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Contos Portugueses Selecao de Iba Mendes

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Contos Portugueses 
Primeiro Volume 
 
Aquilino Ribeiro - Ferreira de Castro - José Régio 
Raul Brandão - Júlio Dantas - Antônio Sardinha 
Rodrigues Miguéis - Ana de Castro Osório 
José Gomes Ferreira - Abel Botelho 
 
 
 
 
 
Seleção e organização de: Iba Mendes 
 
 
 “Projeto Livro Livre” 
 
 
Livro 239 
 
 
 
 
 
 
 
 
Poeteiro Editor Digital 
São Paulo - 2014 
www.poeteiro.com 
Projeto Livro Livre 
 
O “Projeto Livro Livre” é uma iniciativa que 
propõe o compartilhamento, de forma livre e 
gratuita, de obras literárias já em domínio público 
ou que tenham a sua divulgação devidamente 
autorizada, especialmente o livro em seu formato 
Digital. 
 
No Brasil, segundo a Lei nº 9.610, no seu artigo 41, os direitos patrimoniais do 
autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente 
ao de seu falecimento. O mesmo se observa em Portugal. Segundo o Código dos 
Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, em seu capítulo IV e artigo 31º, o 
direito de autor caduca, na falta de disposição especial, 70 anos após a morte 
do criador intelectual, mesmo que a obra só tenha sido publicada ou divulgada 
postumamente. 
 
O nosso Projeto, que tem por único e exclusivo objetivo colaborar em prol da 
divulgação do bom conhecimento na Internet, busca assim não violar nenhum 
direito autoral. Todavia, caso seja encontrado algum livro que, por alguma 
razão, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentileza que nos informe, 
a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo. 
 
Esperamos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejam 
repensadas e reformuladas, tornando a proteção da propriedade intelectual 
uma ferramenta para promover o conhecimento, em vez de um temível inibidor 
ao livre acesso aos bens culturais. Assim esperamos! 
 
Até lá, daremos nossa pequena contribuição para o desenvolvimento da 
educação e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obras 
sob domínio público, como esta seleção de contos dos escritores portugueses: 
Raul Brandão, Júlio Dantas, Antônio Sardinha, Aquilino Ribeiro, Ferreira de 
Castro, José Régio, José Gomes Ferreira, Rodrigues Miguéis, Abel Botelho, Ana 
de Castro Osório. 
 
É isso! 
 
Iba Mendes 
iba@ibamendes.com 
 
ÍNDICE 
 
RAUL BRANDÃO - HISTÓRIA DO GÊBO ........................................................ 
JÚLIO DANTAS - UM DRAMA ....................................................................... 
ANTÔNIO SARDINHA - CONTO DA PÁSCOA ................................................. 
AQUILINO RIBEIRO - O REMORSO ................................................................ 
FERREIRA DE CASTRO - O SENHOR DOS NAVEGANTES ............................... 
JOSÉ RÉGIO - MARIA DO AHÚ ...................................................................... 
JOSÉ GOMES FERREIRA - A FESTA FICOU-ME BARATA ................................ 
RODRIGUES MIGUÉIS - SAUDADES PARA DONA GENCIANA ...................... 
ABEL BOTELHO - A FRECHA DA MIZARELA .................................................. 
ANA DE CASTRO OSÓRIO – SACRIFICADA .................................................... 
1 
7 
9 
13 
33 
43 
54 
59 
80 
102 
 
 
1 
HISTÓRIA DO GÊBO 
RAUL BRANDÃO 
 
Por fim, na entrada desse frio e rigoroso inverno, já tinha vencido tudo. De 
envelhecido e gasto, di-lo-eis um trapo que se deita fora ou um doido de 
cabelos brancos estacados, a falar sozinho. Toda a gente o conhecia. 
Ó Gêbo! 
— Ahn? 
A mulher azedara com a pobreza e passava horas e horas a chorar, atirada para 
um canto, ou pregava dias inteiros em monólogos cheios de gritos, de sonho 
espezinhado, todos lavados em lágrimas. Se tudo acabasse!... Mas nem a Morte 
escuta os desgraçados, nem o tempo se apressa; vai moendo na sua mó as 
tristezas, as aflições e o pão negro. O desespero daquela criatura caía em 
impropérios sobre a cabeça do Gêbo espantado, a suar, e a quem nem a própria 
desgraça conseguia empedernir o coração. 
Todos os dias eram da mesma forma sombrios e tristes. Isto de chorar um dia e 
outro dia, dá a impressão de que chove e se não- sai do inverno. Outras vezes 
calavam-se, mas a discussão era talvez maior, era talvez pior... Existência sem 
cor, que se gasta fio a fio, em que a desgraça se assemelha à desgraça, os 
gemidos se não ouvem, em que cada um para o seu lado interroga a vida e as 
horas passam acinzentadas deixando-os todos três curvados, todos três 
absortos. Porque a vida interior nunca cessa, nem no sono — este monólogo 
com que a vamos comentando até ao fim, que não tem existência real e que 
vivo é imenso. Nos homens e nos bichos. Talvez também nas árvores. Nuns 
desvairado, noutros humilde, baixinho, quase pueril. A vida não é senão este 
monólogo furioso ou ridículo e mais dorido quando é concentrado e sem 
gritos... Mas ela não podia mais e irrompia: 
— Deste, emprestaste a toda gente. E agora? agora? Riem-se de ti inda por 
cima, e ninguém te ajuda. Morremos à fome. 
— É o mesmo, mulher, é o mesmo. Paciência... 
— O pior é de nós, de mim e da pequena. 
— Pois é o que me aflige, que por mim quem me dera morrer! 
— Não fosses tolo! Olha de teus amigos como trepam. 
— Ó mulher, mas que hei de eu fazer? Tu não me dirás o que hei de fazer? 
— Roubá-lo! roubá-lo!... 
 
2 
Às vezes esqueciam-se e ainda pairavam em torno duma esperança, a qual, 
agora nascida, logo a desgraça calcava. A mais humilde poeira de ilusão bastava 
para que todos três gelados pela desventura, se sentassem na enxerga, prontos 
a edificar os mais altos castelos e esquecidos de tudo. Só a filha sofria em 
silêncio, magra e com um sorriso tão triste que lembrava certas horas em que 
há sol e chuva misturados. E como o Gêbo lhe queria! Pelo seu destino que seria 
amargo, e por ser o único ser no globo, que lhe não dizia más palavras. 
Lá ia indo pela vida fora, coçado e com um ar de aflição que fazia rir. Parecia 
amachucado: as marcas dos encontrões nunca mais lhe saíam. 
A mulher passava os seus dias numa luta desesperada com a desgraça, 
arrancando-lhe os últimos trapos, disputando-os um a um até vê-los desfeitos. 
Ao fim do dia ouviam-se os passos vagarosos do velho nas escadas e a sua 
respiração — anh! anh! — sufocada. 
— Aí vem ele... — murmurava. 
O Gêbo entrava e ela logo, sôfrega, morta por desabafar o que todo o dia 
ruminara: 
— Até que vieste, homem! E então? Conta. Então há alguma esperança? 
— Não há nada, mulher. 
E sentava-se arrasado. 
— Também, ninguém faz caso de ti. Que és tu? Sabes o que tu és? 
— Eu não, o quê? 
— Um ente inútil. Não há ninguém que se não ria de ti, das tuas desgraças, das 
tolices que tens feito... Que é do dinheiro que tanto nos custou a poupar? 
— Eu sei lá agora do dinheiro! Não falemos mais nisso... O que lá vai, lá vai. 
— Pois é o que tu queres... Mas hei de falar, hás de me ouvir. Deste cabo de 
tudo, davas dinheiro a toda a gente... Tinhas-me a mim, tinhas a pequena. 
Reparasses, era a tua obrigação. 
— Ó mulher, ora tu que todos os dias vens com a mesma seca. Não me basta a 
minha aflição!... De que serve isso agora? 
— De que serve? Serve de muito! 
À noite, à luz do petróleo, o Gêbo fazia escritas com um cobertor pelos ombros 
e as mãos geladas de frio. A filha, sumida na sombra, compunha-lhe a roupa, e a 
 
3 
mulher Talhava, passeando na sala. Batia a luz do candeeiro na cara oleosa do 
Gêbo, no nariz enorme, nos seus olhos tristes e, do outro lado da mesa, só se 
viam iluminadas as mãos de Sofia, toda a noite trabalhando sem ruído e sem 
descanso. 
— Já tive unia letra tão linda e agora... Os desgostos cansam a gente. 
— É de ti! é de ti! Outros têm penas, desgostos, caem e tornam a levantar-se... 
— dizia-lhe a mulher. 
— Têm sorte,é o que é. Para tudo é preciso sorte. — E curvado sobre os livros 
contando, murmurava mais baixo: 
—... E vão sete... 
— Sorte! sorte! A culpa é tua que não tens energia nenhuma. Procura! Deixas-te 
ficar espapaçado para ai... Tu o que queres é comer e dormir. 
Ó mulher!... — E erguia o carão aflito, onde batia a claridade da chapa. Viam-se-
lhe os olhos aguados. — O mulher, a gente também perde as forças... Sempre a 
desgraça! sempre a desgraça!... 
— Tudo nos corre torto! 
Mas... 
— Tudo! deixa-me!.. 
E desatava a chorar. Então o Gêbo, aflito, a mão curta e gorda ronronando no 
papel, mentia para lhe dar ânimo. 
— Qualquer dia entro aí num negócio, tu verás... Não te aflijas. — E vão cinco... 
— Também há de chegar o nosso S. Miguel. A desgraça há de se cansar de nos 
perseguir. 
E o pão que trazia para casa era quase uma esmola. Mas tanto mentia que 
chegava a iludir-se. Às vezes não sabia o que havia de dizer. A desgraça gasta; a 
desgraça gasta até o sonho grotesco dos humildes. E elas caladas olhavam e 
esperavam; pareciam suplicar-lhe — Mente! ao menos mente! — E o velho 
inútil procurava um sonho ainda que fosse usado. 
A velha reanimava-se. E outra vez passeava na sala, embrulhada no xale rapado. 
— Não, que é preciso sairmos deste atoleiro. 
— Agora vai, agora vai, tu verás. Ando aí com um negócio... Sabes tu que 
mais?... Deixa-me trabalhar. Sossega. 
 
