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Contos Portugueses Primeiro Volume Aquilino Ribeiro - Ferreira de Castro - José Régio Raul Brandão - Júlio Dantas - Antônio Sardinha Rodrigues Miguéis - Ana de Castro Osório José Gomes Ferreira - Abel Botelho Seleção e organização de: Iba Mendes “Projeto Livro Livre” Livro 239 Poeteiro Editor Digital São Paulo - 2014 www.poeteiro.com Projeto Livro Livre O “Projeto Livro Livre” é uma iniciativa que propõe o compartilhamento, de forma livre e gratuita, de obras literárias já em domínio público ou que tenham a sua divulgação devidamente autorizada, especialmente o livro em seu formato Digital. No Brasil, segundo a Lei nº 9.610, no seu artigo 41, os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento. O mesmo se observa em Portugal. Segundo o Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, em seu capítulo IV e artigo 31º, o direito de autor caduca, na falta de disposição especial, 70 anos após a morte do criador intelectual, mesmo que a obra só tenha sido publicada ou divulgada postumamente. O nosso Projeto, que tem por único e exclusivo objetivo colaborar em prol da divulgação do bom conhecimento na Internet, busca assim não violar nenhum direito autoral. Todavia, caso seja encontrado algum livro que, por alguma razão, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentileza que nos informe, a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo. Esperamos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejam repensadas e reformuladas, tornando a proteção da propriedade intelectual uma ferramenta para promover o conhecimento, em vez de um temível inibidor ao livre acesso aos bens culturais. Assim esperamos! Até lá, daremos nossa pequena contribuição para o desenvolvimento da educação e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obras sob domínio público, como esta seleção de contos dos escritores portugueses: Raul Brandão, Júlio Dantas, Antônio Sardinha, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, José Régio, José Gomes Ferreira, Rodrigues Miguéis, Abel Botelho, Ana de Castro Osório. É isso! Iba Mendes iba@ibamendes.com ÍNDICE RAUL BRANDÃO - HISTÓRIA DO GÊBO ........................................................ JÚLIO DANTAS - UM DRAMA ....................................................................... ANTÔNIO SARDINHA - CONTO DA PÁSCOA ................................................. AQUILINO RIBEIRO - O REMORSO ................................................................ FERREIRA DE CASTRO - O SENHOR DOS NAVEGANTES ............................... JOSÉ RÉGIO - MARIA DO AHÚ ...................................................................... JOSÉ GOMES FERREIRA - A FESTA FICOU-ME BARATA ................................ RODRIGUES MIGUÉIS - SAUDADES PARA DONA GENCIANA ...................... ABEL BOTELHO - A FRECHA DA MIZARELA .................................................. ANA DE CASTRO OSÓRIO – SACRIFICADA .................................................... 1 7 9 13 33 43 54 59 80 102 1 HISTÓRIA DO GÊBO RAUL BRANDÃO Por fim, na entrada desse frio e rigoroso inverno, já tinha vencido tudo. De envelhecido e gasto, di-lo-eis um trapo que se deita fora ou um doido de cabelos brancos estacados, a falar sozinho. Toda a gente o conhecia. Ó Gêbo! — Ahn? A mulher azedara com a pobreza e passava horas e horas a chorar, atirada para um canto, ou pregava dias inteiros em monólogos cheios de gritos, de sonho espezinhado, todos lavados em lágrimas. Se tudo acabasse!... Mas nem a Morte escuta os desgraçados, nem o tempo se apressa; vai moendo na sua mó as tristezas, as aflições e o pão negro. O desespero daquela criatura caía em impropérios sobre a cabeça do Gêbo espantado, a suar, e a quem nem a própria desgraça conseguia empedernir o coração. Todos os dias eram da mesma forma sombrios e tristes. Isto de chorar um dia e outro dia, dá a impressão de que chove e se não- sai do inverno. Outras vezes calavam-se, mas a discussão era talvez maior, era talvez pior... Existência sem cor, que se gasta fio a fio, em que a desgraça se assemelha à desgraça, os gemidos se não ouvem, em que cada um para o seu lado interroga a vida e as horas passam acinzentadas deixando-os todos três curvados, todos três absortos. Porque a vida interior nunca cessa, nem no sono — este monólogo com que a vamos comentando até ao fim, que não tem existência real e que vivo é imenso. Nos homens e nos bichos. Talvez também nas árvores. Nuns desvairado, noutros humilde, baixinho, quase pueril. A vida não é senão este monólogo furioso ou ridículo e mais dorido quando é concentrado e sem gritos... Mas ela não podia mais e irrompia: — Deste, emprestaste a toda gente. E agora? agora? Riem-se de ti inda por cima, e ninguém te ajuda. Morremos à fome. — É o mesmo, mulher, é o mesmo. Paciência... — O pior é de nós, de mim e da pequena. — Pois é o que me aflige, que por mim quem me dera morrer! — Não fosses tolo! Olha de teus amigos como trepam. — Ó mulher, mas que hei de eu fazer? Tu não me dirás o que hei de fazer? — Roubá-lo! roubá-lo!... 2 Às vezes esqueciam-se e ainda pairavam em torno duma esperança, a qual, agora nascida, logo a desgraça calcava. A mais humilde poeira de ilusão bastava para que todos três gelados pela desventura, se sentassem na enxerga, prontos a edificar os mais altos castelos e esquecidos de tudo. Só a filha sofria em silêncio, magra e com um sorriso tão triste que lembrava certas horas em que há sol e chuva misturados. E como o Gêbo lhe queria! Pelo seu destino que seria amargo, e por ser o único ser no globo, que lhe não dizia más palavras. Lá ia indo pela vida fora, coçado e com um ar de aflição que fazia rir. Parecia amachucado: as marcas dos encontrões nunca mais lhe saíam. A mulher passava os seus dias numa luta desesperada com a desgraça, arrancando-lhe os últimos trapos, disputando-os um a um até vê-los desfeitos. Ao fim do dia ouviam-se os passos vagarosos do velho nas escadas e a sua respiração — anh! anh! — sufocada. — Aí vem ele... — murmurava. O Gêbo entrava e ela logo, sôfrega, morta por desabafar o que todo o dia ruminara: — Até que vieste, homem! E então? Conta. Então há alguma esperança? — Não há nada, mulher. E sentava-se arrasado. — Também, ninguém faz caso de ti. Que és tu? Sabes o que tu és? — Eu não, o quê? — Um ente inútil. Não há ninguém que se não ria de ti, das tuas desgraças, das tolices que tens feito... Que é do dinheiro que tanto nos custou a poupar? — Eu sei lá agora do dinheiro! Não falemos mais nisso... O que lá vai, lá vai. — Pois é o que tu queres... Mas hei de falar, hás de me ouvir. Deste cabo de tudo, davas dinheiro a toda a gente... Tinhas-me a mim, tinhas a pequena. Reparasses, era a tua obrigação. — Ó mulher, ora tu que todos os dias vens com a mesma seca. Não me basta a minha aflição!... De que serve isso agora? — De que serve? Serve de muito! À noite, à luz do petróleo, o Gêbo fazia escritas com um cobertor pelos ombros e as mãos geladas de frio. A filha, sumida na sombra, compunha-lhe a roupa, e a 3 mulher Talhava, passeando na sala. Batia a luz do candeeiro na cara oleosa do Gêbo, no nariz enorme, nos seus olhos tristes e, do outro lado da mesa, só se viam iluminadas as mãos de Sofia, toda a noite trabalhando sem ruído e sem descanso. — Já tive unia letra tão linda e agora... Os desgostos cansam a gente. — É de ti! é de ti! Outros têm penas, desgostos, caem e tornam a levantar-se... — dizia-lhe a mulher. — Têm sorte,é o que é. Para tudo é preciso sorte. — E curvado sobre os livros contando, murmurava mais baixo: —... E vão sete... — Sorte! sorte! A culpa é tua que não tens energia nenhuma. Procura! Deixas-te ficar espapaçado para ai... Tu o que queres é comer e dormir. Ó mulher!... — E erguia o carão aflito, onde batia a claridade da chapa. Viam-se- lhe os olhos aguados. — O mulher, a gente também perde as forças... Sempre a desgraça! sempre a desgraça!... — Tudo nos corre torto! Mas... — Tudo! deixa-me!.. E desatava a chorar. Então o Gêbo, aflito, a mão curta e gorda ronronando no papel, mentia para lhe dar ânimo. — Qualquer dia entro aí num negócio, tu verás... Não te aflijas. — E vão cinco... — Também há de chegar o nosso S. Miguel. A desgraça há de se cansar de nos perseguir. E o pão que trazia para casa era quase uma esmola. Mas tanto mentia que chegava a iludir-se. Às vezes não sabia o que havia de dizer. A desgraça gasta; a desgraça gasta até o sonho grotesco dos humildes. E elas caladas olhavam e esperavam; pareciam suplicar-lhe — Mente! ao menos mente! — E o velho inútil procurava um sonho ainda que fosse usado. A velha reanimava-se. E outra vez passeava na sala, embrulhada no xale rapado. — Não, que é preciso sairmos deste atoleiro. — Agora vai, agora vai, tu verás. Ando aí com um negócio... Sabes tu que mais?... Deixa-me trabalhar. Sossega. 