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Elementos de Filosofia do Direito

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Elementos de 
Filosofia do Direito
Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira
Sergio de Souza Salles
Elementos de 
Filosofia do Direito
Petrópolis, 2009
© Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira & Sergio de Souza Salles
1ª edição: 2009
Esta edição é propriedade dos autores.
Ficha Catalográfica
S587a
Silveira, Carlos Frederico G. C. da.
 Elementos de Filosofia do Direito. / Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira; Sergio de Souza Salles. Petrópolis : UCP, 2009.
 
 114p. ; 14 x 21 cm
 ISBN 978-85-60654-12-3 
 
 1. Direito - Filosofia 2. Jurídica - Filosofia 3. Direito 4. Justiça I. Salles, Sergio de Souza II. Título 
	 CDU 340.12
Bibliotecária Responsável : Antonieta Chinelli Souto – CRB-7 / 3508
Imagem da capa:
Jacobello del Fiore. A justiça entre os arcanjos Miguel e Gabriel. Têmpera sobre painel, 210 x 190 cm. Veneza: Gallerie dell’Accademia, 1421.
Universidade Católica de Petrópolis
Rua Benjamin Constant, 213, Centro - Petrópolis, RJ 
CEP: 25610-130 
Telefone: (24) 2244-4000
Sumário
Prefácio 	7 
1. Introdução	9
2. Definições iniciais	13
 2.1. Filosofia do Direito	13
 2.2. Lei, justiça, ética e moral	15
3. Breve história da Filosofia do Direito	17
 3.1. A descoberta do direito natural	17
 3.2. O processo histórico de negação do direito natural	31
 3.3. As correntes contemporâneas	45
 3.4. Ser e agir na constituição do direito	75
 3.5. A retomada do direito natural em nova perspectiva 77
4. Temas	81
 4.1. Natureza e imutabilidade da lei	81
 4.2. O sujeito do direito	87
 4.3. A elaboração das leis	89
 4.4. A hermenêutica 	92
 4.5. Deontologia jurídica	95
 4.6. O direito de guerra	99
5. Conclusão	103
Referências Bibliográficas	107
Índice	110
Prefácio
	Elementos de Filosofia do Direito foi elaborado com a meta de atender à demanda dos estudantes de direito e de filosofia da Universidade Católica de Petrópolis por um material didático que representasse as ideias e os valores ensinados efetivamente por seus professores, em comunhão com os princípios norteadores da própria Universidade Católica.
Como material didático de caráter introdutório, o livro procura oferecer ao leitor os elementos que servem de base à reflexão filosófica sobre o direito em dois momentos distintos e complementares. O primeiro, marcado pela mediação histórica das filosofias do direito, procura incentivar os alunos à leitura comparativa dos filósofos, tendo como fio condutor a questão do direito natural. O segundo, estruturado de modo temático, acompanha a contribuição de Tomás de Aquino para o debate contemporâneo em torno da lei, do sujeito do direito e da deontologia e hermenêutica jurídica.
A própria extensão da disciplina Filosofia do Direito, lecionada em um semestre, exigiu de nossa parte um olhar mais sintético do que analítico no tratamento dos autores e das questões. Embora nem sempre desejáveis, as omissões de autores, teorias e correntes filosóficas tornaram-se inevitáveis para que o livro fosse fiel à sua tarefa propedêutica.
É nossa intenção aprofundar gradativamente esta primeira versão, conservando a natureza eficaz da síntese para os que se iniciam na reflexão filosófica sobre o direito.
Os autores
Petrópolis, 04 de agosto de 2009.
1. Introdução
	Aristóteles afirma, no início de sua Metafísica, que aquele que não sabe com clareza o problema que pretende tratar tampouco sabe que caminho tomar para sua solução e, o que nos parece igualmente grave, não poderá reconhecê-la, quando a encontrar: 
Aqueles que pesquisam sem antes terem examinado as dificuldades assemelham-se aos que não sabem aonde ir. Estes, ademais, não estão em grau de saber se encontraram ou não o que buscavam; de fato, não lhes é claro o fim que devem alcançar, enquanto que este é claro para o que antes compreendeu as dificuldades1.
	Deve-se considerar que todo problema pode ser aprofundado em dois sentidos básicos: precisando a formulação do mesmo ou ainda ampliando sua abrangência. Frequentemente esses dois aspectos caminham juntos.
	A história do direito revela exatamente esse aprofundar de problemas. Intimamente ligada à história da filosofia, a história do direito em seus temas específicos sempre absorveu conquistas da pesquisa filosófica, na área especulativa como na prática, isto é, tanto em metafísica quanto em ética. Um problema que aparece em direito, especialmente se põe em questão seus fundamentos, deve 
1	 ARISTÓTELES. Metafísica, B, 995a 35 - 995b 2.encontrar uma formulação filosófica ulterior.
	Um problema que se manifesta com frequência no pensamento clássico, e também no contemporâneo, independentemente da forma como se apresente, é a questão da existência do direito natural, que, na verdade, versa sobre a variabilidade da lei e a busca de um critério para regular sua variação. As diferentes respostas que apareceram ao longo dos séculos têm sido dadas a partir do próprio percurso da reflexão filosófica. Portanto, para o aprofundamento desse problema serão apresentadas as premissas filosóficas que servem de princípios a determinadas teorias do direito, como se pode observar a partir do próprio Aristóteles. 
A questão do direito natural, seu estatuto, isto é, sua natureza fundante para qualquer direito ulterior é, pois, o problema fundamental da Filosofia do Direito. Os professores Eduardo C.B.Bittar e Guilherme de Almeida, em livro de grande valor didático e teórico, sugerem algumas tarefas específicas da disciplina, que valem ser citadas aqui. Assim, a Filosofia do Direito deveria:
1. proceder à crítica das práticas, das atitudes e atividades dos operadores do direito; 
2. avaliar e questionar a atividade legiferante, bem como oferecer suporte reflexivo ao legislador; 
3. proceder à avaliação do papel desempenhado pela ciência jurídica e o próprio comportamento do jurista ante ela; 
4. investigar as causas da desestruturação, do enfraquecimento ou da ruína de um sistema jurídico;
5. depurar a linguagem jurídica, os conceitos filosóficos e científicos do Direito;
6. investigar a eficácia dos institutos jurídicos, sua atuação social e seu compromisso com as questões sociais, seja no que tange a indivíduos, seja no que tange a grupos, seja no que tange a coletividades, seja no que tange a preocupações humanas universais; 
7. esclarecer e definir a teleologia do Direito, seu aspecto valorativo e suas relações com a sociedade e os anseios culturais; 
8. resgatar origens e valores fundantes dos processos e institutos jurídicos; 
9. por meio da crítica conceitual institucional, valorativa, política e procedimental, auxiliar o juiz no processo decisório.2
	Algumas dessas tarefas serão contempladas nesta obra de introdução à Filosofia do Direito, ao menos parcialmente. E isso através de três momentos principais: a primeira parte, que visa à introdução de conceitos básicos; a segunda, mais extensa, que pretende traçar um perfil histórico-crítico das concepções filosóficas do direito, especialmente em referência ao conceito de lei natural; e, finalmente, uma série de temas próprios da disciplina, tais como o sujeito de direito, o direito natural, a hermenêutica jurídica e os princípios de uma deontologia jurídica.
	A linha de desenvolvimento dos argumentos segue o realismo tomista, em constante diálogo com os pensadores contemporâneos.
2	 BITTAR, Eduardo & ALMEIDA, Guilherme. Curso de Filosofia do Direito, p.44-45.
2. Definições Iniciais
2.1. Filosofia do Direito
Considerando a definição aristotélica da filosofia como a ciência das causas últimas e dos princípios primeiros de todas as coisas, pode-se dizer que a filosofia do direito é a ciência filosófica que busca esclarecer a natureza, a origem, os meios e os fins do direito. Contudo, essa definição, de cunho metafísico, pode ser matizada e atualizada com a que propõe Giorgio Del Vecchio1:
A Filosofia do Direito abrange, portanto, diversas investigações (a lógica, a fenomenológica e a deontológica) e pode assim definir-se: a disciplinaque define o Direito na sua universalidade lógica, investiga os fundamentos e os caracteres gerais do seu desenvolvimento histórico e avalia-o segundo o ideal de justiça traçado pela razão pura.2
Como se pode notar, para Del Vecchio, a Filosofia 
1	 Giorgio del Vecchio nasceu em Bolonha, aos 26 de agosto de 1878 e morreu em Gênova no dia 28 de novembro de 1970. Ensinou em diversas universidades italianas, entre as quais, a de Bolonha e a de Roma. Filósofo do direito, Del Vecchio defende uma visão do Estado como emanação da natureza humana. Suas obras mais importantes são: Il concetto di diritto, Bolonha, 1906; Sulla statualità del diritto, Milão, 1928; Parerga, Milão, 1961-67; Lezioni di filosofia del diritto, Milão, 1967. 
2	 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito, p. 304-307.do Direito abrange três áreas de investigação: a lógica − quer saber o que o Direito é; a fenomenológica − investiga a manifestação do Direito na história; a deontológica − indica o que o direito deveria ser.
