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10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 1/26 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO (ÜBERMASSVERBOT) À PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO DEFICIENTE (UNTERMASSVERBOT) OU DE COMO NÃO HÁ BLINDAGEM CONTRA NORMAS PENAIS INCONSTITUCIONAIS Lenio Luiz Streck PósDoutor em Direito (Universidade de Lisboa) Professor do Mestrado e Doutorado da UNISINOSRS Professor Convidado da UNESARJ; Universidad de ValladolidES; Universidad Pablo D'Olavide ES e Universidade de LisboaPT Procurador de JustiçaRS Membro fundador e Conselheiro do Instituto de Hermenêutica Jurídica IHJ SUMÁRIO: 1. Préjuízos e prejuízos em face da (baixa) compreensão do sentido da Constituição. 2. A crise do Direito e a baixa aplicação da jurisdição constitucional em sede penal. 3. Do modus operandi da filtragem hermenêutico no direito penal: o locus privilegiado do controle difuso (juízo singular e tribunais) a capilarização da applicatio constitucional. 3.1. A extinção da punibilidade do crime de estupro pelo casamento da vítima com terceiro: a inconstitucionalidade em face da proteção deficiente do legislador penal. 3.2. A inconstitucionalidade (parcial sem redução de texto) do art. 2o da Lei 10.259: a falta de liberdade de conformação do legislador para (des)classificar crimes de menor potencial ofensivo. A violação do princípio da proporcionalidade por proteção deficiente. 3.3. A inconstitucionalidade do art. 94 da Lei 10.741 (Estatuto do Idoso) ou de como o legislador não possui qualquer critério para a aferição da danosidade de uma conduta. 3.4. A inconstitucionalidade do art. 9 da Lei do Refis (10.684/03): ainda um caso de proibição de proteção (penal) deficiente. 3.5. A inconstitucionalidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung) do crime de porte de arma aqui uma clara hipótese de violação da cláusula de proibição de excesso (Übermassverbot). 4. Aportes finais. 1. PRÉJUÍZOS E PREJUÍZOS EM FACE DA (BAIXA) COMPREENSÃO DO SENTIDO DA CONSTITUIÇÃO Em Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Marques conta que, em Macondo, o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencionálas precisavase apontar com o dedo. Nossa Constituição também é muito recente. Olhando a imensidão de seu texto, colhese a nítida impressão que algumas coisas ainda não têm nome; os juristas limitamse quando o fazem a apontálas com o dedo... A falta de uma précompreensão impede o acontecer (Ereignen) do sentido. Gadamer sempre nos ensinou que a compreensão implica uma précompreensão que, por sua vez, é préfigurada por uma tradição determinada em que vive o intérprete e que modela os seus préjuízos. 172 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA A tradição nos lega vários sentidos de Constituição. Contemporaneamente, a evolução histórica do constitucionalismo no mundo (mormente no continente europeu) colocanos à disposição a noção de Constituição enquanto detentora de uma força normativa, dirigente, programática e compromissária, pois é exatamente a partir da compreensão desse fenômeno que poderemos dar sentido à relação ConstituiçãoEstadoSociedade no Brasil, por exemplo. Mais do que isso, 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 2/26 ConstituiçãoEstadoSociedade no Brasil, por exemplo. Mais do que isso, é do sentido que temos de Constituição que dependerá o processo de interpretação dos textos normativos do sistema. Sendo um texto jurídico (cujo sentido, repitase, estará sempre contido em uma norma que é produto de uma atribuição de sentido Sinngebung) válido tãosomente se estiver em conformidade com a Constituição, a aferição dessa conformidade exige uma précompreensão (Vorverständnis) acerca do sentido de (e da) Constituição, que já se encontra, em face do processo de antecipação de sentido, numa copertença "faticidadehistoricidade do intérprete e Constituição texto infraconstitucional". Um texto jurídico (um dispositivo, uma lei, etc.) jamais é interpretado desvinculado da antecipação de sentido representado pelo sentido que o intérprete tem da Constituição. Destarte, uma "baixa compreensão" acerca do sentido da Constituição naquilo que ela significa no âmbito do Estado Democrático de Direito inexoravelmente acarretará uma "baixa aplicação", problemática que não é difícil de constatar nas salas de aula de expressiva maioria dos cursos jurídicos do país e na quotidianidade das práticas dos operadores do Direito. Por isto, préjuízos inautênticos (no sentido de que fala Gadamer) acarretam sérios prejuízos ao jurista. Vale aqui o alerta de que até mesmo algumas posturas que se consideram críticas no campo jurídico, embora busquem superar o formalismo normativista (para o qual a norma é uma mera entidade lingüística), terminam por transferir o locus da produção do sentido do objetivismo para o subjetivismo, da coisa para a mente/consciência (subjetividade assujeitadora e fundante) e da ontologia (metafísica clássica) para a filosofia da consciência (metafísica moderna). E, por aí, estacionam. 1 E congelam sentidos! Não conseguem, assim, alcançar o patamar do ontological turn (viragem ontológica), no interior da qual a linguagem, de terceira coisa, de mero instrumento e veículo de conceitos, passa a ser condição de possibilidade. Permanecem, desse modo, prisioneiros da relação sujeitoobjeto (que é um problema transcendental), refratária à relação sujeitosujeito (que é um problema hermenêutico). Ou seja, sua preocupação é de ordem metodológica e não ontológica (no sentido heideggerianogadameriano). Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 173 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Não percebem, assim, mesmo aqueles que procuram "superar" o dogmatismonormativismo, que a revolução copernicana provocada pela viragem lingüísticohermenêutica (ou viragem ontológica, no sentido da fenomenologia hermenêutica) tem o principal mérito de deslocar o locus da problemática relacionada à "fundamentação" do processo compreensivointerpretativo do "procedimento" para o "modo de ser". Desse modo, embora a hermenêutica venha sendo recepcionada e/ou adotada pelas diversas concepções da teoria do direito, é, sem dúvida, com a hermenêutica da faticidade de Gadamer, que a hermenêutica vai dar o grande salto paradigmático, porque atinge impiedosamente o cerne da problemática que, de um modo ou de outro, deixavaa refém de uma metodologia, por vezes atrelada aos pressupostos da metafísica clássica 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 3/26 metodologia, por vezes atrelada aos pressupostos da metafísica clássica e, por outras, aos parâmetros estabelecidos pela filosofia da consciência (metafísica moderna). Enquanto tentativa de elaboração de um discurso crítico ao normativismo, a metodologia limitase a procurar traçar as "regras" para uma "melhor" compreensão dos juristas (v.g. autores como Coing, Canaris e Perelman), sem que se dê conta daquilo que é o calcanhar de Aquiles da própria metodologia (que tem a pretensão deser normativa): a da absoluta impossibilidade da existência de um "meta critério" (sic), espécie de regra que estabeleça o uso dessas regras. Enfim, não se dão conta da impossibilidade de Grundmethode. 2 Daí o contraponto hermenêutico que procuro apresentar: o problema da interpretação não é epistemológico, não é metodológico e tampouco procedimental; é, antes, fenomenológico; e, mais do que tudo, existencialidade. Numa palavra, as condições de possibilidades para que o intérprete possa compreender um texto implicam (sempre e inexoravelmente) a existência de uma précompreensão (seus préjuízos) acerca da totalidade (que a sua linguagem lhe possibilita) do sistema jurídicopolíticosocial. Desse belvedere compreensivo, o intérprete formulará (inicialmente) seus juízos acerca do sentido do ordenamento (repitase, o intérprete jamais interpreta em tiras, aos pedaços, como bem alerta Eros Grau). E sendo a Constituição o fundamento de validade de todo o sistema jurídico e essa é a especificidade maior da ciência jurídica , de sua interpretação/aplicação (adequada ou não) é que exsurgirá a sua (in)efetividade. Calham, pois, aqui, as palavras de Konrad Hesse, para quem "resulta de fundamental importância para a preservação e a consolidação da força normativa da Constituição a interpretação constitucional, a qual se encontra necessariamente submetida ao mandato de otimização do texto constitucional." Tratase, pois, de problema fundamentalmente hermenêutico, muito bem detectado, aliás, por Paulo Bonavides, para quem, "para agravar a crise das Constituições, verificouse o emprego de uma metodologia interpretativa que caiu prisioneira do formalismo e do jusprivatismo. Foi, portanto, um equívoco, segundo Müller, a recepção de regras artificiais de interpretação elaboradas pelo positivismo e recolhidas da herança romanista de Savigny, fazendo da realização do Direito e da concretização da norma simples operação interpretativa de textos de norma". 