4 — Nem na cova! Ia a mãe deitar-se e Sofia, até aí silenciosa, dizia erguendo-se: — Pai, não se aflija. — Eu não, filha, eu não. Aquilo é gênio, coitada, tem razão, tem sofrido muito. Vai tu também prá cama. Dá cá um beijo... Assim. Eu cá fico com a escrita. — Boa noite. Sozinho, o Gêbo cismava muito tempo, olhando a luz. Depois, horas e horas, ouvia-se a pena correr no papel, parar, tornar... — E vão cinco, e vão sete... noves fora nada... — até que a vista se lhe toldava, e a desoras, embrulhado no cobertor, tombava sobre a mesa, soluçando: — Não posso! não posso mais! E tinha uma letra tão linda! Na própria desgraça caem por vezes resquícios do sol. Houve tempo em que respiraram. Tinham.lhe dado escritas, mas faltava a luz dos olhos, e a vida de expedientes tornara mais aziaga. Achavam-no ridículo, ninguém o tomava a sério a esse homem gordo e chorão, que vivia com esta pedra a moê-lo e a gastá-lo — a sorte da filha. Quase sempre ao deitar falavam da filha. — É o que nos vale, a nossa filhinha, — Sempre nos dá mais ânimo. — É tão boa, tão nossa amiga!... A velha trabalhava, ruminava projetos desconexos para enriquecerem; a roupa andava defendida e cuidada até às últimas. Luziam as coisas e quase não comiam para poupar, sobretudo ela que tudo guardava para o Gêbo e para a filha. — Ó homem, mas então? toda a gente se arranja e tu estás sempre na cepa torta! — Deixa estar, mulher! As coisas não vão como tu pensas. — Ora não vão, não vão!... Era ela afinal que o empurrava, àquele ser gordo e inútil. Fortalecia-o. — Por vossa causa é que eu luto — dizia ele sempre. — Não posso mais! 5 E não podia. Porque até o sonho mesquinho dos desgraçados se estanca, porque até aos desgraçados chega o momento em que não lhes é dado sonhar... Os pobres contentam-se com pouco — tudo lhes serve, qualquer fio lhes basta, e fazem esforços desesperados para o manterem vivo. Mas a desgraça seca, e o Gêbo, que não tinha imaginação, não podia sonhar; o que ele queria era dormir, dormir aniquilado, um sono profundo de morte. Os outros não lhe consentiam, debatiam- se ainda, e a velha teimava em resistir à desgraça, em iludir-se até à última, até cair por terra, exausta, exigindo.lhe todos os dias uma mentira para alimentar o seu sonho, teimando em defender até aos últimos restos de uma vida imaginária. — Então?... — interrogava, cada vez mais ansiosa. Mas o Gêbo já não sabia. O Gêbo já não podia mentir. E a necessidade de inventar todos os dias tornava-se-lhe tão dolorosa, mais dolorosa ainda, do que a de pedir esmola. Aquele homem gordo, ao chegar a casa, procurava o dinheiro no bolso e algum resto de sonho para atirar à mulher alta, seca, nervosa, de olhos fixos nele: — Então? então... Nada, nada... — Mas mente! ao menos dizia o silêncio, diziam os olhos ansiosos, dizia a atitude da mulher imobilizada diante daquele ser atarantado, cada vez mais grotesco, diante da desgraça cada vez mais próxima. Então, nada! então só ele não percebia que ninguém pode viver neste mundo sem sonhar, e quanto mais pobres, mais necessário se torna juntarem-se e arquitetarem uma mentira, como friorentos à procura de lume!... No seu caminho só encontra desgraçados e todos os desgraçados procuram iludir-se. O seu convívio é com seres quase tão grotescos como ele e que só se fartam de ilusão. Ela Dá À tarde o Gêbo vai para uma loja conhecida onde se juntam os comerciantes falidos e os professores sem discípulos, desesperados por terem perdido tudo, menos a faculdade de sonhar. Um, a um canto, calado, com as mãos sobre o castão da bengala e o queixo apoiado nas mãos, escuta. Escuta ou sonha?... Outro fala sempre, maneja cifras como um prestidigitador, e está ao fato de todos os negócios que se fazem na praça. E há outro a quem o dinheiro não interessa. Já tem enriquecido e empobrecido umas poucas de vezes, sempre com a mesma indiferença e o mesmo casaco verde; o que o interessa são as empresas, os planos, as aventuras irrealizáveis. E aquele encostado ao balcão, magro e sereno, só intervém com palavras decisivas e todos se afastam dele: tem a especialidade de meter no fundo os negócios em que entra, por melhores que eles sejam. Todos trazem letras na algibeira, papéis que ninguém desconta, combinações esplêndidas para enriquecer. E falam muito, enganam- se uns aos outros, não por mentirem, mas para tornarem mais visível a sua aspiração, o sonho escondido e inútil. Só o Gêbo não pode mais e olha-os num mudo espanto. — Oh, como eu sou feliz!... — exclamava um deles. — Agora tenho aí um lugar... 6 Nem sequer o escutavam e, se um saía, diziam os outros: — Cuido que está cada vez pior. — Um homem que teve um crédito na praça! — Tem a fome à porta. — Coitado! Eu agora é que trago entre as mãos um negócio... Vivem iludidos e tombam no sepulcro gastos e com a cisma em maravilhosos lucros. E não têm porventura razão? Não vão a amanhã quinhoar dessa larga e misteriosa empresa — a Morte? 7 UM DRAMA JÚLIO DANTAS Os melhores romances são, evidentemente, aqueles que nunca se chegam a escrever. Ontem, recolhi mais cedo a casa. Abri, ao acaso, um livro de Vaschide e Vurpas sobre a Lógica Mórbida, aborreci-me vinte vezes, vi outras vinte vezes o relógio, atirei-me sobre o meu velho Récamier de mogno e bronze doirado onde é tradição que dormia a sesta Junot — e ia, por fatalidade histórica, a adormecer também, quando bateram as sete horas. Devia estar às sete e meia no Avenida Palace. Este inevitável jantar do Paço de Souza, com o seu bric-a-brac e as suas aventuras de Londres, oprimia-me como uma trovoada próxima. Vesti a casaca, fatigado, sonolento, amarrotei nas mãos um execrável par de luvas novas, embrulhei-me no meu quimono inglês, e ia a acender o cigarro para sair, quando o criado entrou com uma carta. — Está o portador à espera. — De quem é? — Não disse, senhor doutor. Vi o sobrescrito: letra de mulher. Voltei-o: havia, sobre o lacre doirado, vestígios de um sinete de armas Pattes de rnouche rápidas, nervosas, convulsas. O perfume pareceu-me conhecido. Pus-me a adivinhar a proveniência. Não atinei. Era uma carta de mulher. Abri. “Meu amigo — Hesitei muito antes de me resolver a escrever-lheesta carta. Parto hoje para Bruxelas, inesperadamente. Não, meu amigo, não queria saber porquê. Escrevo-lhe com os olhos vermelhos de chorar e tão turvos de lágrimas, que mal vejo as pobres letras que lhe mando. Há de ouvir falar muito de mim. Hão de dizer-lhe da sua pobre amiga todas as ignomínias e todas as torpezas. Acredite-os. Deve ser tudo verdade. Eu nem já tenho o direito de exigir que me respeitem. Esqueci tudo, perdi tudo de abdiquei de tudo. Aqui me tem, com as minhas pobres mãos nas suas, a dizer- lhe adeus e a pedir-lhe o que só a um grande amigo pediria. Deixo-lhe, confiando à sua guarda, um pouco da minha alma e da minha vida. De todas as afeições que me restam, fiéis nos bons e nos maus momentos, escolhi-o a si. Perdoe-me. Disse-me um dia, brincando, que queria ser o padrinho dele. A ninguém melhor o poderia confiar, neste doloroso e delicioso instante em que deixo Lisboa — talvez para sempre. Entrego-o ao seu coração, à sua bondade, à sua ternura. Trate-o bem. Seja amigo dele. Leva ainda, nas mãozitas brancas, os meus últimos beijos e as minhas últimas lágrimas. Quanto me custou a deixá-lo, pobre amor! Aí o tem. É seu. Quis ainda que ele fosse comigo — mas era impossível. Como havia de fazer esta longa 8 viagem até Bruxelas impertinente e doentinho como está! E depois, que será amanhã a minha vida — que serei eu própria, amanhã? Não me esqueci de nada. Vão com ele os seus brinquedos prediletos. O portador, que é o meu velho criado Antônio, leva ordem de lhe entregar tudo. Receba-o e fale-lhe. Que atração que nós outras, mulheres, temos para o abismo — e como eu me sinto, neste instante em que lhe escrevo, horrivelmente feliz e deliciosamente desgraçada! Adeus. Beijo as suas mãos amigas. Dê-lhe, ao pobre querido, o meu último beijo. A cabeça escalda-me, sinto vertigens. É a hora do Sud. Uma vez ainda — adeus. — Sua amiga — Luisa.” — Está aí o portador da carta? — perguntei eu ao criado. — Está sim, senhor doutor. — Mande entrar. O Antônio, tipo de escudeiro de casa nobre provinciana, vestido de preto, os olhos inflamados de chorar, surgiu à porta. Trazia nos braços uma espécie de berço de verga, acolchoado e coberto com um açafate. Aproximei-me, inquieto — e abri. Era um gato francês, branco e desdenhoso, soberbo e indiferente, que me olhou com estranheza e se espreguiçou, ronronando, entre uma grande bola de celulóide e uma cabeça vermelha de Polichinelo. 9 CONTO DA PÁSCOA ANTÔNIO SARDINHA Quando a lua assomou por detrás dos paredões da fortaleza já a matança tinha começado. Subiam gritos roucos das vielas, enroladas na sombra trágica da noite, para logo se apagarem ao longe, num ruído confuso de batalha. Surpreendidos pela sanha do ataque, os vizinhos da cidade saltavam estonteados da cama, não sabendo, ao aferrolharem-se melhor, se eram os mouros que haviam tornado. E, no entanto, descidos do alcáçar, os homens de armas repartiam-se em bandos, e a cada esquina, no cotovelo de qualquer arcada ou rio adro dos pequenos cemitérios da reconquista, esgolfavam-se uns contra os outros, numa refrega impiedosa e sem cansaço. Assim, por entre pragas e ais espaçados de moribundos, o dia da Páscoa vem encontrar a Bejaranos e a Portugaleses, dizimando-se furiosamente dentro dos muros de Badajoz. *** Corria o ano de 1289 e não se fechava ainda um século sobre a hora em que a Cruz se vira hasteada, nos adarves da cidade, pelas tropas vitoriosas de Afonso de Leão. Abril viera, mais uma vez, com as cegonhas voando a sua rima compassada e os campos toucando-se de rosmaninho e giesta. Na véspera, entre a procissão solene dos cônegos e dos raçoeiros, o Bispo benzera, na Catedral, o Fogo e a Água. Tudo parecia, com a ressurreição do Senhor, anunciar a paz à velha atalaia do Guadiana. Mas os ódios antigos não dormiam, como brasas de baixo da cinza. Não dormiam desde o primeiro instante em que a colonização de Badajoz, em seguida à sua tomada, se entregara a famílias oriundas de Portugal e a gente descida de Bejar — a caminho já das montanhas leonesas. Dividiram-se as terras, na presença do Rei, pelos povoadores da cidade. Cedo a cobiça