Por outro lado, pode-se assumir uma definição do direito de acordo com a seguinte formulação: poder moral de possuir, fazer, ou exigir alguma coisa. Esta concepção do direito, que é clássica, supõe que o direito é um ato moral que se pode cumprir ou exigir de outro. Embora estas concepções iniciais sejam passíveis de crítica – como, aliás, é tarefa específica da filosofia do direito – elas oferecem elementos para uma primeira abordagem do fenômeno jurídico.
	Voltando a Del Vecchio, a tarefa da filosofia do direito é de natureza universal, de modo que é o único saber que pode dar conta do sentido último do direito:
É claro que nenhuma ciência jurídica particular pode dizer-nos sic et simpliciter o que o direito em si é, considerado no seu aspecto universal; pode apenas dizer-nos o que é o Direito de certo povo em uma determinada época. A definição do Direito in genere é, pois, tarefa que excede a competência de qualquer ciência jurídica particular. Está aí a primeira tarefa da Filosofia do Direito. Como justamente notou Kant as ciências jurídicas não respondem à pergunta quid jus? (que coisa se deve entender in genere por Direito), mas apenas à pergunta quid juris? (que coisa é estabelecida pelo direito de um determinado sistema)3.
3	 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito, p. 304.
2.2. Lei, justiça, ética e moral
A lei, consoante a definição de Santo Tomás de Aquino, é “certa ordenação da razão em prol do bem comum, promulgada por quem tem o encargo da comunidade” (quaedam rationis ordinatio ad bonum commune, ab eo, curam communitatis habet, promulgata). Esta definição será analisada em capítulo posterior. Por ora, ela tem a função de estabelecer as relações entre ética e direito, entre outras coisas. Destarte, pode-se dizer que é a lei que funda o direito, se se toma a lei no seu sentido mais amplo ou na seguinte ordem: lei divina − direito divino − lei natural − direito natural − lei positiva − direito positivo, o que na verdade significa que o fundamento do direito é a própria realidade, enquanto obra divina.
A justiça, por outro lado, é a disposição firme e constante da vontade em dar a cada um o que é seu (perpetua et constans voluntas, ius suum unicuique tribuens). Comumente falando, chama-se justo quem respeita o direito: “iustus dicitur quis ius custodit”, afirma o pensador medieval, referindo-se às palavras de Santo Isidoro de Sevilha.
A ética, por sua vez, é a disciplina filosófica prática normativa da ação humana, segundo a luz natural da razão. Admitindo-se que a ética se distingue da moral, pode-se dizer que a ética é uma disciplina exclusivamente filosófica, enquanto a moral pressupõe princípios que não são derivados da própria razão, como, por exemplo, princípios tomados da tradição, do costume ou da religião.
3. Breve História da Filosofia do Direito
3.1. A descoberta do Direito Natural
	
	A concepção clássica
Já na própria mitologia grega encontram-se elementos de fundamentação do direito natural. Hesíodo e Homero contribuíram com imagens valiosas do suposto conflito, do qual o mito quer dar conta entre cosmos, com suas leis, e o caos que parece querer reabsorvê-lo.
Os primeiros filósofos, chamados de “pré-socráticos”, como Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Parmênides e Heráclito, ao investigarem a estrutura da natureza em busca do seu princípio primeiro, introduziram o tema da universalidade das leis do universo físico, que, com o progresso da reflexão filosófica, se tornará a referência primeira das leis morais e políticas. 
Tales, por exemplo, indaga sobre a composição das coisas naturais, isto é, de quê são feitas as coisas: é a pergunta sobre a arkhé (ajrchv), o princípio de todas as coisas. A indagação de Tales modificou o panorama da cultura grega ao abrir o caminho da fundamentação racional da natureza. A partir dela surgiu uma variedade imensa tanto de respostas quanto de novas questões. 
Logo se assistiria, então, à primeira grande guinada da história da filosofia. É o surgimento, com Parmênides, da reflexão sobre o ser, o tema central da metafísica. “É indiferente para mim donde eu comece, porque para lá sempre voltarei”, isto é, para o ser, diz o filósofo de Eléia. 
O texto a que tal fragmento pertence, chamado de Sobre a Natureza, aponta ao leitor três vias para o conhecimento: a via da verdade, a via do erro e a via da opinião. Em seu proêmio, há uma alegoria, relativa à experiência da verdade, cuja provável origem religiosa não descarta um sentido racional. E é em função do caráter inefável dessa experiência que a deusa que recebe o filósofo em seu poema aparece de modo polinômico: é chamada de Justiça, Verdade, Moira, Lei divina, Necessidade, Divindade que tudo governa, e Persuasão. O ser, que é o tema central da obra, também será entendido a partir de uma importante gama de predicados, que servirão de referência para toda a metafísica posterior.
O mesmo se pode dizer quanto à influência da obra de Heráclito. Para ele, o princípio das coisas é o fogo, o elemento que melhor exprimiria a dinâmica da natureza, pois nela tudo é movimento, devir: “tudo flui” (Pavnta r&ei~). A grande novidade de Heráclito, entretanto, está na defesa de que o movimento da natureza tem uma razão interna, uma lei, o logos (lovgoς). É o logos que explica o movimento e que permite a compreensão da natureza. Embora o logos seja um elemento oculto na natureza, ele é perceptível pela inteligência humana. Assim, pelo logos, a inteligência descobre a harmonia do universo, que se manifesta através de opostos.
No prosseguimento dessa busca da lei, da razão, da ordem, estão justamente os filósofos posteriores que enveredam por um aprofundamento de cunho mais antropológico. Sócrates inaugura essa tendência. O bem moral, para Sócrates, consiste na realização da racionalidade do homem. A liberdade é justamente o domínio da racionalidade sobre a animalidade. Saber, conhecer a verdade é o bem supremo do homem e esse conhecimento é suficiente para que ele pratique o bem. Em outras palavras, para Sócrates, saber o que é certo já garante a ação justa. É o que se chama de intelectualismo ético.
	Desde então, o pensamento ético grego gira em torno do ideal de virtude, areté, que significa tornar perfeito aquilo que é próprio de alguém. Portanto, a areté máxima, no intelectualismo de Sócrates, é o aperfeiçoamento da racionalidade. Essa tendência cada vez mais metafísica do pensamento grego chega à sua perfeição, como se sabe, com Platão e Aristóteles.
Platão (ca. 428-347 a. C.)
A grande herança de Platão vem imediatamente de Sócrates. Contudo, para determinados temas e princípios, a filosofia pré-socrática e a tradição literária da Grécia são a sua verdadeira fonte. De modo muito especial, a filosofia de Parmênides − a herança propriamente metafísica legada a Platão.
	A novidade platônica é estabelecer que, sob determinado aspecto, o não-ser é, o que implica em um ataque à tese parmenídea do ser. O termo mhV o#n, não-ser, inaugurado por Parmênides, e posto à prova porGórgias, é igualmente confrontado por Platão. Ao caracterizar o sofista como aquele que ilude, na medida em que pretende tudo saber, Platão insere o tema da ilusão, e traz à tona a discussão dialética sobre o ser e o não-ser. O não-ser não será mais entendido em oposição ao ser mas como contrário ao mesmo e ao idêntico.
	A crítica platônica aos pré-socráticos é feroz. “Dão-me todos eles a impressão de contar-nos fábulas”. Segundo ele, o problema está na obscuridade do método desses sábios. Entra-se em contato com suas teorias ­— as mais divergentes mesmo sobre os fundamentos — e não se sabe qual delas aceitar, pois não há justificação explícita por parte de nenhum deles. Em suas palavras: “todos eles prosseguem em suas teses até o fim, sem se importarem em saber se nós os estamos acompanhando ou se, já muito antes nos perdemos.”
	Na tentativa de solucionar as contradições encontradas nas noções da tradição, Platão visa a realizar uma síntese entre as teorias de Heráclito, que defende que o devir com seu logos é a verdadeira realidade e de Parmênides, para quem só o imutável é verdadeiro, tende um pouco mais para este último. De modo que a abordagem da phýsis assume paulatinamente uma dimensão estritamente metafísica, cujo princípio fundamental é a teoria da participação das coisas sensíveis em uma realidade superior, o mundo das formas.
Mas, entre tantos temas abordados por Platão e que são uma das grandes fontes de qualquer teoria da justiça no Ocidente, é certo que o tema da participação do homem na construção da cidade justa é um dos mais significativos. 
O trabalho ou a função que cada qual desempenha na cidade é critério para o juízo sobre o homem e aquilo que o faz melhor. Érgon é o termo que indica tal concepção na filosofia de Platão e Aristóteles. Platão defende que a excelência (areté) é justamente o resultado desse poder, desse trabalho, dessa função — érgon —, que faz com que cada homem opere bem.
Contra Sócrates1, Glauco e Adimanto, no início do diálogo República, defendem que o homem é definido pela força de sua epithymía, ou de seu apetite concupiscível. Eventualmente, ele pode até mesmo reconhecer a utilidade das leis e da justiça e da parte mais elevada de sua alma, a razão, mas não é esta que o conduz. Somente na sociedade, entendida como fruto de um pacto em favor de maiores vantagens para o indivíduo é que a justiça pode ter sua força. Por conseguinte, o homem, entendido como ser passional, 
1	 Sócrates é personagem frequente dos diálogos de Platão. Suas falas parecem em geral dar voz às ideias do autor: o discípulo põe suas palavras na boca do mestre já falecido.precisa de uma cidade e de uma ética que controlem tais paixões, quase como algo extrínseco a ele. Esta era a tese dos novos interlocutores de Sócrates. 