4 
— Nem na cova! 
Ia a mãe deitar-se e Sofia, até aí silenciosa, dizia erguendo-se: 
— Pai, não se aflija. 
— Eu não, filha, eu não. Aquilo é gênio, coitada, tem razão, tem sofrido muito. 
Vai tu também prá cama. Dá cá um beijo... Assim. Eu cá fico com a escrita. 
— Boa noite. 
Sozinho, o Gêbo cismava muito tempo, olhando a luz. Depois, horas e horas, 
ouvia-se a pena correr no papel, parar, tornar... — E vão cinco, e vão sete... 
noves fora nada... — até que a vista se lhe toldava, e a desoras, embrulhado no 
cobertor, tombava sobre a mesa, soluçando: 
— Não posso! não posso mais! E tinha uma letra tão linda! 
Na própria desgraça caem por vezes resquícios do sol. Houve tempo em que 
respiraram. Tinham.lhe dado escritas, mas faltava a luz dos olhos, e a vida de 
expedientes tornara mais aziaga. Achavam-no ridículo, ninguém o tomava a 
sério a esse homem gordo e chorão, que vivia com esta pedra a moê-lo e a 
gastá-lo — a sorte da filha. 
Quase sempre ao deitar falavam da filha. 
— É o que nos vale, a nossa filhinha, 
— Sempre nos dá mais ânimo. 
— É tão boa, tão nossa amiga!... 
A velha trabalhava, ruminava projetos desconexos para enriquecerem; a roupa 
andava defendida e cuidada até às últimas. Luziam as coisas e quase não 
comiam para poupar, sobretudo ela que tudo guardava para o Gêbo e para a 
filha. 
— Ó homem, mas então? toda a gente se arranja e tu estás sempre na cepa 
torta! 
— Deixa estar, mulher! As coisas não vão como tu pensas. 
— Ora não vão, não vão!... 
Era ela afinal que o empurrava, àquele ser gordo e inútil. Fortalecia-o. 
— Por vossa causa é que eu luto — dizia ele sempre. — Não posso mais! 
 
5 
E não podia. Porque até o sonho mesquinho dos desgraçados se estanca, 
porque até aos desgraçados chega o momento em que não lhes é dado 
sonhar... Os pobres contentam-se com pouco — tudo lhes serve, qualquer fio 
lhes basta, e fazem esforços desesperados para o manterem vivo. Mas a 
desgraça seca, e o Gêbo, que não tinha imaginação, não podia sonhar; o que ele 
queria era dormir, dormir aniquilado, um sono profundo de morte. Os outros 
não lhe consentiam, debatiam- se ainda, e a velha teimava em resistir à 
desgraça, em iludir-se até à última, até cair por terra, exausta, exigindo.lhe 
todos os dias uma mentira para alimentar o seu sonho, teimando em defender 
até aos últimos restos de uma vida imaginária. — Então?... — interrogava, cada 
vez mais ansiosa. Mas o Gêbo já não sabia. O Gêbo já não podia mentir. E a 
necessidade de inventar todos os dias tornava-se-lhe tão dolorosa, mais 
dolorosa ainda, do que a de pedir esmola. Aquele homem gordo, ao chegar a 
casa, procurava o dinheiro no bolso e algum resto de sonho para atirar à mulher 
alta, seca, nervosa, de olhos fixos nele: — Então? então... Nada, nada... — Mas 
mente! ao menos dizia o silêncio, diziam os olhos ansiosos, dizia a atitude da 
mulher imobilizada diante daquele ser atarantado, cada vez mais grotesco, 
diante da desgraça cada vez mais próxima. Então, nada! então só ele não 
percebia que ninguém pode viver neste mundo sem sonhar, e quanto mais 
pobres, mais necessário se torna juntarem-se e arquitetarem uma mentira, 
como friorentos à procura de lume!... 
No seu caminho só encontra desgraçados e todos os desgraçados procuram 
iludir-se. O seu convívio é com seres quase tão grotescos como ele e que só se 
fartam de ilusão. 
Ela Dá À tarde o Gêbo vai para uma loja conhecida onde se juntam os 
comerciantes falidos e os professores sem discípulos, desesperados por terem 
perdido tudo, menos a faculdade de sonhar. Um, a um canto, calado, com as 
mãos sobre o castão da bengala e o queixo apoiado nas mãos, escuta. Escuta ou 
sonha?... Outro fala sempre, maneja cifras como um prestidigitador, e está ao 
fato de todos os negócios que se fazem na praça. E há outro a quem o dinheiro 
não interessa. Já tem enriquecido e empobrecido umas poucas de vezes, 
sempre com a mesma indiferença e o mesmo casaco verde; o que o interessa 
são as empresas, os planos, as aventuras irrealizáveis. E aquele encostado ao 
balcão, magro e sereno, só intervém com palavras decisivas e todos se afastam 
dele: tem a especialidade de meter no fundo os negócios em que entra, por 
melhores que eles sejam. Todos trazem letras na algibeira, papéis que ninguém 
desconta, combinações esplêndidas para enriquecer. E falam muito, enganam-
se uns aos outros, não por mentirem, mas para tornarem mais visível a sua 
aspiração, o sonho escondido e inútil. Só o Gêbo não pode mais e olha-os num 
mudo espanto. 
— Oh, como eu sou feliz!... — exclamava um deles. — Agora tenho aí um lugar... 
 
6 
Nem sequer o escutavam e, se um saía, diziam os outros: 
— Cuido que está cada vez pior. 
— Um homem que teve um crédito na praça! 
— Tem a fome à porta. 
— Coitado! Eu agora é que trago entre as mãos um negócio... 
Vivem iludidos e tombam no sepulcro gastos e com a cisma em maravilhosos 
lucros. E não têm porventura razão? Não vão a amanhã quinhoar dessa larga e 
misteriosa empresa — a Morte? 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
7 
UM DRAMA 
JÚLIO DANTAS 
 
Os melhores romances são, evidentemente, aqueles que nunca se chegam a 
escrever. 
Ontem, recolhi mais cedo a casa. Abri, ao acaso, um livro de Vaschide e Vurpas 
sobre a Lógica Mórbida, aborreci-me vinte vezes, vi outras vinte vezes o relógio, 
atirei-me sobre o meu velho Récamier de mogno e bronze doirado onde é 
tradição que dormia a sesta Junot — e ia, por fatalidade histórica, a adormecer 
também, quando bateram as sete horas. Devia estar às sete e meia no Avenida 
Palace. Este inevitável jantar do Paço de Souza, com o seu bric-a-brac e as suas 
aventuras de Londres, oprimia-me como uma trovoada próxima. Vesti a casaca, 
fatigado, sonolento, amarrotei nas mãos um execrável par de luvas novas, 
embrulhei-me no meu quimono inglês, e ia a acender o cigarro para sair, 
quando o criado entrou com uma carta. 
— Está o portador à espera. 
— De quem é? 
— Não disse, senhor doutor. 
Vi o sobrescrito: letra de mulher. Voltei-o: havia, sobre o lacre doirado, vestígios 
de um sinete de armas Pattes de rnouche rápidas, nervosas, convulsas. O 
perfume pareceu-me conhecido. Pus-me a adivinhar a proveniência. Não atinei. 
Era uma carta de mulher. Abri. 
“Meu amigo — Hesitei muito antes de me resolver a escrever-lheesta carta. 
Parto hoje para Bruxelas, inesperadamente. Não, meu amigo, não queria saber 
porquê. Escrevo-lhe com os olhos vermelhos de chorar e tão turvos de lágrimas, 
que mal vejo as pobres letras que lhe mando. Há de ouvir falar muito de mim. 
Hão de dizer-lhe da sua pobre amiga todas as ignomínias e todas as torpezas. 
Acredite-os. Deve ser tudo verdade. Eu nem já tenho o direito de exigir que me 
respeitem. Esqueci tudo, perdi tudo de abdiquei de tudo. Aqui me tem, com as 
minhas pobres mãos nas suas, a dizer- lhe adeus e a pedir-lhe o que só a um 
grande amigo pediria. Deixo-lhe, confiando à sua guarda, um pouco da minha 
alma e da minha vida. De todas as afeições que me restam, fiéis nos bons e nos 
maus momentos, escolhi-o a si. Perdoe-me. Disse-me um dia, brincando, que 
queria ser o padrinho dele. A ninguém melhor o poderia confiar, neste doloroso 
e delicioso instante em que deixo Lisboa — talvez para sempre. Entrego-o ao 
seu coração, à sua bondade, à sua ternura. Trate-o bem. Seja amigo dele. Leva 
ainda, nas mãozitas brancas, os meus últimos beijos e as minhas últimas 
lágrimas. Quanto me custou a deixá-lo, pobre amor! Aí o tem. É seu. Quis ainda 
que ele fosse comigo — mas era impossível. Como havia de fazer esta longa 
 
8 
viagem até Bruxelas impertinente e doentinho como está! E depois, que será 
amanhã a minha vida — que serei eu própria, amanhã? Não me esqueci de 
nada. Vão com ele os seus brinquedos prediletos. O portador, que é o meu 
velho criado Antônio, leva ordem de lhe entregar tudo. Receba-o e fale-lhe. Que 
atração que nós outras, mulheres, temos para o abismo — e como eu me sinto, 
neste instante em que lhe escrevo, horrivelmente feliz e deliciosamente 
desgraçada! Adeus. Beijo as suas mãos amigas. Dê-lhe, ao pobre querido, o meu 
último beijo. A cabeça escalda-me, sinto vertigens. É a hora do Sud. Uma vez 
ainda — adeus. — Sua amiga — Luisa.” 
— Está aí o portador da carta? — perguntei eu ao criado. 
— Está sim, senhor doutor. 
— Mande entrar. 
O Antônio, tipo de escudeiro de casa nobre provinciana, vestido de preto, os 
olhos inflamados de chorar, surgiu à porta. Trazia nos braços uma espécie de 
berço de verga, acolchoado e coberto com um açafate. Aproximei-me, inquieto 
— e abri. 
Era um gato francês, branco e desdenhoso, soberbo e indiferente, que me olhou 
com estranheza e se espreguiçou, ronronando, entre uma grande bola de 
celulóide e uma cabeça vermelha de Polichinelo. 
 
9 
CONTO DA PÁSCOA 
ANTÔNIO SARDINHA 
 
Quando a lua assomou por detrás dos paredões da fortaleza já a matança tinha 
começado. Subiam gritos roucos das vielas, enroladas na sombra trágica da 
noite, para logo se apagarem ao longe, num ruído confuso de batalha. 
Surpreendidos pela sanha do ataque, os vizinhos da cidade saltavam 
estonteados da cama, não sabendo, ao aferrolharem-se melhor, se eram os 
mouros que haviam tornado. E, no entanto, descidos do alcáçar, os homens de 
armas repartiam-se em bandos, e a cada esquina, no cotovelo de qualquer 
arcada ou rio adro dos pequenos cemitérios da reconquista, esgolfavam-se uns 
contra os outros, numa refrega impiedosa e sem cansaço. 
Assim, por entre pragas e ais espaçados de moribundos, o dia da Páscoa vem 
encontrar a Bejaranos e a Portugaleses, dizimando-se furiosamente dentro dos 
muros de Badajoz. 
*** 
Corria o ano de 1289 e não se fechava ainda um século sobre a hora em que a 
Cruz se vira hasteada, nos adarves da cidade, pelas tropas vitoriosas de Afonso 
de Leão. Abril viera, mais uma vez, com as cegonhas voando a sua rima 
compassada e os campos toucando-se de rosmaninho e giesta. Na véspera, 
entre a procissão solene dos cônegos e dos raçoeiros, o Bispo benzera, na 
Catedral, o Fogo e a Água. Tudo parecia, com a ressurreição do Senhor, anunciar 
a paz à velha atalaia do Guadiana. Mas os ódios antigos não dormiam, como 
brasas de baixo da cinza. 
Não dormiam desde o primeiro instante em que a colonização de Badajoz, em 
seguida à sua tomada, se entregara a famílias oriundas de Portugal e a gente 
descida de Bejar — a caminho já das montanhas leonesas. Dividiram-se as 
terras, na presença do Rei, pelos povoadores da cidade. 
Cedo a cobiça despertou, ateada pela diferença de raças. E não tardaram 
Bejaranos e Portugaleses procurarem-se nas ruas de Burgos, como duas hostes 
encarniçadas, por um sentimento bárbaro de extermínio. 
Mandava em Castela, já unida a Leão, aquele D. Sancho, a quem os cronistas 
chamaram o Bravo. 
Possuíam os Portugaleses valimento na Corte, — o valimento de D. Afonso 
Godinez, favorito do Monarca. Descendia D. Afonso Godinez de certo D. 
Godinho Godinhes — o de Coimbra, do qual se conta nas genealogias que de 
Riba-Mondego correra com a sua mesnada à conquista de Salamanca. Não se 
esquecia o favorito de Sancho IV dos vínculos do sangue, na proteção 
 