despertou, ateada pela diferença de raças. E não tardaram Bejaranos e Portugaleses procurarem-se nas ruas de Burgos, como duas hostes encarniçadas, por um sentimento bárbaro de extermínio. Mandava em Castela, já unida a Leão, aquele D. Sancho, a quem os cronistas chamaram o Bravo. Possuíam os Portugaleses valimento na Corte, — o valimento de D. Afonso Godinez, favorito do Monarca. Descendia D. Afonso Godinez de certo D. Godinho Godinhes — o de Coimbra, do qual se conta nas genealogias que de Riba-Mondego correra com a sua mesnada à conquista de Salamanca. Não se esquecia o favorito de Sancho IV dos vínculos do sangue, na proteção 10 dispensada aos Portugaleses de Badajoz. Quem sabe se eles não descenderiam, também dos outros, dos que tinham subido de Riba-Mondego na mesnada de D. Godinho Godinhes, com os seus cintos aperrados e os enérgicos braços plebeus, denunciando a adolescência dum povo prestes a ser batizado pela história? Seguros de tão grande encosto, empenharam-se os Portugaleses em expulsar de Badajoz os Bejaranos, — seus contendores. Não era menos forte o empenho dos Bejaranos em se desfazerem dos Portugaleses. Com este fermento constante de desavença, o próprio rei D. Sancho tentou, em pessoa, congraçar os dois bandos enfurecidos. Andavam então em Castela as coisas mui revoltas, por causa dos partidários dos infantes de La Cérda. Temia-se o Monarca de que em Badajoz, ou Bejaranos, ou Portugaleses, se voltassem para seus sobrinhos. Mas a ação apaziguadora do Rei durou tanto, como durou a sua estada em Extremadura. Tornando depressa ao antigo, conseguiram os Portugaleses atirar para fora da cidade com os Bejaranos. E, não contentes, despojaram-nos ainda por cima dos seus haveres e fazendas. Queixaram-se os espoliados a D. Sancho, e por decisão da justiça real, se intimou aos Portugaleses completa reparação. Entrados de novo na cidade, exigem os de Bejar que se cumpra a sentença da Cúria-Régia. Recusam os Portugaleses atendê-los, arrumados ao apoio que lhes dispensava na corte o favorito do Monarca. Logo a luta se acendeu, mais cruel do que nunca. Rompera em ligeiros motins, mal o sino grande da Sé badalara o recolher. Protegidos pelo esconso das vilas, puderam os de Bejar apropriar-se da parte da alcáçova, e na balbúrdia do massacre, os Portugaleses, saindo, cegos, para o combate, não distinguiam a irmãos e a inimigos, na ira dos seus golpes enraivados. *** “Liberdad! Liberdad!” gritavam os Bejaranos no seu assalto às moradas dos de Portugal. E, de mistura com o tinir dos ferros mordidos de laivos, vermelhos, já aclamam rei a D. Afonso de La Cerda. A manhã raiara, com o Guadiana muito quieto, espreguiçando na indiferença a sua linha arrastada e suja. O estridor da carnificina renascera mais violento, e ninguém pensava, ou alanceado pela dor, ou ensandecido pelo ódio, em honrar a Cristo Senhor Nosso, ressuscitado naquele dia. Os sinos da Igreja-Maior ficaram calados, na alta torre ameiada. Nenhuma garrida se ouvia aqui ou além, convidando os fiéis para o convívio dos Sagrados Mistérios. Os largos atulhavam-se de cadáveres, e os cães lambiam, gulosos desse banquete inesperado, as poças de sangue 11 negro. A porta da Catedral ainda uma mão trêmula a abrira. Mas os cadeirados do coro permaneceram desertos de beneficiados e de cônegos. Dir-se-ia que nem a Missa se iria escutar nas naves venerandas, quando no lajedo ressoaram passos brandos e leves. O Bispo entrava, sem cerimonial, acompanhado por um pajenzito, transido de pavor. Era uma figura macilenta de ancião, com longos sulcos de penitência na apergaminhada face de asceta. Dirigiuum olhar dolorido às capelas ermas e obscuras, para de pronto endireitar o busto, como que de ouvido à escuta. Lá fora, à orla da manhã, a matança redobrava mais implacável, — com mais sanha. Turvou-se a expressão do Prelado, já de joelhos diante do Altar, onde bruxuleava uma lâmpada quase a extinguir-se. As rosáceas inflamavam-se a pouco e pouco, flamejando com o sol nascente, aleluias de cor. E na alma do Bispo, que atormentada procela! Perlavam-lhe a pele amarfinada lágrimas grossas e vagarosas. Nos lábios secos, adivinhava-se-lhe o fio débil da oração refrigerando-lhos, compassiva. Adeja-lhe em torno um como que resplendor místico, O que passaria na prece do ancião, clamando piedade ao Senhor? Mas, eis que o Prelado se levanta, tocado dum alento repentino. Levanta-se, com um aprumo majestoso de Pastor, e a um sacristão aterrado que se escoava na sombra, ordena-lhe que trepe à torre e despregue a revoada dos sinos, em repiques de festa solene. Paramenta-se ele próprio, entretanto, com ouros e as galas da liturgia. A sua boca recita, confiada, as palavras do Apóstolo: — “Oh mors, ubi victoria tua?” Uma luminosa serenidade lhe acaricia as feições, todo embebido em meditação profundíssima. No alto da torre, por sobre a cidade a braços com a Morte, os sinos repicavam já a glória de Cristo Ressuscitado. Passeando-se na crasta capitular, repetia o Bispo, impregnado duma secreta unção, a apóstrofe jubilosa do Apóstolo: — “Oh mors, ubi victoria tua?” E na torre, os sinos repicavam, — repicavam, levianos e açodados, na manhã transparente de abril. *** Mas os cônegos não aparecem, não aparecem os raçoeiros. Teria o Bispo de subir sozinho os degraus do Altar, para que não faltasse ao Senhor a dádiva angustíssima da Missa? Volta o coração a apertar-se-lhe, percebendo para lá do muros espessos da Catedral, o bater dos ferros homicidas, de envolta com os brados e as imprecações da batalha. Enclavinha as mãos afiladas num gesto súplice de misericórdia, e é assim que ele avança para o presbitério, sem acólitos nem fiéis, com a igreja vazia e o coro abandonado, como se um vento tumular houvesse soltado ali a sua rajada devastadora. 12 “Introibo ad altare Dei!” — murmura o Bispo, meio curvado sobre si mesmo. E logo eleva o pensamento ao Senhor, para que não se reze sem ouvintes a missa gloriosa da Ressurreição. Volve-se, depois, lento e angustiado, — “Dominus vobiscam!” pronunciando a saudação ritual. Mas queda-se suspenso, de mãos erguidas, como se o tivesse roçado a asa duma maravilha nunca vista. Prostrada a seus pés, recolhida e atenta, uma imensa turba enchia a Catedral. Entrara silenciosa e em silêncio guardava a mais recolhida atitude, num desejo transparente de bem honrar ao Senhor. Renova o Prelado a saudação litúrgica, ao começar o ofertório. E então a sua vista cansada, por entre a assistência comprimida, sem um rumor, ao longo das três naves, iluminadas pelo sol em caprichosas fitas de ouro, abrange, agora, com surpresa, mantos floreteados de Alcântara, peitos de couraças esplendentes, magistrados de loba e garnacha, damas arrastando brocados de preço, algumas cogulas mitradas, seguidas duma massa anônima de mesteirais e gente miúda, trajando honradamente a sua véstia domingueira. Apura ainda mais a vista o comovido ancião, e já reconhece muitos a quem ungira nos transes da agonia ou que ele acompanhara ao descanso final, entoando, pausado, o ofício de defuntos. Na ausência dos vivos, os mortos haviam saído do sono frio da sepultura para testemunharem, no milagre da própria ressurreição, o milagre admirável da ressurreição de Cristo Jesus! Inclina-se o Bispo para o Cálix mais para a Hóstia num colóquio mudíssimo com Deus feito Carne, O seu olhar anuviado mal atinge, esforçando-se, as rubricas góticas do missal. Bate-lhe o coração numa fadiga inexprimível. Mas ao momento solene da Consagração, com o sangue do cordeiro imolado, o Bispo oferece-se, em holocausto sincero para que a alegria visite os Vivos e a paz seja dada aos Mortos de boa vontade. Vai-se arrastando, trôpego e exânime, na observância dos passos canônicos. “Ite, misse est!” — balbucia, por fim, com a voz desmaiada, a desfalecer-se-lhe na garganta. O estranho povo de fantasmas sumira-se como por encanto. E ao suplicar, de cabeça pendente: “Placeat tibi, sancta Trinitas...”, os membros inteiriçam-lhe de súbito, o espírito desampara-o sem sofrimento, e o Bispo adormece suavemente na Eternidade, como uma criança no regaço da mãe. Quem vira os Mortos confessarem a vitória da Vida sobre a Morte, não podia continuar mais entre vivos que estavam mais mortos na vida do que os Mortos no seu sepulcro de sombras! 