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X Encontro Nacional da Anpur | ST5, 1 | Cidade, planejamento e gestão urbana: história das idéias, das práticas e das representações 1 Análise morfológica de cidades do agreste pernambucano surgidas no século XVIII André Lemoine Neves FCH Esuda e MDU/UFPE (Universidade Federal de Pernambuco - Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano/MDU) Palavras-chave Morfologia, história da cidade e do urbanismo, urbanismo colonial 1. Introdução Ao longo décadas de pesquisa sobre o Urbanismo no Brasil, nota-se uma quanti- dade ainda bastante significativa de lacunas no que tange a um estudo das muitas manifestações do desenvolvimento das cidades brasileiras. Ou se estudam as principais cidades do período colonial (aquelas de maior interesse político e econômico) ou se estudam, à exaustão, as metrópoles caóticas e insustentá- veis dos nossos dias; criando inúmeros hiatos que, se preenchidos poderiam compor um panorama mais completo da evolução urbana no Brasil, auxiliando até (e essa não é a pretensão deste trabalho) na solução de certas carências crônicas das urbes nacionais. O trabalho ora apresentado visa ao estudo da origem e evolução das ci- dades do Agreste Pernambucano∗ - a partir de agora, denominado apenas Agreste (Fig.1) - surgidas ao longo do século XVIII e situadas historicamente no cha- mado Ciclo do Couro (SIMONSEN, 1977) e das quais, até o momento não se tem notícia de qualquer estudo mais aprofundado sobre suas origens, história e filiação morfológica. Foram observados apenas estudos genealógicos e histó- ricos por demais fantasiosos e desprovidos de fundamentação documental que pouco ou nada contribuem para tecer um quadro mínimo do processo de ocu- pação do território e da evolução das cidades do interior de Pernambuco, como são comumente conhecidas. Estudos mais sérios como os de ANDRADE (1973, 1977, 1979) e BARBALHO (1972,1983) são geralmente deixados de lado, exatamente pela prudência e validade das considerações e dos fatos ex- postos . Ao mesmo tempo em que se nota, atualmente, um processo bastante acelerado de descaracterização tanto da Arquitetura quanto do tecido urbano destas cidades. Seus governantes, imbuídos de um pensamento atrelado ao modernismo de ontem, consideram de bom tom demolir qualquer vestígio do antigo e do original em prol do progresso, tentando esconder formas matu- tas de ser e viver a população, igualmente envergonhada de suas tradições acompanha o processo a partir da desfiguração de suas casas, privando-se de interessantes formas de apropriação do espaço urbano e doméstico. No momento em que se percebe este processo de perda da história e da identidade nas cidades do Agreste e, ao mesmo tempo, nota-se que ainda é possível tentar identificar sua filiação formal, inicia-se esta pesquisa com o in- * Neste trabalho, entende-se por Agreste Pernambucano, ou simplesmente Agreste, a região fisiográfica definida e delimitada pela Secretaria Estadual de Planejamento (hoje SEPLANDES), através do CONDEPE (1987) e que compreende uma área de 24.489,80km², entre a Zona da Mata e o Sertão Pernambuco. Os termos Zona da Mata e Sertão Pernambuca- no também derivam da divisão fisiográfica em curso no Estado. X Encontro Nacional da Anpur | ST5, 1 | Cidade, planejamento e gestão urbana: história das idéias, das práticas e das representações 2 tuito de registrar e analisar o processo evolutivo dessas cidades, surgidas de modo diverso, por exemplo, das cidades mineiras do Ciclo do Ouro, também ocorrido no século XVIII. Este trabalho faz parte de um estudo mais amplo que vem sendo desen- volvido no âmbito do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano/ MDU/UFPE e visa à abordagem prévia de um aspecto de relevante interesse, observado ao longo das pesquisas: a relação entre forma urbana e contexto social dentro do processo de urbanização do território nordestino durante o período colonial, servindo como um ensaio para o desenvolvimento de Dis- sertação de Mestrado onde se pretende estudar, 3 núcleos urbanos do Agres- te: Bezerros, Caruaru e Cimbres (Fig.2) que ainda possuem um núcleo históri- co definido entendendo-se por núcleo histórico definido, aquela parte da cidade, onde, através de pesquisa histórica prévia e desenvolvimento de per- cursos de reconhecimento, foram identificadas edificações com estilos históri- cos reconhecíveis, sendo assim possível, dentro de uma certa margem de erro, estabelecer a idade de certos arruamentos (SOUZA e CABRAL, s.d.); obser- vando-se, além da Arquitetura, os componentes formadores do espaço urba- no: as ruas, os espaços públicos (praças e mercados), os edifícios singulares (prédios públicos, igrejas, etc.) e as quadras/lotes (LAMAS, 1992). O trabalho ora apresentado discorrerá sobre a ocupação do território pernambucano entre 1535 ano da chegada do primeiro donatário, Duarte Coelho e início da colo- nização e 1790 ano do surgimento das últimas cidades do Agreste, no século XVIII, com ênfase na ocupação do Agreste; seguido de um capítulo sobre o surgimento das cidades no Agreste ao longo do século XVIII e seu desenvol- vimento até o século XIX e, por fim, uma análise comparativa entre Bezerros (Curato em 1768), Caruaru (fundada em 1781) e Cimbres (Vila em 1762), considerando seus elementos morfológicos e seus contextos sociais de surgi- mento/desenvolvimento/declínio, à luz da História, e de teorias como a dos Percursos-matrizes (CANIGGIA & MAFFEI, 1995) e da Sintaxe Espacial (HILLIER & HANSON, 1984). Há que se considerar mais uma vez que o traba- lho em questão é um estudo prévio que será desenvolvido e aprofundado com o objetivo de esboçar um painel mais claro do processo de formação de cida- des em Pernambuco num período onde, segundo alguns autores, desenvolvia- se no Brasil-colônia, um processo de planejamento espacial e social (DELSON, 1997) estabelecido por Portugal e que deveria desenvolver um ur- banismo de formas claras, padronizadas e inteligíveis como forma de garantir o controle da sociedade. 2. O processo de ocupação do território Pernambucano (1535-1790) 2.1. A ocupação da capitania de Pernambuco (1535-1630) O território onde hoje é o Estado de Pernambuco já era do conhecimento de navegadores, piratas e feitores desde os primeiros anos do século XVI, mas sua efetiva ocupação só se deu a partir da chegada de seu primeiro donatário, X Encontro Nacional da Anpur | ST5, 1 | Cidade, planejamento e gestão urbana: história das idéias, das práticas e das representações 3 Duarte Coelho Pereira, em 9 de março de 1535. Neste dia, a esquadra do do- natário adentra no canal de Santa Cruz, onde já existia a feitoria fundada por Cristóvão Jaques, e funda, numa elevação a Vila de Igarassu, que só se esta- beleceria definitivamente após a derrota dos índios caetés que ocupavam a re- gião. Deixando um grupo de vianeses, liderados por Afonso Gonçalves, no lo- cal, onde seria erguida a capela dos Santos Cosme e Damião, Duarte Coelho parte para o sul em busca de melhor local para o estabelecimento da sede do seu governo. 