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1 Universidade Federal do Rio de Janeiro REFERENCIAÇÃO EM ATIVIDADES DE LEITURA COM CRÔNICAS: UMA ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS Fabiana da Costa Gonçalo Faculdade de Letras/ UFRJ 2013 2 REFERENCIAÇÃO EM ATIVIDADES DE LEITURA COM CRÔNICAS: UMA ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS Fabiana da Costa Gonçalo Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Língua Portuguesa). Orientador: Profa. Doutora Leonor Werneck dos Santos Rio de Janeiro Fevereiro de 2013 3 Referenciação em atividades de leitura com crônicas: uma análise dos livros didáticos de português Fabiana da Costa Gonçalo Orientadora: Professora Doutora Leonor Werneck dos Santos Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas. Examinada por: _________________________________________________ - Orientadora Presidente, Profa. Doutora Leonor Werneck dos Santos - UFRJ _________________________________________________ Profa. Dra. Cláudia de Souza Teixeira - IFRJ _________________________________________________ Profa. Dra. Eliete Figueira Batista da Silveira - UFRJ _________________________________________________ - Suplente Profa. Dra. Rosa Cuba Riche – CAp UERJ _________________________________________________ - Suplente Profa. Dra. Regina Souza Gomes - UFRJ Rio de Janeiro Fevereiro de 2013 4 Gonçalo, Fabiana da Costa. Referenciação em Atividades de Leitura com Crônicas: Uma Análise dos Livros Didáticos de Português/ Fabiana da Costa Gonçalo. Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2013. x, 127f.: il. Orientadora: Professora Doutora Leonor Werneck dos Santos Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós- Graduação em Letras Vernáculas, 2013. Referências Bibliográficas: f. 98-103. 1. Referenciação. 2. Linguística Textual. I. Santos, Leonor Werneck dos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós- Graduação em Letras Vernáculas. III. Referenciação em Atividades de Leitura com Crônicas: Uma Análise dos Livros Didáticos de Português. 5 SINOPSE Análise da referenciação em atividades de leitura com crônicas nos livros didáticos. 6 RESUMO REFERENCIAÇÃO EM ATIVIDADES DE LEITURA COM CRÔNICAS: UMA ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS Fabiana da Costa Gonçalo Orientadora: Professora Doutora Leonor Werneck dos Santos Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas. Este trabalho insere-se nos estudos atuais da Linguística do Texto, reunindo dois temas de suma importância nessa área: referenciação e leitura. Nosso objetivo principal é investigar a existência de atividades de leitura e interpretação que abordem o funcionamento de processos referenciais em crônicas presentes em 14 coleções de livros didáticos do segundo segmento do Ensino Fundamental aprovadas pelo Programa Nacional do Livro Didático de 2011. Para atingir esse objetivo, buscamos observar, principalmente, se são e como são tratadas as estratégias referenciais nessas atividades. Como hipóteses iniciais, acreditamos que os livros didáticos costumam priorizar a abordagem de recursos referenciais em exercícios de ordem gramatical, utilizando a crônica como pretexto, e que os exercícios sobre referenciação são de localização de referentes, sem possibilitar uma leitura mais amadurecida e crítica desses textos. Este trabalho mostra-se relevante ao pretender demonstrar que, com o auxílio da referenciação, os alunos possam ler e interpretar, refletindo sobre as possibilidades de escolha que a língua oferece para a construção de sentidos dos textos. Assim, a compreensão de um texto também depende do domínio da referenciação: por meio das estratégias referenciais empregadas, o aluno pode identificar as intenções comunicativas dos textos, indo além do que está na superfície textual, o que evidencia uma leitura mais aprofundada. Palavras-chave: referenciação; leitura; crônicas; livro didático; intencionalidade. 7 ABSTRACT REFERENCIATION IN READING ACTIVITIES WITH CHRONICLES: AN ANALYSIS OF PORTUGUESE LANGUAGE TEXTBOOKS Fabiana da Costa Gonçalo Guideline: Leonor Werneck dos Santos Abstract of the Master’s dissertation submitted to Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, as part of requirements for obtaining the title of Master in Vernacular Letters (Portuguese Language). This work is part of the current studies of Textual Linguistics, bringing together two issues of paramount importance in this area: referenciation and reading. Our main objective is to investigate the existence of reading and interpretation activities that address the referenciation processes in chronicles present at 14 collections of textbooks in the second segment of Elementary Education approved by PNLD 2011. To achieve this goal, we seek to observe especially if and how referenciation strategies are treated in these activities. As initial hypotheses, we believe that textbooks tend to prioritize the use of referenciation resources in grammatical exercises, using the chronicles as a pretext, and on exercises about the location of referents without allowing a more mature and critique reading of these texts. This study is relevant to show that, with the help of referenciation, students can read and interpret, reflecting on the choice that the language provides for the construction of texts meaning. Thus, the understanding of a text also depends on the referenciation: through referenciation strategies employed, the student can identify the communicative intentions of the texts, going beyond what is on the textual surface, which shows a further depth reading. Keywords: referenciation; reading; chronicles; textbook; intentionality. 8 Aos meus avós, Euza e Joaquim. 9 AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus por ter me dado mais essa oportunidadee por ter me mantido forte durante toda a caminhada. Agradeço aos meus avós e a minha mãe, que sempre estão ao meu lado e me apoiam incondicionalmente em tudo o que eu faço. São os meus amores, minha família. Devo tudo a eles. Obrigada por todos esses anos de amor e de dedicação infinitos. Agradeço ao meu pai e ao meu irmão por torcerem tanto por mim e por estarem sempre presentes na minha vida, mesmo que não tenhamos um contato diário. Agradeço ao Israel, pelo companheirismo, pela paciência e por sempre me animar quando o desespero inevitável aparecia. Obrigada por ser tão carinhoso e tão cuidadoso comigo desde sempre. Você nem imagina o quanto tem me ajudado. Agradeço aos meus amigos, que me ouviram, me aconselharam e me deram momentos de descontração para aliviar as preocupações com a dissertação. Agradeço a minha orientadora, professora Leonor Werneck dos Santos. Tenho aprendido muito com você e me sinto muito orgulhosa por ser uma das suas “meninas”. Agradeço ao CNPq, por ter financiado esta pesquisa, o que foi indispensável. Agradeço às editoras e, em especial, ao Welington, que forneceram os livros didáticos analisados nesta pesquisa. Agradeço a todos os professores que tive ao longo da minha vida e que contribuíram para eu ser a professora que sou hoje. Agradeço aos meus alunos, que dão sentido a isso tudo. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................... 11 1. A LINGUÍSTICA DO TEXTO..................................................................... 16 1.1 O texto como processo.............................................................................. 16 1.2 Estrutura argumentativa e estratégias textuais- discursivas........................................................................................................... 20 2. REFERENCIAÇÃO E CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS....................... 25 2.1 Uma atividade discursiva........................................................................... 25 2.2 Os processos referenciais atrelados à menção........................................... 31 3. LEITURA E ENSINO.................................................................................... 41 3.1 As concepções de leitura............................................................................ 41 3.2 A leitura e a interpretação nas aulas de língua portuguesa........................ 43 3.3 A leitura e a interpretação nos LDP........................................................... 47 3.4 Aprofundando: a leitura e a interpretação associadas à Referenciação........ 50 4. ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS............................................................ 54 4.1 Metodologia................................................................................................... 54 4.2 Visão geral da referenciação nas atividades com crônicas dos LDP ............. 58 4.3 Análise dos exercícios..................................................................................... 59 4.3.1 Repetição............................................................................................... 59 4.3.1.1 A repetição como um problema para o texto............................ 59 4.3.1.2 A repetição e seus efeitos de sentido nos textos........................ 61 4.3.2 Identificação de referentes.................................................................... 65 4.3.2.1 Sem interpretação...................................................................... 