13 O REMORSO AQUILINO RIBEIRO — Carrasco, excomungado, ainda hás de malhar com os ossos numa cadeia! — gritava o padre Claro do alto do patim, que nas costas da casa, descia para o quintal. O filho afastava-se com faceto desleixo, a assobiar, pelos ombros um casado desbotado de montanhaque, em direção a Norberto, que plantava bacelo ao cabo da propriedade. Como as chuvas tivessem lavado o céu, a voz do velho penetrava afiada e inteira na imperturbável quietude das veigas. Docemente, a perder de vista, os socalcos estendiam-se cobertos do veludo verde das ferrãs. E por eles abaixo até onde a voz atingia, as mondadeiras e os cavadores paravam a ouvir a contenda injuriosa. Dizia o padre: — Este ladrão é a ruína de minha casa. Aqui só há que escolher: ou ferrar-lhe um tiro ou dar parte à justiça. Tem vinte e três anos este piranga, e não lhe dói, não sente a mais pequena sombra de vergonha de estar a sugar o suor de dois velhos! Ainda por cima, morde a mão que lhe dá o sustento. Arre! Vá para as Pedras Negras, pegue num bacamarte e saia à estrada! — Ladra para aí, ladra! Farta-te de ladrar, velho cão! — respondeu Isaac, já de longe, perto da geira cio bacelo. — Vadio! Gastei com ele quatro contos, melhor fora deitá-los a um poço. Consumições, noitadas, trabalhos, quantas não passei por mor dele! Meu Deus, meu Deus, grande castigo me destes! — Não se consuma, meu senhor — interveio D. Dorotéia — ele lá terá o pago! Uma alma perdida só anda para perder as mais; é deixá-lo! Se aldemenos comesse, bebesse, calaceasse e não andasse ligado a semelhante choldra? Olha com que foi se meter, a Amada, a Amada que foi de cão e gato, do Praça do Mões, de quem lhe piscou o olho! Todos estes Amados são raça de má colada. O pai, o Arnadão Velho — dizia meu tio Calhorra — foi dos que assaltaram a casa do Alferes de S. Martinho. Mais tarde, encontraram-lhe umas colchas que haviam pertencido ao Alferes. Teve a morte afrontosa que merecia. Que morte! Ainda estou a ver a Amada Velha a gritar pelo povo arriba: à de el- rei, que mataram meu homem! Alvoroçou-se o povo todo e foi-se ver. Estava o desgraçado estendido de borco, à beira do caminho, junto às Alminhas do Bracejar, com as tripas deitadas fora por um rasgão que tinha mais de palmo. Aquilo só golpe de machada ou com gadanha de feno. Dava engulhos mirá-lo. Pois, mesmo assim, toda a gente de Segões se apresentou a defender o assassino: fora o Amado, homem de maus empréstimos e ruins tornas, que 14 quisera roubar duas moedas ao Pinto Moleiro. O fidalgo da Silvã, pôs-se de peito feito e livrou-o. Oh! os filhos saem ao pai. Tudo lhes serve, couves, galinhas, roupas dos estendedoiros. A Amada mãe não roubou uma saia de folhos à minha Rosa? E como se descobriu? Vai-se para a Santa Eufêmia e a zarga levanta a saia no bailarico. A Rosa deu fé do que era seu, foi um dia de juízo! Se hoje cerrarmos os olhos, meu senhor, comem-nos tudo o que há na casa; nem as sarapas escapam! Já me disseram que o Norberto andava a cheirar às fraldas da Adelina, a mais nova. É o irmão que lhe mete os vícios no pêlo. Mas ela querecoisa de mais vulto; o Norberto não levanta a grimpa, oprimido do trabalho, coitadinho! Gostava dum fidalgo como arranjou a irmã, vá encomendá-lo ao inferno! Ai, senhor, anda o Demo nesta casa! D. Dorotéia acabou a soluçar, enquanto o padre, sentado nas escaleiras, se velava dum ar sombrio e doloroso. Lá ao fundo, meio ocultos pela terra dos valados, revoltos como trincheiras, os dois irmãos conversavam. O camponês, de mãos grossas sobre a pá cravada no saibro, ia ouvindo as mofas do irmão mais velho, o fidalgo de mãos alvas e preguiçosas. O ar claro e sutil trazia-lhes, entre o grunhir dos bácoros e os cacarejos das galinhas, as lamentações dos pais. O sol dobava às espaldas do pinhal velho. Por complacência e desenfadamento, Isaac pôs-se a ajudar o cavador, manobrando a pá com a galhardia de homem forte e folgado. Entretanto, os carros desciam da serra, chiando. Por trás da casa em que eram nados, a aldeia alapava-se negra e rumorosa, empenachada já do fumo das cozinhas. Escurecia e, de volta da seara, passavam ranchos nos atalhos cantando alegres cantigas. Desceu afinal a noite e, enquanto Norberto plantava o último baceleiro, Isaac entretinha-se com quem ia no caminho, jogando uma chalaça a esta, regressando com aquela a um dito de serão ou das mondas. Quando a Maria Amada apareceu, debruçou-se a falar- lhe de maneira que o irmão não ouvisse: — Então, a estas horas? — Os lobos não me comem. — Que andaste a fazer? — A limpar o trigo na belga do Pai Moiro. Tanto queria acabar, não houve modos. Então você bulhou com o padre? — Que queres, o raio de minha mãe foi-lhe dizer que estive a jogar. — É uma alma do diabo! 15 — Só está contente quando nos vê pegados. Às vezes estamos a palestrar e a rir em muito bons termos e logo ela aparece a dizer-lhe: “Ande, ande; beijam-se logo, mordem-se”. Sempre assim. — Ele nem é homem, nem é nada. Se fosse cá comigo endireitava-a... — É fraco, mas um santo homem. Os fracos são assim, amam a todos e, mais que ninguém, àqueles que os dominam. Minha mãe está nestas condições — manda mais nele que o bispo, e o pobre meteria as mãos no lume só para lhe agradar. Coitado, quere-me mais que às meninas dos olhos; o que não temos ambos é paciência para ruminar em silêncio os nossos aziúmes. Pois o que tem a fazer é afastar-se quando se derem tais passos. Quem cala vence. E você, a bater despique, não leva sua mãe à parede. Tem uma língua mais comprida que as bandeiras. . — São nervos... — E o asco que me tem...!? — Então... meteu-se-lhe em cabeça que és tu que me desvias para o mau caminho. — Pois serei. Vá, navegue para a África; que espera? — Resposta. Um grande silêncio passou entre eles. Estridentemente, Norberto sacudiu a fraga a greda da ferramenta. — Se me quisesse bem, não partia proferiu ela. — Pois se parto é por isso. Lá irás ter... — Dizem.me que se cai lá como tordos... — Histórias da carochinha; para onde conto ir é saudável. Mas deixa-me... — És tola. Todos os meses hás de receber a tua mesada; depois, quando as coisas marcharem de feição, avantas para lá. — Olhe que eu não vou jurá-lo, mas palpita-me que ando grávida. Isaac envolveu-a num longo olhar de ternura em que ia o agradecimento pelas voluptuosidades sentidas juntos, não enganadas. E disse, emergindo ao cabo dum pensamento: Esta noite não vás ao serão: vou lá a casa. 16 — Dialhos! Meu tio fartou-se ontem de pregar, porque à de el-rei era forte escândalo, você não me recebia e, depois de me fazer um filho, dava-me o pontapé... — Teu tio é uma basta chapada... — É meu tio; não há de velar? Pois sim, mas que não seja sendeiro. Faze o que te digo, fica em casa; obra das dez horas lá apareço. — Para a pouca vergonha, está você sempre pronto! — disse ela sorrindo, e fungando como poldra ao sentir macho. — E tu não? Romperam às gargalhadas, e eia, dando um passo, despediu-se: — Até logo. — Até logo. — Ah! já me esquecia — tornou, voltando atrás. — A Maria Carradas quer saber se sim ou não ficamos com o cordão... — Agrada-te? — Se agrada! Anda meio povo morto por lho caçar. — Quanto pede ela? — Cinco moedas... quanto lhe davam no S. Silvestre, sem tirar nem pôr. Diz que é por ser num aperto... — É de ouro fino? — Ouro antigo, maciço... — Bem, vai buscá-lo; lá pago. Mas ouve: eu falo primeiro com ela. — Olhe que, se nos demoramos, a Ludovina atravessa-se... — Não te apoquentes; amanhã tens o cordão. — Adeus; lá espero. Norberto dispunha-se a partir, de enxada, pá e alavanca ao ombro. De bom modo disse a Isaac: 17 — Não largas essa rês, e isso há de acabar mal. Mal... por quê? — questionou o irmão desabrido. Tu sabes, são umas vagabundas, ela, a mãe, a irmã. Ninguém lhes dá aceitação. A Maria Amada, essa, está mais corrida que as chinelas que traz calçadas. Lérias. Por serem pobres não quere dizer que sejam más mulheres. — Não, mas são de quem as comete. Lá se viu se a Adelina te deu ouvidos. Beh! Não dá porque anda o Zé Militão com sentido nela, e o que quere é casamento. Talvez a não desmoçasse o Arruda? — Olha que alanzoeiro! Onde há ele mulher, muito recolhida ou casta que seja, que o lambão não tenha gozado? Bem sei que o Mões teve relações com a Maria; pouco me importa. Isso é para vocês... fazerem caso dessas coisas; eu não faço. — Lá te avenhas; sustentas à mãezona, ao Amado, que é uni bêbedo, a todos. A familiagem não te há de ficar barata. Onde vais cavar dinheiro para ustir com as despesas? Tu não o ganhas; nossos pais’ não to dão. Roubas-lho? Olha, assim que deitem conta ao centeio que falta na arca grande, temo-la bonita. Quarenta alqueires em dois meses!... Subiram vagarosamente o carreiro; Norberto, carregando da ferramenta, Isaac das palavras do irmão e do cuidado de ter de desencantar cinco moedas, para satisfazer, na amante, a cobiça do cordão de ouro. *** Com o trabalho extenuante, a linha estatuária de Norberto tinha vergado. Uma corcova testemunhava nele o jogo fero e constante do esforço. Era um moiro, de sol a sol, para quem as raparigas não sorriam, porque a lida o tornara disforme e andava sempre um côdeas do sujidade. Apenas ao domingo lhe viam tréguas as costas dobradas e os tendões formidáveis de vergalho bem curtido. Nesses dias, vestia o fato de serrobeco, lavava mal a cara, e ia para o adro jogar o fito. Ganhava quartilhos, perdia quartubos, à custa dum ou de outro pataco esquecido sobre as mesas e caçado no vôo, ou que os fidalgos lhe davam quando, por causa de Isaac, lhes ia levar as trutas da ribeira. Na manhã, o vinho, bebido de véspera, enliçava-o traiçoeiramente na enxerga como corda de 18 muitas voltas, O padre, que ao florir da alba devia encontrar a égua aparelhada para correr às obrigações, despertava-o a sopapo. — Ainda não são horas, cagaçal? Deixa, que a jogatina há de te dar de comer! Norberto erguia-se praguejando, e abalava para o trabalho, enquanto Isaac dormia a sono solto, e D. Dorotéia aquecia a vianda dos porcos, que logo de manhã cedo, começavam a grunhir. Como não quisessem pagar soldada, não tinham criado nem criada. Uma ou outra paqueta passara pela casa. Mas o gênio irritável dos amos espavoria-as e elas abalavam sem ter aquecido lugar. Chegou, entrementes, o sorteio, e Norberto foi apurado para artilharia. Foi uma tristeza na casa, porque se ia embora o bom trabalhador. O moço, como andava impando da labuta, agradeceu a caderneta que o mandava para a Capital, onde pela certa, a vida devia ser menos áspera. Na véspera da partida, modo de honrar nele o irmão, a rapaziada deitou descante pelo povo, da venda do Travanca para a venda do Rolim. Isaac, que tinha conta aberta nos taverneiros, fartou o adjunto da vinhaça.Depois, já os mais morfenhos dormiam, meteram para os serões, e o senhorito, tão longe do que fora, cantou à desgarrada sobre a viola do Carquejo. No