30km ao sul de Igarassu, no alto de uma colina, Duarte Coelho estabelece a sua torre e funda Olinda, também conhecida como Marim dos Caetés, surgindo mais ao sul, pelas facilidades do seu porto natural, o Povo dos Arrecifes, hoje Recife. A oeste, começam a surgir os engenhos, muitos dos quais foram os precursores tanto de futuros bairros do Recife (Madalena, Tor- re, Várzea) como de cidades (Camaragibe, São Lourenço da Mata).A estrutura das primeiras vilas Igarassu e Olinda obedece aos cânones lusitanos: es- colha de um sítio elevado por questões de defesa; praça central balizada por igreja, casa de câmara e cadeia e, no caso de Olinda, a torre do donatário e ruas que, descendo as encostas das elevações seguem até encontrar uma igreja ou convento. Recife, estabelecidona planura do istmo, desenvolve-se em torno da ermida do Corpo Santo, só ocupando a ilha de Antônio Vaz no sé- culo seguinte. Até o século XVII, a ocupação propriamente dita permaneceria restrita ao litoral e a uma estreita faixa de engenhos na Zona da Mata. Duarte Coelho, em busca de riquezas minerais, empreende algumas expedições subindo o rio São Francisco (GONSALVES DE MELLO, 1997), que era o limite sul da capitania, sem obter sucesso: a Borborema, o grande deserto, permaneceria intocado até a saída dos holandeses, cem anos mais tarde. Apesar da necessidade de ocupação dos territórios a oeste da Zona da Mata, pouco foi feito na administração de Jorge de Albuquerque Coelho e Duarte de Albuquerque Coelho, sucessores do primeiro donatário (GUERRA, 1970). Ao final do século XVI, na capitania de Pernambuco, da foz do rio Igarassu até a foz do São Francisco, só havia os seguintes núcleos urbanos: Igarassu, Olinda, Reci- fe, Santo Amaro de Jaboatão, Sirinhaém, Ipojuca, Nazaré do Cabo e Alagoas (Deodoro, hoje no Estado de Alagoas), todos praticamente no litoral. A partir de 1626, com o surgimento da povoação do Braga, hoje Vitória de Santo Antão, tem início a ocupação urbana da Zona da Mata (ARAGÃO, 1977), mais a oeste e já nos contrafortes da Borborema. A povoação, situada a 51km do Recife, serviu de posto avançado para aqueles que se arriscavam a penetrar além da serra das Ruças. Convém lembrar que os esforços despendi- dos contra os indígenas, que destruíram inúmeros engenhos ao longo do sé- culo XVI, serviram para retardar ainda mais o processo de ocupação da capitania. Neste ponto, é interessante observar que, passados quase cem anos do início da colonização da capitania a ocupação urbana é mínima, não tendo sido encontrados quaisquer indícios de um plano de ocupação ordenada do territó- rio. As povoações surgiam da necessidade de se estabelecerem entrepostos para a comercialização do açúcar, como Sirinhaém e Ipojuca ou de pau-brasil, X Encontro Nacional da Anpur | ST5, 1 | Cidade, planejamento e gestão urbana: história das idéias, das práticas e das representações 4 como São Lourenço da Mata. Pode-se listar uma série de fatores que reduzi- ram o trecho ocupado da capitania a uma estreita faixa de, no máximo 60km de largura, no sentido leste-oeste: O reduzido contingente populacional dos colonizadores portugueses ; Os ataques dos índios que destruíam engenhos, matando colonos e es- cravos o que demandava contínuos esforços para a sua reconstrução e defesa; A inexistência de um plano elaborado para a ocupação do território da capitania; A proibição da ocupação da Mata do Brasil, que se estendia, na capitania de Pernambuco, das terras dos engenhos até o início da Borborema, no sentido leste-oeste e do rio Igarassu até o São Francisco, no sentido norte-sul; A inexistência de metais preciosos no interior da capitania, o que aliado a existência de três nações de muito perversa e bestial gente, no dizer de Duarte Coelho (GONSALVES DE MELLO, 1997), inibiam até mesmo as entradas no território pernambucano. 