Posto o desafio de Glauco e Adimanto, Sócrates conduz seus solertes interlocutores por uma via que os leve a reconsiderar suas proposições. Percorre com eles um caminho que lhes mostra que, embora suas concepções de justiça não estejam de todo desprovidas de acerto, são, porém, insuficientes para a construção da cidade ideal. 
Se considerarmos a estratégia argumentativa de Sócrates, veremos que ele parte da própria concepção parcial de homem, apresentada por Glauco e Adimanto, para alçá-lo à sua condição ideal, isto é, de excelência. Ora, concebendo o homem sob a ótica das paixões, descobre-se um elemento importante de sua constituição, a epithymía ou concupiscência. Esta é uma parte reconhecida no homem, mas não se pode reduzi-lo a ela. Abre-se então a consideração de outros dois elementos que constituem a alma do homem, a saber, o irascível e o racional. Sócrates, usando do mesmo recurso de seus interlocutores, examina a justiça baseada nestes dois outros elementos constitutivos do homem. É um longo percurso que, por isso mesmo, ajudará a situar essas dimensões humanas com o fito de reordená-las para uma concepção mais abrangente e íntegra da justiça. 
O princípio resultante da investigação platônica é simples: se já uma das faculdades humanas pode colaborar com a justiça, todas juntas poderão colaborar mais ainda. Ademais, se considerarmos que existe uma ordem, uma hierarquia entre esses elementos, a perfeita justiça só será concebida quando a reconhecermos. E é isto que acontece: o racional é o que há de mais elevado no homem, especialmente se considerarmos que as outras dimensões são comuns aos animais — a função racional tem uma especificidade que só compete ao homem. É assim que vemos nascer uma nova concepção da justiça.
Todo esse percurso serve para Platão explicitar sua concepção integral de homem e a maneira pela qual o próprio homem se humaniza na cidade justa. Por isso vemos no livro VIII a discussão das quatro formas de governo da cidade, e o porquê da insuficiência de determinados sistemas políticos: a parcialidade na concepção do homem. Essa parcialidade cancela a liberdade do homem e torna sua vida intolerável:
Ora, se a vida parece intolerável, quando a nossa constituição física decai, nem que se tenha o que há de melhor em alimentação, em bebida, riqueza e poder, como poderia tornar-se suportável quando o tumulto e a ruína afetarem a constituição do próprio princípio pelo qual vivemos, ainda que cada um faça o que lhe apetece, exceto o dar algum passo para se libertar da maldade e da injustiça, e adquirir a justiça e a virtude?2
Na cidade ideal, entretanto, pode-se alcançar a mais alta justiça, e esta se realiza de modo excelente porque é o érgon racional do homem que a sustenta. É o homem de valor 
2	 PLATÃO. República, IV, 445b.que se faz na cidade ideal. Se a díke, isto é, a justiça permite o surgimento desse homem, por outro lado, ela se alimenta da própria função do humano. Toda a phýsis liberta-se quando o homem justo opera bem, quando ele age do modo que lhe é próprio.
Aristóteles (ca. 384-322 a. C.)
	Aristóteles formula assim a questão do direito natural: existe o direito natural e o direito positivo; o direito positivo é mutável. O Estagirita chega até a admitir a mudança no direito natural, o que não é razão suficiente para negar sua existência. 
	É no famoso capítulo 7 do quinto livro da Ética a Nicômaco que se encontra essa doutrina aristotélica: “...existem pois duas espécies de direito, o natural e o legal: é natural o justo que tem a mesma validade em todo lugar, e não depende do fato de ser ou não reconhecido;”3 e ainda: 
Há um tipo de justo que se funda na natureza e outro que não se funda na natureza. Ora, entre as normas que podem também ser diversas, é claro qual seja por natureza, qual não seja por natureza mas por lei, se é verdade que tanto natureza quanto a lei sejam mutáveis.4 
Essa mutabilidade conduz a dois problemas: a ori­
3	 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1134b, 18-20.
4	 ID.IBID., 1135b, 30-33.gem da mutabilidade e o critério de mutabilidade. 
Aristóteles situa o direito no âmbito da Política, pois o direito é parte da ética e esta se insere na vida da pólis. Aristóteles trata da justiça, do direito tanto em sua Política quanto em suas obras de ética, especialmente a Ética a Nicô­maco.
A Política é um trabalho indescritível de Aristóteles. Tem havido muita discussão em torno da ordem “correta” dos livros ou capítulos que compõem a obra. Ela consiste realmente em um conjunto de ensaios, originariamente independentes, os quais não receberam uma elaboração num todo homogêneo.
A Política de Aristóteles compreende oito livros, que se agrupam nos seguintes temas:
1o A Economia doméstica como fundamento da cidade: I
2o Sobre as cidades antigas (ideais) e as constituições atuais: II
3o Sobre a cidade, o cidadão e a classificação das constituições: III
4o Sobre as constituições inferiores: IV - VI
5o Sobre a cidade ideal: VII - VIII
Seu método consiste num processo largamente indutivo. Mas, simultaneamente, fundamenta os seus pontos de vista políticos em teorias mais compreensivas e fundamentais, de ordem metafísica ou ética. Defende a prioridade do todo em relação à parte ou, em outras palavras,a superioridade do bem comum em relação ao bem particular. Além desse princípio geral, outros princípios conduzem a reflexão de Aristóteles, como: a identidade da natureza de uma coisa com o fim para o qual ela se move; a superioridade da alma sobre o corpo, da razão sobre o desejo; a importância do limite e da moderação; a diferença entre partes fundamentais e acessórias da vida pública.
Os seus pontos de vista políticos fazem parte de um sistema vasto e coerente, apesar de em alguns momentos sustentar algumas arbitrariedades.
A Política de Aristóteles começa com uma justificação do Estado, a pólis, face ao ponto de vista sofístico que o representa como existindo por convenção e sem fundamento. Assim, para Aristóteles, o Estado é natural e deriva da família.
A natureza revela-se não na sua origem mas no seu destino. O homem é animal político. A definição de Estado poderia ser comunidade, associação. Entretanto, este conceito ainda é genérico. Importa encontrar o elemento que determine melhor o tipo de comunidade que é o Estado. Assim, vejamos as associações humanas:
1) a família: unidade social básica;
2) a aldeia: agrupamento de famílias;
3) o Estado: agrupamento de aldeias.
A diferença específica, isto é, o que determina o tipo de associação que é o Estado, está no proporcionar de uma vida boa. Assim, definimos o Estado como “comunidade de homens livres orientada ao viver bem, isto é, segundo a virtude”.
	É sempre útil citar a célebre passagem em que Aristóteles caracteriza o homem como animal político, já que isso ilustra perfeitamente o seu realismo ético e jurídico:
É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedades, e que aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem. Tal indivíduo merece, como disse Homero, a censura cruel de ser um sem família, sem leis, sem lar. Porque ele é ávido de combates, e, como as aves de rapina, incapaz de se submeter a qualquer obediência. Claramente se compreende a razão de ser o homem um animal sociável em grau mais elevado que as abelhas e todos os outros animais que vivem reunidos. A natureza, dizemos, nada fez em vão. O homem só, entre todos os animais, tem o dom da palavra; a voz é o sinal da dor e do prazer, e é por isso que ela foi também concedida aos outros animais. Estes chegam a experimentar sensações de dor e de prazer, e a se fazer compreender uns aos outros. A palavra, porém, tem por fim fazer compreender o que é útil ou prejudicial, e, em consequência, o que é justo ou injusto. O que distingue o homem de um modo específico é que ele sabe discernir o bem do mal, o justo do injusto, e assim todos os sentimentos da mesma ordem cuja comunicação constitui precisamente a família do Estado5.
5	 ARISTÓTELES. Política, I, 9.
A Idade Média
Santo Tomás de Aquino (ca. 1225-1274)
O Estado em Tomás de Aquino, como em Aristóteles, tem origem natural; não é, como talvez pense Agostinho, fruto do pecado. Tem origem na natureza social do homem e nos seus sentimentos. Nasce da necessidade do homem ter um guia: Estado, autoridade e governo são praticamente o mesmo, mas têm uma ordem lógica: 1o) vem a autoridade; 2o) o governo, porque a autoridade compete a quem governa; 3o) o Estado: o governo compete a quem é chefe do Estado. Mas a base da autoridade é a própria lei, que quem governa deve fazer cumprir (leis naturais são aplicadas através das positivas).
O bem comum é o fim do Estado. Enquanto a moral diz o que o homem deve fazer para ser homem, a política diz o que ele deve fazer para ser cidadão: “O bem comum não é a mera soma do bem dos membros da sociedade singularmente considerados; não é o bem das partes singulares mas do todo”6. 