serão da Ambrósia, entre outras moças louçãs, pousavam as Amadinhas. Ia para dois meses que haviam rompido com Isaac, a isso obrigados por juramento público e formal, uma vez que o padre Claro lhes fora surpreender o tio, de gorra com os filhos, a saquear-lhe a arca das ceveiras. Em má hora voltou ele a aproximar-se: o Amado, que conservava uns restos de honradez, ergueu o sacho em ameaça e o estouvado desistiu. Mas como lhe faltasse fêmea, cansava-se a suspirar, lamentando que a gravidez, que Maria lhe anunciara, não existisse realmente, visto desse modo a ter segura. Como era uma mocetona forte e sadia, outros lhe andavam na cola e, ao que se rosnava, com intentos de casar. Em voz sonora de homem bem comido e bebido, ao fadinho que chorava entre os dedos sujos do Carquejo, Isaac cantou: Por que a teus olhos daria Deus assim uma tal sorte? Ao desafio co’a morte, Matam eles mais, Maria. E, dlim-dlim-dlim-dlão, na pausa, que se seguiu perpassou a vênia dos cantadores ao fidalguinho e a bisbilhotice cochichada das mulheres. E todas as caras se voltaram mofinas ou curiosas para a Maria Amada, que metera olhos confusos no chão. Mais alta e ardente, Isaac atirou segunda trova, ante Norberto que, soturno, o espiava: 19 São negras — é bom dizer, As penas das andorinhas, Mas co’a negrura das minhas Não se podem parecer! O Zé Militão retrucou-lhe com cantiga da sua lavra, a puxá-lo ao desafio. Isaac correu à roda, e lá foi na cadeia girante saltando de par em par, sem erguer o repto do cantador. Um dançarino — picava na viola a Caninha Verde ribaldia — deitou mão à Maria Amada. — Deixa-me — proferiu e, como se apoquentasse mágoa, apartou-se para um canto a fiar. Norberto volteava com Adelina e, contente da sua sorte, esquecia-se de vigiar o irmão. O fado de Anadia deu aso à moída letra: Oh! D. Carlos de Bragança e, depois, deste, aparado e sapateado, ainda se armou a Chula. Outra vez, defronte de Maria Amada, a voz cariciosa de Isaac garganteou: Fiandeira, ruim hora Em que te fiei meu carinho; Enquanto fias no linho, Meu amor em fio chora. E, desta feita, a moça suspirou, um suspiro que lhe fez tremer o seio forte e alevantado. E Isaac, que tal viu, dali em diante desvairou de alegria. Na penumbra, Adelina deixava-se palpar por Norberto e isso fazia-lhe esquecer todas as juras da terra. Era já tarde quando o descante desmanchou, e Norberto, que não dera fé de o irmão se sumir, entrou sozinho em casa. Ia cheio de Adelina, dos beijos que lhe pudera furtar, e tanto fogo impedia-o de dormir. Assim, mal os galos cantaram, saltou da enxerga; e, depois de renovar a manjedoura da égua, começou a pôr em ordem a troixa. Embrulhou as camisas num lenço da cabeça e noutro de assoar, em cujas pontas havia, bordada a retrós vermelho, uma quadra de amor, atou os seus seis tostões em níquel; em seguida meteu tudo numa bolsa de sarja e, de mansinho, foi bater à porta da casa onde dormiam os pais. 20 Já estavam ambos a pé e o padre Claro pigarreava alto, fumando o cigarro. O Moiro veio, percorreu a casa farejando e, assentando-se sobre o travesseiro, bocejou e uivou. — Então, pronto? — perguntou-lhe o padre em voz rude, fitando-o muito, o que nele era indício de comoção. — Pronto, falta aparelhar a égua. — Bem; vai tirá-la cá para fora. E quem vai contigo até a vila? — O Toninho. Vou chamá-lo e depois aparelha-se. Na rua, as vozes e os passos retiniram sob o toldo refrangente do céu gelado. Era no inverno e águas nos cômoros choravam, O padre pôs-se a aparelhar a besta. Meio oculta na treva, a mãe estendia o braço com o lampião de azeite erguido ao alto, O padre Claro dispôs os alforjes em aparatoso, estudado equilíbrio, enquanto o Toninho e Norberto tiritavam. Depois, deitou a gualdrapa d,e pele de vitelo por cima e afivelou a cilha. A um aceno de Dorotéia, meteram para dentro de casa, a fim de que os rapazes engolissem uma bucha e dois tragos de aguardente. Havia na sala uma atmosfera consoladora de agasalho. E Norberto, afagado, rompeu na sua loquela de aldeão. A mãe, entretanto, trouxera a açafate e, sobre a tampa voltada, serviu pão, queijo e azeitonas e um gole de aguardente no fundo verde duma garrafa. Os porcos, sentindo passos, começaram a roncar, e ela disse: — Aqueles grulhas estão sempre prontinhos para comer. Alumiando sempre e teimando com Toninho para que se servisse, D. Dorotéia fez as suas recomendações, de olhos no filho: “Tivesse muito juízo, e nada de maluqueiras se queria chegar a ser um homem. Deixasse-se de camaradagens, que sempre vinham a dar em droga, e de fumar, que o fumo era bom para os peralvilhos”. O padre tossia, sorvendo o cigarro a grandes goladas. “Juizinho, que ninguém as deita em saco roto. E aos superiores, aos comandantes, fosse sempre obediente, e tão fiel que não existisse nunca um argueirinho por onde lhe pegar. Todas as manhãs, não se esquecesse de se recomendar à Senhora do Livramento que o livrasse das más horas e dos maus repentes. Três meses passavam depressa e cinquenta mil-réis sempre se haviam de conseguir para resgatá-lo. As matanças ainda estavam longe, mas a chouriça da carne lá lhe ia ter, se tivesse tento na bola.” 21 As recomendações dela correram durante muito tempo, enternecidas e molhadas de lágrimas. Norberto escutava-as, cabisbaixo, a vista cravada na toalha sobre duas moscas que voltejavam friorentas ou moribundas. Logo que os rapazes acabaram de trincar a última dentada, o padre Claro foi à porta escrutar o horizonte. E volveu a dizer que eram horas, se queriam botar à vila antes de o carro da carreira ter abalado. D. Derotéia perguntou se não se esqueciam de nada. Norberto circunvagou o olhar numa operação remissiva de memória, palpou a carteira de couro, verificou que levava o canivete e o lenço de assoar. Restava ir ao quarto do irmão dar-lhe um abraço. A mãe, por curiosidade, acompanhou-o. Mas o leito estava na compostura da véspera, sem sinal de se terem deitado nele. Norberto compreendeu e Dorotéla desatou em exclamações: — Aquela alma perdida não dormiu em casa. Já por lá anda metido de novo com a Amada. Olha que amor de irmão, nem um abraço te veio dar, meu filhinho!... Norberto calara-se; de semblante dorido, voz trêmula, o padre perguntou: — Então não dormiu em casa? — Não, meu senhor. Já se meteu outra vez com a porca tinhosa. — É um desgraçado. — Quando ontem andaste pelos serões, ele falou-lhe? Fala franco... — inquiriu Dorotéia. — Não sei; não vi. — E tu, Toninho? — Também não vi, senhora D. Dorotéia. — Pois onde havia de dormir, senão em casa dela! Foi garrafada que lhe deram a beber. — Trata de te aviar — disse o padre em voz cada vez mais trêmula e sentida — que o carro não espera. E, chamando-o de parte, deu-lhe dinheiro: Aqui está para o caminho. Não tenho mais, mas todos os meses lhe mandarei. Vá com o santo Anjo da Guarda. 22 — Três meses passam depressa — proferiu com voz artificiosamente desenganada, enquanto metia, a chorar, os 3$000 no bolso. Fora, a neblina esfarelava-se em gotas miudinhas e mormacentas. A este, o céu acalentava uma vaga promessa de luz. Via-se já luzir a espinha dos telhados. O Toninho ajeitou a égua a um pouso e subiu; Norberto ia montar, o padre gritou- lhe: — Não pedes a bênção a tua mãe, malcriado? Não andava habituado a despedidas e quedou confuso. Mas engatilhou as mãos para a mãe, que estava na calçada, ao lado dele. Coberta de lágrimas, ela abençoou-o e, metendo- lhe mão no colete, acrescentou num sopro: — Pega. É pro vinho. Olha que fui vender os ovos da pedrês parate dar. Norberto pulou sobre a albarda atrás do Toninho e tangeu... A égua abalou e os dois velhos foram até atrás das casas vê-los ir. À Dorotéia, que soluçava, disse o padre: *** Nessa tarde Isaac Claro sentia toda a voluptuosidade de viver. A primavera, o amor e a força andavam em volta dele como três aias de bom servir. Já os centeios apendoavam, e chegara o tempo das romarias e arraiais. Grimpadas às cerejeiras, as raparigas debicavam as cerejas, de perna morena à dependura por entre os ramos, e, das hortas, os mostajeiros ofereciam seus frutos de tão esquisito sabor. Isaac, como todos os ociosos da aldeia, tinha o culto da bela sazão, nada o encantando tanto como os dias de sol, em que a figura dos homens, pelos caminhos, se nimba de tons velasquenhos, e a melancolia é varrida da fisionomia das coisas. Andava satisfeito, além disso, no amor-próprio: o rapaz que lhe cortejava a amante atirara-o pela porta fora, a cachação e a pontapé; e ela, volvidos dois meses de ruptura, voltara a ser a amante apaixonada, rendida agora, de todo, à sua força de macho. Mas, acima de tudo, saboreava a revolução muda que, involuntàriamente, provocara no ânimo de Adelina. A mulher acordara nela ao contato da mal disfarçada voluptuosidade que ali se estava vivendo e, mormente, ao contato das fortes manifestações da sua varonia. A inveja e o ciúme estremeciam a cada palavra na boca da mocinha; se ele aparecia, corava, e punha-se a tremer, como uma paveia ao vento, sempre que com a irmã se fechava na Casa de Cima. Uma vez fora surpreendê-la a chorar e, sob os seus afagos, desandara cabisbaixa, num amuo em que a puberdade alvoroçada retrocedia a jeito de criança. 