2.2. A ocupação após a saída dos holandeses a conquista do Agreste e o Ciclo do Couro Com a chegada dos holandeses em 1630, ficam sustados os planos de avanço em direção ao oeste e sul (região do São Francisco). Os mapas holandeses mostram o território conhecido terminando na serra de Baçira (sic), ou Passira, a apenas 100km do Recife (CAMARA CASCUDO, 1956). Apesar de os holandeses relacionarem algumas fazendas de gado um pouco além de Passira (BARLÉU, 1974), não há notícias de estabelecimentos holandeses nessa região. Com exceção do plano da Cidade Maurícia os holan- deses vão apenas se utilizar dos povoados e vilas existentes, não contribuindo em nada para o processo de ocupação da capitania, seja do ponto de vista ur- bano ou rural entre 1630 e 1654. Vale registrar que, em 1652, ainda durante o período holandês, houve, por parte de João Fernandes Vieira, um dos comandantes da Insurreição Pernambucana, a elaboração de um plano de defesa do território pernambu- cano, mediante a ocupação da atual região Agreste (chamada, na época de Sertão) por uma ou duas vilas fortificadas que serviriam de base para uma resistência no caso de uma outra possível invasão (GONSALVES DE MELLO, 1967). Em carta enviada a Dom João IV, Vieira sugere que se fundasse uma povoação fortificada, onde se estabelecessem os moradores que luta- vam contra os invasores (idem, 1967). O pedido foi reiterado em carta da- tada de 24 de maio de 1654: Vieira solicita do rei a permissão para escolher as mais longes (sic) do mar que possam ser (idem, 1967), duas paragens para erguer duas povoações ou vilas, onde a população litorânea se abriga- ria em caso de novas invasões, deixando tudo para trás. A idéia foi definiti- vamente deixada de lado a partir de um parecer assinado pelo general Fran- X Encontro Nacional da Anpur | ST5, 1 | Cidade, planejamento e gestão urbana: história das idéias, das práticas e das representações 5 cisco Barreto de Menezes, datado de 23 de maio de 1655, no qual, este ex- plicava ao rei a inutilidade de tais vilas fortificadas já que, em 1630, os moradores de Pernambuco em vez de se reunirem nas fortalezas para de- fendê-las, se abrigaram nas matas... (idem, 1967). As vilas seriam construídas segundo os mais modernos princípios de de- fesa, talvez obedecendo a forma de certas cidades fortificadas como Almeida em Portugal. Sua existência teria modificado completamente o processo de ocupação e urbanização que se deu a seguir na capitania de Pernambuco. De fato, só a partir de 29 de abril de 1654 começa o processo de ocupa- ção dos territórios a oeste e sudoeste da capitania, através da doação de imensas sesmarias, algumas com centenas de quilômetros quadrados (COSTA PORTO, 1965), cujas sedes, na maioria dos casos, dariam origem a povoações hoje transformadas em sedes de municípios. Estas sesmarias eram doadas pela Coroa portuguesa a oficiais do exército luso-brasileiro como forma de pa- gamento pela expulsão dos holandeses do território compreendido entre os atuais Rio Grande do Norte e Alagoas. Ao mesmo tempo, começam as investi- das dos padres da Congregação do Oratório no intuito de catequizar os índios Rodelas, Paratiós, Ororubás e Cariris (BARBALHO, 1983). Com o estabelecimento das sesmarias e a criação de grandes fazendas de gado que deveriam abastecer de carne, couro e animais para carga toda a zona canavieira do Nordeste, começam a surgir os conhecidos caminhos das boiadas que ligavam os sertões até Recife, Olinda e Salvador. Criando uma rede de distribuição de gado que abrangia centenas de quilômetros, esses ca- minhos geralmente acompanhavam rios como o São Francisco, o Capibaribe e o Ipojuca, e sempre cruzavam sedes de fazendas, onde, aos poucos foi-se cri- ando uma rede de pousos para o descanso do gado e dos tangedores. No final do século XVII, já havia fazendas de gado desde Bezerros até o Sertão da Carinhanha (hoje, Estado da Bahia), já no limite com a capitania das Minas Gerais. Nesse período surgem as fazendas dos Bezerras (Bezerros), do Caruru (Caruaru), Sítio do Garcia (Garanhuns) e, ao longo do século XVIII, Boa Vista (Alagoinha), Bom Jardim, etc., definindo uma rede de fazendas que, até o final do século, estabelecerá uma rede de povoações e vilas que, trans- formadas em cidades, se mantém até os dias de hoje. A única vila real surgida em