10 
dispensada aos Portugaleses de Badajoz. Quem sabe se eles não descenderiam, 
também dos outros, dos que tinham subido de Riba-Mondego na mesnada de 
D. Godinho Godinhes, com os seus cintos aperrados e os enérgicos braços 
plebeus, denunciando a adolescência dum povo prestes a ser batizado pela 
história? 
Seguros de tão grande encosto, empenharam-se os Portugaleses em expulsar 
de Badajoz os Bejaranos, — seus contendores. Não era menos forte o empenho 
dos Bejaranos em se desfazerem dos Portugaleses. 
Com este fermento constante de desavença, o próprio rei 
D. Sancho tentou, em pessoa, congraçar os dois bandos enfurecidos. Andavam 
então em Castela as coisas mui revoltas, por causa dos partidários dos infantes 
de La Cérda. Temia-se o Monarca de que em Badajoz, ou Bejaranos, ou 
Portugaleses, se voltassem para seus sobrinhos. Mas a ação apaziguadora do 
Rei durou tanto, como durou a sua estada em Extremadura. Tornando depressa 
ao antigo, conseguiram os Portugaleses atirar para fora da cidade com os 
Bejaranos. E, não contentes, despojaram-nos ainda por cima dos seus haveres e 
fazendas. 
Queixaram-se os espoliados a D. Sancho, e por decisão da justiça real, se 
intimou aos Portugaleses completa reparação. Entrados de novo na cidade, 
exigem os de Bejar que se cumpra a sentença da Cúria-Régia. Recusam os 
Portugaleses atendê-los, arrumados ao apoio que lhes dispensava na corte o 
favorito do Monarca. Logo a luta se acendeu, mais cruel do que nunca. Rompera 
em ligeiros motins, mal o sino grande da Sé badalara o recolher. Protegidos pelo 
esconso das vilas, puderam os de Bejar apropriar-se da parte da alcáçova, e na 
balbúrdia do massacre, os Portugaleses, saindo, cegos, para o combate, não 
distinguiam a irmãos e a inimigos, na ira dos seus golpes enraivados. 
*** 
“Liberdad! Liberdad!” gritavam os Bejaranos no seu assalto às moradas dos de 
Portugal. E, de mistura com o tinir dos ferros mordidos de laivos, vermelhos, já 
aclamam rei a 
D. Afonso de La Cerda. A manhã raiara, com o Guadiana muito quieto, 
espreguiçando na indiferença a sua linha arrastada e suja. 
O estridor da carnificina renascera mais violento, e ninguém pensava, ou 
alanceado pela dor, ou ensandecido pelo ódio, em honrar a Cristo Senhor 
Nosso, ressuscitado naquele dia. Os sinos da Igreja-Maior ficaram calados, na 
alta torre ameiada. Nenhuma garrida se ouvia aqui ou além, convidando os fiéis 
para o convívio dos Sagrados Mistérios. Os largos atulhavam-se de cadáveres, e 
os cães lambiam, gulosos desse banquete inesperado, as poças de sangue 
 
11 
negro. A porta da Catedral ainda uma mão trêmula a abrira. Mas os cadeirados 
do coro permaneceram desertos de beneficiados e de cônegos. Dir-se-ia que 
nem a Missa se iria escutar nas naves venerandas, quando no lajedo ressoaram 
passos brandos e leves. O Bispo entrava, sem cerimonial, acompanhado por um 
pajenzito, transido de pavor. 
Era uma figura macilenta de ancião, com longos sulcos de penitência na 
apergaminhada face de asceta. Dirigiuum olhar dolorido às capelas ermas e 
obscuras, para de pronto endireitar o busto, como que de ouvido à escuta. Lá 
fora, à orla da manhã, a matança redobrava mais implacável, — com mais 
sanha. Turvou-se a expressão do Prelado, já de joelhos diante do Altar, onde 
bruxuleava uma lâmpada quase a extinguir-se. As rosáceas inflamavam-se a 
pouco e pouco, flamejando com o sol nascente, aleluias de cor. E na alma do 
Bispo, que atormentada procela! Perlavam-lhe a pele amarfinada lágrimas 
grossas e vagarosas. Nos lábios secos, adivinhava-se-lhe o fio débil da oração 
refrigerando-lhos, compassiva. Adeja-lhe em torno um como que resplendor 
místico, O que passaria na prece do ancião, clamando piedade ao Senhor? 
Mas, eis que o Prelado se levanta, tocado dum alento repentino. Levanta-se, 
com um aprumo majestoso de Pastor, e a um sacristão aterrado que se escoava 
na sombra, ordena-lhe que trepe à torre e despregue a revoada dos sinos, em 
repiques de festa solene. Paramenta-se ele próprio, entretanto, com ouros e as 
galas da liturgia. A sua boca recita, confiada, as palavras do Apóstolo: — “Oh 
mors, ubi victoria tua?” Uma luminosa serenidade lhe acaricia as feições, todo 
embebido em meditação profundíssima. No alto da torre, por sobre a cidade a 
braços com a Morte, os sinos repicavam já a glória de Cristo Ressuscitado. 
Passeando-se na crasta capitular, repetia o Bispo, impregnado duma secreta 
unção, a apóstrofe jubilosa do Apóstolo: — “Oh mors, ubi victoria tua?” E na 
torre, os sinos repicavam, — repicavam, levianos e açodados, na manhã 
transparente de abril. 
*** 
Mas os cônegos não aparecem, não aparecem os raçoeiros. Teria o Bispo de 
subir sozinho os degraus do Altar, para que não faltasse ao Senhor a dádiva 
angustíssima da Missa? Volta o coração a apertar-se-lhe, percebendo para lá do 
muros espessos da Catedral, o bater dos ferros homicidas, de envolta com os 
brados e as imprecações da batalha. 
Enclavinha as mãos afiladas num gesto súplice de misericórdia, e é assim que 
ele avança para o presbitério, sem acólitos nem fiéis, com a igreja vazia e o coro 
abandonado, como se um vento tumular houvesse soltado ali a sua rajada 
devastadora. 
 
12 
“Introibo ad altare Dei!” — murmura o Bispo, meio curvado sobre si mesmo. E 
logo eleva o pensamento ao Senhor, para que não se reze sem ouvintes a missa 
gloriosa da Ressurreição. Volve-se, depois, lento e angustiado, — “Dominus 
vobiscam!” pronunciando a saudação ritual. Mas queda-se suspenso, de mãos 
erguidas, como se o tivesse roçado a asa duma maravilha nunca vista. Prostrada 
a seus pés, recolhida e atenta, uma imensa turba enchia a Catedral. Entrara 
silenciosa e em silêncio guardava a mais recolhida atitude, num desejo 
transparente de bem honrar ao Senhor. 
Renova o Prelado a saudação litúrgica, ao começar o ofertório. E então a sua 
vista cansada, por entre a assistência comprimida, sem um rumor, ao longo das 
três naves, iluminadas pelo sol em caprichosas fitas de ouro, abrange, agora, 
com surpresa, mantos floreteados de Alcântara, peitos de couraças 
esplendentes, magistrados de loba e garnacha, damas arrastando brocados de 
preço, algumas cogulas mitradas, seguidas duma massa anônima de mesteirais 
e gente miúda, trajando honradamente a sua véstia domingueira. Apura ainda 
mais a vista o comovido ancião, e já reconhece muitos a quem ungira nos 
transes da agonia ou que ele acompanhara ao descanso final, entoando, 
pausado, o ofício de defuntos. Na ausência dos vivos, os mortos haviam saído 
do sono frio da sepultura para testemunharem, no milagre da própria 
ressurreição, o milagre admirável da ressurreição de Cristo Jesus! 
Inclina-se o Bispo para o Cálix mais para a Hóstia num colóquio mudíssimo com 
Deus feito Carne, O seu olhar anuviado mal atinge, esforçando-se, as rubricas 
góticas do missal. Bate-lhe o coração numa fadiga inexprimível. Mas ao 
momento solene da Consagração, com o sangue do cordeiro imolado, 
o Bispo oferece-se, em holocausto sincero para que a alegria visite os Vivos e a 
paz seja dada aos Mortos de boa vontade. Vai-se arrastando, trôpego e 
exânime, na observância dos passos canônicos. “Ite, misse est!” — balbucia, por 
fim, com a voz desmaiada, a desfalecer-se-lhe na garganta. 
O estranho povo de fantasmas sumira-se como por encanto. E ao suplicar, de 
cabeça pendente: “Placeat tibi, sancta Trinitas...”, os membros inteiriçam-lhe de 
súbito, o espírito desampara-o sem sofrimento, e o Bispo adormece 
suavemente na Eternidade, como uma criança no regaço da mãe. Quem vira os 
Mortos confessarem a vitória da Vida sobre a Morte, não podia continuar mais 
entre vivos que estavam mais mortos na vida do que os Mortos no seu sepulcro 
de sombras! 
 
 
 
 
 
 
13 
O REMORSO 
AQUILINO RIBEIRO 
— Carrasco, excomungado, ainda hás de malhar com os ossos numa cadeia! — 
gritava o padre Claro do alto do patim, que nas costas da casa, descia para o 
quintal. 
O filho afastava-se com faceto desleixo, a assobiar, pelos ombros um casado 
desbotado de montanhaque, em direção a Norberto, que plantava bacelo ao 
cabo da propriedade. 
Como as chuvas tivessem lavado o céu, a voz do velho penetrava afiada e inteira 
na imperturbável quietude das veigas. Docemente, a perder de vista, os 
socalcos estendiam-se cobertos do veludo verde das ferrãs. E por eles abaixo 
até onde a voz atingia, as mondadeiras e os cavadores paravam a ouvir a 
contenda injuriosa. Dizia o padre: 
— Este ladrão é a ruína de minha casa. Aqui só há que escolher: ou ferrar-lhe 
um tiro ou dar parte à justiça. Tem vinte e três anos este piranga, e não lhe dói, 
não sente a mais pequena sombra de vergonha de estar a sugar o suor de dois 
velhos! Ainda por cima, morde a mão que lhe dá o sustento. Arre! Vá para as 
Pedras Negras, pegue num bacamarte e saia à estrada! 
— Ladra para aí, ladra! Farta-te de ladrar, velho cão! — respondeu Isaac, já de 
longe, perto da geira cio bacelo. 
— Vadio! Gastei com ele quatro contos, melhor fora deitá-los a um poço. 
Consumições, noitadas, trabalhos, quantas não passei por mor dele! Meu Deus, 
meu Deus, grande castigo me destes! 
— Não se consuma, meu senhor — interveio D. Dorotéia — ele lá terá o pago! 
Uma alma perdida só anda para perder as mais; é deixá-lo! Se aldemenos 
comesse, bebesse, calaceasse e não andasse ligado a semelhante choldra? 
 