65 4.3.2.2 Com interpretação...................................................................... 69 4.4 Aprofundando a discussão............................................................................. 82 5. SUGESTÕES DE ATIVIDADES...................................................................... 87 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 95 R EFERÊNCIAS..................................................................................................... 98 ANEXOS................................................................................................................. 104 11 INTRODUÇÃO Seguindo uma concepção sociocognitiva e interacional de linguagem, esta pesquisa insere-se nos estudos atuais da Linguística do Texto sobre referenciação, pretendendo contribuir para o ensino de leitura e compreensão textual nas aulas de língua portuguesa. Nessa perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo primordial investigar a existência de atividades de leitura e interpretação que abordem o funcionamento de processos referenciais com textos pertencentes ao gênero crônica, em 14 coleções de livros didáticos do segundo segmento do ensino fundamental (6º a 9º anos), aprovadas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2011. A motivação para esse trabalho nasceu do interesse em estudar a referenciação, processo relevante para a construção textual. A compreensão de um texto depende, dentre outros fatores, do domínio das estratégias coesivas que permitem retomar informações já mencionadas ou inferíveis no contexto e que fazem perceber as transformações pelas quais passam os referentes ao longo do texto, de acordo com os propósitos comunicativos do produtor textual. Nesse sentido, a referenciação é um importante processo cognitivo de organização estrutural para a progressão temática do texto, com a construção, manutenção, recuperação e transformação de referentes, contribuindo, assim, para a compreensão. Apesar de já haver um tratamento textual nos estudos de língua, decorrente, em parte, das diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998), a referenciação ainda é abordada superficialmente, por ser um conceito relativamente recente e, por conta disso, confundido com o conceito tradicional de coesão referencial. Devemos salientar, então, que a opção por usar o termo referenciação em vez de coesão referencial decorre de este dizer respeito apenas à recuperação de elementos linguísticos presentes na superfície textual, enquanto aquele indica um processo mais amplo e interativo de escolhas, envolvendo fatores extralinguísticos, tais como cultura, conhecimento de mundo, situação comunicativa entre os interlocutores, dentre outros. Por isso, assim como Koch (2002, 2004) e Cavalcante (2011), adotamos a concepção não representacional de referência, entendendo-a dentro de uma perspectiva discursiva e colaborativa entre os parceiros da enunciação, tratando a linguagem de modo flexível e instável, e não como etiquetas prontas para serem distribuídas. Conforme já mencionado em pesquisas anteriores (cf. TUPPER; GONÇALO; CORTES, 2009) em que se observou a importância da referenciação no ensino, apesar de a 12 Linguística do Texto conceber o texto como o “lugar de interação”, o ensino de língua portuguesa continua priorizando a correção gramatical, em detrimento do estudo do texto, em especial dos mecanismos de referenciação. As estratégias referenciais, que deveriam ser utilizadas como um meio essencial de depreender o sentido, não têm sido contempladas satisfatoriamente, principalmente no ensino fundamental, em que, salvo raras exceções, nem são abordadas, deixando o “problema” para ser resolvido no ensino médio. Ainda em relação à abordagem textual realizada pela tradição escolar, percebemos que a leitura e a interpretação servem muitas vezes como pretexto para que o professor possa introduzir algum assunto ligado a questões gramaticais, como ortografiae funções sintáticas (cf. SANTOS, 2005). Como consequência dessas atividades, os alunos não sentem interesse nem prazer pela leitura, não vendo função em uma prática que serve a fins puramente didáticos. Dentro desse painel, conforme afirma Marcuschi (2008, p. 52), o problema do ensino não é a ausência do trabalho através de textos, mas a inadequação com que esse trabalho é realizado, com uma potencialidade restrita de exploração do tratamento linguístico. Diante disso, verificamos que o texto deve ser tomado como unidade de ensino de língua portuguesa. É preciso, principalmente, que se assuma uma concepção interacional (dialógica) da língua, considerando a relação que há entre autor, texto e leitor. Lembrando a noção de texto de Marcuschi (2008) – “evento comunicativo para o qual convergem ações linguísticas, cognitivas e sociais” -, podemos associar os recursos linguísticos aos sentidos que se pretende construir, o que torna mais dinâmico e produtivo o estudo da gramática no texto, principalmente no âmbito referencial, e a intencionalidade tem relação estreita com a argumentatividade. Partindo do princípio de que a argumentatividade faz parte da língua, é essencial que consideremos a orientação argumentativa existente nas estratégias referenciais. A seleção de um recurso referencial revela uma rede de implícitos, já que não existe escolha neutra. É importante destacarmos, porém, que consideramos a argumentação como atividade inerente às práticas sociais e discursivas, e não como um modo de organização do discurso, assim como o são a narração, a descrição, a exposição e a injunção. Assim, unindo o estudo da referenciação ao ensino de leitura, escolhemos como corpus para esta pesquisa as propostas de atividades relacionadas ao gênero textual crônica nos livros didáticos de português (LDP). As crônicas são textos curtos, normalmente considerados fáceis de ler, bastante contemplados e recorrentes nos LDP, que possibilitam a abordagem de diversos aspectos relevantes para o ensino de língua portuguesa, como, por 13 exemplo, pontos de vista, humor, conhecimento de mundo dos alunos, dentre outros (cf. FERREIRA, 2008). É um gênero que se origina no jornalismo, mas que, com o tempo, vai deixando de se preocupar com a informação propriamente dita para dar espaço ao literário e, muitas vezes, acaba trazendo uma reflexão crítica ao leitor. Por ser um gênero que se relaciona aos fatos do cotidiano, mostra o funcionamento da língua em situações próximas da vida diária dos alunos, provocando-lhes uma avaliação crítica do discurso dos cronistas e de como estes podem intervir na formulação de opiniões, na transmissão ou ruptura de ideologias etc (ibidem). Com relação à quantidade de crônicas que compõem nossa análise, temos um total de 39, sendo que sete delas também foram usadas para ilustrar os processos referenciais no Capítulo 2. Devemos ressaltar que não é nossa preocupação, neste momento, fazer um estudo sobre a crônica como gênero textual, mesmo que tenhamos que fazer algumas considerações a respeito do gênero ao longo do trabalho. Optamos por analisar as atividades com referenciação baseadas em crônicas que estão inseridas nos LDP, pelo fato de que esses livros são um material importante no trabalho docente, servindo como um guia e suporte teórico para os professores, bem como fonte de estudo para os alunos. Contudo, nem sempre tais compêndios mostram-se eficazes no tratamento linguístico, principalmente por legitimar um ensino de língua portuguesa preso a regras do “falar e escrever corretamente” (cf. SANTOS, 2005, 2009). Sabemos que há muitas pesquisas sobre o fenômeno da referenciação, porém ainda são poucos os estudos que o associem às atividades de leitura e interpretação. Além disso, com relação à argumentatividade das estratégias referenciais, é comum esse estudo em textos predominantemente argumentativos, como os artigos de opinião, editoriais, textos publicitários etc. Assim, para a presente pesquisa com atividades de LDP, inicialmente, fizemos os seguintes questionamentos: (1) Os recursos coesivos referenciais são explorados especificamente nas atividades de leitura e interpretação com as crônicas?; (2) Como os exercícios abordam os recursos referenciais nesses textos? No intuito de responder a essas indagações, levantamos as seguintes hipóteses: • Os LDP não costumam priorizar a abordagem de recursos referenciais nas atividades com leitura e interpretação de textos, mas nos exercícios de ordem gramatical, utilizando a crônica como pretexto; 14 • Em geral, os exercícios sobre referenciação, nos LDP, são de localização de referentes, sem provocar uma leitura mais aprofundada e crítica das crônicas. Então, buscaremos observar, principalmente, se são e como são tratadas as estratégias referenciais em atividades de leitura e interpretação de crônicas presentes nos LDP. Também pretendemos sugerir algumas atividades, de elaboração própria, visando a contribuir para que os professores tenham um suporte para tornar suas aulas de leitura e interpretação mais produtivas, conseguindo despertar um maior interesse dos alunos. Assim, pretendemos, ainda, contribuir para os estudos no campo da referenciação, incentivando novas pesquisas nessa área, e também contribuir para um trabalho com mais qualidade em