23 Entendedor em psicologia feminina, Isaac palpitava de todos os palpites daquele sangue e coração revoltos. E a imaginação eriliçava-lhe o gozo sonhado duma perversão; e pensava, descia a uma destas reflexões superficiais que acodem automàticamente, que nem sequer são importunas e se esvaem, como os zumbidos no ar: como me poderia aguentar entre as duas?! Diabo de sorte! Interpretava assim, limpando a caçadeira, quando a Maria Carradas apareceu a passos de fera: — Muito boa tarde. Venho buscar o dinheiro que ainda me deve... — É para o que a gente os cria! É para o que a gente os cria! Isaac ergueu-se a puxá-la para um canto, donde os pais não ouvissem. Em voz desabrida, retorquiu-lhe a criatura: Se me tira de parte para se desculpar, perde o tempo. Quero cá o meu dinheiro, o mais é nisga. — Quem lho nega, mulher?! — Quem lho nega?! e vai em quatro meses para me dar uma bisbórria! Homens, até parece propósito! — Sossegue, vai-se-lhe pagar. Quanto devo? — Nem você sabe quanto me deve! Vá, pergunte à sua amiga quanto me deu... — Deu-lhe 7$000, não é verdade? Restam 14$000; amanhã ou depois lhe serão entregues. — Quero-os aqui já; promessas e cantigas não enchem barriga. Mas que seca! Raios partissem o cordão e a hora em que tive a idéia de lho vender! Olhe, senhor Isaac: quem boda não tem, gaiteiros não roga. Não podia pagar, não comprasse. — Cale-se, mulher! Já lhe disse que, depois de amanhã o mais tardar, recebe a importância. Os negócios nem sempre correm... — Não me importa, quero para cá o dinheiro! Não o tenho aqui, como lho hei do dar? — Ai sim? Vou-me queixar ao senhor padre Claro... A Maria Carradas deu uns passos resolutos para a escaleira; Isaac, num repelão, sacou-a para trás. Intimidada, tornou: — Pois olhe: torne-me o cordão. Por que me não torna o cordão? 24 — Agora é impossível. Eu pago-lhe, já disse. Era feio tirá-lo à rapariga; que não diriam para aí? — Mais feio é roubar e não pagar a quem se deve! Isaac rangeu os dentes, de cólera, do sentimento da sua fraqueza, vendo-se espremido nas mãos grosseiras daquela mulher: — Juro-lhe pela minha boa sorte... — De juras estou eu farta. Juro-lhe pela vida de meus pais; quere mais? — Mas oh! senhor, por que não me há de tornar o cordão, se eu lhe restituo os 7$000 que cá tenho? Onde não há, el-rei o perde! — Que havia de pensar a rapariga? — Que havia de pensar? Mande-ma para o inferno. Se ela lhe quere bem, será a primeira a desatar o cordão do pescoço. — Nem todos são como vossemecê, senhora Maria Carradas. — Não são, não; se fossem, não vinha tanto mal ao mundo. Houve urna pausa e Isaac compreendeu que a mulher abrandava. Calculadamente instou: — Tenha paciência, amanhã ou depois lá lhe levo o dinheiro. Verá! — Quantas vezes mo repetiu! Agora é certo. A mulher olhava o chão, refletindo; ao cabo dum longo silêncio, volveu, porém: — Mas por que não larga essa mulher? Largue-a. Ora, eu a prender-me com tretas. Não, não quero cá saber... Vou ter com o senhor padre... Isaac voItara a limpar a caçadeira e não pôde impedir que, a correr, a mulher subisse a escada. Lá em cima, à porta verde, entreaberta, gritou: Senhor Reitor! Senhor Reitor! Dentro da casa soaram passos e D. Dorotéia respondeu: — Quem chama? Ah! é a senhora Maria Carradas. O senhor Reitor não está, foi dar um anjinho à terra. Se é recado que eu lhe possa dar... A Maria Carradas parou indecisa, depois, encarando Isaac interdito ao fundo do pátio, proferiu: 25 — Então eu volto quando estiver. D. Dorotéia, que espreitara por uma grelha, fechou a porta. — Espero até depois de amanhã pela manhãzinha — disse embaixo, a sós com Isaac. — Dentro desse prazo, ou me dá o dinheiro, ou entro em posse do cordão, ou faço grande escândalo. Depois não se queixe! Anuviou-se o espírito de Isaac e, num rápido exame de consciência, reconheceu quanto era nojenta a sua situação: dos dois destinos, ele representava na família o destino dos inúteis e dos maus. Norberto o dos oprimidos, de Caim. Mas a perver são era grande, e pouco sólido o remorso para emendar seu caminho. Nessa noite, todavia, na friorenta e voluptuosa Casa de Cima, Isaac dormiu mal. Manhã cedo, ainda o campanário não havia tangido para a missinha, saltou da cama. — Onde vais tão cedo? — perguntou Maria. — Vou a casa, porque o filho do Capitão há de lá aparecer para irmos pescar. Ao meio-dia estou de volta. Lavou-se numa prateira que estava por terra e, como não visse toalha, perguntou: — Maria, onde me limpo? — Limpa-te à fralda que a vesti ontem. Enxugou-se a regougar, mal humorado, e foi beijá-la em despedida: Adeus. A Amada, a miar ternuras, passou-lhe os braços em volta do pescoço. — Deixa-me! Quem te pega? Isaac arremessou-a contra a parede, num gesto de saciedade, e abalou. Rompia a madrugada e, na paz morta dos seres e das coisas, os campanários de seis aldeias falavam uma linguagem alta e religiosa. Pelos estábulos, um ou outro chocalho badalejava. Detrás duma esquina, esperou Isaac que os pais saíssem de casa para a igreja. Primeiro apareceu o padre, trôpego, dobrado, de batina, o cálice debaixo do braço numa bolsinha de chita vermelha; pouco depois a mãe, embrulhada no xale preto de todos os dias, a tamancar. 26 Assim que desapareceram no cotovelo da rua, Isaac entrou para o quintal e daí, escalando a janela, penetrou em casa. Em seguida, ràpidamente, servindo-se do podão com que o pai aparava as videiras, fez saltar a tampa, toda a parte superior da mesa em que era costume arrecadarem as economias. Ficavam-lhe, deste jeito, escancaradas as três gavetas. Procurando, entre papéis, encontrou a caixinha amarela onde o padre metia as notas e moedas de prata: a caixa estava porém, vazia. Revolveu os papéis: em vão. Nas outras gavetas havia canecas de marmelada, mecha para petiscos, circulares, pastorais, bulas antigas, receitas de botica e toda uma correspondência de anos. Um a um examinou os sobrescritos, não escondessem dinheiro. Bem esperluxou: nem uma cédula de tostãodescobriu. No meio da papelada, topou com um retrato seu, cartas, dele umas, outras dos diretores dos colégios por onde passara e várias cuja letra lhe não era familiar. E começou a ler as que se lhe afiguraram desconhecidas. Uma delas era de Norberto, datada do regimento, e rezava assim: “Meus queridos pais: lanço agora a mão à pena para lhes contar a minha triste vida. Saberão que tive oito dias de calabouço por ter rejeitado o rancho, em que encontramos um rato morto. Só me deram pão e água e levei o tempo todo a chorar, não tanto pelo mal que me faziam como pelas saudades que me vieram da nossa casa. Meus queridos pais, vejam se me arrancam a este degredo, senão, mato-me. Os sargentos são verdadeiros cães para mim, e os soldados fazem-me muita troça porque sou marrânica e não quero ir com eles para as moças do fado. Um dia destes, enquanto fazia guarda às cavalariças, arrombaram-me’ o baú e urinaram-me dentro. Tinha lá o resto dos dez tostões que me mandaram pelo Quim da Joana e mesmo esse me levaram. Fui-me queixar ao tenente, mas ele pôs-se a rir e a mangar comigo. Ainda que me desfaça todo para os ver contentes, não há maneira. Sei bem o exercício e, no tiro, sou dos que melhor batem no alvo. Mas isto pouco vale, porque não sou bem-falante, nem ponho vulto ao pé dos alfacinhas. Estou a escrever, com os olhos rasos de água, enquanto não chega o meu quarto. Mandaram-me dizer que o Moiro estava surdo; coitadinho, não o mandem matar, que tão fiel era e tão amigo da égua! Tinha muita pena se fizessem mal ao pobre cãozinho, ainda que não ouça, nem seja lampeiro como nos bons tempos. Saibam que aqui encontrei um condiscípulo de Isaac; contou- me muitas anedotas dele e que era muito esperto, mas às vezes com pouco miolo. Sempre lhe arranjaram emprego? Se ele ainda anda metido com a Amada, deixem-no lá, que o dia do relego há de chegar. Dêem-me novidades da terra e façam muitas visitas a quem por mim perguntar. Mandem-me dizer se o Militão já casou com a Antônia Borralha. Deitem a bênção a este seu filho Norberto Claro.” Isaac dobrou a carta, repôs os papéis no seu lugar, e disfarçou com arte o arrombamento da escrivaninha. Duas angústias lhe cerravam a garganta; a 27 frustração de seus esforços para encontrar dinheiro, e a hediondez de seus atos perante as lástimas de Norberto, juntas à tristeza que cobria aquela casa, como uma mortalha de defuntos. Mas de que jeito quebrar o destino? Como todos os seres rebeldes à lei das coisas, tinha a curiosidade de viver. Viver para ver os homens, as loucuras, as repúblicas, as estações, para se sentir nas infinitas modalidades da terra. Esse instinto, ajudado do pessimismo sorridente que considera o tudo como pó, o tudo como musgo do nada, passageiras a virtude, o vício, as emoções, sustinha-o à beira das resoluções vigorosas. O pensamento nele era profundo, mas rápido. Levantava a poeira violenta dum tropel de cavalos numa estrada de’ verão e desaparecia. A própria dita de se sentir sentindo lhe fazia volver o rumo das idéias. Num minuto volveu até as fezes à porcaria de sua condição. Viu-se o parasita do pobre velho, o ladrão de Norberto, a lagarta doirada daquela pobre casa. Um minuto, para logo voltar a si, ao seu pessimismo confortável, preocupado apenas com a perspectiva dum escândalo e a exautoração pública, em que fatalmente perderia a amiga. Nesse dia, tendo percorrido a escala dos expedientes, gizou um plano arriscado e difícil. Se o pai não tinha o dinheiro na gaveta é porque o trazia nos bolsos. Como chegar-lhe, se não largava a carteira e dormia com ela debaixo da almofada, escarmentado de gatunices? Lá cismou e, depois de muito cismar, escolheu o seu jogo. Antes que dessem graças a Deus, depois de cear, esgueirou-se da cozinha para o quarto do pai e, cautelosamente, meteu-se debaixo da cama. Aí esperou uma boa meia hora estendido sobre o sobrado, acalentando a esperança de resolver o grave problema. O padre veio por fim, resmungando, praguejando contra égua, que não comia o feno e estava fidalga, e contra a mariolagem do filho, e começou a despir-se. Do seu esconderijo, Isaac apenas lhe via as pernas mirradas e secas como cabos de faca. Ao cabo dum quarto de hora, o padre estava na cama, fumando. A mãe veio dar-lhe as boas-noites e perguntar: Tem roupa bastante? — Tenho. Dorme com Nossa Senhora. Uma longa hora havia decorrido e só se ouvia a égua mascando no estábulo. A respiração do velho sibilava. Isaac arrastou-se, então, como um réptil debaixo do leito, reprimindo o fôlego ao mais leve estalido das velhas tábuas. E, ajoelhado, sutil, insinuou o braço por debaixo do travesseiro. A sua mão fina e preguiçosa, destas mãos afusadas de parteira, sondou, passeou, divagou enquanto o coração lhe batia um galope louco de cavalo. A carteira foi arpoada. 