174 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA Desse modo, partindo da premissa de que hermenêutica é condição de ser no mundo, que hermenêutica é existência, e que o processo de interpretação tem como condição de possibilidade a compreensão, no interior da qual o sentido já vem antecipado pela précompreensão (Vorverständnis), a pergunta que se impõe é: como é possível olhar o novo (texto constitucional de 1988), se os nossos préjuízos (précompreensão) estão dominados por uma compreensão inautêntica do Direito, onde, no campo do direito constitucional, pouca importância tem sido dada ao estudo da jurisdição constitucional? 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 4/26 2. A CRISE DO DIREITO E A BAIXA APLICAÇÃO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL EM SEDE PENAL Passados quinze anos desde a promulgação da Constituição, não há indicativos de que tenhamos avançado no sentido da superação da crise por que passa a operacionalidade do Direito em terra brasilis. Persistimos atrelados a um paradigma penal de nítida feição liberalindividualista, isto é, preparados historicamente para o enfrentamento dos conflitos de índole interindividual; não engendramos, ainda, as condições necessárias para o enfrentamento dos conflitos (delitos) de feição transindividual, os quais compõem majoritariamente o cenário desta fase de desenvolvimento da Sociedade brasileira. Basta, para tanto, verificar a ineficácia do establishment jurídicopenal na prevenção e mesmo no combate aos cognominados crimes do "colarinho branco". Há, nitidamente, uma crise que envolve a concepção de bem jurídico em pleno Estado Democrático de Direito. 3 Urge, pois, um redimensionamento na hierarquia dos bens jurídicos como forma de adaptálos à sua dignidade constitucional. 4 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 175 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Verificase, no particular, uma grave controvérsia acerca da extensão e das funções desse conceito (bem jurídico) a partir do dissenso surgido entre a postura dos penalistas liberais, que defendem uma função limitadora do conceito, e aqueles de orientação comunitaristagarantista, cuja posição quanto à funcionalidade dessa instituição jurídica assentase em uma concepção organizativa, interventiva e atenta à realidade social. Essa contenda não foi ainda suficientemente percebida e apreendida pelo conceito dogmático de bem jurídico, e este conflito acarreta uma confusão quanto aos bens que devem prevalecer numa escala hierárquica axiológica, para fins de serem relevantes penalmente e, portanto, merecedores de tutela dessa natureza. 5 A transferência desta ainda não resolvida controvérsia para as práticas legislativas e judiciais faz com surjam leis (v.g., Leis 10.259/01 e 10.741/03) 6 em que bens jurídicos que claramente traduzem interesses de grandes camadas sociais são rebaixados axiologicamente e equiparados a outros bens de relevância meramente individual. Mais uma vez privilegiase o individual em detrimento do coletivo, questão que se demonstra sutilmente presente na legislação que trata dos crimes de sonegação fiscal, como é possível perceber até mesmo na recente Lei 10.684/03, sancionada já no governo Luis Inácio Lula da Silva. O que tem ocorrido de concreto nesse aspecto e dado margem ao aquecimento do debate entre penalistas liberais e comunitaristas, é que estes (comunitaristas) buscam introjetar, na concepção de bem jurídico penal, a idéia de que uma série de valores constitucionais de feição coletiva necessitam de proteção penal, enquanto aqueles (liberaisiluministas), ainda presos às matrizes penais iluministas clássicas, resistem a tanto, obstaculizando a extensão da função de proteção penal 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 5/26 aos bens de interesse da comunidade, sob o argumento de que tal concepção implicaria uma "indesejada antecipação das barreiras do Direito Penal". Os penalistas liberaisiluministas continuam a pensar o Direito a partir da idéia segundo a qual haveria uma contradição insolúvel entre Estado e Sociedade ou entre Estado e indivíduo. Para eles, o Estado é necessariamente mau, opressor, e o Direito (Penal) teria a função de "proteger" o indivíduo dessa opressão. Por isso, boa parte dos penalistas aqui denominados de liberaisiluministas , em pleno século XXI e sob os auspícios do Estado Democrático de Direito no interior do qual o Estado e o Direito assumem (um)a função transformadora continuam a falar na mítica figura do Leviatã, repristinando para mim de forma equivocada a problemática que contrapõe o Estado (mau) à (boa) sociedade, dicotomia/separação EstadoSociedade. 176 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA Tais considerações, à evidência, acarretam compromissos e inexoráveis conseqüências no campo da formulação e aplicação das leis. Para tanto, parto da premissa e não há nenhuma novidade em dizer isto de que a Constituição de 1988 é dirigente e compromissária, apresentando uma direção vinculante para a Sociedade e para o Estado. 7 Logo, em assim sendo, continuo a insistir(e acreditar) que todas as normas da Constituição têm eficácia, e as assim denominadas normas "programáticas" como as que estabelecem a busca da igualdade, a redução da pobreza, a proteção da dignidade, etc. comandam a atividade do legislador (inclusive e logicamente, do legislador penal), buscando alcançar o objetivo do constituinte. Esse comando (ordem de legislar) traz implícita por exemplo, no campo do Direito Penal a necessária hierarquização que deve ser feita na distribuição dos crimes e das penas, razão pela qual o estabelecimento de crimes, penas e descriminalizações não pode ser um ato absolutamente discricionário, voluntarista ou produto de cabalas. Em outras palavras, não há liberdade absoluta de conformação legislativa nem mesmo em matéria penal, ainda que a lei venha a descriminalizar condutas consideradas ofensivas a bens fundamentais. Nesse sentido, se de um lado há a proibição de excesso (Übermassverbot), de outro há a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Ou seja, o direito penal não pode ser tratado como se existisse apenas uma espécie de garantismo negativo, a partir da garantia de proibição de excesso. Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 177 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Aliás, parcela expressiva do segmento que abriga os penalistas críticos brasileiros fazem essa leitura do garantismo tãosomente pelo viés negativo. Com efeito, a partir do papel assumido pelo Estado e pelo Direito no Estado Democrático de Direito, o direito penal deve ser 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 6/26 (sempre) examinado também a partir de um garantismo positivo, isto é, devemos nos indagar acerca do dever de proteção de determinados bens fundamentais através do direito penal. Isto significa dizer que, quando o legislador não realiza essa proteção via direito penal, é cabível a utilização da cláusula "proibição de proteção deficiente" (Untermassverbot). Tais questões ficam bem claras a partir da discussão da descriminação do aborto na Alemanha, problemática igualmente debatida no plano da justiça constitucional na Espanha e em Portugal. Não há, pois, qualquer blindagem que "proteja" a norma penal do controle de constitucionalidade (entendido em sua profundidade, que engloba as modernas técnicas ligadas à hermenêutica, como a interpretação conforme, a nulidade parcial sem redução de texto, o apelo ao legislador, etc.). Ou isto, ou teríamos que considerar intocável, por exemplo, um dispositivo legal que viesse a descriminalizar a corrupção, a lavagem de dinheiro, os crimes fiscais (de certo modo isto já ocorre, desde a Lei 9.249, confirmada agora pela Lei 10684), os crimes sexuais (estupro e atentado violento ao pudor) em face do casamento (sic) da vítima com terceira pessoa (art. 107, VIII, do Código Penal), tudo em nome do princípio da legalidade, como se a vigência de um texto jurídico implicasse, automaticamente, a sua validade, problemática que, paradoxalmente, coloca do mesmo lado penalistas dogmático normativistas e liberaisiluministas. Nenhum campo do Direito está imune dessa vinculação constitucional. Conseqüentemente, na medida em que a Constituição figura como o alfa e o omega do sistema jurídicosocial, ocorre uma sensível alteração no campo de conformação legislativa. Ou seja, a partir do paradigma instituído pelo novo constitucionalismo e a partir daquilo que o Estado Democrático de Direito representa na tradição jurídica, o legislador não mais detém a liberdade para legislar que tinha no paradigma liberal iluminista. Nesse (novo) contexto, a teoria do bem jurídico, que sustenta a idéia de tipos penais no Direito Penal, igualmente passa a depender da materialidade da Constituição. Não pode restar qualquer dúvida no sentido de que o bem jurídico tem estrita relação com a materialidade constitucional, representado pelos preceitos e princípios que encerram a noção de Estado Democrático e Social de Direito. Não há dúvida, pois, que as baterias do Direito Penal do Estado Democrático de Direito devem ser direcionadas preferentemente para o combate dos crimes que impedem a concretização dos direitos fundamentaissociais. Neste ponto, aliás, entendo que é neste espaço que reside até mesmo uma obrigação implícita de criminalização, ao lado dos deveres explícitos de criminalizar constantes no texto constitucional. 