Pernambuco durante o Ciclo do Couro foi Cimbres, localizada no alto da serra do Ororubá e originada de uma missão dos Padres Oratorianos de São Filipe Néri, criada em 1679 nas terras de João Fernandes Vieira, o que sugere uma revisão da validade geral das teorias que versam sobre um pretenso planejamento urbano e territorial válido para todo o Brasil durante o período colonial (REIS FILHO, 1968/2000). O Povoado do Ororubá ou Monte Alegre foielevado a Vila Real de Cimbres em 1762, com a determinação de ser cordeado e de crescer segundo um padrão geométrico rígido, o que não aconteceu devido à distância de Cimbres das estradas das boiadas e da incapacidade do governo colonial em pôr em prática suas leis num território onde a vontade dos sesmeiros era a lei. X Encontro Nacional da Anpur | ST5, 1 | Cidade, planejamento e gestão urbana: história das idéias, das práticas e das representações 6 Apesar de extrapolar o recorte geográfico deste trabalho, à guisa de infor- mação, pode-se salientar que, na última década do século XVIII, todo o território pernambucano, do litoral até os sertões a oeste e sudoeste, já estava ocupados por povoações que derivaram, nesta ordem, de: sedes de fazendas de gado, missões religiosas e iniciativas pessoais para a fundação de povoados. Em toda a capitania são: 10 vilas e povoados na Zona da Mata (incluindo Recife e uma cida- de: Olinda); 18, no Agreste; 5, no Sertão e 2, no Sertão do São Francisco, des- contada a Comarca do São Francisco, perdida em 1824. 2.3. As rotas das boiadas e o surgimento dos primeiros núcleos urbanos Como foi citado acima, o surgimento das fazendas de gado no Agreste e Ser- tão da capitania de Pernambuco deu origem a uma série de rotas de distribui- ção de gado e produtos derivados que iam até a capitania das Minas Gerais, Piauí, Ceará, Paraíba, etc.. Gonsalves de Mello identifica em seu Três roteiros de penetração do território pernambucano (1966) dois caminhos ou estradas que, passando pelo Agreste, cortavam sedes de fazendas de gado: o Caminho do Capibaribe e o Caminho do Ipojuca. Ambos, partindo do Recife, levavam até o Sertão da Carinhanha, na Comarca do são Francisco, hoje Estado da Bahia, estabelecendo um embrião de rede urbana, inicialmente linear como os povoados que surgiram ao longo dessas estradas. Inicialmente, as entradas para o interior da capitania não estabeleceram caminhos ou rotas determinadas para a sua penetração. Assim foi com as en- tradas ordenadas por Duarte Coelho e as expedições holandesas. A distribuição de terras no interior da capitania a partir da segunda metade do século XVII, ge- rou a necessidade de se estabelecerem caminhos regulares, balizados pelas sedes das fazendas, que serviriam de pouso para as boiadas e seus tangedores. O tempo de formação dessas estradas parece ter sido relativamente curto e seu alcance, extremamente longo, abrangendo centenas de quilômetros (às vezes milhares). Exemplo disso são os Roteiros de viagem do Recife à Cari- nhanha pelo Capibaribe e pelo Ipojuca, que datados de 1738, menos de cem anos depois da outorga da primeiras sesmarias, já mostram uma rede de fa- zendas do Recife até quase Minas Gerais. Já tempo de transformação das se- des de fazendas de gado em povoados foi bastante relativo enquanto algu- mas tornaram-se povoados poucas décadas depois da instalação das sedes, outras levaram um século para se converterem em núcleos urbanos. Obvia- mente, nem todas as fazendas de gado ao longo, por exemplo, do Caminho do Ipojuca, tornaram-se povoados. Algumas desapareceram sem deixar vestígios, outras, desenvolveram-se em sedes de municípios, servindo como pólos de atração para aquelas que não chegaram a se desenvolver pelos mais diversos motivos, que vão desde questões geográficas até a simples vontade dos mandantes da região, como