caso, estar­se­á
em face de uma Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung (nulidade
parcial  sem  redução  de  texto).  Em  ambos  os  casos,  não  há  mutilação
formal  do  texto.  Altera­se,  apenas,  o  seu  sentido.  No  caso  da
interpretação conforme estar­se­á em  face de uma sentença de  rejeição
de  inconstitucionalidade  parcial  qualitativa;  no  caso  da  nulidade  parcial,
tratar­se­á de uma decisão de acolhimento de inconstitucionalidade parcial
qualitativa.
Uma pergunta se  impõe, desde  logo: a nulidade parcial sem redução de
texto e a interpretação conforme a Constituição podem ser aplicadas pelo
juízo singular e pelos demais Tribunais, ou tal aplicação se afigura como
prerrogativa  exclusiva  do  Supremo  Tribunal  Federal? Estou  convencido
que não há qualquer óbice constitucional que impeça juízes e tribunais de
aplicarem a  interpretação conforme e a nulidade parcial sem redução de
texto. Entender o contrário seria admitir que juízes e tribunais (que não o
STF)  estivessem  obrigados  a  declarar  inconstitucionais  dispositivos  que
pudessem, no mínimo em parte, ser salvaguardados no sistema, mediante
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a aplicação das citadas técnicas de controle. 37
Porque um Juiz de Direito  ­ que, desde a Constituição de 1891, sempre
esteve  autorizado  a  deixar  de  aplicar  uma  lei  na  íntegra  por  entendê­la
inconstitucional  ­ não pode,  também hoje, em pleno Estado Democrático
de  Direito,  aplicá­la  tão­somente  em  parte?  O  mesmo  se  aplica  aos
Tribunais, que, na especificidade da interpretação conforme a Constituição
e da nulidade parcial sem redução de texto, estão dispensados de suscitar
o incidente de inconstitucionalidade.
 
 
Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n.  97 ­ Março/2005     197
A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO...
 
Por  último,  releva  anotar,  parafraseando  Medeiros  e  Prüm,  que  não  se
justifica  aplicar  o  regime  de  fiscalização  concreta,  ou  seja,  suscitar  o
incidente  de  inconstitucionalidade  ­  que  é  o  modo  previsto  no  sistema
jurídico  brasileiro  de  aferir  a  constitucionalidade  no  controle  difuso  de
forma stricto senso ­ aos casos em que esteja em causa  tão somente a
inconstitucionalidade  de  uma das  possíveis  interpretações  da  lei,  pois  o
juízo  de  inconstitucionalidade  de  uma  determinada  interpretação  da  lei
não afeta a  lei em si mesma, não, pondo em causa, portanto, a obra do
legislador. 38
Assim,  aplicando  a  nulidade  parcial  sem  redução  de  texto,  tem­se  que
determinado dispositivo é  inconstitucional  se aplicado a hipótese  "x". No
caso  sob  análise:  o  art.  16,  da  Lei  nº  10.826  será  inconstitucional  se
aplicável à hipótese do simples "possuir" "deter" ou "transportar", sem que
essa conduta coloque em risco qualquer bem jurídico), para citar apenas
algumas hipóteses das  tantas cominações constantes no aludido art. 16,
tudo sob pena de estarmos incorrendo na responsabilidade penal objetiva.
Ou seja, o perigo concreto passa a ser condição de possibilidade para a
aferição da  incidência do  tipo penal. Assim, não é desarrazoado propor,
para  o  problema  ensejado  pelo  art.  16  da  Lei  10.826,  a  aplicação  da
declaração  de  nulidade  (inconstitucionalidade)  parcial  sem  redução  de
texto, técnica, aliás, que o STF já vem adotando em nosso direito (nesse
sentido,  especificamente  ver  ADIn  nº  319,  rel.  Min.  Moreira  Alves,  RTJ
137, pp. 90 e segs.; também as ADins 491, 939 e 1045).
Para  os mais  céticos,  vale  trazer  à  colação  um  precedente  do  Tribunal
Constitucional  Espanhol,  que  pode  auxiliar  na  compreensão  desta
complexa  questão.  Com  efeito,  o  Tribunal  Constitucional  da  Espanha,
através da sentença nº 105/88, declarou a inconstitucionalidade do delito
de  porte  de  utensílios  próprios  para  o  cometimento  de  furto  (gazuas  e
outros  instrumentos), por violação ao art. 24.2. da Constituição (princípio
da presunção da  inocência). O art.  509 do Código Penal  incriminava  "el
que  tuviera  em  su  poder  ganzúas  y  otros  instrumentos  destinados
especialmente  para  ejecutar  el  delito  de  robo  y  no  diere  descargo
suficiente sobre sua adquisición o conservación". O TC espanhol declarou
como contrária a Constituição qualquer interpretação do referido tipo penal
que viesse a castigar tão somente a posse de instrumentos idôneos: "en
cuanto  se  interprete  que  la  posesión  de  instrumentos  idôneos  para
ejecutar el delito de robo presume que la finalidad y el destino que les da
sua poseedor es la ejecución de tal delito". Ou seja, entendeu o Tribunal
espanhol que, sem a prova da possibilidade de efetivo dano, não se pode
punir. A presunção de que alguém vai cometer um furto, pelo fato de estar
10/11/2015 Datadez Premium ­ Sistemas Inteligentes
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punir. A presunção de que alguém vai cometer um furto, pelo fato de estar
portando  instrumentos  próprios  para  tal,  não  é  razão  suficiente  para  o
enquadramento  no  tipo  penal.  Meras  condutas  não  podem  ser  punidas;
tampouco se pode punir alguém com base em presunções.
 
 
198      Revista da AJURIS ­ v. 32 ­ n. 97 ­ Março/2005
     DOUTRINA
 
A  sentença  espanhola  é  uma  declaração  de  inconstitucionalidade  sem
redução de texto. No caso da Lei 10.826, ora sob comento, o Tribunal (ou
o juiz de primeiro grau) pode especificar, v.g., que o fato de alguém "portar
arma"  (desmuniciada)  ou  guarda­la  em  sua  casa,  mesmo  sem  registro,
não pode constituir,

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