3. DO MODUS OPERANDI DA FILTRAGEM HERMENÊUTICO NO DIREITO PENAL: O LOCUS PRIVILEGIADO DO CONTROLE DIFUSO (JUÍZO SINGULAR E TRIBUNAIS) A CAPILARIZAÇÃO DA APPLICATIO CONSTITUCIONAL Como visto, uma nova postura hermenêutica sustentada no ontological turn (viragem ontológica) e na revolução copernicana (Jorge Miranda) que atravessou o Direito Constitucional a partir do segundo pósguerra 8 implica a necessária diferenciação entre texto e norma 9 e entre vigência e validade. Este é o ponto de partida e de chegada da filtragem 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 7/26 validade. Este é o ponto de partida e de chegada da filtragem hermenêuticoconstitucional. 178 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA Nesse sentido, adquire especial significado o controle difuso de constitucionalidade. Em vigor desde a Constituição de 1891, a forma de controle difuso permite uma capilaridade no processo aplicativo da Constituição, possibilitando que juízes singulares e os diversos tribunais possam deixar de aplicar leis ou dispositivos de leis inconstitucionais, a partir do exame do caso concreto. Assim, sempre que o juiz entender que a discussão da constitucionalidade é uma "questão prejudicial", pode deixar de aplicar a lei. 10 É evidente que o efeito é apenas inter partes. Mas, seguramente, tratase de importantíssimo mecanismo que democratiza o acesso à jurisdição constitucional, retirando o monopólio do Supremo Tribunal Federal. Se o juiz tem o poder de deixar de aplicar a lei considerada inconstitucional, o mesmo não se aplica aos órgãos fracionários (Câmaras, Turmas) dos Tribunais. 11 Como se sabe, o art. 97 da Constituição consagra o full bench, o que quer dizer que, afora as exceções previstas no art. 481, parágrafo único do CPC, os órgãos fracionários não estão dispensados de suscitar o incidente de inconstitucionalidade. Também quando a lei for anterior a Constituição os órgãos fracionários estão dispensados da suscitação, isto porque, a partir da ADIn nº 2, e a questão de ordem da ADIn 438, o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento de que o nosso sistema jurídico não admite inconstitucionalidade superveniente. Como conseqüência, leis anteriores à Constituição, que com ela conflitem, são simplesmente não recepcionadas. Logo, desnecessário qualquer incidente para tal declaração. Igualmente há dispensa de suscitação do incidente per saltum nos casos interpretação conforme a Constituição e nulidade parcial sem redução de texto. 12 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 179 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Registrese,entretanto e tal circunstância é conformadora do fenômeno da baixa constitucionalidade em terra brasilis que o controle difuso não tem sido utilizado com a freqüência e com a constância que um sistema jurídico em crise como o brasileiro exige. 13 Com efeito, se já é difícil convencer os operadores jurídicos do uso do controle difuso para aplicar a cláusula da proibição de excesso circunstância mais comum para a declaração das inconstitucionalidades no âmbito do direito penal , imaginese o comportamento destes no que concerne ao controle difuso de constitucionalidade (e o mesmo vale para o controle concentrado feito pelo STF) quando se está diante de uma hipótese de aplicação da cláusula da proibição de proteção deficiente, quando é colocada em xeque de forma mais delicada, porque feita em sentido contrário a 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 8/26 liberdade de conformação legislativa.. Há que se ter claro, portanto, que a estrutura do princípio da proporcionalidade não aponta apenas para a perspectiva de um garantismo negativo (proteção contra os excessos do Estado), e, sim, também para uma espécie de garantismo positivo, momento em que a preocupação do sistema jurídico será com o fato de o Estado não proteger suficientemente determinado direito fundamental, caso em que estarseá em face do que, a partir da doutrina alemã, passouse a denominar de "proibição de proteção deficiente" (Untermassverbot). Este conceito, explica Bernal Pulido, referese à estrutura que o princípio da proporcionalidade adquire na aplicação dos direitos fundamentais de proteção. A proibição de proteção deficiente pode definirse como um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, com cuja aplicação pode determinarse se um ato estatal por antonomásia, uma omissão viola um direito fundamental de proteção. 14 180 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA Tratase de entender, assim, que a proporcionalidade possui uma dupla face: de proteção positiva e de proteção de omissões estatais. Ou seja, a inconstitucionalidade pode ser decorrente de excesso do Estado, caso em que determinado ato é desarrazoado, resultando desproporcional o resultado do sopesamento (Abwägung) entre fins e meios; de outro, a inconstitucionalidade pode advir de proteção insuficiente de um direito fundamentalsocial, como ocorre quando o Estado abre mão do uso de determinadas sanções penais ou administrativas para proteger determinados bens jurídicos. Este duplo viés do princípio da proporcionalidade decorre da necessária vinculação de todos os atos estatais à materialidade da Constituição, e que tem como conseqüência a sensível diminuição da discricionariedade (liberdade de conformação) do legislador. Ou seja, "a noção de proporcionalidade não se esgota na categoria da proibição de excesso, já que vinculada igualmente a um dever de proteção por parte do Estado, inclusive quanto a agressões contra direitos fundamentais provenientes de terceiros, de tal sorte que se está diante de dimensões que reclamam maior densificação, notadamente no que diz com os desdobramentos da assim chamada proibição de insuficiência no campo jurídicopenal e, por conseguinte, na esfera da política criminal, onde encontramos um elenco significativo de exemplos a serem explorados." 15 Nesse sentido, vejase alguns exemplos de incidência da necessidade de sindicância constitucional, tanto no sentido de alcançar excessos legislativos (Übermassverbot) como de deficiências de proteção através do direito penal (Untermassverbot): Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 181 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 9/26 3.1. A extinção da punibilidade do crime de estupro pelo casamento da vítima com terceiro: a inconstitucionalidade em face da proteção deficiente do legislador penal A previsão de extinção de punibilidade pelo casamento (sic) da vítima com terceira pessoa nos casos de crimes sexuais (interessando, aqui, os casos de estupro e atentado violento ao pudor, porque hediondos 16), está prevista no art. 107, VIII, do Código Penal. Tratase de dispositivo inserido no Código Penal em 1977, pelo qual extinguese a punibilidade pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 dias a contar da celebração, 17 consolidando jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Mais grave que o disposto no aludido dispositivo são as decisões de alguns tribunais, que estendem a benesse aos casos de concubinato 18 e até a união estável. Nesse sentido, a criticável decisão do STF, que, embora não aplique a referida modalidade de extinção de punibilidade, reconhece, inclusive, sua extensão ao concubinato: 182 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA "RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. Penal. Processo Penal. Estupro. Negativa de Autoria Erro de tipo. Vida desregrada da ofendida. Concubinato. (...) 