sala de aula, visto que, atualmente, o ensino de língua materna tende a ter por foco os processos de leitura e produção textual, seguindo os PCN. Tendo em vista nossos objetivos, adotamos como alicerce teórico: a) estudos sobre a referenciação, citando os trabalhos de Mondada, Apothéloz, Koch, Marcuschi, Marquesi e Cavalcante; b) discussões em torno da argumentatividade, representados por Ducrot, Charaudeau, Cortez, Pires e Giacomelli e Bakhtin; e c) estudos sobre a leitura, nas pesquisas de Kleiman, Geraldi, Marcuschi, Travaglia e Koch. De modo a organizar melhor esse arcabouço teórico, em termos de uma ordem coerente, estruturamos esta dissertação em seis capítulos. No primeiro, faremos um panorama geral da Linguística do Texto, mostrando como o conceito de texto foi se modificando ao longo das décadas até chegar à visão sociocognitiva e interacional que temos hoje. Nesse capítulo, também nos dedicaremos a refletir sobre o fato de que a linguagem é caracterizada pela argumentatividade, pois todos nós somos sujeitos com determinadas intenções para atingir nossos interlocutores. O segundo capítulo dedica-se à abordagem da referenciação, partindo, brevemente, dos seus estudos iniciais, que defendiam uma estabilidade entre o nome e seu referente no mundo, até chegar à atual concepção, de uma atividade que se constrói no discurso e que é construída pelo discurso. Além disso, nesse capítulo, ainda destacaremos que o uso de expressões nominais é uma estratégia referencial com alto teor argumentativo. Já o terceiro capítulo focará as questões ligadas ao ensino de leitura, tanto em relação às aulas de língua portuguesa, quanto em relação aos livros didáticos dessa disciplina. Adicionalmente, associaremos a leitura ao fenômeno da referenciação, considerando a 15 importância da produção dos sentidos por meio da construção de referentes numa interação constante com o texto. O quarto capítulo será iniciado com a apresentação da metodologia e, posteriormente, começaremos a análise dos cinquenta e seis livros didáticos, correspondentes a quatorze coleções, com o intuito de verificar se e como o processo referencial é abordado nas atividades de leitura e interpretação com crônicas. O modo como encaminhamos nossa análise é qualitativo, mas também quantificaremos as ocorrências para verificar o número de exercícios encontrados e as categorias de exercícios que são mais empregadas nas coleções. No quinto capítulo,apresentaremos algumas propostas de atividades de leitura com o uso de estratégias referenciais, buscando servir de subsídio para o trabalho docente em sala de aula. Por fim, o sexto capítulo trará as últimas considerações a serem feitas sobre nossa pesquisa, verificando a pertinência das hipóteses e objetivos postulados. Sendo assim, este trabalho mostra-se relevante ao pretender que, com o auxílio da referenciação, os alunos possam ler e interpretar, refletindo sobre as possibilidades de escolha que a língua oferece para que determinados sentidos sejam atendidos. 16 1. A LINGUÍSTICA DO TEXTO 1.1 - O texto como processo Na década de 60, na Europa, surgiu a Linguística do Texto (LT), estabelecendo o texto como a principal fonte de investigação dos fatos linguísticos, no lugar do então estudo da palavra isolada e da frase descontextualizada. Até a primeira metade da década de 70, a preocupação básica era em relação aos mecanismos interfrásticos, ou seja, componentes do sistema gramatical, como correferência, pronominalização, artigo, ordem das palavras, dentre outros usos que garantiam o estatuto de texto, visto como um produto. O objeto de estudo principal era, então, a coesão, o que fez com que surgissem diversas gramáticas do texto. A partir da segunda metade da década de 70, predominou, na LT, a perspectiva pragmática (“virada pragmática”), defendendo o texto como a unidade básica de interação humana, considerado no processo mesmo de sua constituição, e não mais um produto acabado; por isso, os elementos que revelam as intenções dos falantes deveriam ser levados em conta. Nesse momento, a língua deixa de ser encarada como um sistema autônomo e passa a funcionar dentro das situações reais de comunicação de uma sociedade. São dessa época as teorias dos Atos de Fala e da Atividade Verbal (cf. KOCH, 2004). Na década de 80, o texto passa a ser visto como o resultado de processos cognitivos (“virada cognitivista”), e a LT foi buscar explicações para as inferências por meio das representações mentais. Nessa época, postula-se que se devem levar em conta os saberes armazenados na memória dos parceiros da comunicação para explicar as operações responsáveis pela forma como os textos são criados e utilizados. Esses saberes são de três tipos: (i) linguísticos – noções gramaticais e lexicais; (ii) enciclopédicos – conhecimentos gerais sobre o mundo e conhecimentos retirados de vivências pessoais e de eventos marcados no espaço e no tempo; e (iii) sociointeracionais – conhecimentos que permitem reconhecer os propósitos ou objetivos pretendidos pelo produtor de um texto, bem como tipos de atos de fala, normas comunicativas gerais, tipos de ações linguísticas, gêneros e tipos textuais (cf. KOCH e ELIAS, 2006). A partir de 1980, discute-se, também, a dicotomia entre texto e discurso. Muitos linguistas assumem uma perspectiva textual-discursiva, por considerarem que o texto não deve ser visto simplesmente como uma superfície material que conduz ao discurso, mas como 17 indissociável dele e definido pelo uso (cf. KOCH, 2002, 2004; MARCUSCHI, 2008; CIULLA E SILVA, 2008). A concepção atual da LT foi estabelecida a partir da década de 90 (“virada discursiva”), baseando-se na perspectiva de Bakhtin (GOMES-SANTOS et al., 2010). O texto começou a receber um tratamento de ordem sociocognitiva-interacional, pois não podia ser entendido apenas como resultado de processos cognitivos. Segundo Koch (2004, p. 29-30), fundamenta-se, nessa época, a ideia de que as operações não ocorrem apenas na mente do indivíduo, mas são o resultado da interação de várias ações conjuntas praticadas por ele, sendo, portanto, resultado de processos cognitivos e interacionais. Dessa forma, a partir da concepção de base sociocognitiva-interacional, o texto passa a ser entendido como “lugar de interação entre atores sociais e de construção interacional de sentidos” (KOCH, 2004, p. XII). Dentro dessa perspectiva, a LT trouxe uma mudança para o estudo do texto, considerando a interação humana pela linguagem (autor-texto-leitor), em que há uma co- construção de sentidos. O processamento do texto acontece on-line e há um abandono da concepção do texto como um resultado pronto e acabado, em uma relação de hierarquia autor- leitor (cf. GOMES-SANTOS et al., 2010). Além disso, o contexto –, considerado por Van Dijk (1997) como o conjunto de todas as propriedades da situação social que são sistematicamente relevantes para a produção, compreensão ou funcionamento do discurso e de suas estruturas –, passa a ser associado ao texto. De acordo com essa nova abordagem, não devemos colecionar informações isoladas, mas relacioná-las e tirar conclusões a respeito delas (PAULIUKONIS, 2007, p.242), isto é, no lugar de somente entender qual o assunto de um texto, analisar as operações que a língua oferece para estabelecer como e por qual motivo aquilo que se diz é dito. De acordo com Koch (2002, p.19): O processamento textual, quer em termos de produção, quer de compreensão, depende, essencialmente, de uma interação (“inter-ação”) – ainda que latente – entre produtor e interpretador. Esta atividade compreende, da parte do produtor do texto, um projeto de dizer; e da parte do interpretador (leitor/ouvinte), uma participação ativa na construção do sentido, por meio da mobilização do contexto, a partir das pistas e sinalizações que o texto lhe oferece. Produtor e interpretador do texto são, portanto, estrategistas, na medida em que, ao jogarem o jogo da linguagem, mobilizam uma série de estratégias – de ordem sociocognitiva, interacional e textual – com vistas à produção do sentido. Nesse tratamento sociointeracional, o texto é um tecido formado de fios que, juntos, formam uma unidade de sentido que transmite alguma informação num dado contexto, e não 18 uma série de frases fragmentadas. Conforme Costa Val (2006, p. 3), o texto é uma “unidade linguística comunicativa básica, já que o que as pessoas têm para dizer umas às outras não são palavras nem frases isoladas”. Assim, a interação faz parte de toda atividade linguística, verbal e não verbal, e funciona sob uma série de regras entre os interlocutores: na interação verbal, os participantes envolvidos buscam atingir determinados objetivos de acordo com um jogo de negociações. Para Fávero, Andrade e Aquino (2011, p.16), toda comunicação interpessoal é uma relação dialógica em que os parceiros adaptam, a todo o momento, seus diálogos às necessidades do outro. Sabendo que o texto é a linguagem colocada em uso, produzimos diversos textos no nosso dia a dia para expressar as intenções e finalidades de nossos atos comunicativos. Tudo dependerá de nossa escolha para um momento específico, do propósito comunicativo, para suprir uma determinada necessidade nossa: pode ser um bilhete, uma carta, um e-mail, um requerimento, uma lista de