Com muita sabedoria Tomás traz um exemplo do primado do bem comum citando o dito de Valério Máximo (20 d.C.) segundo o qual, os antigos romanos “preferiam ser pobres em um império rico do que ricos em um império pobre”. Assim se entende que a riqueza, o lucro, a saúde, a cultura etc., são bens particulares a serem ordenados ao bem 
6	 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 47, a. 10, ad 2m.comum, da coletividade, para que, com a troca e a comunhão desses, se assegure o bem viver de todos. Santo Tomás defende que a comunhão dos bens pertence à essência mesma da sociedade organizada politicamente: 
O Estado é perfeita comunhão (de bens). E é perfeita comunhão que provê que o homem tenha suficientemente aquilo que é necessário à sua vida; tal comunhão é o Estado (= cidadania).7
	Santo Tomás segue a ordem e a classificação aristotélica, contudo, em geral, defende a monarquia; já em outras obras fala de um governo misto. Mas não há regime perfeito. Então, a forma de governo é secundária, o importante é que possa assegurar a justiça aos cidadãos. Assim, o juízo sobre o governo e o regime deve verificar:
	1) se o povo leva uma vida virtuosa;
	2) se salvaguarda a paz;
	3) se garante os bens materiais necessários. 
	Em poucas palavras, pode-se dizer que o critério fundamental da filosofia do direito de Tomás de Aquino é o próprio direito que decorre da natureza humana (o direito natural) na riqueza inefável de seu ser, que, embora mantenha sua essência, revela-se sempre nova nos diferentes momentos da história do homem. A atualização do direito 
7	 “Civitas est communicatio perfecta. Illa erit perfecta commu­nicatio quae ordinatur ad hoc ut homo habeat sufficienter quidquid est necessarium ad vitam; talis autem communicatio est civitas” (TOMÁS DE AQUINO. In I Politicorum, lect. 1.).deve ser feita tendo em vista este referencial: a natureza humana, que só muda no sentido de sua profundidade, nunca no sentido de substituição do que o homem é em sua essência.
3.2. O processo histórico de negação do Direito natural
Pode-se dividir a história do direito a partir da aceitação e da negação do direito natural. A tradição filosófica que afirma o direito natural vem de antes de Aristóteles, é plenamente desenvolvida por este filósofo, como já se acentuou, e chega ao ápice da sua formulação em Santo Tomás de Aquino. Também no início da modernidade o direito natural será afirmado, embora de modo diferente da contribuição clássica, e a figura mais importante neste caso é Grócio. 
	Assim, podemos reconhecer três tradições fundamentais de afirmação do direito natural: a tradição clássica, a tomista e a moderna. Considerando que as três afirmam o direito natural, o que as distingue é a identificação de sua origem, ou seja, enquanto no pensamento clássico o natural está ligado ao divino e o fundamento é a própria essência, na formulação moderna, é a razão a fonte dessa norma. Em Santo Tomás, em contrapartida, a base dessa formulação é a sua teoria do ser, que não exclui nem sua origem divina, nem sua racionalidade. 
	Por outro lado, a negação do direito natural vai sendo preparada por novas posturas filosóficas que surgem na modernidade. Uma das maiores expressões dessa negação no pensamento contemporâneo é a obra de Hans Kelsen, que, ao defender o positivismo jurídico, nega, em nome do rigor científico, qualquer possibilidade de fundamentação metafísica do direito, considerada ideológica; tal fundamento “significa a invasão do tratamento científico do direito positivo pela teoria do direito natural, e, na medida do possível, uma analogia com as ciências naturais, uma intrusão da metafísica no domínio da ciência8.” Na verdade, a própria doutrina do direito positivo de Kelsen está eivada de ideologia, como se verá adiante.
	Portanto, para que fiquem claras as premissas que levaram à negação do direito natural, é importante apresentar o itinerário filosófico dos pensadores modernos aos contemporâneos nesse campo. 
Pode-se também dividir a história da filosofia em dois grandes blocos: o pensamento clássico (isto é, antigo e medieval) e o pensamento moderno. O primeiro podemos dizer que foi inaugurado por Platão e pode ser caracterizado defilosofia da transcendência; o segundo encontra em Spinoza o seu modelo: é a filosofia da imanência.
O racionalismo jurídico
John Locke fixou definitivamente as bases da doutrina liberal da concepção política moderna, repropondo o valor do direito natural e opondo-se a toda forma de governo 
8	 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado,p. 386.absoluto – é, portanto, considerado o “pai do pensamento liberal moderno, que pretende racionalizar rigorosamente o exercício do poder. O indivíduo como fundamento da soberania é outra característica desse liberalismo. Os Dois tratados de Locke podem ser considerados como:
a) uma polêmica contra o poder absoluto e o direito divino do rei;
b) uma apologia da revolução e do partido;
c) uma doutrina de origem consensual do governo.
O primeiro tratado reza que os reis (que têm direito divino) sejam herdeiros da suposta autoridade de Adão. A segunda parte trata mais estritamente das questões liberais.
Em 1748, Montesquieu teve publicado seu Do Espírito das Leis (De L’Esprit des Lois, ou du rapport que les lois doivent avoir avec la constitution de chaque governement, les moeurs, le climat, la religion, le commerce, etc). Esta obra é composta de trinta e um livros, divididos em pequenos capítulos onde são analisadas as leis existentes no século XVIII. 
Tematicamente, os livros estão assim distribuídos: 
1) as leis dos homens estão determinadas pela natureza do governo: 1-13; 
2) as leis também são determinadas pelo clima e a natureza do solo: 14-18; 
3) o espírito da nação desempenha também um papel preponderante sobre as leis: 19-26; 
4) as leis romanas, as leis feudais, as leis francesas: 27-31.
A concepção spinozista de direito natural
Para Spinoza, tudo aquilo que está fora de Deus é fruto da imaginação do homem. Esta imaginação, que é um grau de conhecimento, tem um paralelo com a condição corpórea do homem e, por isso mesmo, é passível de iludir cada indivíduo com a mesma ilusão que ele possa ter a respeito do poder do seu corpo. E é aqui que se deve situar o problema do direito, especialmente quando se trata do direito natural, pois o natural acrescenta ao conceito de direito essa dimensão física. 
Entretanto, ao se remeter ao conceito de natureza, o natural exige uma reflexão sobre o significado metafísico da mesma. Isso se verifica por antonomásia no pensamento jurídico de Spinoza. Por conseguinte, a exposição da teoria spinozista do direito natural exige uma explanação de uma metafísica que se tornou aparentemente tão peculiar quanto caduca, e, destarte, necessita de um desenvolvimento que vem a ser um tratado, mesmo que breve.
No que concerne à questão do direito, Spinoza insere-se na tradição que defende a existência do direito natural, mas sua peculiaridade está em assumir tanto o racional quanto o divino na fundamentação do direito, graças à identificação da natureza com o próprio Deus. Afirma Spinoza: 
Todos existem por direito supremo da natureza e consequentemente cada um faz, pelo direito supremo da natureza, o que decorre da necessidade de sua própria natureza; e assim cada um julga, pelo direito supremo da natureza o que é bom, o que é mau, ou consulta a sua utilidade segundo o seu engenho, se vinga, e se esforça por conservar aquilo que ama, e por destruir aquilo que odeia. Porque se os homens vivessem dirigidos pela razão, cada um possuiria o direito que lhe pertence, sem nenhum prejuízo para outrem.9
	Esta passagem da Ethica ilustra de modo exemplar a concepção de direito natural que Spinoza defende. Os elementos que compõem a doutrina sintetizada nesse parágrafo podem ser mais bem entendidos por meio de outra passagem, igualmente fundamental, do Tratado Teológico-Político, capítulo XVI, que justamente se intitula Dos fundamentos do Estado, do Direito Natural e Civil de cada indivíduo e do direito dos Soberanos. Embora o título anuncie outros temas importantes, o cerne da discussão é o direito natural. 
As teses principais enunciadas no referido capítulo podem ser agrupadas segundo os seguintes elementos: primeiro, a existência é decorrência de um direito supremo da natureza: 
1. Por direito e instituição da natureza entendo unicamente as regras da natureza de cada 
9	 ID. IBID., IV, p. 37, sch 2: “Existit unusquisque summo naturae jure, & consequentersummo jure naturae unusquisque ea agit, quae ex suae naturae necessitate sequuntur; atque adeo summo naturae jure unusquisque judicat, quid bonum, quid malum sit, suaeque utilitati ex suo ingenio consulit, seseque vindi­cat, & id, quod amat, conservare, & id, quod odio habet, destruere conatur. Quod si homines ex ductu rationis viverent, potiretur unusquisque hoc suo jure absque ullo alterius damno.”indivíduo, regras segundo as quais concebemos qualquer ser como naturalmente determinado a existir e a agir de uma certa maneira10.
2. É, com efeito evidente que a natureza, considerada em absoluto, tem direito a tudo o que está em seu poder, isto é, o direito da natureza estende-se até onde se estende a sua potência, pois a potência da natureza é a própria potência de Deus, o qual tem pleno direito a tudo11.
3. Nem vemos que haja aqui qualquer diferença entre os homens e os outros seres da natureza, ou entre os homens dotados de razão e os outros que ignoram a verdadeira razão, ou ainda entre os imbecis e dementes e as pessoas sensatas12.
Segundo, o agir segue a necessidade da natureza de cada um: 
4. O direito natural de cada homem determina-se, portanto, não pela reta razão, mas pelo desejo e a potência13.
10	 TTP, XVI, 189, 12-15: Per jus & institutum naturae nihil aliud intelli­go, quam regulas naturae uniuscujusque individui, secundum quas unumquod­que naturaliter determinatum concipimus ad certo modo eixstendum & operan­dum. 