4. O casamento da ofendida com terceiro, no curso da ação penal, é causa de extinção da punibilidade (CP, art. 107, VIII). Por analogia, poder seia admitir, também, o concubinato da ofendida com terceiro. Entretanto, tal alegação deve ser feita antes do trânsito em julgado da decisão condenatória. O recorrente só fez após o trânsito em julgado" (RHC 79.7881 Rel. Min. Nelson Jobim 2ª Turma do STF julgado em 02/05/2000). Ora, não é possível que tal modo de ver a mulher possa permanecer (congelado) no imaginário dos juristas mesmo após todas as conquistas por ela obtidas nas últimas décadas. Não quero acreditar que, em pleno século XXI, continuese a (mal)tratar a mulher desta forma 19. Não se pode olvidar, ainda, a relevante circunstância de que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor são hediondos. Assim, é possível concluir que o art. 107, VIII, do CP, não foi recepcionado pela Constituição, eis que incompatível com a principiologia constitucional. Desse modo, em que pese o anacrônico e inconstitucional art. 107, VIII, apontar em direção diversa, entendo e peço desculpas antecipadas pela ironia que o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), um dos principais direitos fundamentais assegurados em nossa Constituição, também se aplica às mulheres! Tratase, pois, de típico exemplo de aplicação da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). A Constituição brasileira aponta, inequivocamente, para a obrigação de o Estado proteger a dignidade da pessoa humana, além de outras garantias principiológicas conquistadas nesta fase do pós 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 10/26 além de outras garantias principiológicas conquistadas nesta fase do pós positivismo (ou neoconstitucionalismo). Portanto, há uma via demão dupla na proteção dos direitos humanosfundamentais: de um lado, o Estado deve protegelos contra os excessos praticados pelo "Leviatã" (como alguns penalistas liberaisiluministas preferem ainda chamar o Estado nesta quadra da história!); mas, de outro, o Estado deve também protegelos contra as omissões (proteção deficiente), o que significa dizer que há casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção através do direito penal para a proteção do direito fundamental. Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 183 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Há, pois, uma sensível alteração no papel do Direito e do Estado, que ocorre exatamente quando o Estado, de potencial opositor a direitos fundamentais, tornase seu protetor e, o mais incrível é "que o Estado se torne amigo dos direitos fundamentais". 20 Por tudo isto, não é desarrazoado afirmar, com Paulo Ferreira da Cunha, que o direito penal do Estado Democrático e Social de Direito pode ser visto como uma espécie de "braço armado da Constituição": "não armado para servir a ela, mas para, imbuído dos seus princípios, servir a sociedade. Ou seja, não é direito de duplicação, mas direito que fundamentalmente estrutura a ordem jurídica e lhe dá uma especial feição. Isto é: não se trata apenas do conhecido fenômeno de constitucionalização do direito penal, mas do reconhecimento do mesmo como matéria que, não sendo de Direito Constitucional próprio sensu, é juridicamente constitucional, ou fundante". 21 De registrar, por fim, que o aludido dispositivo nunca sofreu questionamento por parte da doutrina e da jurisprudência. Entrementes, nos autos do processo nº 70006451827 5ª Câmara Criminal do TJRS, pela primeira vez sustentei a sua inconstitucionalidade (não recepção), cujo julgamento ainda pende de diligência. Esperemos, pois, o resultado. 3.2. A inconstitucionalidade (parcial sem redução de texto) do art. 2o. da Lei 10.259: a falta de liberdade de conformação do legislador para (des)classificar crimes de menor potencial ofensivo. A violação do princípio da proporcionalidade por proteção deficiente Instituídos pela Lei 9.099/95, os Juizados Especiais sofreram radical alteração no ano de 2001, através da edição da Lei 10.259, que, entre outras novidades, acrescentou, a partir do mesmo critério utilizado na Lei 9.099, que são considerados infrações penais de menor potencial ofensivo "os crimes que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa". Desde então, duas questões ficaram em aberto: é constitucional estabelecer como critério de aferição do que seja menor ou maior potencial ofensivo o montante da pena (mínima de um ano na Lei 9.099 e máxima de 2 anos, na Lei 10.259? Tem o legislador carta branca para estabelecer, sem limitações no que concerne a teoria do bem jurídico, o que é delito de menor potencial ofensivo? 184 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 11/26 DOUTRINA De pronto, pareceme não aceitável, nem tampouco válido, que uma penada legislativa equipare bens culturalmente tão diversos dentro de uma solução que, provavelmente, face ao quadro de descrédito geral da população em relação ao sistema penal e aos poderes públicos, venha suscetibilizar ainda mais o sentimento de reconhecimento dos indivíduos como pertencentes a uma comunidade de Direito. O direito penal também tem esta função de, mediante a proteção de determinados bens jurídicos gerar este sentimento de reconhecimento. Não vacilo, pois, em afirmar que a possibilidade de transação penal estendida a bens jurídicos tão diversos porque desclassificados para o âmbito da "menor ofensividade" , através de uma artificial isonomia legal, lentamente irá corromper alguns valores de relevante importância dentro do nosso pacto social e jurídico. É nesta verdadeira "isonomia" às avessas (ou isonomia adhoc) que reside, pois, a primeira violação da Constituição Federal, uma vez que, se a Constituição estabelece que o Brasil é uma República Federativa, que se institui como Estado Democrático de Direito, é porque, seguindo o moderno constitucionalismo, fica implícito que estamos diante de uma Constituição normativa e dirigente. Isto, à evidência, acarreta compromissos e inexoráveis conseqüências no campo da formulação, interpretação e aplicação das leis. Não há dúvida, pois, que as baterias do Direito Penal do Estado Democrático de Direito devem ser direcionadas preferentemente para o combate dos crimes que impedem a realização dos objetivos constitucionais do Estado e aqueles que protegem os direitos fundamentais e os delitos que protegem bens jurídicos inerentes ao exercício da autoridade do Estado (desobediência, desacato), além da proteção da dignidade da pessoa, como os crimes de abuso de autoridade, sem falar nos bens jurídicos de índole transindividual como os delitos praticados contra o meio ambiente, as relações de consumo, crimes tributários, etc.. Conseqüentemente, tornase necessário que diferenciemos bens individuais de bens sociais, para que se torne possível uma adequada tutela dos mesmos por via de lei penal, o que não se verificou na lei nº 10.259. Isto implica a renúncia da neutralidade estatal liberal, uma vez que o Estado neutro não pode defender adequadamente o ambiente social necessário para a autodeterminação. Nesse sentido, não parece razoável supor que delitos como porte ilegal de arma (alterado recentemente pela Lei 10.826), abuso de autoridade, desacato, desobediência, crimes contra crianças e adolescentes, crimes contra a ordem tributária, crimes nas licitações, para citar apenas alguns, possam ser epitetados como de menor potencial ofensivo (sic) a partir de uma simples formalidade legislativa. Desse modo, o legislador ordinário, ao estabelecer que qualquer infração cuja pena máxima não ultrapasse 02 (dois) anos é uma infração de menor potencial ofensivo, sem exigir qualquer outro requisito de ordem objetiva ou subjetiva, violou, frontal e escandalosamente, preceitos fundamentais e a principiologia do Estado Democrático de Direito previsto na Constituição. Mais do que isto, violou o princípio da proporcionalidade, ao proteger de 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 12/26 Mais do que isto, violou o princípio da proporcionalidade, ao proteger de forma deficiente, bens jurídicos relevantes. Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 185 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Em face do exposto, venho propondo 22 que, na aplicação do parágrafo único do art. 2º da Lei 10.259 seja declarada a nulidade parcial do aludido dispositivo sem redução de texto, afastandose a sua incidência nas hipóteses de infrações penais que, efetivamente, não podem ser classificadas como de menor potencial ofensivo. À toda evidência, a tarefa de especificar o elenco de delitos que devem ser excluídos não é nada fácil. Se de um lado há um leque de infrações que, nitidamente, devem ser excluídas do rol dos crimes que tenham menor potencial ofensivo, há outro conjunto de infrações que ficam em uma zona cinzenta. De todo modo, como setrata de aplicar a técnica da inconstitucionalidade parcial sem redução de texto, pela qual retiraremos a incidência do parágrafo único do artigo 2o em alguns tipos penais, é possível deixar assentado, desde já e com razoável margem se segurança, um rol inicial de delitos que jamais poderiam ter sido epitetados como "de menor potencial ofensivo". Assim: Infrações previstas no Código Penal: exposição ou abandono de recém nascido (art. 134) e subtração de incapazes que equivale, mutatis mutandis, a um seqüestro (art. 249); violação de domicílio, cometido durante a noite ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma ou por duas ou mais pessoas (art. 150, par. 1º); atentado ao pudor mediante fraude (art. 216); desacato (art. 331), desobediência (art. 359) e fraude processual (art. 347); infrações previstas em leis esparsas: crimes contra a ordem tributária (art. 2º da Lei 8.137); crimes ambientais (art. 45 da Lei 9.605); crimes cometidos contra criança e adolescente (arts. 228, 229, 230, 232, 234, 235, 236, 242, 243 e 244 da Lei 8.069); "crime de porte ilegal de arma" 23(art. 10, caput, e parágrafo primeiro, incisos I, II e III, da 10.437);) crimes ocorridos nas licitações (arts. 93, 97 e 98 da Lei 8.666); crimes de abuso de autoridade. 24 186 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA Ou seja, a pergunta que cabe é: a transgressão a um delito que está umbilicalmente ligado a um bem jurídico protegido pela Constituição pode ser (des)classificado como de menor potencial ofensivo? Se a resposta for negativa, está diante de uma indevida inclusão no rol estabelecido pela Lei 10.259. Ou seja, estáse assim em face da violação do princípio da proporcionalidade por proteção deficiente do bem jurídico através do direito penal. Dito de outro modo, não se ignora que a proteção de bens jurídicos não se realiza somente através do Direito Penal. O Direito Penal não deve intervir quando há outros meios de proteger os bens em questão (aqui também não deve ser esquecido e nem subestimado o valor simbólico que representa o Direito Penal enquanto interdito, enquanto limite que separa 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 13/26 a civilização da barbárie, questão bem assinalada na metáfora do contrato social em Hobbes e na figura do superego freudiano). A pena tem a missão de proteger subsidiariamente os bens jurídicos. Entretanto, não há precedentes que comprovem que bens jurídicos não insignificantes possam ser protegidos tão somente por medidas administrativas ou simulacros de "penas alternativas", como é o caso da institucionalização das cestas básicas. Por isto, não era livre o legislador pátrio para "dispor" do grau de lesividade" de determinadas infrações, desclassificando a intensidade dessa lesividade a partir de um critério linear representado pela graduação da pena, com o que foram "isonomizadas", v.g., infrações como lesões corporais leves, perturbação do sossego, maus tratos em animais, notoriamente tidas e reconhecidas como "de menor potencial ofensivo", com infrações como sonegação de tributos, crimes contra crianças e adolescentes, abuso de autoridade e porte ilegal de arma, notoriamente reconhecidas na tradição como sendo de média e alta potencialidades lesiva. Nesse sentido, considero correta a assertiva de Roxin, para quem o legislador deve recorrer, subsidiariamente, à contravenção e à multa administrativa, em vez da incriminação e à pena, somente quando a perturbação social pode ser anulada com a sanção menos onerosa. É evidente que esse limite é difícil de traçar. Entretanto, assevera, no campo nuclear do Direito Penal as exigências de proteção subsidiária de bens jurídicos requerem necessariamente um castigo penal em caso de delitos de um certo peso. Em contrapartida, diz Roxin, ainda que em princípio se incluam condutas como o furto e a fraude (estafa) neste "âmbito nuclear" de exigência de punição por parte do Direito Penal, nada se oporia a que os casos de bagatelas neste campo (p. ex., furto de gêneros comestíveis) fossem tratadas como contravenções. 25 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 187 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Observese, desse modo, que a discussão dos limites entre condutas que devem ser consideradas como crimes e as que devem ser epitetadas como contravenção, primeiramente é de tipo quantitativo; entretanto, quando se ultrapassa o terreno das condutas "bagatelares" assim entendidas na tradição jurídica a discussão necessariamente assumirá foros qualitativos. E é neste ponto que a Constituição deve ser o topos conformador dos critérios de aferição do conceito de "delitos puníveis com pena de prisão, substituíveis por restritivas de direito ou não, e as condutas que podem ficar no âmbito contravencional ou no terreno da transação penal". 26 De certo modo, delitos de menor potencial ofensivo nada mais são do que condutas contravencionais. O problema, portanto, enquanto permanecer no terreno das infrações que, de fato, não oferecem maior potencialidade lesiva, pode ficar restrito e ser resolvido a partir de critérios objetivos quantitativos; no entanto, quando se tratar de infrações que atinjam bens jurídicos que longe estão daquilo que a tradição tem classificado como infrações bagatelares, estáse, inexoravelmente, diante de uma aferição qualitativa, razão pela qual deverão ser discutidas as condições de possibilidade, à luz do conceito material de delito, da inclusão ou exclusão de determinadas infrações do conceito de "menor, médio ou maior 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 14/26 de determinadas infrações do conceito de "menor, médio ou maior potencial ofensivo". Ou seja, o critério quantitativo utilizado na Lei 10.259 somente pode vingar no âmbito de uma certa homogeneidade de infrações; na ocorrência de uma heterogeneidade, o critério deve ser qualitativo. Nesse sentido, calha a advertência de Stratenwerth, em sua palestra inaugural das Jornadas de Professores de Direito Penal realizadas em Basiléia em 1993: "Que haya que renunciar a la pena, que es la sanción..., más dura que conece nuestro Derecho, precisamente allí donde estás en juego intereses vitales no sólo de los individuos, sino de la humanidad en su totalidad, es algo que considero... inadmisible". 188 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA 3.3. A inconstitucionalidade do art. 94 da Lei 10.741 (Estatuto do Idoso) ou de como o legislador não possui qualquer critério para a aferição da danosidade de uma conduta Por último, vale lembrar que o mesmo raciocínio aplicado retro à Lei 10.259 vale para a recente Lei 10.741 (Estatuto do Idoso), pela qual (art. 94) inacreditavelmente foram rebaixados a categoria de "crimes de menor potencial ofensivo" todos os crimes previstos naquela lei, desde de que a pena, abstratamente considerada, não ultrapasse a 4 anos. Isto faz com que crimes como "deixar de prestar assistência a idoso", com resultado morte, "expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso, submetendo a condiçõesdesumanas", com a sujeição deste a trabalho escravo e disso resultando lesão corporal grave, sejam levados aos juizados especiais criminais, estando aptos a receber benesse da transação penal, através da qual, mediante o pagamento de uma ou algumas cestas básicas, a persecutio criminis estará esgotada! Pelos argumentos já expostos, tenho como absolutamente inconstitucional, por violação da cláusula de proibição de proteção deficiente (Untermassverbot), o dispositivo art. 94 que remete os delitos do Estatuto do Idoso aos Juizados Especiais. Sejamos claros: estamos diante de uma arrematada ficção metafísica, onde se perde totalmente aquilo que na fenomenologia hermenêutica chamamos de diferença ontológica. O legislador parece ter recebido uma nítida inspiração sofísticanominalista, como a de um personagem de Alice no País das Maravilhas, que diz: "Eu dou às palavras o sentido que quero"!. Ou seja: Não há tradição (no sentido hermenêutico). Há uma nominação! Ou seja, para o legislador, o crime não é de menor ou maior potencial ofensivo porque exsurgente de uma relação tipo penalbem jurídico, mas, sim, porque a lei o nomina de "menor potencial ofensivo". Ora, é evidente que, se por um lado, um crime não é um crime porque o tipo penal, ontologicamente (ontologia clássica), refletiria a essência da coisa designada (concepção realista das palavras de Platão, a partir da qual, p. ex., na palavra estupro estaria a "essência" da "estuprez" sic), por outro, também parece evidente que um delito não tem sua concepção de lesividade alterada simplesmente porque recebeu nova denominação (no caso, o epíteto de menor potencial ofensivo). Para não ir muito longe, 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 15/26 (no caso, o epíteto de menor potencial ofensivo). Para não ir muito longe, até mesmo a semiologia de Saussure poderia dar uma resposta ao problema. Afinal, como dizia o mestre genebrino, se queres saber o significado de um significante, pergunte por aí...! Dizendo de um modo mais simples: perguntemos por ai se o cidadão considera que a exposição a perigo da vida de um idoso ou a sua privação de alimentos, é uma infração de natureza, quiçá, levíssima, a ponto de poderem ser transacionadas por cestas básicas (sic)? 