28 Folheou-lhe as bolsas, enxergando como se tivesse olhos de nictalope. A velha carteira guardava quatro notas de mil-réis, não mais. Descoroçoado, assaltado novamente por uma matilha confusa de sentimentos, quedou-se indeciso; resoluto, enfim, tirou as quatro notas e meteu-as no peito. Docemente, com mais decisão mas não com menos prudência, colocou a carteira saqueada no seu lugar. O pai pigarreou e a alta e antiga cama de cerejeira rangeu dolorosamente. Isaac suspendeu-se um instante e, de rastos, como um ladrão consumado, atravessou o aposento escuro, a sala, o seu quarto, abriu a janela e saltou. *** Isaac correu a fechar a boca da Carradas com os 4$000; ela, como era boa alma e sentia a consumição do seu semelhante, concedeu mais um prazo de 24 horas. Estava um dia remançoso, sem ventania. Não havendo perigo de incêndio, D. Dorotéia lembrou-se de fazer a barrela — que estava a roupa a encardir nos cestos, há muitas semanas. Para isso chamou a Narcisa, uma afilhada que morava a dois passos, e a fogueira foi acesa no alpendre, onde havia mais largueza que na cozinha e a lenha estava à mão de semear. Seriam dez horas da manhã, o fogo chamejava de rijo, e nuvens densas de fumo se esfarelavam através da telha-vã sobre a aldeia. Já fervia a dupla fila de potes e panelões quando D. Dorotéia chamou para a mesa. O almoço foi silencioso e breve, e Isaac não provou garfada. Ao levantar, Isaac perguntou ao pai se podia ir a Forles a cavalo. Como ele não tornasse resposta, cavalgou e desapareceu na velha calçada romana, por entre os pinhais imóveis. Os manos Isidros receberam-no afetuosamente, deram-lhe muitos conselhos, mas de dinheiro nem pinta. Cheio de desespero, entrou em casa quando o pai lavrara o óbito do anjinho, dado à terra na véspera. Como era muito idoso, a mão tremia- lhe em sacolões nervosos, e cada palavra lhe levava tempo imenso a escrever. Além disso, a letra era miúda e humilde como anotações de monge nas margens dum homiliário. — Quere que lhe lavre o assento? — perguntou Isaac, condoído. — Não senhor. Isaac foi sentar-se meditabundo num degrau do patim. A mãe, mal o viu, teve dó dele, que não almoçara, e apressou-se a servir o jantar. Quando o padre entrou, os vapores da sopa evolavam-se olorosamente das tigelas atestadas. Não obstante o bom caldo de feijão branco e o farto salpicão de lombo, Isaac absteve-se, como de manhã, de tocar em prato. O padre, à sobremesa, perguntou: 29 — Então, não come? — Obrigado; não tenho apetite. — Quere que lhe faça alguma coisa? Que tem, senhor? — questionou a mãe, a seu turno. Isaac despediu um mau sorriso por entre dentes. — Lá se arranje — tornou ela. — Já não está em idade de se lhe fazer a papa. O padre continuava o registro quando Isaac se acercou resoluto: — Tenho uma coisa grave a comunicar-lhe... O velho nem pestanejou. — Muito grave... Continuava ele a sua caligrafia difícil e laboriosa e Isaac rangeu os dentes:— Escuta-me, ou não me escuta? A pena trêmula cantava: enterrado no cemitério desta freguesia... Isaac deu um salto sobre ele e, paralisando-lhe a mão, disse de ar torvo: — Há de me ouvir!... O velho olhou-o de face e, com a voz a estalar de cólera, lançou-lhe: — Oh! malvado. Já nem o pão me queres deixar ganhar? Isaac largou-o de arremesso e, saindo à sala, escreveu: “Sou um desgraçado, mas a minha desgraça vai ter fim. Devorei-lhe quatro contos de réis e hoje vou matar-me por causa de 1O$000. Sim vou matar-me; hoje à noite, se não tiver restituído 1O$000 que me emprestaram, dou um tiro na cabeça. É quase cômico que uma vida dependa duma contingência tão fraca. Senhor Abade... meu pai, salve-me, arranje-me este dinheiro; eu queria ainda viver, ser bom, ser útil. Senhor Abade, lave-me da vergonha e serei outro.” Escrito o bilhete, foi com uma certa fatuidade romântica pô-lo diante dos olhos do padre, e saiu a ver a lixívia para dar tempo a que uma resposta raciocinada lhe fosse dada. A água fervia em cachões nos potes bojudos de dois almudes. Nas panelas esgrouviadas, o vapor cantava. A labareda enrubescia o alpendre todo. E Narcisa ia e vinha, rubicunda e alegre, escorrendo suor. 30 O velho, feito o assento, desceu as escaleiras e, de sacho na mão, foi-se a mondar na terra de batatal, de que as primeiras folhas, em ferretes de esmeralda, despontavam. Isaac correu ao escritório e, por baixo de sua súplica, encontrou a máxima jocosa: Qui lavat asinitm perdit aquam et saponem. Desvairado, então, começou a soluçar sobre a sua desdita. Caía a noite, uma noite suave e negra sem rumor de vento, nem lucilações de estrelas. Lá fora a fogueira crepitava esbrasiada, infernal, alimentada de novo para a segunda água. O padre entrou fazendo chocalhar os tamancos. Isaac correu-lhe ao encontro e, em voz submissa, interrogou: — Que resposta me dá? O pai abanou a cabeça, franziu os lábios num esgar mirado: — Ainda tem a desfaçatez de me pedir dinheiro? — Escuso pois de contar... — Dinheiro que eu tivesse, não era você que mo larpava. Antes gastá-lo em rosalgar... — É a última vez que lho peço. Já disse, não o tenho; mas, ainda que o tivesse não lho dava. — É possível que o não tenha, mas autorize-me a ir pedi-lo a alguém... — Pedi-lo, peça-o a quem lhe apetecer. Que tenho eu com isso? — Mas em seu nome; bem sabe que não tenho crédito... — Pois arranje-se — proferiu dando uns passos para a janela. — Não está farto de me roubar? de me tirar as sarapas? — Bem, tenho então de acabar com a vida? — Acabar com a vida!... Ah! ah! ah! um homem que nunca teve dignidade! Acordou-lhe tarde a honra. — Não me insulte; ninguém tem nada que me jogar à face. E os latrocínios contínuos que tem cometido nesta casa? e as ofensas à sua mãe, e as pancadas que lhe tem dado? E a exploração sórdida de seu mano? Não lhe podem jogar isso à face? — Podem, embora metade do que está dizendo não seja verdade. Mas na sociedade, no público, ninguém me poderá imputar a mais leve mácula. 31 — Vadio! Melhor fora tê-lo estorcegado ao nascer. Mariola! — Senhor Abade, dê-me os 1O$000!... Quere deixar dar cabo de mim por uma bagatela?... — Escusa de teimar; não tenho dinheiro, mas tendo-o, não lho dava. — Pela alma de seu pai, não me abandone... — Mas que rala! Não o tenho... — Deixe-me ir pedi-lo emprestado... — Quem lhe pega?... Isaac reconheceu a decisão inabalável do pai. Ele, tão fraco e tão bom, não se rendia à evidência da sua angústia. Lentamente a cólera subia-lhe ao peito, fazia-lhe trepidar as artérias como o motor duma máquina afadigada. A idéia de que se via em embaraços por uma coisa ínfima, como uma agulha e insuperável como o infinito, o desespero sufocava-o. — O senhor não é pai nem é nada; o senhor é um monstro de crueldade! — Isso, isso, sou um monstro. — É um monstro, é! Vê-me aqui a seus pés, amarfanhado como um farrapo, e não tem comiseração. — Já lhe disse que não tenho dinheiro... — Mande pedi-lo... — gritou Isaac de arranco. Humildemente, dir-se-ia que, tomado de medo, o padre retorquiu: — Pedi-lo... se você me arranjasse 50$000 para remir Norberto?... — Roube-o do cofre das almas... Não é certamente a primeira vez. — Malvado! Deus te dê mais que o que eu furto às almas. Não comias um almoço! — Ata ou desata? — tornou o filho com exaspero. Já lhe disse, não tenho dinheiro; há muito que não tenho dinheiro... — Quere então o meu suicídio? 32 — Nem quero nem deixo de querer. O senhor já tem idade para ter juízo. — E não há de ter pena? — proferiu em voz escarninha. — Não? — Não venha ele outro mal à minha casa. A mesma voz chocarreira, alucinada, tornou: Então há muito que não vê dinheiro? — Assim a bênção de Deus me cubra. — Ah! ah! ainda por cima é perjuro... Isso é o que se chama um sacerdote exemplar! — Então, esses 4$000 que traz na algibeira? O velho levou a mão ao bolso e, sacando a carteira, num abrir e fechar de olhos reconheceu o roubo. De salto e com garra formidável atirou-se ao pescoço do filho: — Ah! ladrão! Ah! ladrão! Isaac não pôde furtar-se e rolaram no soalho abraçados. A luta foi cega, feroz e rápida. Quando Isaac se safou de baixo do velho, caía ele para o lado, inerte. Os olhos saíam-lhe das órbitas e da língua pendia-lhe um fio de espuma. Os dentes negros arruaçavam. O moço lançou em torno um olhar desvairado e, possesso, sacudiu o velho com frenesi e roquidos de espasmo: Pai! Meu pai! Um instante de dor imensa e, numa carreira louca, saiu de casa, desceu o patim. Cingia a terra uma abóbada de breu. O alpendre, logo abaixo, irradiava como um inferno. E o desgraçado correndo para lá, dum pulo, projetou-se na fogueira, mergulhou a meio dos carvões incandescentes. Contra ele, potes de dois almudes caíram de borco, quebraram-se as panelas em mil astilhas. E com a carne assada, cabelos e fato a arder como archote, correu na noite, uivando um uivo que atemorizou cinco aldeias. 