compras etc. Além de produzi-los, consumimos, porque somos expostos a uma série de textos com formatos diferentes, com os quais temos que lidar durante nossa vida: bula de remédio, notícia de jornal, manual de instrução, piada, charge, história em quadrinhos, receita, dentre muitos outros que também existem para atender aos nossos propósitos. Cada um desses textos cumpre uma finalidade social determinada e exige do leitor várias habilidades para ser compreendido. Desse modo, a leitura e a interpretação textuais são processos para reconstruir sentidos, o que faz lembrar o Princípio de Interpretabilidade, de Charolles (1983, p. 189), que postula que, quando apelamos para analisar os elementos contextuais, principalmente os de natureza sociocognitiva e interacional, já estamos entrando no campo da coerência. Isso quer dizer que a coerência está presente no próprio leitor, que interage com o autor ecom o texto, seguindo as pistas dadas e baseando-se nos conhecimentos de sua “bagagem cultural”, o que significa que as incoerências são apenas aparentes, pois podem se desfazer na interação. Desse modo, a coerência é “a unidade semântica do texto num contexto determinado que toma corpo em sequências de enunciados” (GUIMARÃES, 2009, p.16), tendo uma função de natureza cognitiva, comunicativa e de interação, e não só semântica e lógica. Ressaltamos, porém, que há casos em que é justamente a ausência de coerência que dá o sentido ao texto, atendendo a efeitos humorísticos, como é comum em piadas, charges e tirinhas. Essa exceção é possível, pois trabalhamos com a concepção pragmática da coerência, em que o comportamento automático e inconsciente do leitor é regido por princípios, fazendo 19 com que a coerência não se limite mais a marcas textuais, mas a processos mentais existentes entre enunciador e enunciatário. O mesmo ocorre com as inferências, interpretações que misturam o que é dito explicitamente com algo além desse dito. Diante disso, percebemos que os sentidos emergem e são criados exclusivamente no discurso, fazendo com que a coerência também dependa da interação com o leitor. O produtor do discurso sabe da existência do interlocutor e conta com ele para se fazer entender, podendo inclusive omitir certas informações que ele sabe que serão recuperadas, seguindo a um Princípio de Economia. Por outro lado, o receptor supõe que o discurso seja coerente e se esforça ao máximo para compreendê-lo. Dessa forma, há um acordo tácito de cooperação entre os participantes da interação que permite que a comunicação se efetue com sucesso. Para Costa Val (2006, p. 12), “essa cumplicidade do receptor para com o texto é que possibilita que a produção não seja tarefa excessivamente difícil e tensa e, assim, viabiliza o jogo comunicativo” [grifo da autora]. Como sinalizam Santos, Cuba Riche e Teixeira (2012, p. 16), um texto pode ser coerente para um leitor e incoerente para outro, a depender das experiências de cada um. Algumas pessoas têm mais facilidade em compreender determinados textos do que outras. É mais fácil ler e interpretar quando se tem um contato mais frequente, quando aquilo faz parte da experiência de mundo do indivíduo, pois ele já possui os conhecimentos prévios necessários. Como por exemplo, uma dona de casa pode compreender uma receita mais facilmente do que uma ata de reunião. Portanto, atualmente, para a LT, o texto é uma unidade de análise considerada um processo, uma “realidade incompleta, inacabada, sendo concretamente atualizada não só no momento de sua produção, mas, principalmente, no momento de sua recepção” (BENTES; RAMOS; ALVES FILHO, 2010, p.392). Para Marcuschi (2008), os três grandes pilares da textualidade são o produtor/autor, o leitor/receptor e o próprio texto, que é visto como um evento. O texto é uma unidade sintático-semântico-pragmática e é preciso estudá-lo em conjunto com as outras áreas, pois ele não tem sentido por si mesmo, só na interação. Em especial, percebemos que a LT está intimamente relacionada à pragmática, pois aborda o funcionamento do texto como atuação informacional e comunicativa, ressaltando o uso que o indivíduo faz da língua. 20 De acordo com Cavalcante et al. (2010), a LT tem assumido abertamente a necessidade de dialogar com diversas outras ciências, tais como a Filosofia da Linguagem, a Neuropsicologia e a Literatura, sendo uma “ciência integrativa” (KOCH, 2002, p.157). Conforme apontado por Koch e Marcuschi (1998), esse intercâmbio ocorre pelo fato de a LT não conceber a língua como autônoma sob nenhum aspecto, fazendo com que adquira um caráter multidisciplinar, dinâmico, funcional e processual. Sendo assim, segundo o autor, se o texto é considerado uma entidade complexa, torna-se necessário um olhar multidisciplinar para o entendimento dos fenômenos textuais. 1.2 - Estrutura argumentativa e estratégias textuais-discursivas Diante dos nossos interesses nesta pesquisa, é importante ressaltar algumas noções principais sobre a argumentação. Começamos, então, por duas importantes correntes teóricas: a Teoria Semiolinguística do Discurso, de Charaudeau, e a Teoria da Argumentação na Língua, de Ducrot. Essas duas teorias apresentam pontos de divergência, mas também trazem aspectos comuns, como o fato de ambas privilegiarem a argumentação como objeto de estudo e de terem se originado nas teorias da enunciação, partindo do princípio de que não é possível estudar a língua em uso sem levar em conta o sentido, apreendendo-o pela perspectiva enunciativa (BARBISAN et al., 2010). De acordo com a Teoria Semiolinguística do Discurso, o discurso é visto como um “jogo comunicativo” entre a sociedade e suas produções linguageiras. Essa teoria preocupa-se em analisar o significado textual em função do projeto de influência e da ação persuasiva do sujeito enunciador sobre o sujeito receptor/ destinatário em determinado contexto e em uma situação de interação. Charaudeau (1983) afirma que argumentar é uma das funções da língua, assim como narrar e descrever também o são. Para a Teoria da Argumentação na Língua, há a concepção de que a própria língua é argumentativa, ou seja, a argumentação é a função primordial da linguagem, e não a informação, pois sempre se fala com a intenção de causar algum efeito no interlocutor, como também assinala Koch (2011 [1983]). Ducrot (1983) desconsidera a objetividade na constituição do sentido, mantendo a subjetividade e a intersubjetividade. Assim, o autor importa-se com a argumentação apenas na microestrutura (enunciados, construções sintáticas, articuladores argumentativos e léxico), com uma teoria que propõe a construção do sentido pela interdependência entre dois segmentos que se encadeiam (teoria dos blocos semânticos). 21 Ao diferenciar essas duas teorias, Barbisan et al. (2010, p. 219) explicam: Para Charaudeau, a argumentação é uma atividade complexa que parte de um sujeito argumentante cuja experiência permite expressar uma convicção e uma explicação e transmiti-la ao interlocutor, dirigindo-se à sua faculdade de raciocínio, com a finalidade de persuadi-lo a mudar seu comportamento. Já para Ducrot, a língua mesma é argumentativa, é da sua essência a argumentação. Considerando-se que o sentido do enunciado é a representação de sua enunciação e que, pela enunciação, o locutor, por intermédio da relação que estabelece com outros discursos, manifesta seu ponto de vista sobre a realidade, recriando-a, não há possibilidade de neutralidade e, em vista disso, todo uso da língua é argumentativo, independentemente de seu modo de organização. Conforme os postulados de Charaudeau (2010, p. 58-59), a argumentação é uma busca por racionalidade – ideal de verdade – e uma busca de influência do eu sobre o tu, que tende a um ideal de persuasão para que o outro compartilhe as suas ideias. Dentro desse aspecto, há o estudo de conceitos de identidade e de alteridade, tendo em vista que não há um eu sem um tu e vice-versa e que qualquer relação social é marcada por relações de influência, na qual todos os indivíduos são atores. Além da microestrutura, Charaudeau também considera, no estudo da argumentação, a macroestrutura, composta por proposta, tese e argumentos, sendo que a tese é o espaço em que se deve atribuir se algo é verdadeiro ou falso. Isso significa que o dispositivo argumentativo não se limita a uma sequência de frases ou proposições ligadas por conectores lógicos, pois o aspecto argumentativo de um discurso encontra-se frequentemente no que está implícito. Para ele, o estudo da argumentação deve partir da macroestrutura para depois atingir a microestrutura. A partir da tese e dos argumentos que asustentam, encontramos o ponto de vista, que pode ocorrer por meio de estruturas linguísticas e textuais: estas dizem respeito à própria organização do texto argumentativo na defesa dos argumentos; já aquelas se caracterizam pelas escolhas sintático-semânticas – dentre as quais, está a referenciação, assunto desta Dissertação. Charaudeau e Ducrot concordam que a linguagem é caracterizada pela argumentatividade, como forma de ação, que leva o outro a fazer X. Por trás de qualquer discurso, há a intenção de transmitir ideologia(s), na acepção mais ampla do termo, uma vez que tudo o que diz respeito à linguagem tem uma subjetividade inerente, pois