Olha com que foi se meter, a Amada, a Amada que foi de cão e gato, do Praça 
do Mões, de quem lhe piscou o olho! Todos estes Amados são raça de má 
colada. O pai, o Arnadão Velho — dizia meu tio Calhorra — foi dos que 
assaltaram a casa do Alferes de S. Martinho. Mais tarde, encontraram-lhe umas 
colchas que haviam pertencido ao Alferes. Teve a morte afrontosa que merecia. 
Que morte! Ainda estou a ver a Amada Velha a gritar pelo povo arriba: à de el-
rei, que mataram meu homem! Alvoroçou-se o povo todo e foi-se ver. Estava o 
desgraçado estendido de borco, à beira do caminho, junto às Alminhas do 
Bracejar, com as tripas deitadas fora por um rasgão que tinha mais de palmo. 
Aquilo só golpe de machada ou com gadanha de feno. Dava engulhos mirá-lo. 
Pois, mesmo assim, toda a gente de Segões se apresentou a defender o 
assassino: fora o Amado, homem de maus empréstimos e ruins tornas, que 
 
14 
quisera roubar duas moedas ao Pinto Moleiro. O fidalgo da Silvã, pôs-se de 
peito feito e livrou-o. Oh! os filhos saem ao pai. Tudo lhes serve, couves, 
galinhas, roupas dos estendedoiros. A Amada mãe não roubou uma saia de 
folhos à minha Rosa? E como se descobriu? 
Vai-se para a Santa Eufêmia e a zarga levanta a saia no bailarico. A Rosa deu fé 
do que era seu, foi um dia de juízo! Se hoje cerrarmos os olhos, meu senhor, 
comem-nos tudo o que há na casa; nem as sarapas escapam! Já me disseram 
que o Norberto andava a cheirar às fraldas da Adelina, a mais nova. É o irmão 
que lhe mete os vícios no pêlo. Mas ela querecoisa de mais vulto; o Norberto 
não levanta a grimpa, oprimido do trabalho, coitadinho! Gostava dum fidalgo 
como arranjou a irmã, vá encomendá-lo ao inferno! Ai, senhor, anda o Demo 
nesta casa! D. Dorotéia acabou a soluçar, enquanto o padre, sentado nas 
escaleiras, se velava dum ar sombrio e doloroso. 
Lá ao fundo, meio ocultos pela terra dos valados, revoltos como trincheiras, os 
dois irmãos conversavam. O camponês, de mãos grossas sobre a pá cravada no 
saibro, ia ouvindo as mofas do irmão mais velho, o fidalgo de mãos alvas e 
preguiçosas. O ar claro e sutil trazia-lhes, entre o grunhir dos bácoros e os 
cacarejos das galinhas, as lamentações dos pais. O sol dobava às espaldas do 
pinhal velho. 
Por complacência e desenfadamento, Isaac pôs-se a ajudar o cavador, 
manobrando a pá com a galhardia de homem forte e folgado. Entretanto, os 
carros desciam da serra, chiando. 
Por trás da casa em que eram nados, a aldeia alapava-se negra e rumorosa, 
empenachada já do fumo das cozinhas. Escurecia e, de volta da seara, passavam 
ranchos nos atalhos cantando alegres cantigas. Desceu afinal a noite e, 
enquanto Norberto plantava o último baceleiro, Isaac entretinha-se com quem 
ia no caminho, jogando uma chalaça a esta, regressando com aquela a um dito 
de serão ou das mondas. Quando a Maria Amada apareceu, debruçou-se a falar-
lhe de maneira que o irmão não ouvisse: 
— Então, a estas horas? 
— Os lobos não me comem. 
— Que andaste a fazer? 
— A limpar o trigo na belga do Pai Moiro. Tanto queria acabar, não houve 
modos. Então você bulhou com o padre? 
— Que queres, o raio de minha mãe foi-lhe dizer que estive a jogar. 
— É uma alma do diabo! 
 
15 
— Só está contente quando nos vê pegados. Às vezes estamos a palestrar e a rir 
em muito bons termos e logo ela aparece a dizer-lhe: “Ande, ande; beijam-se 
logo, mordem-se”. Sempre assim. 
— Ele nem é homem, nem é nada. Se fosse cá comigo endireitava-a... 
— É fraco, mas um santo homem. Os fracos são assim, amam a todos e, mais 
que ninguém, àqueles que os dominam. Minha mãe está nestas condições — 
manda mais nele que o bispo, e o pobre meteria as mãos no lume só para lhe 
agradar. Coitado, quere-me mais que às meninas dos olhos; o que não temos 
ambos é paciência para ruminar em silêncio os nossos aziúmes. 
Pois o que tem a fazer é afastar-se quando se derem tais passos. Quem cala 
vence. E você, a bater despique, não leva sua mãe à parede. Tem uma língua 
mais comprida que as bandeiras. . 
— São nervos... 
— E o asco que me tem...!? 
— Então... meteu-se-lhe em cabeça que és tu que me desvias para o mau 
caminho. 
— Pois serei. Vá, navegue para a África; que espera? 
— Resposta. 
Um grande silêncio passou entre eles. Estridentemente, Norberto sacudiu a 
fraga a greda da ferramenta. 
— Se me quisesse bem, não partia proferiu ela. 
— Pois se parto é por isso. Lá irás ter... 
— Dizem.me que se cai lá como tordos... 
— Histórias da carochinha; para onde conto ir é saudável. Mas deixa-me... 
— És tola. Todos os meses hás de receber a tua mesada; depois, quando as 
coisas marcharem de feição, avantas para lá. 
— Olhe que eu não vou jurá-lo, mas palpita-me que ando grávida. 
Isaac envolveu-a num longo olhar de ternura em que ia o agradecimento pelas 
voluptuosidades sentidas juntos, não enganadas. E disse, emergindo ao cabo 
dum pensamento: 
Esta noite não vás ao serão: vou lá a casa. 
 
16 
— Dialhos! Meu tio fartou-se ontem de pregar, porque à de el-rei era forte 
escândalo, você não me recebia e, depois de me fazer um filho, dava-me o 
pontapé... 
— Teu tio é uma basta chapada... 
— É meu tio; não há de velar? 
Pois sim, mas que não seja sendeiro. Faze o que te digo, fica em casa; obra das 
dez horas lá apareço. 
— Para a pouca vergonha, está você sempre pronto! — disse ela sorrindo, e 
fungando como poldra ao sentir macho. 
— E tu não? 
Romperam às gargalhadas, e eia, dando um passo, despediu-se: 
— Até logo. 
— Até logo. 
— Ah! já me esquecia — tornou, voltando atrás. — A Maria Carradas quer saber 
se sim ou não ficamos com o cordão... 
— Agrada-te? 
— Se agrada! Anda meio povo morto por lho caçar. 
— Quanto pede ela? 
— Cinco moedas... quanto lhe davam no S. Silvestre, sem tirar nem pôr. Diz que 
é por ser num aperto... 
— É de ouro fino? 
— Ouro antigo, maciço... 
— Bem, vai buscá-lo; lá pago. Mas ouve: eu falo primeiro com ela. 
— Olhe que, se nos demoramos, a Ludovina atravessa-se... 
— Não te apoquentes; amanhã tens o cordão. 
— Adeus; lá espero. 
Norberto dispunha-se a partir, de enxada, pá e alavanca ao ombro. De bom 
modo disse a Isaac: 
 
17 
— Não largas essa rês, e isso há de acabar mal. 
Mal... por quê? — questionou o irmão desabrido. 
Tu sabes, são umas vagabundas, ela, a mãe, a irmã. Ninguém lhes dá aceitação. 
A Maria Amada, essa, está mais corrida que as chinelas que traz calçadas. 
Lérias. Por serem pobres não quere dizer que sejam más mulheres. 
— Não, mas são de quem as comete. 
Lá se viu se a Adelina te deu ouvidos. 
Beh! Não dá porque anda o Zé Militão com sentido nela, e o que quere é 
casamento. Talvez a não desmoçasse o Arruda? 
— Olha que alanzoeiro! Onde há ele mulher, muito recolhida ou casta que seja, 
que o lambão não tenha gozado? Bem sei que o Mões teve relações com a 
Maria; pouco me importa. Isso é para vocês... fazerem caso dessas coisas; eu 
não faço. 
— Lá te avenhas; sustentas à mãezona, ao Amado, que é uni bêbedo, a todos. A 
familiagem não te há de ficar barata. Onde vais cavar dinheiro para ustir com as 
despesas? Tu não o ganhas; nossos pais’ não to dão. Roubas-lho? Olha, assim 
que deitem conta ao centeio que falta na arca grande, temo-la bonita. Quarenta 
alqueires em dois meses!... 
Subiram vagarosamente o carreiro; Norberto, carregando da ferramenta, Isaac 
das palavras do irmão e do cuidado de ter de desencantar cinco moedas, para 
satisfazer, na amante, a cobiça do cordão de ouro. 
*** 
Com o trabalho extenuante, a linha estatuária de Norberto tinha vergado. Uma 
corcova testemunhava nele o jogo fero e constante do esforço. Era um moiro, 
de sol a sol, para quem as raparigas não sorriam, porque a lida o tornara 
disforme e andava sempre um côdeas do sujidade. 
Apenas ao domingo lhe viam tréguas as costas dobradas e os tendões 
formidáveis de vergalho bem curtido. 
Nesses dias, vestia o fato de serrobeco, lavava mal a cara, e ia para o adro jogar 
o fito. Ganhava quartilhos, perdia quartubos, à custa dum ou de outro pataco 
esquecido sobre as mesas e caçado no vôo, ou que os fidalgos lhe davam 
quando, por causa de Isaac, lhes ia levar as trutas da ribeira. Na manhã, o vinho, 
bebido de véspera, enliçava-o traiçoeiramente na enxerga como corda de 
 
18 
muitas voltas, O padre, que ao florir da alba devia encontrar a égua aparelhada 
para correr às obrigações, despertava-o a sopapo. 
— Ainda não são horas, cagaçal? Deixa, que a jogatina há de te dar de comer! 
Norberto erguia-se praguejando, e abalava para o trabalho, enquanto Isaac 
dormia a sono solto, e D. Dorotéia aquecia a vianda dos porcos, que logo de 
manhã cedo, começavam a grunhir. Como não quisessem pagar soldada, não 
tinham criado nem criada. Uma ou outra paqueta passara pela casa. Mas o 
gênio irritável dos amos espavoria-as e elas abalavam sem ter aquecido lugar. 
Chegou, entrementes, o sorteio, e Norberto foi apurado para artilharia. Foi uma 
tristeza na casa, porque se ia embora o bom trabalhador. O moço, como andava 
impando da labuta, agradeceu a caderneta que o mandava para a Capital, onde 
pela certa, a vida devia ser menos áspera. 
Na véspera da partida, modo de honrar nele o irmão, a rapaziada deitou 
descante pelo povo, da venda do Travanca para a venda do Rolim. 
Isaac, que tinha conta aberta nos taverneiros, fartou o adjunto da vinhaça.Depois, já os mais morfenhos dormiam, meteram para os serões, e o senhorito, 
tão longe do que fora, cantou à desgarrada sobre a viola do Carquejo. 
No serão da Ambrósia, entre outras moças louçãs, pousavam as Amadinhas. Ia 
para dois meses que haviam rompido com Isaac, a isso obrigados por juramento 
público e formal, uma vez que o padre Claro lhes fora surpreender o tio, de 
gorra com os filhos, a saquear-lhe a arca das ceveiras. Em má hora voltou ele a 
aproximar-se: o Amado, que conservava uns restos de honradez, ergueu o sacho 
em ameaça e o estouvado desistiu. Mas como lhe faltasse fêmea, cansava-se a 
suspirar, lamentando que a gravidez, que Maria lhe anunciara, não existisse 
realmente, visto desse modo a ter segura. Como era uma mocetona forte e 
sadia, outros lhe andavam na cola e, ao que se rosnava, com intentos de casar. 
Em voz sonora de homem bem comido e bebido, ao fadinho que chorava entre 
os dedos sujos do Carquejo, Isaac cantou: 
Por que a teus olhos daria 
Deus assim uma tal sorte? 
Ao desafio co’a morte, 
Matam eles mais, Maria. 
 