33 O SENHOR DOS NAVEGANTES FERREIRA DE CASTRO Branca, airosa, pequenita, erguida sobre o tope duma colina, a capela do Senhor dos Navegantes divisava-se de longe, como um farol. E a ela, mais do que a uma luz que brilhasse na noite atlântica, os pescadores enviavam esperanças e desesperos quando em graves riscos se viam nas cavas e lombas do mar. Porque ficava alta, ao fim de íngreme, pedregoso carreiro, raras gentes lá iam, salvo em dia de festa, com morteiros e filarmônica, uma vez cada ano. Fascinado pela sua solidão e largueza panorâmica, eu encontrara, porém, maneira de a atingir, naquelas tardes de estio, sem me fatigar. Para subir às montanhas, um livro vale mais do que um bordão e, com um livro sob o braço, punha-me a caminho. Logo que as pernas se cansavam, sentava-me e lia, enquanto os melros iam cantando nas velhas árvores da encosta. Sem o livro, pequeno seria o meu repouso e continuaria a ascensão antes de refeito, que a tendência de quem anda, leve rodas, leve hélices ou apenas, modestamente, os pés com que nasceu, é, já se sabe, chegar com brevidade ao ponto do destino — mesmo que nada tenha lá a fazer. Com um livro, é outra coisa. Sendo bom, prende-nos mais tempo do que os braços duma mulher e só desejamos interromper a sua leitura no final dum capítulo ou em parágrafo onde possamos retomá-lo facilmente. Entretanto, as pernas recobram forças. Naquela tarde, quando cheguei ao adrozito do Senhor dos Navegantes, demorei-me a contemplar o mar vasto que dali se descortinava então muito sereno, com suas velas graciosas e fugidias. Embaixo, estendia-se a grande praia semi-selvagem. À direita, rompendo de entre um pinhal e com o seu verde contrastando, espaireciam casitas modernas,todas faceiras e coloridas, ao passo que, da banda aposta, aglomeravam-se as barracas dos pescadores, em forma de ilha sobre a areia e tão velhas, negras e roídas pelos anos corno se fossem as mesmas que deixaram ali os primeiros habitantes do litoral. Dir-se-ia que o tempo parara do lado onde se trabalhava rudemente ao sol, muitas vezes de colaboração com a morte, para se ativar apenas naquele onde se descansava à sombra tranquila dos pinheiros. Após esse longo olhar de amor com que todos os dias eu envolvia o oceano, a terra e o céu, sentei-me e dispus-me a ler, como de costume. Logo, porém, que abri o livro, um rumor veio de dentro da capela. Surpreendido, voltei-me! e notei que a porta estava semi-aberta. Era a primeira vez que isto me acontecia. Até então, eu encontrara sempre ali o maior silêncio, um abandono total, com esse sabor poético, fino, voe- jante, que parece destilado pelo ar e é próprio das ermidas que padroam as montanhas. Agora, os rumores continuavam. Senti passos e vi um homem transpor a porta. Trazia os braços fechados sobre 34 numerosos ex-votos — barcos de cera e pequenos quadros, ingênuas pinturas feitas sobre madeira. Ao dar comigo, estacou, contrariado; teve, em seguida, uma expressão incerta, logo um movimento de indiferença, e dirigiu-se, resoluto, para o extremo do adro. Desse lado, o flanco da colina descia quase a pique, até um matorral que se estendia lá embaixo. Era um temível despenhadeiro e, para defesa que quem vinha ao Senhor dos Navegantes, haviam construído ali um murozito, que, da banda de dentro, formava bancada, em semicírculo. Nessa parte do adro o homem se sentou, a uns quatro metros de mim. Descontente com a sua presença inoportuna, eu ia baixar de novo, os olhos sobre o livro, quando ele me disse: — Provavelmente, o senhor pensa que sou um ladrão... Não é verdade? É certo que eu havia pensado isso, um momento antes. Havia mesmo avaliado as suas forças em relação às minhas e concluído que, em caso de luta, talvez ele fie vencesse. Não que fosse mais novo; devia ter uns cinquenta anos maltratados, enquanto eu não chegara ainda aos trinta; mas o seu corpo era mais robusto e os braços muito mais possantes do que estes, tão franzinos, de que eu me servia para pegar no livro. Os seus olhos claros não precisavam de óculos, ao passo que os meus, sem auxílio de vidros, não me permitiriam dar dois passos seguros, mesmo para fugir. E embora as linhas físicas dele não se mostrassem rudes, o fato que trazia, gasto, poeirento, e não sei mais o quê do seu todo, sugeriam a idéia de homem habituado a trilhar as estradas do mundo, de varapau na mão, ao assalto da vida. Hesitei, talvez, alguns segundos a responder-lhe, porque ele, antes de me ouvir, acrescentou: — Não, não sou um ladrão. Isto — e apontava os ex- votos — pertence-me. Eu é que não os mereço. Definitivamente perturbado, respondi, enfim, qualquer coisa, não me recorda o quê, uma necessidade por certo, e ele voltou: — O senhor não é de cá, pois não? Está a veranear na praia? — Estou. — Logo vi. A gente da terra não tem tempo de vir ler aqui para cima. Bem lhe basta o trabalho. Não entendi logo se ele falava assim para me ser desagradável ou simplesmente para demonstrar a sua perspicácia. 35 Os seus olhos voltaram a fixar-me. Pareceu-me ver neles um lume de ternura, mas senti-me novamente humilhado ao ouvi-lo dizer: — O senhor esteja à sua vontade. Eu não me demoro. E não tenha medo de mim. Não faço mal a ninguém. Todos nós, é certo, já algum dia fizemos mal — e eu fiz um grande mal, mais isso foi há muito ano... — A sua voz repetiu, de modo profundo: — Há muito ano... — Ë claro que não tenho medo — declarei, num tom frio. Na verdade, porém, eu enervara-me. Tornei a abrir o livro e fingi ler. O homem calou-se. Vergado sobre os ex-votos, as suas mãos iam desfazendo os barcos de cera e arremessando-os para o abismo, para o sarçal que havia lá no fundo. Deles reteve apenas a extremidade dum mastrozito com a sua bandeirola, que fez voltejar na ponta dos dedos, com o sorriso de meiguice que se tem para as coisas frágeis, e logo enfiou na botoeira do casaco. Depois, estendeu o braço, agarrou uma pedra e deu-se a partir os quadros onde se viam embarcações de pesca em luta com o mar embravecido e o Senhor dos Navegantes de pé sobre as nuvens. Todos eles tinhas datas, algumas seculares, e legendas de reconhecimento, com muitos erros ortográficos e mal desenhadas letras. O homem lia-as antes de despedaçar as pequenas tábuas onde elas estavam inscritas e, em seguida, lançava os destroços lá para baixo, para o mesmo lugar dos barquitos de cera. Entretanto, parecia falar sozinho: — Nunca salvei ninguém... Ninguém! Eu bem o desejaria fazer, mas já não tinha força para isso. Se estes se livraram da morte, foi apenas por circunstâncias favoráveis... Levantou-se e voltou a entrar na capela. Pensei ser o momento de me retirar. Ele ia julgar que eu era cobarde, mas isso não me importava. “Verdadeiramente — disse a mim próprio — o que busco nesta colina é sossego e sossego, hoje, não existe aqui.” Antes, porém, de eu haver tomado uma decisão definitiva, o homem surgiu, novamente, no adro, com outra braçada de ex-votos. Eram, agora, mãos, seios, cabeças e pés de cera. Ou por falta de paciência para os desfazer um a um ou por lhe ser anojoso partir aqueles símiles de membros humanos, que lhe acordariam, porventura, remotas superstições, ele acercou-se do murozito e lançou os ex-votos, duma só vez, para as profundidades do desfiladeiro. Depois, quedou-se, um momento, como eu fizera antes, a contemplar o oceano. — O senhor gosta disto? — perguntou, voltando-se ligeiramente para mim. — Isto é bonito — respondi-lhe. — um magnífico panorama. Tornou a olhar o mar e a terra, lentamente. 36 — Sim, não é feio... — murmurou. — Podia ter saído muito melhor, mas enfim... Já os romanos gostavam deste sítio. Ninguém o sabe ainda, senão eu, mas a verdade é que houve aqui um crasto. Olhe, acolá, à esquerda, antes de se entrar no adro, se alguém escavar, encontrará restos de sepulturas... E à praia, lá embaixo, chegaram a vir muitas galeras... Existia, então, um pequeno porto, que o tempo assoreou... Surpreendiam-me os seus conhecimentos e a propriedade com que falava. Tentei examiná-lo melhor, mas o homem encontrava-se novamente de costas, sempre de olhos fixos ao longe. — Efetivamente — disse-me, depois — se olharmos bem para a terra, para o mar e para o céu, e se pensarmos na grande variedade dc seres que há no mundo e em todo este admirável equilíbrio planetário, parece-nos que estamos perante um milagre. Não é assim? A si também não lhe parece o mesmo, quando pensa, por exemplo, nas vidas submarinas? — Sem dúvida, o mundo é muito variado... Ele interrompeu-me: — Eu sei que todos os homens pensam, sobre isto, mais ou menos o mesmo. Um simples inseto, que encontramos num monte e que podemos facilmente esmagar com o pé se ele não fugir, é capaz de levar-nos a meditar sobre o mistério da criação, é capaz de arrastar o nosso pensamento por caminhos obscuros que, momentos antes, não tínhamos sequer admitido percorrer. O homem interrogou-me bruscamente: O senhor o que é? Qual é a sua profissão? Eu disse-lha e ele pareceu contente: — Ah, muito bem! Então pode compreender. Não é verdade que o mundo parece feito por uma imaginação portentosa? Por uma inteligência que nenhum homem pode igualar? — Algumas vezes tenho refletido sobre isso... — confessei modestamente. — Aí está! — exclamou ele. — Aí está! Mas o senhor engana-se! Pelo menos, engana-se em metade... Aproximou-se mais de mim. Eu estava sentado, ele de pé; eu tinha de olhá-lo de baixo para cima e sempre com receio de que estendesse as mãos e me dominasse. —
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