27 Ora, ora. Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 189 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Não tenho dúvidas em afirmar que, desta vez (ou uma vez mais), o legislador foi além de suas chinelas. Logo, deve ser corrigido, através da jurisdição constitucional. A questão, pois, é muito mais grave do que possa parecer. O art. 94 da Lei 10.741 é típico exemplo de um pragmatismo inconseqüente que destrói a diferença. Esse pragmatismo vira ceticismo, porque, na medida em que cada ato humano tem um conteúdo fático, tornase absolutamente problemático o processamento da validade desse ato. Com efeito, se elimino o elemento diferencial que identifica cada ato (valorado como delito), caio no cinismo, uma vez que tanto faz qual o delito do extenso rol epitetato como de menor potencial ofensivo que vou cometer, porque a punição é a mesma, produto de uma transação. Por isso, insisto, estáse diante de um pragmatismo irresponsável. Ora, a delinqüência ocorre quando um ato vulnera algum valor. No momento que a vulnerabilidade é subsumida em uma espécie de "impunidade de cunho universalizante" em face da equiparação ad hoc de infrações absolutamente díspares e discrepantes entre si desaparece a função do Direito enquanto interdito. A lei se autosuprime, em face da possibilidade de todos não mais cumprila; logo, não será mais "lei". Essa "impunidade de cunho universalizante" nada mais é do que o produto de uma pasteurização das transgressões, no interior do qual não dá mais para distinguir um ente de outro. Remeter condutas com penas de até 4 anos para o rol dos crimes "quase bagatelares" ou "protoinsignificantes", misturando os mais variados tipos de delitos, é uma inequívoca demonstração de que, para o sistema jurídico, é possível delinqüir de 50 ou mais modos diferentes, tendo como contrapartida uma mesma sanção... Enfim, estáse diante de uma "zona cinzenta", em que todos os gatos são pardos. Numa palavra: apontando apenas a inconstitucionalidade do art. 94, deixo de referir, neste momento, outras inconstitucionalidades que poderiam ser apontadas na citada lei, especialmente no que tange ao apenamento de algumas infrações, que seguramente lesam o princípio da proibição de proteção deficiente, como é o caso do art. 97, parágrafo único, que determina como pena para o caso de morte do idoso o máximo de 3 anos, pena que é inferior até mesmo ao cometimento de um estelionato simples...! De qualquer modo, isto não deve gerar muita surpresa, mormente se levarmos em conta que o crime de adulteração de chassis de automóvel pode acarretar uma pena que varia entre 3 e 8 anos...! 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 16/26 190 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA 3.4. A inconstitucionalidade do art. 9 da Lei do Refis (10.684/03): ainda um caso de proibição de proteção (penal) deficiente Seguindo a tradição inaugurada pela Lei 9.249, que, no art. 34, estabelecia a extinção de punibilidade dos crimes fiscais pelo ressarcimento do montante sonegado antes do recebimento da denúncia, foi promulgada, já no governo Luis Inácio Lula da Silva, a Lei 10.684, que no seu art. 9., estabeleceu a suspensão da pretensão punitiva do Estado, referentemente aos crimes previstos nos arts. 1o. e 2o. da Lei 8.137/90, e nos arts. 168A e 337A do Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. Mais ainda, estabeleceu a nova lei a extinção da punibilidade dos crimes antes referidos quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios. De pronto, cabe referir que inexiste semelhante favor legal aos agentes acusados da prática dos delitos do art. 155, 168, caput e 171 do Código Penal, igualmente crimes de feição patrimonial não diretamente violentos. Tal circunstância demonstra, já de início, a visão de mundo do legislador (e do Poder Executivo) acerca da teoria do bem jurídico. Ou seja, para o establishment, é mais grave furtar e praticar estelionato do que sonegar tributos e contribuições sociais. Na esteira do que venho sustentando até este momento, calha novamente a pergunta: tinha o legislador discricionariedade (liberdade de conformação) para, de forma indireta, descriminalizar os crimes fiscais (lato sensu, na medida em que estão incluídos todos os crimes de sonegação de contribuições sociais da previdência social)? Poderia o legislador retirar da órbita da proteção penal as condutas dessa espécie? Creio que a resposta a tais perguntas deve ser negativa. Nesse sentido, é importante trazer à colação parte da sentença 55/96, do TC da Espanha, que, ao meu sentir, fere com precisão a discussão da matéria. Segundo aquele Tribunal, desde a perspectiva constitucional somente cabe classificara norma penal como não necessária (isto é, a não intervenção do direito penal) quando, à luz do raciocínio lógico, de dados empíricos não controvertidos e do conjunto de sanções que o mesmo legislador tem estimado como necessárias para alcançar os fins de proteção análogos, resulta evidente a manifesta suficiência de um meio alternativo menos restritivo de direitos para a consecução igualmente eficaz das finalidades desejadas pelo legislador. No caso presente, não há qualquer justificativa de cunho empírico que aponte para a desnecessidade da utilização do direito penal para a proteção dos bens jurídicos que estão abarcados pelo recolhimento de tributos, mormente quando examinamos o grau de sonegação no Brasil. Mais do que isto, para abrir mão mesmo que de forma indireta da proteção penal do bem jurídico ínsito a idéia de Estado Social, o legislador deveria demonstrar, antes, que os meios alternativos à sanção, como o 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 17/26 deveria demonstrar, antes, que os meios alternativos à sanção, como o pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia, tenha, nos últimos anos mormente a partir da Lei 9.249 proporcionado resultados que apontem, de forma efetiva, para a diminuição da sonegação de tributos. 28 Ao contrário, parece que, com a instituição da previsão de extinção da punibilidade prevista desde a Lei 9.249, e a conseqüente retirada do direito penal dessa esfera de proteção do bem jurídico, houve considerável aumento na sonegação, a ponto de, agora, introduzirse a fórmula do REFIS, pelo qual o sonegador é aquinhoado com prazos que, por vezes, chegam a mais de cem anos (sic). 29 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 191 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Não se ignora que a determinação acerca do tipo de proteção (sanção) a ser aplicada aos bens jurídicos é tarefa precípua do legislador. Isto parece mais do que óbvio, sob pena de violação do princípio da reserva legal. Entretanto, como ficou bem assentado pelo Bundesverfassungsgericht na discussão do acórdão BVerfGE 88, 203, é também verdade que o legislador deverá observar a proibição de proteção deficiente, sendo que, sob tais circunstâncias, estará ele sujeito ao controle jurisdicional de constitucionalidade, uma vez que e aqui vem a questão principal daquele julgamento, "as prescrições que o legislador expede devem ser suficientes a uma adequada e efetiva proteção, devendo estar fundamentadas em cuidadosas investigações e em avaliações plausíveis". 30 192 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA Isto porque, muito embora o direito penal deva ser utilizado apenas como ultima ratio, parece evidente que existem situações e hipóteses em que o bem jurídico não estaria suficientemente protegido, mormente em uma comparação com outras formas de proteção. 31 Nesse sentido, não tenho dúvidas em afirmar que a medida alternativa pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia não reúne condições de ser eficaz para atingir os fins do Estado, que é a arrecadação de tributos, para implementar políticas públicas a qual está obrigado pela fórmula do Estado Social prevista na Constituição. Por outro lado, deveria causar espanto à comunidade jurídica o fato de o legislador não abrir mão do direito penal para combater delitos menos relevantes no que pertine a sua danosidade social como o furto e apropriação indébita, e, nos casos de crimes mais graves como os crimes fiscais, agir de outro modo, oferecendo a possibilidade de o sonegador efetuar o ressarcimento do valor amealhado dos cofres públicos. 