11	 TTP, XVI, 189, 17-21: Nam certum est naturam absolute considera­tam jus summum habere ad omnia, quae potest, hoc est, jus naturae eo usque se extendere, quo usque ejus potentia se extendit; naturae enim potentia ipsa Dei potentia est, qui summum jus ad omnia habet...
12	 TTP, XVI, 189, 30-34: Nec hic ullam agnoscimus differentiam inter homines & reliqua naturae individua, neque inter homines ratione praeditos & inter alios, qui veram rationem ingorant, neque inter fatuos, delirantes, & sanos.
13	 TTP, XVI, 190, 13-14: Jus itaque naturale uniuscujusque hominis non sana ratione, sed cupiditate & potentia determinatur.
5. De tudo isto se conclui que o direito é aquilo que foi instituído pela natureza, direito sob o qual todos nascem e sob o qual vive a imensa maioria, não proíbe nada a não ser o que ninguém deseja ou ninguém pode14.
6. Posto isto, é igualmente incontroverso ser muito mais útil para os homens viverem segundo as leis e os rigorosos ditames da razão, que apontam, como já dissemos, apenas para o que lhes é verdadeiramente útil15.
Terceiro, o juízo sobre o bem e o mal é relativo à conservação do que interessa ao esforço de autopreservação: 
7. Manda a lei universal da natureza humana que ninguém despreze o que considera ser bom, a não ser na esperança de um bem maior ou por receio de um maior dano, nem aceite um mal a não ser para evitar outro ainda pior ou na esperança de um maior bem 16.
Quarto, o seguimento da razão é o critério para o reconhecimento do próprio direito sem prejuízo de terceiros:
8. ...cada indivíduo deve transferir para a sociedade toda a sua própria potência, de forma a que só aquela detenha, sobre tudo e sobre todos, o supremo direito de natureza, isto é, a soberania 
14	���������������������������������������������������������������� TTP, XVI, 190, 30-32: Ex quibus sequitur Jus & Institutum natu­rae, sub quo omnes nascuntur, & máxima ex parte vivunt, nihil nisi quod nemo cupit, & quod nemo potest, prohibere.
15	���������������������������������������������������������������� TTP, XVI, 191, 13-14: Verum enimvero, quanto fit hominibus uti­lius secundem leges, & certa nostrae rationis dictamina vivere, quae, uti diximus, non nisi verum hominum utile intendunt, nemo potest dubitare.
16	 TTP,XVI, 191, 34-35: Nam lex humanae naturae universalis est, ut nemo aliquid, quod bonum esse judicat, negligat, nisi spe majoris boni, vel ex metu majoris damni; nec aliquod malum perferat, nisi ad majus evitandum, vel spes majoris boni.suprema, à qual todos terão de obedecer, ou livremente ou por receio da pena capital. O direito de uma sociedade assim chama-se Democracia17.
9. Por isso, a república mais livre é aquela cujas leis se fundamentam na reta razão; porque aí, cada um, sempre que quiser, pode ser livre, isto é, viver inteiramente de acordo com a razão 18.
	Fica aberta a porta para uma síntese entre essa imanência metafísica e a gnosiológica, que se opera com Kant.
	Immanuel Kant (1724-1804)
	Em 1770, em famosa dissertação que distingue duas esferas da realidade, o númeno e o fenômeno, Kant, 1724-1804, tem a intuição da maior reviravolta da filosofia moderna.
	Depois de distinguir entre númeno e fenômeno, Kant procura resolver o dilema deixado pelas posturas empirista e racionalista. O racionalismo defendia que somente a razão seria a fonte do conhecimento, enquanto o empirismo 
17	 TTP, XVI, 193, 21-24: ... si nimirum unusquisque omnem, quam habet, potentiam in societatem transferat, quae adeo summum naturae jus in omnia, hoc est, summum imperium sola retinebit, cui unusquisque vel ex libero animo, vel metu summi supplicii parere tenebitur. Talis vero societatis jus Democratia voca­tur.
18	 TTP, XVI, 195, 2-5: ... ideo illa Respublica maxime libera est, cujus leges sana ratione fundatae sunt; ibi enim unusquisque, ubi velit, líber esse potest, hoc est, integro animo ex ductu rationis vivere. defendia que somente os sentidos nos dão o conhecimento. A postura empirista chegou a negar o valor do conhecimento científico.
	Kant compreendeu que esse dilema poderia ser superado se se admitisse que a verdadeira ciência deve trazer sempre algo novo. Ora, o novo vem dos sentidos. Nessa perspectiva os empiristas tinham razão. Por outro lado, a verdadeira ciência também exige algo fixo (uma lei, por exemplo). E, nesse caso, são os racionalistas que têm razão. Logo, para Kant, só haverá ciência se esta contar com o novo, que ele chama de sintético, e com o fixo, que ele chama de a priori. Assim, a ciência para ser ciência deve constar de juízos sintéticos a priori. Foi na sua obra principal, a Crítica da Razão Pura, de 1781, que Kant procurou verificar que ciências preencheriam tal exigência.
	Kant, ao verificar quais ciências cumpririam o critério científico do juízo sintético a priori, declara que somente as ciências matemáticas e físicas poderiam ser consideradas tais. Exclui, pois, do rigor científico as ciências metafísicas. Seguindo essas considerações deve-se admitir que: nunca se atinge a realidade (o númeno) como ela é; a ciência está fundada no sujeito e não na realidade objetiva, pois as categorias pertencem ao sujeito e não às coisas, como defendia Aristóteles. A partir dessas premissas outras áreas do saber deverão ser repensadas: a ética, o direito e a religião.
	Depois que a Crítica da Razão Pura estabeleceu que a metafísica (no sentido clássico) não é ciência, a ética ficou sem fundamentação. Em função disso, Kant realizou uma outra crítica, a Crítica da Razão Prática (1788). Nesta obra, Kant critica a moral clássica por estar baseada em imperativo (ordem) hipotética, isto é condicional: “Se queres ser feliz, deves fazer isto ou aquilo”. Ora, esse princípio deve ser substituído pelo imperativo categórico, isto é, o dever pelo dever. Dessa forma, o primeiro princípio da moral, o imperativo categórico, deve ser assim formulado: “Age de tal modo que a tua lei possa ser universalizada”.
	Kant procura recuperar, pela ética, as verdades negadas na metafísica. Assim, a liberdade, a imortalidade da alma e a existência de Deus serão postulados da razão prática, isto é, são verdades necessárias para a ação moral, mesmo que teoricamente não possam ser provadas. A conclusão da Crítica da Razão Prática19 é muito significativa em relação a tudo o que se disse até aqui:
Duas coisas enchem o ânimo de crescente admiração e respeito, veneração sempre renovada quanto com mais frequência e aplicação delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim. Ambas essas coisas não tenho necessidade de buscá-las e simplesmente supô-las como se fossem envoltas de obscuridade ou se encontrassem no domínio do transcendente, fora do meu horizonte; vejo-as diante de mim, coadunando-as de imediato com a consciência de minha existência. A primeira começa no lugar que eu ocupo no mundo exterior sensível e congloba a conexão em que me encontro 
19	 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985.com incalculável magnificência de mundos sobre mundos e de sistemas, nos tempos ilimitados do seu movimento periódico, do seu começo e da sua duração. A segunda começa em meu invisível eu, na minha personalidade, expondo-me em um mundo que tem verdadeira infinidade, porém que só resulta penetrável pelo entendimento e com o qual eu me reconheço (e, portanto, também com todos aqueles mundos visíveis) em uma conexão universal e necessária, não apenas contingente, como em relação àquele outro. 
A Crítica da Razão Pura, ao inaugurar uma nova era do pensamento ocidental, pôs em cheque de modo especial o estatuto do sujeito cognoscente, ou seja, daquela realidade entendida como o substrato, o sustentáculo das experiências cognoscitivas humanas, sobretudo do sujeito como polo oposto ao objeto no processo humano de conhecimento.
A concepção clássica do sujeito cognoscente tem sua origem no processo de conhecimento analógico da realidade, que, desde os gregos antigos, supôs que tudo aquilo que existe ou existe em si ou em um substrato: ou são substâncias, indivíduos, ou são acidentes. De modo que, um cão, enquanto substrato, seria um sujeito com as características da sua espécie acrescido da existência singularizada. Por outro lado, suas características, como cor, tamanho, cheiro etc. seriam acidentes, o que completaria sua individualidade. 
É bom lembrar que indivíduo é normalmente definido como o “sujeito com todas as suas perfeições”, o ser, a essência e os acidentes. Esta teorização do substrato ganha sua formulação mais acabada em Aristóteles, de onde nascem as mais importantes teorias do sujeito em geral e dos múltiplos sentidos de sujeito, o gramatical inclusive
Ao se seguir essa inspiração fundamental, o que Aristóteles diz a respeito do sujeito cognoscente seria uma aplicação precisa dessa teoria geral, a saber: o sujeito cognoscente é um indivíduo constituído que sustenta, pois, todos os conhecimentos, que são vistos aqui como meros acidentes seus. Deduz-se daí, que esse indivíduo é um permanens, que, por sustentar esses conhecimentos e esses acidentes, transcende o próprio processo de conhecimento.