E, dlim-dlim-dlim-dlão, na pausa, que se seguiu perpassou a vênia dos 
cantadores ao fidalguinho e a bisbilhotice cochichada das mulheres. E todas as 
caras se voltaram mofinas ou curiosas para a Maria Amada, que metera olhos 
confusos no chão. Mais alta e ardente, Isaac atirou segunda trova, ante 
Norberto que, soturno, o espiava: 
 
19 
São negras — é bom dizer, 
As penas das andorinhas, 
Mas co’a negrura das minhas 
Não se podem parecer! 
 
O Zé Militão retrucou-lhe com cantiga da sua lavra, a puxá-lo ao desafio. 
Isaac correu à roda, e lá foi na cadeia girante saltando de par em par, sem 
erguer o repto do cantador. 
Um dançarino — picava na viola a Caninha Verde ribaldia — deitou mão à Maria 
Amada. 
— Deixa-me — proferiu e, como se apoquentasse mágoa, apartou-se para um 
canto a fiar. 
Norberto volteava com Adelina e, contente da sua sorte, esquecia-se de vigiar o 
irmão. O fado de Anadia deu aso à moída letra: 
Oh! D. Carlos de Bragança e, depois, deste, aparado e sapateado, ainda se 
armou a Chula. Outra vez, defronte de Maria Amada, a voz cariciosa de Isaac 
garganteou: 
Fiandeira, ruim hora 
Em que te fiei meu carinho; 
Enquanto fias no linho, 
Meu amor em fio chora. 
 
E, desta feita, a moça suspirou, um suspiro que lhe fez tremer o seio forte e 
alevantado. E Isaac, que tal viu, dali em diante desvairou de alegria. Na 
penumbra, Adelina deixava-se palpar por Norberto e isso fazia-lhe esquecer 
todas as juras da terra. 
Era já tarde quando o descante desmanchou, e Norberto, que não dera fé de o 
irmão se sumir, entrou sozinho em casa. Ia cheio de Adelina, dos beijos que lhe 
pudera furtar, e tanto fogo impedia-o de dormir. 
Assim, mal os galos cantaram, saltou da enxerga; e, depois de renovar a 
manjedoura da égua, começou a pôr em ordem a troixa. Embrulhou as camisas 
num lenço da cabeça e noutro de assoar, em cujas pontas havia, bordada a 
retrós vermelho, uma quadra de amor, atou os seus seis tostões em níquel; em 
seguida meteu tudo numa bolsa de sarja e, de mansinho, foi bater à porta da 
casa onde dormiam os pais. 
 
20 
Já estavam ambos a pé e o padre Claro pigarreava alto, fumando o cigarro. O 
Moiro veio, percorreu a casa farejando e, assentando-se sobre o travesseiro, 
bocejou e uivou. 
— Então, pronto? — perguntou-lhe o padre em voz rude, fitando-o muito, o que 
nele era indício de comoção. 
— Pronto, falta aparelhar a égua. 
— Bem; vai tirá-la cá para fora. E quem vai contigo até a vila? 
— O Toninho. Vou chamá-lo e depois aparelha-se. 
Na rua, as vozes e os passos retiniram sob o toldo refrangente do céu gelado. 
Era no inverno e águas nos cômoros choravam, O padre pôs-se a aparelhar a 
besta. Meio oculta na treva, a mãe estendia o braço com o lampião de azeite 
erguido ao alto, O padre Claro dispôs os alforjes em aparatoso, estudado 
equilíbrio, enquanto o Toninho e Norberto tiritavam. Depois, deitou a gualdrapa 
d,e pele de vitelo por cima e afivelou a cilha. 
A um aceno de Dorotéia, meteram para dentro de casa, a fim de que os rapazes 
engolissem uma bucha e dois tragos de aguardente. Havia na sala uma 
atmosfera consoladora de agasalho. E Norberto, afagado, rompeu na sua 
loquela de aldeão. A mãe, entretanto, trouxera a açafate e, sobre a tampa 
voltada, serviu pão, queijo e azeitonas e um gole de aguardente no fundo verde 
duma garrafa. 
Os porcos, sentindo passos, começaram a roncar, e ela disse: 
— Aqueles grulhas estão sempre prontinhos para comer. 
Alumiando sempre e teimando com Toninho para que se servisse, D. Dorotéia 
fez as suas recomendações, de olhos no filho: “Tivesse muito juízo, e nada de 
maluqueiras se queria chegar a ser um homem. Deixasse-se de camaradagens, 
que sempre vinham a dar em droga, e de fumar, que o fumo era bom para os 
peralvilhos”. 
O padre tossia, sorvendo o cigarro a grandes goladas. 
“Juizinho, que ninguém as deita em saco roto. E aos superiores, aos 
comandantes, fosse sempre obediente, e tão fiel que não existisse nunca um 
argueirinho por onde lhe pegar. Todas as manhãs, não se esquecesse de se 
recomendar à Senhora do Livramento que o livrasse das más horas e dos maus 
repentes. Três meses passavam depressa e cinquenta mil-réis sempre se haviam 
de conseguir para resgatá-lo. As matanças ainda estavam longe, mas a chouriça 
da carne lá lhe ia ter, se tivesse tento na bola.” 
 
21 
As recomendações dela correram durante muito tempo, enternecidas e 
molhadas de lágrimas. Norberto escutava-as, cabisbaixo, a vista cravada na 
toalha sobre duas moscas que voltejavam friorentas ou moribundas. 
Logo que os rapazes acabaram de trincar a última dentada, o padre Claro foi à 
porta escrutar o horizonte. E volveu a dizer que eram horas, se queriam botar à 
vila antes de o carro da carreira ter abalado. 
D. Derotéia perguntou se não se esqueciam de nada. Norberto circunvagou o 
olhar numa operação remissiva de memória, palpou a carteira de couro, 
verificou que levava o canivete e o lenço de assoar. Restava ir ao quarto do 
irmão dar-lhe um abraço. A mãe, por curiosidade, acompanhou-o. Mas o leito 
estava na compostura da véspera, sem sinal de se terem deitado nele. 
Norberto compreendeu e Dorotéla desatou em exclamações: 
— Aquela alma perdida não dormiu em casa. Já por lá anda metido de novo com 
a Amada. Olha que amor de irmão, nem um abraço te veio dar, meu filhinho!... 
Norberto calara-se; de semblante dorido, voz trêmula, o padre perguntou: 
— Então não dormiu em casa? 
— Não, meu senhor. Já se meteu outra vez com a porca tinhosa. 
— É um desgraçado. 
— Quando ontem andaste pelos serões, ele falou-lhe? Fala franco... — inquiriu 
Dorotéia. 
— Não sei; não vi. 
— E tu, Toninho? 
— Também não vi, senhora D. Dorotéia. 
— Pois onde havia de dormir, senão em casa dela! Foi garrafada que lhe deram 
a beber. 
— Trata de te aviar — disse o padre em voz cada vez mais trêmula e sentida — 
que o carro não espera. 
E, chamando-o de parte, deu-lhe dinheiro: 
Aqui está para o caminho. Não tenho mais, mas todos os meses lhe mandarei. 
Vá com o santo Anjo da Guarda. 
 
22 
— Três meses passam depressa — proferiu com voz artificiosamente 
desenganada, enquanto metia, a chorar, os 3$000 no bolso. 
Fora, a neblina esfarelava-se em gotas miudinhas e mormacentas. A este, o céu 
acalentava uma vaga promessa de luz. Via-se já luzir a espinha dos telhados. O 
Toninho ajeitou a égua a um pouso e subiu; Norberto ia montar, o padre gritou-
lhe: 
— Não pedes a bênção a tua mãe, malcriado? 
Não andava habituado a despedidas e quedou confuso. Mas engatilhou as mãos 
para a mãe, que estava na calçada, ao lado dele. Coberta de lágrimas, ela 
abençoou-o e, metendo- lhe mão no colete, acrescentou num sopro: 
— Pega. É pro vinho. Olha que fui vender os ovos da pedrês parate dar. 
Norberto pulou sobre a albarda atrás do Toninho e tangeu... 
A égua abalou e os dois velhos foram até atrás das casas vê-los ir. À Dorotéia, 
que soluçava, disse o padre: 
*** 
Nessa tarde Isaac Claro sentia toda a voluptuosidade de viver. A primavera, o 
amor e a força andavam em volta dele como três aias de bom servir. Já os 
centeios apendoavam, e chegara o tempo das romarias e arraiais. Grimpadas às 
cerejeiras, as raparigas debicavam as cerejas, de perna morena à dependura por 
entre os ramos, e, das hortas, os mostajeiros ofereciam seus frutos de tão 
esquisito sabor. 
Isaac, como todos os ociosos da aldeia, tinha o culto da bela sazão, nada o 
encantando tanto como os dias de sol, em que a figura dos homens, pelos 
caminhos, se nimba de tons velasquenhos, e a melancolia é varrida da 
fisionomia das coisas. Andava satisfeito, além disso, no amor-próprio: o rapaz 
que lhe cortejava a amante atirara-o pela porta fora, a cachação e a pontapé; e 
ela, volvidos dois meses de ruptura, voltara a ser a amante apaixonada, rendida 
agora, de todo, à sua força de macho. Mas, acima de tudo, saboreava a 
revolução muda que, involuntàriamente, provocara no ânimo de Adelina. A 
mulher acordara nela ao contato da mal disfarçada voluptuosidade que ali se 
estava vivendo e, mormente, ao contato das fortes manifestações da sua 
varonia. A inveja e o ciúme estremeciam a cada palavra na boca da mocinha; se 
ele aparecia, corava, e punha-se a tremer, como uma paveia ao vento, sempre 
que com a irmã se fechava na Casa de Cima. Uma vez fora surpreendê-la a 
chorar e, sob os seus afagos, desandara cabisbaixa, num amuo em que a 
puberdade alvoroçada retrocedia a jeito de criança. 
 