todos nós somos sujeitos com intenções e objetivos delimitados, que buscamos convencer o outro das nossas ideias e fazer com que ele chegue às mesmas conclusões que nós. 22 Com relação a essas intenções dos sujeitos, Beaugrande e Dressler (1981), nos seus princípios de textualidade, destacam a intencionalidade, em que todo produtor de um texto atribui um propósito ao que escreve/fala. Porém, isso só terá efeito se for bem recebido por parte do leitor/ouvinte, ou seja, se houver uma aceitabilidade, existindo uma interdependência entre esses dois princípios. Seguindo esse raciocínio, se o sujeito sempre age para ser aceito de modo que suas opiniões sejam mais bem recebidas do que as dos outros, não existe neutralidade, haja vista que até o discurso que se declara “neutro” tem a intenção de ser o mais objetivo possível, conforme evidencia Koch (2011, p.17): O ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões, constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia. A neutralidade é apenas um mito: o discurso que se pretende “neutro”, ingênuo, contém também uma ideologia – a da sua própria objetividade. Isso significa que admitimos as relações argumentativas dentro da própria língua, pois “basta falar para argumentar” (PLANTIN, 1996). Cortez (2005) afirma que a argumentação não deve ser encarada de forma homogênea, uma vez que há inúmeros recursos linguísticos para o seu processamento e também porque a própria situação de uso da língua vai interferir nesse processamento. Para Guimarães (2009, p.98), o discurso é “um ato guiado por sujeitos que se constituem em variados papéis sociais a partir de também variadas situações comunicativas”. Como resultado disso, o texto é o espaço de interação usado pelo sujeito para expressar suas ideologias e, à medida que o faz, ele se constrói e é construído. Nesse âmbito, dentro do discurso, não existe um sujeito único, mas um sujeito constituído socialmente, fruto de uma série de convenções sociais que guiarão o seu dizer. Quando ele constrói o seu discurso, ele pode assumir vários papéis, de acordo com fatores como contexto, emissor e destinatário. Para Bakhtin (2000), em sua teoria dialógica da enunciação, a concepção dialógica da linguagem evita um modo fechado de tratar as questões da língua, pois pressupõe a interação sujeito-linguagem-história-sociedade, isto é, para ele, a fala não é individual, e sim social, por sempre depender das condições de comunicação influenciadas pelas estruturas sociais. Segundo essa teoria, há “um processo de intersubjetividade no qual a identidade torna-se o reconhecimento do sujeito histórico através da alteridade, de outros seres sociais” (PIRES E GIACOMELLI, 2008, p. 200). O autor ainda ressalta que todos os discursos apresentam uma 23 ideologia em maior ou menor escala. Esse enfoque dialógico pode ser observado no seguinte fragmento: [A palavra] nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de boca em boca, de um contexto para outro, de um grupo social para outro, de uma geração para outra [...]. Um membro de um grupo falante nunca encontra uma palavra neutra na língua, isenta das aspirações e avaliações de outros ou despovoada de vozes de outros. Absolutamente. A palavra ele a recebe da voz de outro e repleta da voz de outro (BAKHTIN, 1929, p.203). Com a língua, a ideologia surge numa sociedade, podendo se apresentar em qualquer tipo de mensagem. Como efeito do uso da língua, o sujeito reconhece-se como tal e compreende o seu papel dentro de um grupo de semelhantes, conseguindo tomar partido, espelhar uma visão de mundo, levar à reflexão, emitir um juízo de valor positivo ou negativo sobre determinado assunto ou situação e mobilizar pessoas. Logo, o indivíduo demonstra a sua identidade social e ideológica pela linguagem, e não há um sujeito único produtor do discurso, mas uma polifonia, um jogo de vozes diferenciadas na única voz do produtor do texto, fazendo com que o discurso seja sempre construído em conjunto, à luz do contexto social, da história, da época, da cultura, de discursos anteriores retidos na memória etc. É o que se verifica no seguinte trecho: A língua, bem como os indivíduos que a usam, está situada em um contexto sócio- histórico. Ao veicular concepções de mundo, a linguagem torna-se um lugar de confrontos ideológicos, uma vez que carrega uma carga semântica de valores culturais que exprimem as cizânias e as contradições da sociedade. Esta característica de plurivalência social do signo linguístico deve-se ao seu valor contextual, visto que a situação social imediata é responsável pelos sentidos manifestos (PIRES E GIACOMELLI, 2008, p. 203) [grifos das autoras]. Nesse ponto, a leitura cumpre um papel fundamental, pois os leitores demarcam e constroem suas representações sociais a partir do que leem, principalmente em jornais e revistas, que usam seus discursos, muitas vezes, para enraizar, na sociedade, valores, crenças, estereótipos e até preconceitos. Segundo Cortez (2005, p. 47), uma teoria da argumentação como atividade construtiva deve levar em conta uma “teoria da leitura”, por não se preocupar apenas com a produção textual, mas com seu reconhecimento por parte de quem a lê. Podemos, então, afirmar que cada texto busca, de algum modo, levar o leitor à aceitação ou ao repúdio em relação às representações sociais. Pela linguagem, um discurso do 24 senso comum pode ser mantido ou alterado, a depender, especialmente, do seu condicionamento ideológico por relações de poder. Além disso, nossa experiência cotidiana também tem um papel fundamental na construção de nossos discursos, porque, com ela, podemos reconhecer que um sentido novo sempre se apoia em sentidos já existentes. Por esse motivo, ocorre um confronto discursivo cujo jogo linguístico pode ser surpreendente ou não, percebendo em que medida o uso da linguagem pode contribuir para manter os problemas da sociedade, por exemplo, ou em que medida ele pode retificá-los (cf. PIRES E GIACOMELLI, 2008). Logo, entendemos que a argumentação é uma atividade interativa, presente na língua como um todo e, portanto, não se restringe apenas a alguns textos, mas faz parte de todos eles. 25 2. REFERENCIAÇÃO E CONSTRUÇÃO DOS SENTIDOS 2.1 - Uma atividade discursiva Dentro das abordagens da LT, o processo de referenciação é um dos temas mais recorrentes e analisados, estando longe de ter uma discussão esgotada e sendo, frequentemente, associado a diversos campos do conhecimento, como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a análise do discurso, dentre outros. Trata-se de uma das formas de estabelecimento da coesão textual, destacando-se como importante estratégia para introduzir novas entidades ou referentes no texto. Diante disso, é importante entender como se formou a noção atual que temos desse fenômeno. A referenciação existe porque sempre fazemos referênciaa algo quando nos reportamos a pessoas, animais, objetos, sentimentos, ideias, emoções, qualquer coisa, enfim, que se torne essência, que se substantive quando falamos ou quando escrevemos (cf. CAVALCANTE, 2011). Para a autora, existe referência em qualquer enunciação: uma troca conversacional, a leitura de um texto verbal ou multimodal, um filme ou programa de TV etc (apud ELIAS, 2011). Segundo Marcuschi (2007a, p.105), a referência é aquilo que se constrói, na atividade discursiva e no enquadre das relações interpessoais, em comum acordo entre os atores sociais envolvidos numa determinada situação comunicativa. Os referentes são entidades abstratas que construímos mentalmente, cada um de seu modo, quando enunciamos um texto. No momento de interação, há uma instabilidade, porque esses referentes não serão iguais para todos os participantes - cada um concebe e percebe as coisas de um jeito - mas apresentarão muitos pontos em comum, permitindo a recuperação e produção dos sentidos. Tudo dependerá da bagagem cultural dos enunciadores e da atenção dada ao discurso (cf. CAVALCANTE, 2011). Sendo assim, os referentes não existem sozinhos, e as escolhas feitas pelos falantes não são aleatórias. Antes mesmo de esse assunto preocupar os linguistas, na Antiguidade Clássica, os filósofos da linguagem e os lógicos já mostravam seu interesse pelo modo como as expressões nomeavam as entidades, fazendo uma associação direta entre significado, significante e referente. Platão e Aristóteles entendiam o referente como algo que subsistia exteriormente ao texto materializado, enquanto que a referência era a relação entre um dizer e um não dizer. Platão, que era de uma orientação realista e essencialista da significação, considerava que a linguagem exigia que se pensasse o real como tendo existência própria. Nessa visão, a 26 função da linguagem seria descrever e representar o real. Por outro lado, havia os sofistas, de uma orientação relativista, que incluíam a subjetividade na linguagem, considerando o que era extralinguístico. Embora a visão atual de referência se aproxime mais da perspectiva dos sofistas, devemos fazer a ressalva de que o que eles entendiam por extralinguístico não é integralmente o mesmo que se entende hoje, pois, antigamente, apenas o entorno sociocomunicativo era considerado extralinguístico. Posteriormente, no entendimento de Santo Agostinho, a noção de referente confundia- se