foi o caso de Cimbres que, devido a sua distân- cia da estrada das boiadas foi paulatinamente substituída pelo povoado da fa- zenda do Poço da Pesqueira, até que, em 1836, por pressões políticas os do- X Encontro Nacional da Anpur | ST5, 1 | Cidade, planejamento e gestão urbana: história das idéias, das práticas e das representações 7 nos da fazenda fizeram com que a sede do município passasse a ser Pesqueira, arruinando Cimbres por completo. Como as estradas passavam exatamente dentro das sedes das fazendas, como no caso da fazenda dos Bezerras (Bezerros) e do Caruru (Caruaru), es- sas sedes se comportavam como pontos de parada obrigatórios, de apartação e engorda do gado e de matança dos animais doentes (as queimadas). Aí também se localizavam os currais e as áreas onde os tangedores armavam su- as redes e trempes para passarem a noite, sob os olhos dos proprietários das fazendas. A fazenda propriamente dita era composta pela casa do proprietário, sen- zalas, casas dos agregados, oficinas, estrebarias, galinheiros e currais. Posteri- ormente era acrescentada ao conjunto uma capela, que por razões óbvias dentro de uma sociedade católica e patriarcal, servia para aglutinar as popula- ções que existiam ao redor das sedes das fazendas, favorecendo, o surgimento de feiras em seus pátios, derivadas de festas religiosas, novenas e procissões e, evidentemente, da necessidade de prover a fazenda, a população do entor- no e os tangedores, de gêneros necessários à sua sobrevivência como farinha, carne seca, gibões de couro, chapéus, etc.. Os estudos demonstraram que, os povoados surgidos a partir das fazen- das localizadas nas estradas das boiadas, tiveram sua forma primordial defini- da pela própria estrada, a partir do momento em que as primeiras casas foram construídas à margem das estradas, tomando uma forma linear que só tende a se modificar décadas depois do seu surgimento, já no século XX. A permanên- cia dos percursos-matrizes pode até hoje ser identificada em cidades como Be- zerros e Caruaru (Fig.3 ). 3. Formação e desenvolvimento dos núcleos urbanos do Agreste os casos de Bezerros, Caruaru e Cimbres 3.1. Os núcleos urbanos do Agreste: formação e morfologia Como foi citado anteriormente, observou-se a existência de dois tipos de for- mação e desenvolvimento de núcleos urbanos no hinterland pernambucano: o caso único de Cimbres, elevada a Vila Real em 1762, segundo os preceitos da política pombalina de ordenamento territorial e urbano, a partir de uma missão religiosa cuja forma já era ordenada geometricamente, e o caso dos demais núcleos urbanos surgidos no Agreste ao longo do século XVIII, em especial, os de Bezerros e Caruaru todos surgidos a partir da necessidade de pouso para as boiadas e tangedores e do interesse dos proprietários das fazendas em controlar esses pousos de alguma forma, longe, é claro, do controle da admi- nistração central. Cimbres, obviamente deveria se desenvolver segundo uma planta regular (Fig.4), tal como aconteceu em Parnaíba e Oeiras (PI), surgidas também no século XVIII. Sua forma urbana atrofiou-se devido aos fatores já citados an- X Encontro Nacional da Anpur | ST5, 1 | Cidade, planejamento e gestão urbana: história das idéias, das práticas e das representações 8 teriormente. Os estudos desenvolvidos levaram a uma reconstituição com base na descrição de como deveria ser a vila segundo o alvará régio de 1762. Quanto aos demais povoados, surgidos a partir de fazendas de gado, ob- servou-se que, de modo geral, todos apresentam as mesmas características: Núcleo central formado por uma igreja e uma grande praça; Forma linear do núcleo central, apresentando certa regularidade; Eixo central geralmente balizado por edifícios de destaque, na sua mai- oria, igrejas e capelas; As feiras sempre se desenvolvem na praça