23 
Entendedor em psicologia feminina, Isaac palpitava de todos os palpites 
daquele sangue e coração revoltos. E a imaginação eriliçava-lhe o gozo sonhado 
duma perversão; e pensava, descia a uma destas reflexões superficiais que 
acodem automàticamente, que nem sequer são importunas e se esvaem, como 
os zumbidos no ar: como me poderia aguentar entre as duas?! Diabo de sorte! 
Interpretava assim, limpando a caçadeira, quando a Maria Carradas apareceu a 
passos de fera: 
— Muito boa tarde. Venho buscar o dinheiro que ainda me deve... 
— É para o que a gente os cria! É para o que a gente os cria! 
Isaac ergueu-se a puxá-la para um canto, donde os pais não ouvissem. Em voz 
desabrida, retorquiu-lhe a criatura: 
Se me tira de parte para se desculpar, perde o tempo. Quero cá o meu dinheiro, 
o mais é nisga. 
— Quem lho nega, mulher?! 
— Quem lho nega?! e vai em quatro meses para me dar uma bisbórria! Homens, 
até parece propósito! 
— Sossegue, vai-se-lhe pagar. Quanto devo? 
— Nem você sabe quanto me deve! Vá, pergunte à sua amiga quanto me deu... 
— Deu-lhe 7$000, não é verdade? Restam 14$000; amanhã ou depois lhe serão 
entregues. 
— Quero-os aqui já; promessas e cantigas não enchem barriga. Mas que seca! 
Raios partissem o cordão e a hora em que tive a idéia de lho vender! Olhe, 
senhor Isaac: quem boda não tem, gaiteiros não roga. Não podia pagar, não 
comprasse. 
— Cale-se, mulher! Já lhe disse que, depois de amanhã o mais tardar, recebe a 
importância. Os negócios nem sempre correm... 
— Não me importa, quero para cá o dinheiro! Não o tenho aqui, como lho hei 
do dar? 
— Ai sim? Vou-me queixar ao senhor padre Claro... 
A Maria Carradas deu uns passos resolutos para a escaleira; Isaac, num repelão, 
sacou-a para trás. Intimidada, tornou: 
— Pois olhe: torne-me o cordão. Por que me não torna o cordão? 
 
24 
— Agora é impossível. Eu pago-lhe, já disse. Era feio tirá-lo à rapariga; que não 
diriam para aí? 
— Mais feio é roubar e não pagar a quem se deve! 
Isaac rangeu os dentes, de cólera, do sentimento da sua fraqueza, vendo-se 
espremido nas mãos grosseiras daquela mulher: 
— Juro-lhe pela minha boa sorte... 
— De juras estou eu farta. 
Juro-lhe pela vida de meus pais; quere mais? 
— Mas oh! senhor, por que não me há de tornar o cordão, se eu lhe restituo os 
7$000 que cá tenho? Onde não há, el-rei o perde! 
— Que havia de pensar a rapariga? 
— Que havia de pensar? Mande-ma para o inferno. Se ela lhe quere bem, será a 
primeira a desatar o cordão do pescoço. 
— Nem todos são como vossemecê, senhora Maria Carradas. 
— Não são, não; se fossem, não vinha tanto mal ao mundo. Houve urna pausa e 
Isaac compreendeu que a mulher abrandava. Calculadamente instou: 
— Tenha paciência, amanhã ou depois lá lhe levo o dinheiro. Verá! 
— Quantas vezes mo repetiu! Agora é certo. 
A mulher olhava o chão, refletindo; ao cabo dum longo silêncio, volveu, porém: 
— Mas por que não larga essa mulher? Largue-a. Ora, eu a prender-me com 
tretas. Não, não quero cá saber... Vou ter com o senhor padre... 
Isaac voItara a limpar a caçadeira e não pôde impedir que, a correr, a mulher 
subisse a escada. Lá em cima, à porta verde, entreaberta, gritou: 
Senhor Reitor! Senhor Reitor! 
Dentro da casa soaram passos e D. Dorotéia respondeu: 
— Quem chama? Ah! é a senhora Maria Carradas. O senhor Reitor não está, foi 
dar um anjinho à terra. Se é recado que eu lhe possa dar... 
A Maria Carradas parou indecisa, depois, encarando Isaac interdito ao fundo do 
pátio, proferiu: 
 
25 
— Então eu volto quando estiver. 
D. Dorotéia, que espreitara por uma grelha, fechou a porta. 
— Espero até depois de amanhã pela manhãzinha — disse embaixo, a sós com 
Isaac. — Dentro desse prazo, ou me dá o dinheiro, ou entro em posse do 
cordão, ou faço grande escândalo. Depois não se queixe! 
Anuviou-se o espírito de Isaac e, num rápido exame de consciência, reconheceu 
quanto era nojenta a sua situação: dos dois destinos, ele representava na 
família o destino dos inúteis e dos maus. Norberto o dos oprimidos, de Caim. 
Mas a perver são era grande, e pouco sólido o remorso para emendar seu 
caminho. Nessa noite, todavia, na friorenta e voluptuosa Casa de Cima, Isaac 
dormiu mal. Manhã cedo, ainda o campanário não havia tangido para a 
missinha, saltou da cama. 
— Onde vais tão cedo? — perguntou Maria. 
— Vou a casa, porque o filho do Capitão há de lá aparecer para irmos pescar. Ao 
meio-dia estou de volta. 
Lavou-se numa prateira que estava por terra e, como não visse toalha, 
perguntou: 
— Maria, onde me limpo? 
— Limpa-te à fralda que a vesti ontem. 
Enxugou-se a regougar, mal humorado, e foi beijá-la em despedida: 
Adeus. 
A Amada, a miar ternuras, passou-lhe os braços em volta do pescoço. 
— Deixa-me! 
Quem te pega? 
Isaac arremessou-a contra a parede, num gesto de saciedade, e abalou. Rompia 
a madrugada e, na paz morta dos seres e das coisas, os campanários de seis 
aldeias falavam uma linguagem alta e religiosa. 
Pelos estábulos, um ou outro chocalho badalejava. Detrás duma esquina, 
esperou Isaac que os pais saíssem de casa para a igreja. Primeiro apareceu o 
padre, trôpego, dobrado, de batina, o cálice debaixo do braço numa bolsinha de 
chita vermelha; pouco depois a mãe, embrulhada no xale preto de todos os 
dias, a tamancar. 
 
26 
Assim que desapareceram no cotovelo da rua, Isaac entrou para o quintal e daí, 
escalando a janela, penetrou em casa. Em seguida, ràpidamente, servindo-se do 
podão com que o pai aparava as videiras, fez saltar a tampa, toda a parte 
superior da mesa em que era costume arrecadarem as economias. Ficavam-lhe, 
deste jeito, escancaradas as três gavetas. Procurando, entre papéis, encontrou a 
caixinha amarela onde o padre metia as notas e moedas de prata: a caixa estava 
porém, vazia. Revolveu os papéis: em vão. Nas outras gavetas havia canecas de 
marmelada, mecha para petiscos, circulares, pastorais, bulas antigas, receitas de 
botica e toda uma correspondência de anos. Um a um examinou os 
sobrescritos, não escondessem dinheiro. Bem esperluxou: nem uma cédula de 
tostãodescobriu. No meio da papelada, topou com um retrato seu, cartas, dele 
umas, outras dos diretores dos colégios por onde passara e várias cuja letra lhe 
não era familiar. E começou a ler as que se lhe afiguraram desconhecidas. Uma 
delas era de Norberto, datada do regimento, e rezava assim: 
“Meus queridos pais: lanço agora a mão à pena para lhes contar a minha triste 
vida. Saberão que tive oito dias de calabouço por ter rejeitado o rancho, em que 
encontramos um rato morto. Só me deram pão e água e levei o tempo todo a 
chorar, não tanto pelo mal que me faziam como pelas saudades que me vieram 
da nossa casa. Meus queridos pais, vejam se me arrancam a este degredo, 
senão, mato-me. 
Os sargentos são verdadeiros cães para mim, e os soldados fazem-me muita 
troça porque sou marrânica e não quero ir com eles para as moças do fado. Um 
dia destes, enquanto fazia guarda às cavalariças, arrombaram-me’ o baú e 
urinaram-me dentro. Tinha lá o resto dos dez tostões que me mandaram pelo 
Quim da Joana e mesmo esse me levaram. Fui-me queixar ao tenente, mas ele 
pôs-se a rir e a mangar comigo. Ainda que me desfaça todo para os ver 
contentes, não há maneira. Sei bem o exercício e, no tiro, sou dos que melhor 
batem no alvo. Mas isto pouco vale, porque não sou bem-falante, nem ponho 
vulto ao pé dos alfacinhas. Estou a escrever, com os olhos rasos de água, 
enquanto não chega o meu quarto. Mandaram-me dizer que o Moiro estava 
surdo; coitadinho, não o mandem matar, que tão fiel era e tão amigo da égua! 
Tinha muita pena se fizessem mal ao pobre cãozinho, ainda que não ouça, nem 
seja lampeiro como nos bons tempos. Saibam que aqui encontrei um 
condiscípulo de Isaac; contou- me muitas anedotas dele e que era muito 
esperto, mas às vezes com pouco miolo. Sempre lhe arranjaram emprego? Se 
ele ainda anda metido com a Amada, deixem-no lá, que o dia do relego há de 
chegar. Dêem-me novidades da terra e façam muitas visitas a quem por mim 
perguntar. Mandem-me dizer se o Militão já casou com a Antônia Borralha. 
Deitem a bênção a este seu filho Norberto Claro.” 
Isaac dobrou a carta, repôs os papéis no seu lugar, e disfarçou com arte o 
arrombamento da escrivaninha. Duas angústias lhe cerravam a garganta; a 
 
27 
frustração de seus esforços para encontrar dinheiro, e a hediondez de seus atos 
perante as lástimas de Norberto, juntas à tristeza que cobria aquela casa, como 
uma mortalha de defuntos. Mas de que jeito quebrar o destino? Como todos os 
seres rebeldes à lei das coisas, tinha a curiosidade de viver. Viver para ver os 
homens, as loucuras, as repúblicas, as estações, para se sentir nas infinitas 
modalidades da terra. Esse instinto, ajudado do pessimismo sorridente que 
considera o tudo como pó, o tudo como musgo do nada, passageiras a virtude, 
o vício, as emoções, sustinha-o à beira das resoluções vigorosas. 
O pensamento nele era profundo, mas rápido. Levantava a poeira violenta dum 
tropel de cavalos numa estrada de’ verão e desaparecia. A própria dita de se 
sentir sentindo lhe fazia volver o rumo das idéias. 
Num minuto volveu até as fezes à porcaria de sua condição. Viu-se o parasita do 
pobre velho, o ladrão de Norberto, a lagarta doirada daquela pobre casa. Um 
minuto, para logo voltar a si, ao seu pessimismo confortável, preocupado 
apenas com a perspectiva dum escândalo e a exautoração pública, em que 
fatalmente perderia a amiga. 
Nesse dia, tendo percorrido a escala dos expedientes, gizou um plano arriscado 
e difícil. 
Se o pai não tinha o dinheiro na gaveta é porque o trazia nos bolsos. Como 
chegar-lhe, se não largava a carteira e dormia com ela debaixo da almofada, 
escarmentado de gatunices? Lá cismou e, depois de muito cismar, escolheu o 
seu jogo. 
Antes que dessem graças a Deus, depois de cear, esgueirou-se da cozinha para o 
quarto do pai e, cautelosamente, meteu-se debaixo da cama. Aí esperou uma 
boa meia hora estendido sobre o sobrado, acalentando a esperança de resolver 
o grave problema. O padre veio por fim, resmungando, praguejando contra 
égua, que não comia o feno e estava fidalga, e contra a mariolagem do filho, e 
começou a despir-se. Do seu esconderijo, Isaac apenas lhe via as pernas 
mirradas e secas como cabos de faca. Ao cabo dum quarto de hora, o padre 
estava na cama, fumando. A mãe veio dar-lhe as boas-noites e perguntar: 
Tem roupa bastante? 
— Tenho. Dorme com Nossa Senhora. 
Uma longa hora havia decorrido e só se ouvia a égua mascando no estábulo. A 
respiração do velho sibilava. Isaac arrastou-se, então, como um réptil debaixo 
do leito, reprimindo o fôlego ao mais leve estalido das velhas tábuas. E, 
ajoelhado, sutil, insinuou o braço por debaixo do travesseiro. A sua mão fina e 
preguiçosa, destas mãos afusadas de parteira, sondou, passeou, divagou 
enquanto o coração lhe batia um galope louco de cavalo. A carteira foi arpoada. 
 