com a de objeto denotado, uma vez que não haveria significado se não houvesse referente, o que fez com que referência e denotação se tornassem sinônimos. Esse conflito conceitual, nos dias de hoje, não faz sentido, tendo em vista que o significado denotativo do signo não é suficiente para a interpretação e, por isso, a referência vai além do sentido concreto das palavras. Somente a denotação pode tratar das palavras em sentido literal ou estado de dicionário, pois a referência necessita obrigatoriamente de um contexto. Nas palavras de Cavalcante (2011, p. 22): “a denotação pertence ao âmbito do sistema, ao passo que a referência só se efetiva no uso”. Então, percebemos que, durante muito tempo, a questão da referência foi entendida e estudada como uma forma de representação do “mundo real” no cotexto, ou seja, as formas linguísticas utilizadas para retomar ou antecipar algo, na superfície textual, deveriam ser selecionadas de acordo com critérios de correspondência e veracidade em relação ao mundo exterior que, por sua vez, estava pronto para ser espelhado (cf. CAVALCANTE et al., 2010). É nessa perspectiva de reflexo da realidade que está a noção tradicional de coesão referencial, que concebe a linguagem como transparente e considera os referentes como objetos do mundo, excluindo o contexto e a construção de efeitos de sentido. Em outras palavras, a noção de “fazer referência a algo” dizia respeito a algo estritamente linguístico: a relação entre palavras isoladas e referentes do mundo real prontos para serem etiquetados e manipulados de modo rígido. Posteriormente, alguns estudiosos, como Mondada, Apothéloz & Reicher-Béguelin e Koch, voltaram-se para a necessidade de considerar uma perspectiva sociocognitiva e interacionista no que diz respeito à referência, entendendo que referentes são construtos culturais que se dão na cena de enunciação e podem ser transformados dentro da situação comunicativa. De acordo com essa concepção, as formas linguísticas selecionadas devem ser avaliadas segundo a adequação aos propósitos e às ações em curso dos enunciadores, que compartilham a mesma sociedade, isto é, trata-se a língua como uma negociação entre 27 indivíduos e exclui-se uma possibilidade de mundo excessivamente estabelecido e delimitado, “pronto para receber uma etiqueta lexical incontestável e válida para todos os sujeitos” (CORTEZ, 2005, p. 24). Quando lemos, ouvimos ou produzimos textos, não estamos diante de referentes do mundo real, pois não há uma relação natural entre palavras e coisas, mas estamos diante de uma representação por um sistema simbólico, que é a língua. Dessa forma, o discurso representa o referente segundo a subjetividade do sujeito, o que significa dizer que um referente sempre será construído por um ponto de vista. O nome que damos a um referente não serve para designá-lo por completo, mas mostra como nós o concebemos e interagimos com ele. Mondada e Dubois (1995) declaram que os referentes dependem muito mais dos múltiplos pontos de vista dos indivíduos em relação ao mundo do que de um contrato imposto pela materialidade do mundo. Isso implica dizer que podemos associar a referenciação à argumentação ao lidar com as escolhas lexicais dos falantes para construir os sentidos pretendidos. A presença do enunciador no discurso ocorre por meio dessas escolhas referenciais que ele faz, isto é, ele se revela no texto pela referenciação, marcando o seu ponto de vista. Mesmo quando se esforçam para ser isentos de posicionamento, tomam um determinado partido. Conforme menciona Rabatel (2005a, p.121), “o modo de apresentação dos referentes comporta saberes e marcas de um modo de falar, perceber e/ou pensar que aponta para determinado enunciador”. Desse modo, a língua deixa de ser observada como somente uma capacidade mental de corresponder à realidade e passa a ser analisada em relação às práticas sociais e às situações comunicativas, tendo em vista que os falantes estão a todo o momento fazendo negociações para alcançar os sentidos pretendidos. Quando falamos e escrevemos fazendo referência a pessoas, animais, objetos, sentimentos, ideias etc, levamos em conta a interação com o outro, baseada nas nossas vivências socioculturais (cf. CAVALCANTE, 2011, p.15). Essa concepção construtivista da referência, em oposição à concepção representacional da tradição filosófica e epistemológica, demonstra a relação intersubjetiva que re (cria) e ressignifica a realidade, bem como as avaliações em termos de adequação à situação comunicativa vigente. Nas palavras de Cortez (2011, p.111), não interessa a “apreensão exata do real e sua verificação, mas a forma como o real é problematizado, conceituado, discursivizado ou textualizado na e para a defesa de posições”. Por isso, segundo Marcuschi (2005) e Marquesi (2007), o mundo comunicado é fruto de um agir comunicativo 28 ou de uma ação discursiva, e não de uma identificação de realidades discretas, objetivas e estáveis. A língua não pré-existe, visto que ela somente ocorre nas situações concretas de uso. Nesse sentido, Mondada e Dubois (1995) e Mondada (2001) propõem a redefinição da noção de referência, com a substituição dos termos referência e coesão referencial por referenciação e, consequentemente, de referente por objeto-de-discurso, tendo em vista que o foco passa a ser atribuído às atividadesinterativas entre sujeitos históricos e sociais, que constroem objetos que não espelham fielmente a realidade extralinguística, mas são construídos no e pelo próprio discurso. Entendemos que, ao falar de referenciação, não estamos falando simplesmente de mais uma dentre as várias operações linguísticas existentes e de um sujeito único, mas de um processo colaborativo entre os parceiros da interação. Logo, a referenciação, dentro dos estudos atuais da Linguística do Texto, é um processo muito mais complexo e amplo, não importando como nomeamos o mundo, mas como interagimos com ele, fazendo com que o mesmo possa ser não só construído, como também mantido e alterado. A respeito disso, Koch (2004, p. 57) afirma que a referenciação constitui uma atividade essencialmente discursiva, o que implica uma visão não referencial da língua e da linguagem, pois: (...) nosso cérebro não opera como um sistema fotográfico do mundo, nem como um sistema de espelhamento, ou seja, nossa maneira de ver e dizer o real não coincide com o real. Ele reelabora dados sensoriais para fins de apreensão e compreensão. E essa reelaboração se dá essencialmente no discurso [grifo da autora]. Considerando que os objetos-de-discurso não são elementos homogêneos, fixos, estáveis e preexistentes à atividade cognitiva e interativa, mas produtos dela (APOTHÉLOZ; REICHER-BÉGUELIN, 1995), devemos ressaltar que os sujeitos realizam uma série de escolhas significativas, operando sobre o material linguístico de que dispõem, a fim de atingir uma determinada intenção, fazendo com que o processamento do discurso seja estratégico (KOCH, 2002, 2008). Desse modo, entendemos que interpretar uma expressão referencial é muito mais do que localizar um antecedente explícito na superfície textual – como faz o ensino tradicional nas escolas: é alcançar uma proposta de sentido do enunciador, captando a informação veiculada no uso que ele faz das estratégias referenciais. Os objetos-de-discurso não são entidades “estáticas, congeladas e registráveis em dicionário” (CAVALCANTE, 2011), mas representações semióticas instáveis e constantemente reformuláveis, podendo ser retomadas e servir de base para a introdução de outros objetos. A manutenção, a desfocalização e a recategorização dos referentes ao longo do 29 texto ocorrem de acordo com diversos fatores externos, como crenças, cultura, conhecimento de mundo etc. Entendemos por manutenção o momento em que um objeto-de-discurso já introduzido permanece em foco no texto, por meio de alguma estratégia referencial. Por outro lado, quando um objeto até então em foco fica em stand by, abrindo espaço para a introdução de um novo objeto-de-discurso, temos a desfocalização. O objeto também pode ser transformado, recategorizado, se houver uma mudança de ponto de vista (cf. KOCH e ELIAS, 2006). Para Mondada e Dubois (1995), a instabilidade dos objetos está intimamente ligada à multiplicidade de pontos de vista que os sujeitos exercem sobre o mundo. Koch (2004) afirma que a compreensão dos sentidos de um texto requer a mobilização de um conjunto de conhecimentos linguísticos, enciclopédicos e interacionais, cabendo ao leitor construir a imagem retratada pelo produtor do texto e aderir ou não a ela. Nota-se, pois, que o perfil do que hoje se entende como referente, em LT, sofreu radical transformação: saiu da relação entre expressões referenciais e marcas cotextuais explícitas para uma entidade construída da forma conjunta, negociada e, ao mesmo tempo, representada na mente dos participantes da enunciação. A dinamicidade dos fatores envolvidos nessa ação contínua, mesmo que gere uma ilusão ou um efeito de estabilidade, torna os processos referenciais recategorizáveis no transcurso da interação (CAVALCANTE et al., 2003, p. 235) [grifo das autoras]. Ao fazer uso de diversos processos referenciais para (re) construir um objeto-de- discurso, tem-se a progressão referencial do texto, com