ou rua principal, em frente à igreja; Quando extrapolam o núcleo central, as ruas apresentam um crescimento espontâneo, resultando em formas orgânicas, cheias de pequenos pá- tios, vielas, becos e ruas de serviço; As ruas mais importantes dos povoados se originam, quase sempre, de antigos caminhos ligando sedes de fazendas ou sítios; Os povoados, quando às margens de rios, acompanham suas formas e, até o final do século XIX, só se desenvolvem de um lado destes rios; As quadras são formadas por lotes geminados, estreitos e de grande comprimento, possuindo sempre um quintal extenso onde às vezes, se criam hortaliças,árvores de porte e pequenos animais; As casas livres em seus terrenos, quase sempre são sedes de sítios que acabaram por ser incorporados ao tecido urbano e encontram-se no li- mite do que pode-se chamar de atuais núcleos históricos desses povo- ados, hoje cidades. O uso da Sintaxe Espacial (HILLIER & HANSON, 1984) mostrou mapas axiais com estruturas similares entre Bezerros e Caruaru e muito diversas entre esses dois núcleos e Cimbres. A utilização do programa Wizzy Axman (UAS- UCL) para a análise sintática de Bezerros, mostrou um tecido urbano pouco inteligível e com baixos índices de integração, numa configuração espacial complexa e mais afeita a um urbanismo orgânico (KARIMI, 1997), onde predomina uma clara adaptação às características topográficas locais, com um processo de crescimento lógico e pragmático, característico do urbanis- mo português dos séculos XII e XIII (CARVALHO, 1989). 3.2. Orgânicoxregular: situações sociais diversas, formas diversas Uma das mais interessantes constatações da pesquisa, foi a constatação da fi- liação de 17 dos 18 núcleos urbanos, em particular Bezerros e Caruaru, a um tipo de urbanismo onde ... a construção [das cidades] é menos controlada centralmente e deixada aos cuidados dos vários promotores e interesses pri- vados, gerando um tecido menos regular do ponto de vista de uma ordem aparente, geométrica... (TEIXEIRA & VALLA, 1998). Ao contrário do que se supunha, que a ocupação urbana no Brasil, em especial, no século XVIII, obe- deceria um plano regulador vindo da metrópole, foi a constatação de que, esse X Encontro Nacional da Anpur | ST5, 1 | Cidade, planejamento e gestão urbana: história das idéias, das práticas e das representações 9 mecanismo de regulação só foi usado, no caso do Nordeste e, especificamente em Pernambuco, no caso único de Cimbres, como elemento de força e de controle da população através da forma das cidades, atrelada a um corpo ad- ministrativo indissociável daquela forma de fazer e gerir o núcleo urbano. Ou seja: a forma urbana regular foi índice de perturbação social, ao passo que a aparente desordem de núcleos como Caruaru, Bezerros, Brejo da Madre de Deus, Bonito, etc., deixavam transparecer uma sociedade que se desenvolvia, obviamente sob os caprichos de um grande fazendeiro, mas destituída de con- flitos que perturbassem a ordem no nível da colônia. Os núcleos surgidos de sedes de fazendas de gado obedeceram leis de formação onde a agregação de novas células a percursos-matrizes definidos por uma lógica de necessidade, vinham a constituir uma tessitura ordenada vagarosamente ao longo do tempo, tanto que essas leis de formação aden- traram até as primeiras décadas do século XX, dando a conformação final e mais conhecidas das cidades do Agreste. Não houve, mesmo depois da organi- zação dos municípios, no século XIX, a necessidade de se obstar tal procedi- mento: as cidades iam crescendo, a partir dos caminhos, depois iam absor- vendo pequenos sítios que se tornavam seus limites e, só na segunda metade do século XX, vão surgir as rodovias e os conjuntos habitacionais que as des- caracterizaram quase que por completo. Cimbres, criada sob a égide pombalina (1750-1777), surge aproveitan- do a estrutura da missão dos Padres Oratorianos no alto da Serra do Ororubá como forma do governo português controlar os índios, após a saída dos reli- giosos. Sua função, eminentemente administrativa e resultante de uma ne- cessidade premente de imposição da ordem, vai desconsiderar as leis eco- nômico-sociais que estavam gerando os demais núcleos urbanos da região, localizando-os em pontos estratégicos para as rotas das boiadas e garantindo um mínimo de condições para o seu desenvolvimento futuro. Tal como aconteceu com vilas como Oeiras e Parnaíba (PI), Aracati e Sobral (CE), Vila Flor e Estremoz (RN), Cimbres foi criada para conter ou evitar conflitos, sua forma regular, como as daquelas, era índice de ordem, de respeito e de con- trole social. Onde houvesse mais conflitos, onde a sociedade estivesse em convulsão elas surgiriam para mostrar o poder da metrópole. Passado o con- flito, extinta a necessidade primordial de suas existências, quase todas essas vilas regulares tenderam ao declínio e à quase ruína; prova de que o pla- nejamento territorial não foi capaz de levar em considerações certas sutile- zas sociais que resultaram no relativo sucesso dos povoadas desordenados plantados à beira das estradas das boiadas, crescendo como pasto diante dos olhos complacentes dos seus mandantes. 4. Considerações finais Os dados obtidos até agora têm apontado, pelo menos no que tange ao Agreste, à permanência de certas práticas urbanísticas tidas como vernacu- lares (TEIXEIRA & VALLA, 1998) e comuns em Portugal desde a Idade Média e, ao mesmo tempo, demonstram que o ordenamento urbano foi meramente X Encontro Nacional da Anpur | ST5, 1 | Cidade, planejamento e gestão urbana: história das idéias, das práticas e das representações 10 uma exceção à regra, ao longo do século XVIII. Pode-se mesmo considerar que, até o momento não foi encontrada qualquer evidência de uma ocupação urbana planejada para o território do Agreste e, muito menos de um orde- namento formal para os núcleos urbanos lá surgidos. Observou-se também que, não houve interesse dos sesmeiros em urbani- zar suas terras: o surgimento dos núcleos urbanos nas sedes das fazendas, geralmente ocorridos décadas depois da ocupação inicial, se prende a leis ur- banas e sócio-econômicas muito maiores do que a vontade dos proprietários. As leis de formação de cidades naquela região se prendiam às condições geo- gráficas, topográficas e hidrográficas da região, gerando um urbanismo prag- mático e mesologicamente responsável se é que se pode usar este termo. Infelizmente, por serem cidades pobres, inseridas em um contexto abso- lutamente diferente das cidades históricas mineiras, as cidades mais antigas do Agreste vão sofrer um processo irreparável de perda de suas características originais, já iniciado a partir da descaracterização arquitetônica e que, fatal- mente será seguida pela descaracterização da forma urbana, até que se perca, completamente a possibilidade de se definir suas formas originais e seu ge- noma urbanístico. Bibliografia AMORIM, Luiz Manuel do Eirado, LOUREIRO, Claudia. O mascate, o bispo, o juiz e os outros: sobre a gênese morfológica do Recife. In: Revista Brasileira de estudos Urbanos e Regionais, Recife, nº 3 p.19-38, ANPUR, nov. 2000. ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste. São Paulo, Editora Brasiliense, 1973. 251p. _________________________. Formação histórica da rede urbana do Nordeste. 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Desenho do autor Figura 4 a) A provável configuraçãode Cimbres (1762), caso a vila tivesse se desenvolvido segundo as instruções do alvará régio de 26 de março de 1762 e b) Planta de Parnaíba (PI, 1761), elaborada em 1798. Desenho do autor
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