28 
Folheou-lhe as bolsas, enxergando como se tivesse olhos de nictalope. A velha 
carteira guardava quatro notas de mil-réis, não mais. Descoroçoado, assaltado 
novamente por uma matilha confusa de sentimentos, quedou-se indeciso; 
resoluto, enfim, tirou as quatro notas e meteu-as no peito. Docemente, com 
mais decisão mas não com menos prudência, colocou a carteira saqueada no 
seu lugar. O pai pigarreou e a alta e antiga cama de cerejeira rangeu 
dolorosamente. Isaac suspendeu-se um instante e, de rastos, como um ladrão 
consumado, atravessou o aposento escuro, a sala, o seu quarto, abriu a janela e 
saltou. 
*** 
Isaac correu a fechar a boca da Carradas com os 4$000; ela, como era boa alma 
e sentia a consumição do seu semelhante, concedeu mais um prazo de 24 
horas. 
Estava um dia remançoso, sem ventania. Não havendo perigo de incêndio, D. 
Dorotéia lembrou-se de fazer a barrela — que estava a roupa a encardir nos 
cestos, há muitas semanas. Para isso chamou a Narcisa, uma afilhada que 
morava a dois passos, e a fogueira foi acesa no alpendre, onde havia mais 
largueza que na cozinha e a lenha estava à mão de semear. Seriam dez horas da 
manhã, o fogo chamejava de rijo, e nuvens densas de fumo se esfarelavam 
através da telha-vã sobre a aldeia. Já fervia a dupla fila de potes e panelões 
quando D. Dorotéia chamou para a mesa. O almoço foi silencioso e breve, e 
Isaac não provou garfada. 
Ao levantar, Isaac perguntou ao pai se podia ir a Forles a cavalo. Como ele não 
tornasse resposta, cavalgou e desapareceu na velha calçada romana, por entre 
os pinhais imóveis. Os manos Isidros receberam-no afetuosamente, deram-lhe 
muitos conselhos, mas de dinheiro nem pinta. Cheio de desespero, entrou em 
casa quando o pai lavrara o óbito do anjinho, dado à terra na véspera. Como era 
muito idoso, a mão tremia- lhe em sacolões nervosos, e cada palavra lhe levava 
tempo imenso a escrever. Além disso, a letra era miúda e humilde como 
anotações de monge nas margens dum homiliário. 
— Quere que lhe lavre o assento? — perguntou Isaac, condoído. 
— Não senhor. 
Isaac foi sentar-se meditabundo num degrau do patim. A mãe, mal o viu, teve 
dó dele, que não almoçara, e apressou-se a servir o jantar. 
Quando o padre entrou, os vapores da sopa evolavam-se olorosamente das 
tigelas atestadas. Não obstante o bom caldo de feijão branco e o farto salpicão 
de lombo, Isaac absteve-se, como de manhã, de tocar em prato. O padre, à 
sobremesa, perguntou: 
 
29 
— Então, não come? 
— Obrigado; não tenho apetite. 
— Quere que lhe faça alguma coisa? Que tem, senhor? 
— questionou a mãe, a seu turno. 
Isaac despediu um mau sorriso por entre dentes. 
— Lá se arranje — tornou ela. — Já não está em idade de se lhe fazer a papa. 
O padre continuava o registro quando Isaac se acercou resoluto: 
— Tenho uma coisa grave a comunicar-lhe... 
O velho nem pestanejou. 
— Muito grave... 
Continuava ele a sua caligrafia difícil e laboriosa e Isaac rangeu os dentes:— Escuta-me, ou não me escuta? 
A pena trêmula cantava: enterrado no cemitério desta freguesia... 
Isaac deu um salto sobre ele e, paralisando-lhe a mão, disse de ar torvo: 
— Há de me ouvir!... 
O velho olhou-o de face e, com a voz a estalar de cólera, lançou-lhe: 
— Oh! malvado. Já nem o pão me queres deixar ganhar? 
Isaac largou-o de arremesso e, saindo à sala, escreveu: 
“Sou um desgraçado, mas a minha desgraça vai ter fim. Devorei-lhe quatro 
contos de réis e hoje vou matar-me por causa de 1O$000. Sim vou matar-me; 
hoje à noite, se não tiver restituído 1O$000 que me emprestaram, dou um tiro 
na cabeça. É quase cômico que uma vida dependa duma contingência tão fraca. 
Senhor Abade... meu pai, salve-me, arranje-me este dinheiro; eu queria ainda 
viver, ser bom, ser útil. Senhor Abade, lave-me da vergonha e serei outro.” 
Escrito o bilhete, foi com uma certa fatuidade romântica pô-lo diante dos olhos 
do padre, e saiu a ver a lixívia para dar tempo a que uma resposta raciocinada 
lhe fosse dada. A água fervia em cachões nos potes bojudos de dois almudes. 
Nas panelas esgrouviadas, o vapor cantava. A labareda enrubescia o alpendre 
todo. E Narcisa ia e vinha, rubicunda e alegre, escorrendo suor. 
 
30 
O velho, feito o assento, desceu as escaleiras e, de sacho na mão, foi-se a 
mondar na terra de batatal, de que as primeiras folhas, em ferretes de 
esmeralda, despontavam. Isaac correu ao escritório e, por baixo de sua súplica, 
encontrou a máxima jocosa: Qui lavat asinitm perdit aquam et saponem. 
Desvairado, então, começou a soluçar sobre a sua desdita. Caía a noite, uma 
noite suave e negra sem rumor de vento, nem lucilações de estrelas. Lá fora a 
fogueira crepitava esbrasiada, infernal, alimentada de novo para a segunda 
água. O padre entrou fazendo chocalhar os tamancos. Isaac correu-lhe ao 
encontro e, em voz submissa, interrogou: 
— Que resposta me dá? 
O pai abanou a cabeça, franziu os lábios num esgar mirado: 
— Ainda tem a desfaçatez de me pedir dinheiro? 
— Escuso pois de contar... 
— Dinheiro que eu tivesse, não era você que mo larpava. Antes gastá-lo em 
rosalgar... 
— É a última vez que lho peço. 
Já disse, não o tenho; mas, ainda que o tivesse não lho dava. 
— É possível que o não tenha, mas autorize-me a ir pedi-lo a alguém... 
— Pedi-lo, peça-o a quem lhe apetecer. Que tenho eu com isso? 
— Mas em seu nome; bem sabe que não tenho crédito... 
— Pois arranje-se — proferiu dando uns passos para a janela. — Não está farto 
de me roubar? de me tirar as sarapas? 
— Bem, tenho então de acabar com a vida? 
— Acabar com a vida!... Ah! ah! ah! um homem que nunca teve dignidade! 
Acordou-lhe tarde a honra. 
— Não me insulte; ninguém tem nada que me jogar à face. 
E os latrocínios contínuos que tem cometido nesta casa? e as ofensas à sua 
mãe, e as pancadas que lhe tem dado? 
E a exploração sórdida de seu mano? Não lhe podem jogar isso à face? 
— Podem, embora metade do que está dizendo não seja verdade. Mas na 
sociedade, no público, ninguém me poderá imputar a mais leve mácula. 
 
31 
— Vadio! Melhor fora tê-lo estorcegado ao nascer. Mariola! 
— Senhor Abade, dê-me os 1O$000!... Quere deixar dar cabo de mim por uma 
bagatela?... 
— Escusa de teimar; não tenho dinheiro, mas tendo-o, não lho dava. 
— Pela alma de seu pai, não me abandone... 
— Mas que rala! Não o tenho... 
— Deixe-me ir pedi-lo emprestado... 
— Quem lhe pega?... 
Isaac reconheceu a decisão inabalável do pai. Ele, tão fraco e tão bom, não se 
rendia à evidência da sua angústia. 
Lentamente a cólera subia-lhe ao peito, fazia-lhe trepidar as artérias como o 
motor duma máquina afadigada. A idéia de que se via em embaraços por uma 
coisa ínfima, como uma agulha e insuperável como o infinito, o desespero 
sufocava-o. 
— O senhor não é pai nem é nada; o senhor é um monstro de crueldade! 
— Isso, isso, sou um monstro. 
— É um monstro, é! Vê-me aqui a seus pés, amarfanhado como um farrapo, e 
não tem comiseração. 
— Já lhe disse que não tenho dinheiro... 
— Mande pedi-lo... — gritou Isaac de arranco. 
Humildemente, dir-se-ia que, tomado de medo, o padre retorquiu: 
— Pedi-lo... se você me arranjasse 50$000 para remir Norberto?... 
— Roube-o do cofre das almas... Não é certamente a primeira vez. 
— Malvado! Deus te dê mais que o que eu furto às almas. Não comias um 
almoço! 
— Ata ou desata? — tornou o filho com exaspero. 
Já lhe disse, não tenho dinheiro; há muito que não tenho dinheiro... 
— Quere então o meu suicídio? 
 
32 
— Nem quero nem deixo de querer. O senhor já tem idade para ter juízo. 
— E não há de ter pena? — proferiu em voz escarninha. — Não? 
— Não venha ele outro mal à minha casa. 
A mesma voz chocarreira, alucinada, tornou: 
Então há muito que não vê dinheiro? 
— Assim a bênção de Deus me cubra. 
— Ah! ah! ainda por cima é perjuro... Isso é o que se chama um sacerdote 
exemplar! 
— Então, esses 4$000 que traz na algibeira? 
O velho levou a mão ao bolso e, sacando a carteira, num abrir e fechar de olhos 
reconheceu o roubo. De salto e com garra formidável atirou-se ao pescoço do 
filho: 
— Ah! ladrão! Ah! ladrão! 
Isaac não pôde furtar-se e rolaram no soalho abraçados. A luta foi cega, feroz e 
rápida. Quando Isaac se safou de baixo do velho, caía ele para o lado, inerte. Os 
olhos saíam-lhe das órbitas e da língua pendia-lhe um fio de espuma. Os dentes 
negros arruaçavam. 
O moço lançou em torno um olhar desvairado e, possesso, sacudiu o velho com 
frenesi e roquidos de espasmo: 
Pai! Meu pai! 
Um instante de dor imensa e, numa carreira louca, saiu de casa, desceu o patim. 
Cingia a terra uma abóbada de breu. O alpendre, logo abaixo, irradiava como 
um inferno. E o desgraçado correndo para lá, dum pulo, projetou-se na 
fogueira, mergulhou a meio dos carvões incandescentes. Contra ele, potes de 
dois almudes caíram de borco, quebraram-se as panelas em mil astilhas. E com 
a carne assada, cabelos e fato a arder como archote, correu na noite, uivando 
um uivo que atemorizou cinco aldeias. 
 