a introdução, a identificação, a preservação, a continuidade e a retomada dos referentes. Essa progressão faz do texto um todo significativo, ou seja, colabora não só para a construção de sentido pretendido pelo produtor – coerência discursiva –, como também para a própria organização textual, dando continuidade e estabilidade e, portanto, contribui para o desenvolvimento do tópico discursivo. A nomeação de um referente envolve uma reflexão sobre o próprio dizer, o que faz com que a seleção referencial mais apropriada ocorra com base no receptor, nos propósitos comunicativos, no contexto, no gênero textual em questão etc. O produtor textual pode ter a intenção de criticar algo, de ressignificar um termo em evidência, de causar humor, dentre outras opções, fazendo com que haja uma grande instabilidade na nomeação dos referentes. Como dissemos antes, a recategorização – transformação de um referente – nunca é isenta de ideologia, no sentido de apresentar um ponto de vista. Com base nisso, verificamos que o conceito de referenciação engloba o conceito de coerência. Para que haja um controle entre o que já foi dito (informação velha), o que será dito (informação nova) e o que é sugerido, é necessário fazer retomadas constantes, garantindo, 30 assim, que o texto progrida. Dessa forma, o texto tem um movimento projetivo e um retrospectivo1, e a manutenção dos objetos-de-discurso pode realizar-se através de recursos de ordem gramatical (pronomes, elipses, numerais, advérbios locativos etc.) e de ordem lexical (reiteração de itens lexicais, sinônimos, hiperônimos, nomes genéricos, expressões nominais etc.), que constituem as estratégias de referenciação, mostrando as escolhas do sujeito- enunciador no seu querer-dizer. Concordamos com Koch (2006) quando ela diz que, dentre todas as estratégias referenciais, o uso de expressões nominais é o mais produtivo para imprimir uma orientação argumentativa nos enunciados em que se inserem, fazendo com que o leitor tenha um “roteiro” de leitura condizente com a proposta enunciativa do seu produtor. Para Koch (2004, p.139), tais expressões funcionam como uma “espinha dorsal do texto”, que fazem com que o leitor construa um planejamento que irá orientar o seu entendimento. De acordo com Koch (2005, 2006), as expressões nominais definidas e indefinidas, além de apresentarem um alto teor argumentativo, contribuem para a progressão temática do texto. As definidas são constituídas por, no mínimo, um determinante definido ou demonstrativo, antecedendo um nome, enquanto as indefinidas são aquelas formadas por artigos indefinidos precedendo um nome. Esses nomes também podem ser acompanhados de modificadores, tais como adjetivos, locuções adjetivas e orações adjetivas. Contudo, já que compartilhamos da visão de Koch (2004), Cavalcante (2011), dentre outros, de que o objeto-de-discurso é uma construção discursiva, assumimos que ele não precisa, obrigatoriamente, estar ligado a marcadores linguísticos específicos. Por exemplo, os referentes são manifestados de modo mais próprio por certas formas disponíveis na língua, mas isso não significa que eles tenham necessariamente que ser representados por uma expressão referencial, embora a manifestação das expressões referenciais no cotexto seja decisiva para a separação entre processos de introdução referencial e de anáfora (CAVALCANTE, 2011, p. 53). 1 As abordagens mais tradicionais classificam a projeção como catáfora e a retrospecção como anáfora. Porém, neste trabalho, com base em Cavalcante (2011), usaremos apenas o termo anáfora, mesmo que haja uma antecipação. Para a autora, tudo é anáfora, porque não interessa a posição, mas o papel desempenhado no texto. 31 2.2 - Os processos referenciais atreladosà menção Cavalcante (ibidem) considera a existência de dois grandes processos referenciais atrelados à menção: a introdução referencial, que diz respeito à primeira vez em que as entidades são introduzidas formalmente no texto; e a anáfora, que se estabelece quando os referentes são retomados, dando continuidade referencial ao texto. Quando essa retomada é realizada com a manutenção do mesmo referente em proporções variadas, gerando uma correferencialidade, temos uma anáfora direta. Para exemplificar, segue um trecho do nosso corpus, extraído da crônica “O nascimento da crônica” 2, de Machado de Assis: Nesse fragmento, o termo em negrito “o lugar onde havia verificar-se o enterramento” corresponde à introdução referencial, haja vista que ainda não havia aparecido esse referente no cotexto. Trata-se de uma especificação do lugar do enterro propriamente dito, onde há as covas, dentro do espaço do cemitério, e esse mesmo objeto-de-discurso é retomado e mantido a seguir, pela expressão nominal “naquele lugar” e pelo advérbio “lá”, que são, portanto, anáforas diretas. Ainda nesse trecho, podemos observar outra introdução referencial, com o termo “seis ou oito homens ocupados em abrir covas”; posteriormente, esse objeto-de-discurso é recuperado, marcado correferencialmente pelo pronome pessoal do caso reto “eles”, pelo pronome pessoal do caso oblíquo “os” e pela expressão nominal “aqueles pobres-diabos” – outros casos de anáforas diretas. Com o uso da expressão nominal “aqueles pobres-diabos”, podemos observar, de modo mais saliente, a intencionalidade do texto ao chamar a atenção para o trabalho pesado dos coveiros debaixo do sol. Entretanto, não são só as anáforas correferenciais que conferem progressão ao texto, uma vez que expressões que não representam exatamente o mesmo referente em foco também 2 O texto integral e a referência desta e das demais crônicas utilizadas encontram-se no Anexo, na ordem em que aparecem neste trabalho. Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde havia verificar-se o enterramento. Naquele lugar, esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia? 32 podem estar ligadas semanticamente a ele. Logo, esse tipo de anáfora, conhecida como anáfora indireta, não se apresenta como retomada de um antecedente explícito na superfície textual, mas como alguma relação decisiva para a interpretação, como a associação de palavras pertencentes a um mesmo campo semântico, por exemplo. Nas anáforas indiretas, não temos a recuperação do mesmo referente, e isso não causa estranheza ao interlocutor, porque ele realiza um processo cognitivo inferencial, mobilizando os conhecimentos armazenados na sua memória discursiva. Podemos relacionar itens do vocabulário pertencentes a um mesmo esquema cognitivo. Por exemplo, se falamos de viagem, podemos em seguida mencionar mala, passaporte, mapa, passagem de avião etc, e esses termos serão facilmente interpretados como alusivos ao evento viagem. Como afirma Marcuschi (2005), nesse caso, devemos abandonar a “clonagem referencial”, com a identificação integral de referentes e atentar para a presença de uma âncora em que o anafórico indireto se apoia. O autor salienta que a anáfora indireta relaciona- se a um processo de referenciação implícita, através de uma estratégia endofórica de ativação de referentes novos, e não de uma reativação de referentes já conhecidos. A anáfora indireta pode ser formada por expressões nominais definidas, indefinidas e pronomes, interpretados referencialmente sem que lhes corresponda um antecedente ou subsequente explícito no texto, o que implica uma atenção cognitiva conjunta dos interlocutores. Em relação às atividades de leitura e interpretação na escola com a referenciação, é bastante produtivo fazer com que o aluno observe as âncoras que podem servir de apoio às anáforas indiretas. O estudante acostumado com exercícios mecânicos de “puxar uma seta” para localizar geograficamente os referentes é surpreendido, pois não consegue encontrar nada ao fazê-lo. Por isso, o professor deve alertar para o fato de que nem sempre há um antecedente explícito no cotexto e que algumas palavras podem ser relacionadas por existir uma dependência semântica entre elas. Porém, apesar de não ser o mesmo referente, não há fuga ao tema do texto e, para o aluno perceber isso, ele precisa ativar seus conhecimentos cognitivos. Vejamos alguns exemplos, no fragmento da crônica abaixo, retirada do corpus: 33 Os elementos “banco da frente”, “lá na frente” e “pela janela” não retomam exatamente o referente “ônibus”, mas se relacionam semanticamente a ele, pois marcam localizações específicas que fazem parte do interior desse meio de transporte. O leitor, com sua experiência de mundo, consegue interpretar facilmente esses novos referentes, reiterando a imagem de que todo o diálogo entre os personagens se passa dentro de um ônibus. Então, como a relação com “ônibus” é mais sutil, percebida por pistas cognitivas do cotexto, classificamos os elementos destacados como anáforas indiretas. Com base nesses exemplos, em consonância com Cavalcante (2011), entendemos que, dentro do grupo das anáforas, há dois subgrupos – as anáforas diretas ou correferenciais e as anáforas indiretas ou não correferenciais – e que progressão referencial não significa necessariamente manutenção de um mesmo referente. Todavia, não podemos pensar que apenas as anáforas indiretas são inferenciais, visto que, antes de concebermos exclusivamente as informações pertencentes ao léxico, precisamos atentar