32 No limite, poderseia propor, na medida em que a fórmula adotada pela Lei 10.826 (pagamento do valor sonegado portanto, de forma indireta, subtraída) se mostre eficaz para a proteção do bem jurídico, a extensão dessa fórmula aos demais crimes contra o patrimônio, desde que cometidos sem violência ou grave ameaça...! Ou seja, poderseia também permitir que o ladrão e o estelionatário devolvessem a res furtivae até em suaves prestações (espécie de REFIS da patuléia) extinguindo 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 18/26 se, ipso facto, a punibilidade, nos mesmos termos dos crimes fiscais! No fundo, a previsão do art. 9 da Lei 10.684 nada mais faz do que estabelecer a possibilidade de converter a conduta criminosa prenhe de danosidade social em pecúnia, favor que é negado a outras condutas. Neste ponto, calha registrar a objeção feita por Ferrajoli a "monetarização" do direito penal: "ningún bien considerado fundamental hasta el punto de justificar la tutela penal puede ser monetarizado, de modo que la previsión misma de delitos sancionados con penas pecuniarias evidencia o un defecto de punición (si el bien protegido es considerado fundamental) o, más frecuentemente, un exceso de prohibición (si tal bien no es fundamental)". 33 Desse modo, quando o legislador protege deficientemente determinados bens fundamentais e ninguém pode negar que os crimes fiscais lesam direitos fundamentais de diversas dimensões a jurisdição constitucional deve intervir, declarando a invalidade da referida lei que protege deficientemente os bens jurídicos. Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 193 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Vale lembrar que o ProcuradorGeral da República ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o aludido art. 9 (ADin 3002). O fundamento aponta para fato de que o texto padece de inconstitucionalidades de índole formal e material. Segundo anotou o ProcuradorGeral da República "o art. 9º da Lei nº 10.684, de 30 de maio de 2003, fere o princípio republicano (arts. 1o. e 3o. da Constituição da República), bem como seus subprincípios concretizadores, como a igualdade (art. 5o, caput), a cidadania (art. 1o., II e par. único) e a moralidade (art. 37, caput)", isso porque "os benefícios fiscais que suspendem a exigibilidade do crédito tributário, de um modo geral, e o parcelamento tributário, de modo específico, engendram regras que excepcionam o princípio republicano, pois, "com a República, desaparecem os privilégios tributários de indivíduos, de classes ou de segmentos da sociedade", razão pela qual "todos devem ser alcançados pela tributação". Registrese, ainda, a decisão do Juiz Federal de Porto Alegre, Paulo Vieira Aveline, que, em sede de controle difuso, deixou de aplicar o aludido dispositivo, sob o argumento de que a Lei 10.684 teve origem na conversão de medida provisória em lei, violando, assim, as normas constitucionais que regulam o respectivo processo legislativo. Apesar de a decisão ser elogiável, entendo que a fundamentação da inconstitucionalidade feriu apenas a questão secundária do problema. Ou seja, mesmo que o processo legislativo fosse fielmente seguido, ainda assim o dispositivo careceria de validade constitucional. Com efeito, mais do que a violação formal das normas que tratam do processo legislativo, o art. 9 da Lei 10.684 é inconstitucional porqueviola o princípio da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Afinal, o legislador federal não tem liberdade de conformação para retirar a proteção penal dos crimes de sonegação de tributos, que são bens 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 19/26 proteção penal dos crimes de sonegação de tributos, que são bens jurídicos de nítida feição transindividual. Assim como o legislador deve observar a devida proporcionalidade no que concerne à proibição de excesso (Übermassverbot), a idéia matriz de Estado Democrático de Direito aponta para a necessidade de também ser observada a devida proporcionalidade no dever de proteger bens jurídicos fundamentais através do direito penal. 3.5. A inconstitucionalidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung) do crime de porte de arma aqui uma clara hipótese de violação da cláusula de proibição de excesso (Übermassverbot) Após acirrados debates no Congresso Nacional havia propostas proibindo a própria comercialização de armas no território nacional , e depois que a Lei 10.259, no ano de 2001, alçara o crime de porte ilegal de arma à categoria de "infração de menor potencial ofensivo" (sic), foi aprovado, no dia 22 de dezembro de 2003, o Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03), aumentando as penas e estabelecendo outros regramentos acerca da matéria, inclusive a proibição de concessão de fiança (art. 14, parágrafo único). 34 194 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA Não se coloca em dúvida, ab initio, a necessidade de criminalizar determinadas condutas relacionadas ao emprego de armas, sua fabricação, vendas, etc. Parece que ninguém é contra a criminalização do uso indiscriminado de armas. O que deve cientificamente ser questionado é a tábula rasa que fez o legislador (des)valorar, com o mesmo rigor, condutas como possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo (art. 16). Fez o legislador, pois, uma isonomia às avessas (como o fez também na recente Lei 9.714, ao colocar no mesmo patamar delitos como sonegação de impostos e corrupção, que lesam bens de índole transindividual, com delitos de índole interindividual, como furto e estelionato!) De pronto, cabe referir (e denunciar) a extrema vagueza e ambigüidade com que está redigido o dispositivo. Qual a diferença, por exemplo, entre possuir e deter uma arma? Qual a diferença entre possuir uma arma em casa e transportála em veículo automotor? Além disso, o dispositivo é antigarantista, porque estabelece, em outras palavras, que quem dequalquermodoseaproximardearmade fogo estará sujeito às penas da lei!!! Não bastasse isso, como se verá mais adiante, tratase de um tipo penal que incrimina mera conduta, estabelecendo crimes de perigo abstrato, incompatíveis com o moderno Estado Democrático de Direito. Não é difícil chegar a conclusão que o simples fato de alguém "possuir arma de fogo sem autorização" (tendoa em casa ou a transportando no seu veículo, por exemplo) não pode significar de per si lesão a qualquer bem jurídico. Nesse sentido, concordo com Paulo Eduardo Bueno, para quem o delito em tela deve ser examinado sob o prisma da danosidade 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 20/26 quem o delito em tela deve ser examinado sob o prisma da danosidade social: "nas mãos de um criminoso, a arma é um instrumento altamente perigoso, mas, nas mãos de um cidadão honesto, a arma é um instrumento de defesa. O grande problema da Lei 10.826 é ter atingido substancialmente não os criminosos, mas aqueles cidadãos honestos que mantinham uma arma exclusivamente para a própria defesa, mesmo porque aqueles que vivem à margem da lei, via de regra, não se subordinam às regulamentações administrativas. Na prática, portanto, o desejado controle de armas de fogo veio prejudicar as possibilidades de defesa dos cidadãos honestos e não resolveu o problema da violência". Sem considerar o elevado valor da tarifa cobrado para registrar a arma (R$ 300,00), requerer o porte (R$ 1.000,00). Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 195 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Mais ainda, é de registrar, por relevante e o pensamento de Bueno (op. cit.) vai no mesmo sentido que a simples hipótese de guardar ou possuir arma de fogo sem registro não constitui qualquer violação a bem jurídico. Desnecessário dizer que não há crime sem vítima. E não se venha dizer que a vítima desse "crime é a sociedade, porque a sociedade é sempre vítima (a idéia de crime implica de per si uma conduta antisocial). Ou seja, é muito simplório dizer que a vítima, no caso sub análise, seja a sociedade. E a criminalização não pode ser produto de simples discricionariedade do legislador! Vários princípios constitucionais, no caso em pauta, estão sendo violados: o princípio da subsidiariedade, variante do princípio da proporcionalidade, o princípio da razoabilidade (afinal, é razoável punir alguém com pena entre 2 e 4 anos, porque possui, por exemplo, uma espingarda ou um revólver guardados em um armário da sua residência?), além do princípio da secularização (não se esquecer que o Estado não pode punir meras condutas e comportamentos). Assim, não se pode admitir que o legislador incrimine meras atividades (e comportamentos) como ilícitos, sem exigir um efetivo dano a algum bem jurídico. Dito de outro modo, o art. 16, em