 
 
 
 
 
33 
O SENHOR DOS NAVEGANTES 
FERREIRA DE CASTRO 
 
Branca, airosa, pequenita, erguida sobre o tope duma colina, a capela do Senhor 
dos Navegantes divisava-se de longe, como um farol. E a ela, mais do que a uma 
luz que brilhasse na noite atlântica, os pescadores enviavam esperanças e 
desesperos quando em graves riscos se viam nas cavas e lombas do mar. Porque 
ficava alta, ao fim de íngreme, pedregoso carreiro, raras gentes lá iam, salvo em 
dia de festa, com morteiros e filarmônica, uma vez cada ano. Fascinado pela sua 
solidão e largueza panorâmica, eu encontrara, porém, maneira de a atingir, 
naquelas tardes de estio, sem me fatigar. Para subir às montanhas, um livro vale 
mais do que um bordão 
e, com um livro sob o braço, punha-me a caminho. Logo que as pernas se 
cansavam, sentava-me e lia, enquanto os melros iam cantando nas velhas 
árvores da encosta. Sem o livro, pequeno seria o meu repouso e continuaria a 
ascensão antes de refeito, que a tendência de quem anda, leve rodas, leve 
hélices ou apenas, modestamente, os pés com que nasceu, é, já se sabe, chegar 
com brevidade ao ponto do destino — mesmo que nada tenha lá a fazer. Com 
um livro, é outra coisa. Sendo bom, prende-nos mais tempo do que os braços 
duma mulher e só desejamos interromper a sua leitura no final dum capítulo ou 
em parágrafo onde possamos retomá-lo facilmente. Entretanto, as pernas 
recobram forças. 
Naquela tarde, quando cheguei ao adrozito do Senhor dos Navegantes, 
demorei-me a contemplar o mar vasto que dali se descortinava então muito 
sereno, com suas velas graciosas e fugidias. Embaixo, estendia-se a grande praia 
semi-selvagem. À direita, rompendo de entre um pinhal e com o seu verde 
contrastando, espaireciam casitas modernas,todas faceiras e coloridas, ao 
passo que, da banda aposta, aglomeravam-se as barracas dos pescadores, em 
forma de ilha sobre a areia e tão velhas, negras e roídas pelos anos corno se 
fossem as mesmas que deixaram ali os primeiros habitantes do litoral. Dir-se-ia 
que o tempo parara do lado onde se trabalhava rudemente ao sol, muitas vezes 
de colaboração com a morte, para se ativar apenas naquele onde se descansava 
à sombra tranquila dos pinheiros. 
Após esse longo olhar de amor com que todos os dias eu envolvia o oceano, a 
terra e o céu, sentei-me e dispus-me a ler, como de costume. Logo, porém, que 
abri o livro, um rumor veio de dentro da capela. Surpreendido, voltei-me! e 
notei que a porta estava semi-aberta. Era a primeira vez que isto me acontecia. 
Até então, eu encontrara sempre ali o maior silêncio, um abandono total, com 
esse sabor poético, fino, voe- jante, que parece destilado pelo ar e é próprio das 
ermidas que padroam as montanhas. Agora, os rumores continuavam. Senti 
passos e vi um homem transpor a porta. Trazia os braços fechados sobre 
 
34 
numerosos ex-votos — barcos de cera e pequenos quadros, ingênuas pinturas 
feitas sobre madeira. Ao dar comigo, estacou, contrariado; teve, em seguida, 
uma expressão incerta, logo um movimento de indiferença, e dirigiu-se, 
resoluto, para o extremo do adro. Desse lado, o flanco da colina descia quase a 
pique, até um matorral que se estendia lá embaixo. Era um temível 
despenhadeiro e, para defesa que quem vinha ao Senhor dos Navegantes, 
haviam construído ali um murozito, que, da banda de dentro, formava bancada, 
em semicírculo. Nessa parte do adro o homem se sentou, a uns quatro metros 
de mim. 
Descontente com a sua presença inoportuna, eu ia baixar de novo, os olhos 
sobre o livro, quando ele me disse: 
— Provavelmente, o senhor pensa que sou um ladrão... Não é verdade? 
É certo que eu havia pensado isso, um momento antes. Havia mesmo avaliado 
as suas forças em relação às minhas e concluído que, em caso de luta, talvez ele 
fie vencesse. Não que fosse mais novo; devia ter uns cinquenta anos 
maltratados, enquanto eu não chegara ainda aos trinta; mas o seu corpo era 
mais robusto e os braços muito mais possantes do que estes, tão franzinos, de 
que eu me servia para pegar no livro. Os seus olhos claros não precisavam de 
óculos, ao passo que os meus, sem auxílio de vidros, não me permitiriam dar 
dois passos seguros, mesmo para fugir. E embora as linhas físicas dele não se 
mostrassem rudes, o fato que trazia, gasto, poeirento, e não sei mais o quê do 
seu todo, sugeriam a idéia de homem habituado a trilhar as estradas do mundo, 
de varapau na mão, ao assalto da vida. 
Hesitei, talvez, alguns segundos a responder-lhe, porque ele, antes de me ouvir, 
acrescentou: 
— Não, não sou um ladrão. Isto — e apontava os ex- votos — pertence-me. Eu é 
que não os mereço. 
Definitivamente perturbado, respondi, enfim, qualquer coisa, não me recorda o 
quê, uma necessidade por certo, e ele voltou: 
— O senhor não é de cá, pois não? Está a veranear na praia? 
— Estou. 
— Logo vi. A gente da terra não tem tempo de vir ler aqui para cima. Bem lhe 
basta o trabalho. 
Não entendi logo se ele falava assim para me ser desagradável ou simplesmente 
para demonstrar a sua perspicácia. 
 
35 
Os seus olhos voltaram a fixar-me. Pareceu-me ver neles um lume de ternura, 
mas senti-me novamente humilhado ao ouvi-lo dizer: 
— O senhor esteja à sua vontade. Eu não me demoro. E não tenha medo de 
mim. Não faço mal a ninguém. Todos nós, é certo, já algum dia fizemos mal — e 
eu fiz um grande mal, mais isso foi há muito ano... — A sua voz repetiu, de 
modo profundo: — Há muito ano... 
— Ë claro que não tenho medo — declarei, num tom frio. Na verdade, porém, 
eu enervara-me. Tornei a abrir o livro e fingi ler. 
O homem calou-se. Vergado sobre os ex-votos, as suas mãos iam desfazendo os 
barcos de cera e arremessando-os para o abismo, para o sarçal que havia lá no 
fundo. Deles reteve apenas a extremidade dum mastrozito com a sua 
bandeirola, que fez voltejar na ponta dos dedos, com o sorriso de meiguice que 
se tem para as coisas frágeis, e logo enfiou na botoeira do casaco. Depois, 
estendeu o braço, agarrou uma pedra e deu-se a partir os quadros onde se viam 
embarcações de pesca em luta com o mar embravecido e o Senhor dos 
Navegantes de pé sobre as nuvens. Todos eles tinhas datas, algumas seculares, 
e legendas de reconhecimento, com muitos erros ortográficos e mal 
desenhadas letras. O homem lia-as antes de despedaçar as pequenas tábuas 
onde elas estavam inscritas e, em seguida, lançava os destroços lá para baixo, 
para o mesmo lugar dos barquitos de cera. Entretanto, parecia falar sozinho: 
— Nunca salvei ninguém... Ninguém! Eu bem o desejaria fazer, mas já não tinha 
força para isso. Se estes se livraram da morte, foi apenas por circunstâncias 
favoráveis... 
Levantou-se e voltou a entrar na capela. Pensei ser o momento de me retirar. 
Ele ia julgar que eu era cobarde, mas isso não me importava. “Verdadeiramente 
— disse a mim próprio — o que busco nesta colina é sossego e sossego, hoje, 
não existe aqui.” 
Antes, porém, de eu haver tomado uma decisão definitiva, o homem surgiu, 
novamente, no adro, com outra braçada de ex-votos. Eram, agora, mãos, seios, 
cabeças e pés de cera. Ou por falta de paciência para os desfazer um a um ou 
por lhe ser anojoso partir aqueles símiles de membros humanos, que lhe 
acordariam, porventura, remotas superstições, ele acercou-se do murozito e 
lançou os ex-votos, duma só vez, para as profundidades do desfiladeiro. Depois, 
quedou-se, um momento, como eu fizera antes, a contemplar o oceano. 
— O senhor gosta disto? — perguntou, voltando-se ligeiramente para mim. 
— Isto é bonito — respondi-lhe. — um magnífico panorama. 
Tornou a olhar o mar e a terra, lentamente. 
 
36 
— Sim, não é feio... — murmurou. — Podia ter saído muito melhor, mas enfim... 
Já os romanos gostavam deste sítio. Ninguém o sabe ainda, senão eu, mas a 
verdade é que houve aqui um crasto. Olhe, acolá, à esquerda, antes de se entrar 
no adro, se alguém escavar, encontrará restos de sepulturas... E à praia, lá 
embaixo, chegaram a vir muitas galeras... Existia, então, um pequeno porto, que 
o tempo assoreou... 
Surpreendiam-me os seus conhecimentos e a propriedade com que falava. 
Tentei examiná-lo melhor, mas o homem encontrava-se novamente de costas, 
sempre de olhos fixos ao longe. 
— Efetivamente — disse-me, depois — se olharmos bem para a terra, para o 
mar e para o céu, e se pensarmos na grande variedade dc seres que há no 
mundo e em todo este admirável equilíbrio planetário, parece-nos que estamos 
perante um milagre. Não é assim? A si também não lhe parece o mesmo, 
quando pensa, por exemplo, nas vidas submarinas? 
— Sem dúvida, o mundo é muito variado... 
Ele interrompeu-me: 
— Eu sei que todos os homens pensam, sobre isto, mais ou menos o mesmo. 
Um simples inseto, que encontramos num monte e que podemos facilmente 
esmagar com o pé se ele não fugir, é capaz de levar-nos a meditar sobre o 
mistério da criação, é capaz de arrastar o nosso pensamento por caminhos 
obscuros que, momentos antes, não tínhamos sequer admitido percorrer. 
O homem interrogou-me bruscamente: 
O senhor o que é? Qual é a sua profissão? Eu disse-lha e ele pareceu contente: 
— Ah, muito bem! Então pode compreender. Não é verdade que o mundo 
parece feito por uma imaginação portentosa? Por uma inteligência que nenhum 
homem pode igualar? 
— Algumas vezes tenho refletido sobre isso... — confessei modestamente. 
— Aí está! — exclamou ele. — Aí está! Mas o senhor engana-se! Pelo menos, 
engana-se em metade... 
Aproximou-se mais de mim. Eu estava sentado, ele de pé; eu tinha de olhá-lo de 
baixo para cima e sempre com receio de que estendesse as mãos e me 
dominasse. 
—

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