para o fato de que tudo depende de Diálogo de festas (Stanislaw Ponte Preta) Iam os dois sentados no banco da frente. O ônibus era desses que levam oitocentos em pé e duzentos sentados. Pelo tempo que eu fiquei parado, junto ao poste, esperando-o, aquele devia ser o último ônibus do ano. Mas isto não importa. O que me interessava – pelo menos naquele momento – era a conversa dos dois, no banco da frente. Um era magrelinha, desses curvadinhos para frente, vergado ao peso da vida. O outro parecia mais velho, mas era espigadinho. O cabelo ralo, mais grisalho do que o do companheiro. No momento, quem falava era o espigadinho: - Eu não cheguei a ver castanha, a não ser em vitrina, é lógico. - Eu vi! – disse o vergado: - Eu tenho um vizinho... o Alcides, você conhece. Aquele que a filha fugiu com um sargento da Aeronáutica! - Ainda está com ele? - As castanhas? - Não. O sargento da Aeronáutica, inda tá com a filha dele? - Não. Com ela está é o filho que ele fez. Mas eu dizia: o Alcides comprou castanhas com 13º. Ele trabalha numa firma que paga certo. - Estrangeira? - Deve ser. O Alcides me mandou seis castanhas. - Você que é feliz. - Feliz nada. Tive que dar pra outro. Tenho sete filhos, seis castanhas ia causar “probrema”. O ônibus recebeu mais uns três ou quatro, que foram sentar lá na frente. A conversa entre os dois continuou. Ainda desta vez, quem falou primeiro foi o espigadinho: - A mulher do patrão me deu uma camisa. - Tava boa? - Tava larga. - Eu ganhei um sapato, por causa do serviço que eu fizpra Dona Flora. - Tava bão? - Tava apertado. O curvado jogou o toco de cigarro pela janela e deu um suspiro. O companheiro sorriu: (...) 34 aspectos pragmáticos. Nas palavras de Cavalcante (2011, p. 137), “distinguir anáfora direta de anáfora indireta, pela simples alegação de que a direta exige menos capacidade inferencial, seria uma atitude reducionista”. Em sua maioria, mesmo as recategorizações feitas com as anáforas correferenciais exigem que o interlocutor mobilize um conjunto de conhecimentos prévios. Ciulla e Silva (2008) acrescenta que, muitas vezes, há várias informações concorrentes para a construção da referência, tal como ocorre com as anáforas indiretas. Assim, há uma tênue fronteira entre os níveis de inferência: todas as anáforas são inferenciais, porém algumas inferências são mais salientes por conta da relação entre campos semânticos. No trecho abaixo, do nosso corpus, retirado da crônica “História de um nome”, de Sergio Porto, podemos observar como as anáforas diretas também podem ser inferenciais: O termo “a biblioteca” é uma anáfora direta, pois retoma de modo correferencial o objeto de discurso “a família”. O referente é o mesmo, mas para que o leitor consiga fazer essa relação inferencial, é preciso atentar para o contexto em que reside o próprio humor da crônica: um homem (Seu Veiga) obcecado por livros que, ao batizar seus filhos, deu-lhes nomes como “Prefácio”, “Prólogo”, “Índice”, “Tomo”, “Capítulo” e “Epílogo”. Pelo mesmo raciocínio, o elemento “a estante” é uma anáfora direta, que recupera o objeto-de-discurso “Dona Odete”: se Seu Veiga é viciado em livros e batizou os filhos daquela forma, não há nenhuma surpresa para o leitor que sua esposa seja designada por “estante”. Como vemos, essas relações exigem maior esforço semântico, pois só fazem sentido dentro do texto em questão. Fora dele, os termos “biblioteca” e “família” e “estante” e “Dona Odete” não podem ser imaginados numa cadeia referencial. Temos, nesse caso, ainda, uma operação de recategorização, pois esses termos não são sinônimos e, num primeiro momento, parecem impossíveis de serem relacionados. A “biblioteca” não é uma biblioteca qualquer, no sentido denotativo, de um local próprio para o empréstimo e a consulta de livros, mas uma família, composta por vários filhos. Nesse mesmo raciocínio, a “Estante” também não é um móvel que se destina ao armazenamento de objetos, principalmente de livros, mas uma mulher, uma dona de casa. Como podemos observar, tudo (...) “Seu” Veiga ia passando pela nossa porta, levando a família para o banho de mar. Iam todos armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça: - Vai levar a biblioteca para o banho? “Seu” Veiga ficou queimado durante muito tempo. Dona Odete – por alcunha “A Estante” – mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos filhos homens e não ter uma menina “para me fazer companhia” – como costumava dizer. (...) 35 depende das circunstâncias, ou seja, o contexto pode fazer com que palavras e expressões socialmente situadas e reconhecidas passem por um processo de reformulação, à medida que compartilhem um significado. No caso dessa crônica, a associação metafórica só é possível neste contexto. Outro ponto discutido por Cavalcante (2011) é a ausência de limites bem definidos entre as introduções referenciais e as anáforas indiretas. Prototipicamente, a introdução do referente é marcada por um artigo indefinido, enquanto a retomada é marcada por um artigo definido. Porém, isso não é uma regra, tendo em vista que algumas introduções referenciais são feitas com artigo definido, indicando que o produtor textual espera que o receptor conheça o objeto de discurso. Há, então, um conhecimento a ser buscado pelo interlocutor na sua bagagem, o que faz com que haja uma semelhança com as anáforas indiretas, como podemos ver com o trecho a seguir, retirado do nosso corpus, da crônica “O triste sono sem mãe”, de Fritz Utzeri: A expressão “o menino”, apesar de ser marcada com o artigo definido, funciona como uma introdução referencial, uma vez que esse referente é novo na crônica. Com a leitura desse texto, o leitor precisa ativar seu conhecimento de mundo de que há muitas crianças no Brasil na mesma situação em que se encontra esse menino: abandonadas, sem saberem nem quem são suas mães. A semelhança do menino do texto com tantas crianças iguais nas ruas é o que justifica o uso do artigo definido, como se o leitor já estivesse familiarizado com esse referente. No que diz respeito à remissão textual, além das anáforas diretas e das anáforas indiretas, os estudos atuais de referenciação também têm abordado os encapsulamentos. Todos esses três processos orientam o leitor na sua compreensão e estão intimamente ligados à intencionalidade do produtor textual, especialmente se envolverem o uso de expressões nominais que, conforme mencionamos, é o recurso linguístico que mais se destaca para emitir Na manhã fria de Ipanema, o menino dorme um sono profundo. Estaria sonhando? Enrolado numa manta, encolhido para proteger-se do frio, falta algo àquele menino sem nome no dia de festa. O Dia das Mães. Quem será a mãe do menino? Por que não estão juntos nesse dia, como tantos filhos e tantas mães, de todas as idades, que brincam na praia e fazem grandes filas em churrascarias, exibindo presentes? Como ele, centenas de meninos, milhares de meninos, em todo o Brasil, não tiveram a alegria de ver as mães em seu dia. 36 juízos de valor. No entanto, no caso dos encapsuladores, essas formas nominais desempenham um papel peculiar. As expressões nominais também podem categorizar ou recategorizar segmentos precedentes do cotexto, sumarizando-os e encapsulando-os, e atribuindo-lhes um rótulo, que é um tipo específico de encapsulamento (KOCH, 2006). São, segundo Schwarz (2000, apud KOCH, 2006), “anáforas complexas”, sendo, na sua maioria, anáforas definidas introduzidas por um demonstrativo e representadas por substantivos genéricos e inespecíficos (estado, fato, fenômeno, circunstância, condição, evento, cena, atividade, hipótese etc). Além de rotular uma parte da superfície textual que as precede (x é um acontecimento, um fato, uma hipótese etc), essas expressões criam um novo objeto-de-discurso que, por sua vez, passará a ser o tema dos próximos enunciados. Assim, elas ativam a memória do interlocutor e, ao mesmo tempo, efetuam a progressão textual, sendo formas híbridas: não só referenciadoras, como também predicativas, pois transmitem informação dada e informação nova. Em outras palavras, elas são instrumento de retomada referencial e fator de dimensão semântica do texto. Essa também é a posição de Francis (1994), que analisa as expressões nominais encapsuladoras como um recurso coesivo extremamente comum nos discursos de natureza argumentativa, visto que elas rotulam, avaliam, predicam e orientam a interpretação de uma porção antecedente ou de uma quantidade de informações anteriores. A autora sinaliza que os grupos nominais realizam um papel de negociação entre autor e leitor, pois quando aquele rotula uma parte do discurso, o faz de modo que a integrem e relacionem ao argumento que desenvolve no seu projeto de dizer (writer’s plan). Dessa forma, tais expressões podem ser usadas para destacar seus valores, suas crenças e suas opiniões. Conforme Conte (1996), essas expressões são denominadas de paráfrases resumidoras de uma porção precedente do texto, e o encapsulamento é visto como um poderoso meio de manipular o leitor. Para Cavalcante (2011), as formas nominais definidas e indefinidas encapsuladoras constituem um tipo peculiar de anáfora indireta, porque não retomam exatamente um objeto- de-discurso pontual na superfície
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