	Ora, o que a Crítica estabelece é a impossibilidade da existência de um tal sujeito como sustentáculo desses acidentes, pois o mero pensamento sobre tal sujeito já faz dele um acidente. Acontece aqui, como diz o próprio Kant, uma revolução copernicana em Filosofia e em toda a cultura ocidental. A Crítica vem destruir a possibilidade de se entender o conceito de sujeito sem um objeto de pensamento. Não se trata de uma negação absoluta da possibilidade de autoconhecimento, como se Kant negasse o moto socrático “conhece-te a ti mesmo”; trata-se simplesmente do reconhecimento de que esse ideal está limitado pelas próprias pretensões de conhecimento em geral. Ou seja, não se deve mais falar de um mundo em si, de Deus em si, do sujeito em si como objeto de conhecimento, mas somente como ideais que não podem ser verificados pelo próprio conhecimento humano. 
Não obstante, esses ideais podem servir como ideias reguladoras para uma outra dimensão do humano, que é a dimensão moral. E é assim que, na Crítica da Razão Prática, a moral aparece livre de toda fundamentação teórica. Quase como se trabalhasse de modo inverso ao da especulação: primeiro o agir, depois os ideais, as teorias.Kant pretende, assim, libertar a moral de uma fundamentação limitadora do nosso agir. Contrariamente à ciência e suas teorias, a moral não se baseia em nenhuma experiência prévia, ou mesmo em premissas teóricas. Ela é auto-fundante e, por conseguinte, o agente moral não depende da experiência à qual a ciência é adstrita e, por isso mesmo, limitada. O reino da moral é o reino da liberdade e, portanto, o reino em que se constrói o que é propriamente humano. O agir moral, ao contrário da ciência, permite ao homem construir um mundo que tem a sua face, o reino dos homens, onde Deus aparece como postulado prático que lhe indica o sentido.
O céu estrelado, com toda a sua “infinitude”, é limitado se comparado à grandeza das possibilidades humanas, uma vez que estas não são limitadas pelas experiências materiais. Por isso, Kant completa dizendo que também a lei moral lhe causa sempre maior admiração, respeito e veneração, como se dissesse que, se o ilimitado céu condicionado às nossas experiências é capaz de nos causar tamanha surpresa, é porque, na verdade, o mundo incondicionado da moralidade desvela toda a potencialidade do humano. 
O sujeito cognoscente toma agora uma dimensão menor, limitada, porém se abre espaço para o agente moral, que vai constituindo sua subjetividade e sua alteridade no reino da justiça, que se torna assim universal, porque não limitado às experiências individuais como pré-requisito para o agir. Pode-se dizer que, no reino do humano, ou seja, no reino da moralidade, se é consoante o que se faz. Ou ainda, significa que o agir precede o ser.
3.4. As correntes contemporâneas
G. W. F. Hegel (1770-1831)
	Seguindo os passos desse idealismo inicial de Kant, Hegel será o maior expoente da escola, ao desenvolver sua famosa dialética da ideia (ou do espírito). A dialética hegeliana afirma que a ideia (o espírito) se desenvolve triadicamente, e essa tríade é a explicação de todas as coisas. Ei-la: tese, antítese, síntese (a síntese constitui-se em nova tese, de modo que o processo se desenrola ao infinito). Em Hegel, o imanentismo spinozista tem sua expressão máxima. A experiência da consciência revela a totalidade da ciência, o seu rigor enquanto sistema.
	O percurso fenomenológico da consciência é longo, verdadeiro Calvário, a Sexta-feira Santa, na significativa expressão hegeliana, para se chegar à glória, isto é, à universalidade do conceito, ao pensar como sistema. O ser, que depende da consciência, perde a sua individualidade na universalidade anuladora do sistema, no seu acabamento, ou seja, no fechar-se sobre si mesmo: eis o saber absoluto.
	O espírito prevalece e neste sentido ele se distingue do natural; e então quando se fala de direito natural, se supõe o estado de natureza, o que é um absurdo ético. No parágrafo terceiro dos Princípios da Filosofia do Direito, Hegel declara que o direito é positivo em geral: pela forma da vigência em um Estado e quanto ao conteúdo, isto é, tem caráter racional, desenvolvimento histórico, um sistema de aplicação do universal e determinações últimas para a decisão20.
	Com essas premissas, mas especialmente a partir de Kant e de Hegel, afirma-se a postura negativa em relação ao direito natural, talvez como tentativa para resolver as questões mais complexas do próprio direito, como a variabilidade da lei. 
A Fenomenologia Do Espírito (1807) pode ser entendida como a primeira grande obra de Hegel pela firma uma propedêutica ao seu sistema. O tema central da filosofia de Hegel, Fichte e Schelling é o infinito na sua unidade como finito. Para Hegel, o infinito não existe para além do finito mas é a única e exclusiva realidade: o infinito não é um limite do finito pois senão também seria apenas um finito. O infinito supera e anula o finito em si próprio; reconhece e realiza além das aparências do finito, a sua própria infinitude.
Hegel apontava a necessidade de se conseguir uma totalidade do saber, uma ciência absoluta e julgava ser a sua época propícia à elevação da Filosofia à Ciência. Neste contexto apresenta a Fenomenologia do Espírito como o vir-a-ser da ciência em geral ou do saber. O que Hegel expôs, mais tarde, na Filosofia do Direito é esclarecedor: “aquilo o que é racional é real; e aquilo que é real é racional”. Há uma necessária, total e substancial identidade entre realidade e razão.
20	 HEGEL, G.W.F. Líneas fundamentales de la filosofía del derecho, p. 39.
Superando Kant, Hegel entende que a razão não é pura idealidade, abstração, deve ser mas é aquilo que realmente e concretamente existe. A razão filosófica distingue-se do intelecto: “a razão é a certeza da consciência de ser toda a realidade”. A razão é Autoconsciência ou Ideia, pois a realidade se acha alienada e estranha a si própria e tem na Filosofia o lugar para se reconhecer a si própria para além do afastamento ou alienação.
O saber é ciência, é saber necessário e do necessário: a identidade do finito e do infinito deve ser demonstrada por sua necessidade. O saber necessário e do necessário é ciência dialética.
A dialética é o método do saber e a lei do desenvolvimento da realidade. A dialética suprime a oposição; pela dialética a realidade supera as diferenças, divisões e oposições que constituem os seus aspectos particulares e proporciona a unidade do todo. 
O itinerário da Fenomenologia do Espírito se dará numa progressiva superação da oposição sujeito-objeto. As etapas percorridas fenomenologicamente na obra são: Consciência (a Certeza Sensível, A Percepção, A Força e o Intelecto), Autoconsciência (A Verdade da Certeza de si mesmo), Razão, Espírito, Religião e Saber Absoluto.
Para se fazer reconhecer como homem, o sujeito chega a pôr sua vida em jogo: cada autoconsciência quer provar que é autêntica consciência, isto é, precisa de outra autoconsciência para ser reconhecida.
	As quatro figuras da autoconsciência
Neste processo, um dos adversários, para salvaguardar a subsistência, faz-se escravo do outro. Tal é a dialética do senhor-escravo, primeira figura que surge — própria do mundo antigo. Todavia se desenvolve na relação de um movimento dialético que leva à subversão dos papéis: no trabalho do escravo, sua autoconsciência vai reaparecendo e acaba por se tornar independente das coisas, criando-as; e o senhor acaba por se tornar dependente das coisas.
Contudo, a autoconsciência avança nas etapas posteriores: estoicismo, ceticismo, consciência infeliz. No estoicismo, a consciência, que pretende se libertar do mundo da natureza, apenas consegue uma libertação abstrata, pois a realidade da natureza não é negada.
O cético nega essa realidade e reduz a realidade à própria consciência. Mas essa consciência é ainda coisa individual, em contradição as outras consciências individuais.
A autoconsciência, em contradição consigo própria, dá lugar à figura da consciência infeliz: compreendendo sua finitude e contingência, a consciência abre-se ao ideal de uma consciência imutável e infinita que é Deus. Projeta-se agora um Senhor Perfeito, supramundano, e, com isto, a consciência aliena-se, tornando-se infeliz. Tal figura caracteriza o cristianismo medieval.
O itinerário da razão ativa passa da inicial realização como indivíduo para elevar-se ao universal, perdendo-se o indivíduo na Razão universal.
A Filosofia do Direito de Hegel
	Em Princípios da Filosofia do Direito, Hegel desenvolve suas teses fundamentais sobre o Direito, já dentro da concepção de uma filosofia idealista acabada.
	Assim, Hegel procura unir aquilo que, em Kant, por exemplo, se encontra separado, a saber, a ordem jurídica e a ordem moral, na síntese da eticidade objetiva. Portanto, temos aqui as três partes em que se divide a obra, que, na verdade, revelam o próprio movimento do espírito à totalidade, à síntese jurídica.
	A primeira parte pretende explicar a concepção do Direito enquanto conjunto de normas externas ao sujeito, Direito esse que pode ser caracterizado como “Direito abstrato”, onde as coisas se regulam pelo “contrato”, que é unidade de vontades, comandada pelo princípio depropriedade.
	A segunda parte, a “moralidade”, exprime o movimento subjetivo da esfera do direito, onde prevalece a interioridade do sujeito.