algumas de suas modalidades, introduz em nosso direito uma nova modalidade de crime: o crime de dano normativo! Ora, será demais lembrar que somente a lesão concreta ou a efetiva possibilidade de uma lesão imediata a algum bem jurídico é que pode gerar uma intromissão penal do Estado? Caso contrário, estará o Estado estabelecendo responsabilidade objetiva no direito penal, punindo condutas in abstracto, violando os já explicitados princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da secularização, conquistas do Estado Democrático de Direito. Onde está a razoabilidade da punição de um cidadão que guarda em sua casa uma espingarda ou um revólver, ainda que sem autorização? E o que dizer dos camponeses que têm em casa velhas espingardas e que mesmo assim estão sendo condenados por "possuírem" ou "transportarem" armas sem autorização legal? Não se deve olvidar que o Código Penal estabelece que o cidadão tem o direito de se defender, em caso de agressão atual ou iminente. É o caso, pois, da conhecida legítima defesa. A vingar a tese da tábula rasa produzida pelo tipo penal previsto no art. 16, estarseá, metafisicamente, estabelecendo uma universalização abstrata, impedindo, desde logo, a 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 21/26 estabelecendo uma universalização abstrata, impedindo, desde logo, a possibilidade de o cidadão exercer o direito penalconstitucional de auto defesa.Assim, entender que o simples possuir, deter ou transportar (sem qualquer violação concreta de um bem jurídico) constituem crime, é o mesmo que estabelecer uma universalização metafísicoessencialista (aristotélico tomista) ao texto da lei, perdendose o necessário caráter ôntico ontológico (e portanto, hermenêutico) da interpretação. Em síntese, criminalizar de forma objetivista e abstrata a conduta de possuir arma, v.g., é dar ao texto um sentidoemsimesmo, enfim, aquilo que se chama na moderna hermenêutica de "fetichização da lei" (é como se o texto da lei no caso, os verbetes "possuir", "deter", "transportar", para citar alguns já trouxesse emsimesmo o seu sentido, ahistórico, atemporal e descontextualizado). Ao mesmo tempo, terseia uma espécie de essencialidade legaltextual, onde o papel do intérprete ficaria restrito a uma mera subsunção (metafísica). 35 196 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA Em face de tudo isso, como resolver o presente caso? Declarar a inconstitucionalidade do art. 16, da Lei nº 10.826, em sua totalidade é impossível, uma vez que somente em parte, fere a Constituição. Aliás, já de antanho Lucio Bittencourt 36 afirmava que "quando, portanto, uma parte da lei é inconstitucional, esse fato não autoriza os tribunais a declarar também ineficaz a parte restante". Assim, há que se buscar no direito alienígena e na jurisprudência de nosso Supremo Tribunal Federal os caminhos para a solução da controvérsia. Do direito alemão aprendemos que, por vezes, podemos salvar um texto jurídico, não o declarando inconstitucional, a partir de uma adição de sentido. É o caso da verfassunsgskonforme Auslegung (interpretação conforme a Constituição). Em outros, retirase uma das incidências da norma, isto é, na hipótese de se querer expungir da norma um dos sentidos que são contrários a Constituição. Neste caso, estarseá em face de uma Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung (nulidade parcial sem redução de texto). Em ambos os casos, não há mutilação formal do texto. Alterase, apenas, o seu sentido. No caso da interpretação conforme estarseá em face de uma sentença de rejeição de inconstitucionalidade parcial qualitativa; no caso da nulidade parcial, tratarseá de uma decisão de acolhimento de inconstitucionalidade parcial qualitativa. Uma pergunta se impõe, desde logo: a nulidade parcial sem redução de texto e a interpretação conforme a Constituição podem ser aplicadas pelo juízo singular e pelos demais Tribunais, ou tal aplicação se afigura como prerrogativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal? Estou convencido que não há qualquer óbice constitucional que impeça juízes e tribunais de aplicarem a interpretação conforme e a nulidade parcial sem redução de texto. Entender o contrário seria admitir que juízes e tribunais (que não o STF) estivessem obrigados a declarar inconstitucionais dispositivos que pudessem, no mínimo em parte, ser salvaguardados no sistema, mediante 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 22/26 a aplicação das citadas técnicas de controle. 37 Porque um Juiz de Direito que, desde a Constituição de 1891, sempre esteve autorizado a deixar de aplicar uma lei na íntegra por entendêla inconstitucional não pode, também hoje, em pleno Estado Democrático de Direito, aplicála tãosomente em parte? O mesmo se aplica aos Tribunais, que, na especificidade da interpretação conforme a Constituição e da nulidade parcial sem redução de texto, estão dispensados de suscitar o incidente de inconstitucionalidade. Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 197 A DUPLA FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: DA PROIBIÇÃO DE EXCESSO... Por último, releva anotar, parafraseando Medeiros e Prüm, que não se justifica aplicar o regime de fiscalização concreta, ou seja, suscitar o incidente de inconstitucionalidade que é o modo previsto no sistema jurídico brasileiro de aferir a constitucionalidade no controle difuso de forma stricto senso aos casos em que esteja em causa tão somente a inconstitucionalidade de uma das possíveis interpretações da lei, pois o juízo de inconstitucionalidade de uma determinada interpretação da lei não afeta a lei em si mesma, não, pondo em causa, portanto, a obra do legislador. 38 Assim, aplicando a nulidade parcial sem redução de texto, temse que determinado dispositivo é inconstitucional se aplicado a hipótese "x". No caso sob análise: o art. 16, da Lei nº 10.826 será inconstitucional se aplicável à hipótese do simples "possuir" "deter" ou "transportar", sem que essa conduta coloque em risco qualquer bem jurídico), para citar apenas algumas hipóteses das tantas cominações constantes no aludido art. 16, tudo sob pena de estarmos incorrendo na responsabilidade penal objetiva. Ou seja, o perigo concreto passa a ser condição de possibilidade para a aferição da incidência do tipo penal. Assim, não é desarrazoado propor, para o problema ensejado pelo art. 16 da Lei 10.826, a aplicação da declaração de nulidade (inconstitucionalidade) parcial sem redução de texto, técnica, aliás, que o STF já vem adotando em nosso direito (nesse sentido, especificamente ver ADIn nº 319, rel. Min. Moreira Alves, RTJ 137, pp. 90 e segs.; também as ADins 491, 939 e 1045). Para os mais céticos, vale trazer à colação um precedente do Tribunal Constitucional Espanhol, que pode auxiliar na compreensão desta complexa questão. Com efeito, o Tribunal Constitucional da Espanha, através da sentença nº 105/88, declarou a inconstitucionalidade do delito de porte de utensílios próprios para o cometimento de furto (gazuas e outros instrumentos), por violação ao art. 24.2. da Constituição (princípio da presunção da inocência). O art. 509 do Código Penal incriminava "el que tuviera em su poder ganzúas y otros instrumentos destinados especialmente para ejecutar el delito de robo y no diere descargo suficiente sobre sua adquisición o conservación". O TC espanhol declarou como contrária a Constituição qualquer interpretação do referido tipo penal que viesse a castigar tão somente a posse de instrumentos idôneos: "en cuanto se interprete que la posesión de instrumentos idôneos para ejecutar el delito de robo presume que la finalidad y el destino que les da sua poseedor es la ejecución de tal delito". Ou seja, entendeu o Tribunal espanhol que, sem a prova da possibilidade de efetivo dano, não se pode punir. A presunção de que alguém vai cometer um furto, pelo fato de estar 10/11/2015 Datadez Premium Sistemas Inteligentes http://livepublish.iob.com.br/ntzajuris/lpext.dll/Infobase/1b5ae/1b601/1bb53?f=templates&fn=documentframe.htm&2.0#JD_AJURIS97PG171 23/26 punir. A presunção de que alguém vai cometer um furto, pelo fato de estar portando instrumentos próprios para tal, não é razão suficiente para o enquadramento no tipo penal. Meras condutas não podem ser punidas; tampouco se pode punir alguém com base em presunções. 198 Revista da AJURIS v. 32 n. 97 Março/2005 DOUTRINA A sentença espanhola é uma declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. No caso da Lei 10.826, ora sob comento, o Tribunal (ou o juiz de primeiro grau) pode especificar, v.g., que o fato de alguém "portar arma" (desmuniciada) ou guardala em sua casa, mesmo sem registro, não pode constituir,
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