	A terceira e última parte desenvolve a síntese entre as anteriores, também através de três movimentos:
•	a família: é o primeiro movimento da síntese, pois tem algo de contrato, expresso no casamento, e algo de subjetivo, a livre escolha;
•	a sociedade civil: o conjunto de seres humanos, unidos por suas necessidades dentro de um sistema econômico de dependência recíproca;
•	o Estado é o momento supremo do movimento do espírito, aqui em sua fase objetiva. A base do Estado é a constituição, que supera os conflitos que possam surgir na sociedade civil.
	Alexis de Tocqueville (1805-1859)
Tocqueville e seu amigo Gustavo de Beaumont embarcam para a América em 1831. Os dois magistrados pretendem examinar as instituições penitenciárias americanas. Isto servirá para Tocqueville de pretexto para um longo estudo sobre a democracia na América. 
A América vai permitir a Tocqueville uma análise in vivo do princípio democrático: tanto dos ricos como as vantagens em relação à liberdade. As nações europeias estão a meio caminho entre democracia e aristocracia. Interroga-se sobre o papel dos costumes das leis para a manutenção da democracia americana (influência de Montesquieu). Como converter as paixões em leis e instituições? É isto que se busca na democracia, tal como fizeram os americanos. A revolução vem em função das desigualdades. Na América, essas desigualdades desapareceram logo, gerando estabilidade: “Na América se encontram ideias e paixões democráticas. Na França, temos ainda paixões e ideias revolucionárias”. A América é o exemplo de uma democracia pura.
A democracia na América é a obra de Tocqueville que é fruto dessa experiência. Constitui-se de dois livros, um publicado em 1835 e o outro em 1840. O primeiro está essencialmente consagrado à descrição analítica das instituições americanas; o segundo explica de modo mais abstrato a influência da democracia sobre os costumes e os hábitos nacionais a partir do exemplo americano:
Dentre as coisas novas que, durante minha estada nos Estados Unidos, chamaram-me a atenção, nenhuma me impressionou tão intensamente quanto a igualdade de condições. Descobri, sem dificuldades, a influência prodigiosa exercida por este fator na marcha da sociedade; dá ao espírito público certa direção: às leis, um ar especial; aos governantes, novos princípios, e aos governados, hábitos particulares. (...)
Desse modo, à medida que estudava a sociedade americana, via, cada vez mais, na igualdade de condições o fato originário de que cada aspecto parecia provir e reencontrava-o, incessantemente, como o ponto central a que chegavam todas as minhas observações.
	O existencialismo e o Direito
	O existencialismo, rejeitando a concepção tradicional de natureza, considera sobretudo a liberdade do ser que, através das próprias decisões, cria suas normas, seu bem e seu mal, o justo e o injusto. Assim, as normas que valem para a vida ético-jurídica não podem provir de algo transcendente ao sujeito, seja Deus, seja a própria natureza. Assim como é a situação que oferece as condições para a minha determinação, o direito e as normas ficam em aberto, indeterminados.
	O Positivismo Jurídico
	O expoente máximo do positivismo jurídico, Hans Kelsen (1881-1973) pretende eliminar da esfera do Direito tudo aquilo que não lhe pertença exatamente como tal; ou seja, o direito deve ser uma “doutrina depurada de toda ideologia política e de todo elemento científico-natural”. É a teoria pura do direito.
	Consequentemente, Kelsen nega o dualismo entre o direito positivo e o natural. Praticamente só existe o direito positivo. Todo o ordenamento jurídico deve ser concebido como construído por uma série de graus (Stufenbau). Tal ordenamento é uma série ou conjunto coerente de normas, uma sobreposta à outra em ordem hierárquica rigorosa, que sempre tem fundamento em outra norma, até chegar a uma norma fundamental (Grundnorm), cuja validade não depende de nenhuma outra norma, e que constitui a chave de todo o ordenamento. A pergunta sobre o fundamento dessa norma pressupõe a sua existência: é uma hipótese, mas hipótese necessária, porque, de outro modo, cairia todo o edifício normativo, e vemos que não pode cair.
	Em outras palavras, Kelsen, que se propõe a demonstrar a obrigatoriedade do direito, diz somente que é necessário supor que seja tal. Vê-se claramente a influência do pensamento kantiano nessas teses, especialmente das doutrinas do a priori e do imperativo categórico.
	O Sociologismo Jurídico
	Tem como representantes: E. Durkheim (1858-1917); Lévy-Bruhl (1857-1939); G. Gurvitch (1894-1965). Querendo superar o positivismo jurídico, o sociologismo jurídico defende que o direito é um fato essencialmente sociológico, isto é, produto da vida social e da consciência social, pelo que a normatividade do direito se reduz à constrição das forças sociais que se impõem ao sujeito.
	Assim, a sociedade é o fundamento do direito; as necessidades coletivas indicam seu fim; as possibilidades sociais traçam o seu método. Portanto, não há como sair dos limites que a sociedade impõe.
	
	A Nova Retórica de Perelman
Aristóteles considera que são três os modos possíveis de argumentação: a provável, a que conclui com uma proposição contingente, isto é, que poderia ser de outra maneira; a sofística, que é a que conclui com uma proposição impossível e, que, levando à falsidade, deve ser refutada pela ciência; e, finalmente, a demonstrativa, a que conclui com proposição necessária, que é a base do conhecimento científico. Na história do Ocidente, as duas últimas argumentações ganharam força no âmbito do conhecimento rigoroso, que seria o âmbito da ciência. E isso parece ter sido verdadeiro, pois à ciência competiria indicar o falso e demonstrar o verdadeiro. 
Partindo dessas considerações, Perelman defende que a argumentação provável foi negligenciada pela história do pensamento científico, especialmente filosófico e jurídico e pretende recuperar seu uso, defendendo mesmo que, na sociedade atual, é o único tipo de argumentação válida, que levaria a estabelecer certos direitos mais pelo poder de persuasão do que por uma suposta verdade irrefutável. Por isso se deve falar de “retórica”, porque, em última instância, é a persuasão que conta para se estabelecer uma proposição. Pode-se verificar aqui como essa tendência de pensamento compõe-se perfeitamente com uma filosofia pós-moderna que defenda o “pensamento fraco”.
	Michel Foucault (1926-1984)
As palavras e as coisas, 1966: a simples escolha dos termos dessa obra de Foucault já indica, em parte, o caminho que será percorrido pelo autor. O método arqueológico, as três epistemes e a morte do homem são os temas centrais dessa fase do estruturalismo do filósofo francês. Um juízo sobre a estrutura como a priori histórico pode ser o melhor caminho para uma aproximação do estruturalismo nas ciências humanas e para o entendimento da busca constante do espírito em transcender a letra. 
Como se sabe, trata-se aqui de um estudo das ciência humanas, daquelas que estão mais próximas do homem ou, segundo as palavras do próprio Foucault, “esse corpo de conhecimentos (mas mesmo esta palavra é talvez demasiado forte: digamos, para sermos mais neutros ainda, (...) esse conjunto de discursos) que toma por objeto o homem no que ele tem de empírico”21. Trata-se de abordar o contexto em que se desenvolveram tais ciências e o que as fez possíveis. Essa indagação histórico-científica é a arqueologia.
	Segundo Foucault, cada período cultural da humanidade civilizada teria seu “a priori histórico”, que são suas epistemes. Foucault identifica as três epistemes principais da história justamente a partir da relação das palavras com as coisas. Da função de semelhança passa-
21	 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, p. 475.se à função representativa da palavra para, finalmente se chegar à palavra autônoma, como objeto da ciência humana.Respectivamente,
•	o Renascimento (séc. XVI), quando da linguagem é sinal das coisas e a natureza é interpretada como um livro escrito por Deus. Conhecer é, pois, ler a “prosa do mundo”. O homem como intérprete está fora desse livro, ainda é ignorado;
•	a época clássica ou racionalista (séc. XVII-XVIII), momento em que se rompe com a episteme anterior, e as palavras tornam-se representação. É a episteme geral da ordem;
•	finalmente, a episteme moderna (séc. XIX-XX), o a priori da dissociação entre palavra e mundo. É nessa episteme moderna que se descobre o homem, pois:
A partir do século XIX, a literatura repõe à luz a linguagem no seu ser: não, porém, tal como ela aparecia ainda no final do Renascimento. Porque agora não há mais aquela palavra primeira, absolutamente inicial, pela qual se achava fundado e limitado o movimento infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura22.
	A sexualidade na era do pensamento pós-metafísico
22	 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, p. 61.
O estudo de Foucault sobre a sexualidade não é metafísico, é pós-metafísico. Esta será a perspectiva metodológica aqui adotada para evidenciar os elementos centrais de A História da sexualidade. Trata-se de uma breve exposição crítica dessa etapa de seu pensamento, inserido no contexto da sua elaboração e visto algumas décadas depois. Esse contexto, pós-metafísico, é caracterizado por Habermas da seguinte forma:
A situação do filosofar atual tornou-se intransparente. Não me refiro à disputa das escolas, que sempre foi o meio propício ao desenvolvimento do filosofar. Eu penso na disputa em torno de uma premissa, tomada após Hegel como ponto de partida por todas as facções. Tornou-se obscura posição com relação à metafísica.23
	Foucault rompeu com o último resíduo do pensamento metafísico, ao menos no aspecto da racionalidade, que ainda se mantinha através da linguagem (por exemplo, em Heidegger), propondo a linguagem “como evento no contingente ir e vir das formações do poder e da ciência”24. Depois de apresentar brevemente aspectos do pensamento metafísico, Habermas caracteriza o que seria o pós-metafísico. Quatro elementos aparecem em sua caracterização: o 
23	 Jürgen HABERMAS. Pensamento pós-metafísico:Estudos filosóficos, p.37.
24	 Jürgen HABERMAS. Pensamento pós-metafísico:Estudos filosóficos, p. 239.historicismo; a crise do cogito; o método em mutação; o evento. Todos estão em Foucault e, de modo muito especial, na obra que ora se analisa. Portanto, se se deixa guiar pela caracterização de Habermas, deve-se inserir Foucault na era do pensamento pós-metafísico.
Partindo do método arquelógico25, que consistia no inventário das condições de possibilidade do conhecimento, Foucault chega à genealogia. Investiga, então, o lugar e o modo pelo qual o poder se liga ao saber. A genealogia permite uma reformulação da noção de poder e de suas estratégias, até aqui vistas como mecanismos de opressão e repressão. As formas institucionais e as estruturas de controle social revelam-se como instrumentos que produzem discursos, saberes e verdade, formando subjetividades como objetos de repressão. O tema da reflexão torna-se a construção da subjetividade. A História da Sexualidade insere-se neste projeto:
Daí, enfim, o fato de o ponto importante não ser determinar se essas produções discursivas e esses efeitos de poder levam a formular a verdade do sexo ou, ao contrário, mentiras destinadas a ocultá-lo, mas revelar a “vontade de saber” que lhe serve ao mesmo tempo de suporte e instrumento.26 
25	 Foucault oferece-nos muitos momentos para a concepção do método arqueológico. Em determinada passagem, define-o como “projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí se formam.” FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber, p. 30.
26	 FOUCAULT, Michel História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 17.
Por conseguinte, Foucault concentra-se na pluralidade de estratégias que produzem regras que governam o corpo e nas quais o indivíduo reconhece a própria constituição subjetiva.
História da Sexualidade: a vontade de saber
	Diante dos discursos, todos se tornam objetos do poder. A obra monumental e incompleta de Foucault parece deixar tal impressão. Uma análise mais do que minuciosa dos discursos sobre a sexualidade revela os mecanismos que conduzem o comportamento sexual moderno, muito além de todos os mecanismos até então imaginados. O projeto de Foucault sobre a história da sexualidade resultou em um trabalho que se divide em três partes, das quais se analisa somente a primeira, isto é, A Vontade de saber. Este volume é subdividido em cinco capítulos, que podem ser reagrupados em três, conforme o que se segue. O caráter introdutório do primeiro volume é reconhecido pelo filósofo francês nos seguintes termos: 
É neste ponto que gostaria de situar a série de análises históricas de que este livro é ao mesmo tempo, introdução e como que uma primeira abordagem (...).27
27	 FOUCAULT, Michel História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 14.
	A hipótese repressiva	
	A consideração sobre o status da sexualidade no período vitoriano leva Foucault — insiste-se, através do método genealógico — à negação da preponderância da hipótese repressiva, isto é, daquela tendência a dizer que os discursos sobre a sexualidade que se desenvolveram modernamente visavam a uma repressão sexual.
Foucault opõe-se à hipótese repressiva, que declara que o essencial da política sexual moderna consiste na proliferação de mecanismos e leis de proibição da sexualidade. Ao contrário, esses mecanismos encobrem uma tendência muito mais ampla de controle da sexualidade:
Não digo que a interdição do sexo é uma ilusão; e sim que a ilusão está em fazer dessa interdição o elemento fundamental e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do que foi dito do sexo a partir da Idade Moderna. Todos esses elementos negativos – proibições, recusas, censuras, negações – que a hipótese repressiva agrupa num grande mecanismo central destinado a dizer não, sem dúvida, são somente peças que têm uma função local e tática numa colocação discursiva, numa técnica de poder, numa vontade de saber que estão longe de se reduzirem a isso.28
	Uma análise acurada dos institutos cristãos, especialmente católicos, relativos ao comportamento sexual, 
28	FOUCAULT, Michel História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 17.conduz a conclusões análogas: “A pastoral cristã inscreveu, como dever fundamental, a tarefa de fazer passar tudo o que se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra.”29
	Em suma, a ideia de que os discursos que se desenvolveram partir do século XVII visavam a uma repressão, na verdade esconde algo que genealogicamente os antecede: a busca e o domínio da sexualidade através do discurso.
	“Scientia sexualis”
Foucault estabelece aqui um confronto entre a ars erótica e a scientia sexualis. Pode-se considerar ars erótica como a prática “pré-científica” da sexualidade. Na medida em que a sexualidade científica é forma de poder, é transformação da sexualidade em scientia sexualis: “Em suma, trata-se de definir as estratégias de poder imanentes a essa vontade de saber. E, no caso específico da sexualidade, constituir a “economia política” de uma vontade de saber.”30 A arte do prazer foi sendo substituída pela racionalidade científica do prazer.
	O saber e o prazer entrecruzam-se no que se pode chamar “dispositivo”, isto é, estratégias de relações de força que suportam o poder. Buscando proceder a uma análise 
29	 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 24.
30	 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 71desses dispositivos, Foucault procura indicar seus passos principais, entre eles, o método a seguir. O poder é visto como uma multiplicidade de forças imanentes às organizações de domínio, cujojogo de lutas que o reforça, formando cadeias aparentemente contraditórias, desemboca nas estratégias concretas das instituições. Seu método prescreve, então, quatro regras:
	1. regra da imanência;
	2. regra das variações contínuas;
	3. regra do duplo condicionamento;
	4. regra da polivalência tática dos discursos.
	A partir disso, o domínio da pesquisa e a periodização da história da sexualidade impõem-se como elementos fundamentais para a aplicação das regras acima apontadas. Quanto ao domínio, observe-se a seguinte passagem:
	
O domínio a ser analisado nos diferentes estudos que se seguirão ao presente volume é, portanto, este dispositivo da sexualidade: sua formação, a partir da carne, dentro da concepção cristã; seu desenvolvimento através das quatro grandes estratégias que se desdobraram no século XIX: sexualização da criança, histerização da mulher, especificação dos perversos, regulação das populações; estratégias que passam todas por uma família que precisa ser encarada, não como poder de interdição e sim como fator capital de sexualização.31
31	 FOUCAULT, Michel História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 107
	No que diz respeito à periodização, Foucault cita duas “rupturas”, que servirão de referência para a análise: o século XVII com o nascimento dos mecanismos de repressão; e o século XX, o afrouxamento desses mecanismos.
	Direito de morte e poder sobre a vida
	
O estudo concentra-se agora nas estruturas de domínio do sujeito que se desenvolveram ao longo da história. Embora sempre manifestassem o poder sobre o indivíduo, os elementos desse domínio não eram estritamente sexuais. O direito de vida e de morte que um soberano tinha sobre seu súdito poderia até incluir a sexualidade, mas não partia dela. O que, a partir do século XVII, sob pretexto ou ilusão de liberdade, se tornou elemento vital para o domínio dos indivíduos.
	Assim, do direito de vida e morte dos tempos precedentes, que realmente era direito a todos os elementos e momentos da vida da pessoa, passa-se ao poder sobre a sexualidade, o que, de algum modo, conduz a um resultado semelhante: “Não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral da sexualidade”32. 
Com A História da Sexualidade, Foucault estabeleceu que quanto mais efêmera a reflexão filosófica se mostra, mais 
32	 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 147.desafiadora é para o sujeito a possibilidade de construção de sua subjetividade. Na sociedade moderna, o tempo para essa construção vai-se tornando cada vez menor. É por isso que Habermas desconfia das filosofias que ainda não se tornaram “pós”... O “pós” entrou no coração da própria metafísica e o tempo tornou-se evento. O pequeno tempo da vida, o pequeno tempo do pensamento, o pequeno tempo do amor revelam a decepção do sujeito, seu esvaziamento. Como se a história dominasse a sexualidade:
Portanto, não referir uma história da sexualidade à instância do sexo; mostrar, porém como o “sexo” se encontra na dependência histórica da sexualidade. Não situar o sexo do lado do real e a sexualidade do lado das ideias confusas e ilusões; a sexualidade é uma figura histórica muito real, e foi ela que suscitou, como elemento especulativo necessário ao seu funcionamento, a noção do sexo. Não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder; o contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral da sexualidade. Se, por uma inversão tática dos diversos mecanismos da sexualidade, quisermos opor os corpos, os prazeres, os saberes, em sua multiplicidade e sua possibilidade de resistência às captações do poder, será com relação à instância do sexo que deveremos liberar-nos. Contra o dispositivo de sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque não deve ser o sexo-desejo, mas os corpos e os prazeres.33
	
Esta eloquente passagem conduz diretamente ao 
33	 FOUCAULT, Michel História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 147.saber dos antigos. Investigar a representação histórica da sexualidade é abrir o caminho para uma genealogia sexual contemporânea. Foucault não pôde realizar todo o seu projeto. Mas pretendeu mostrar que, graças à descoberta dos dispositivos aqui referidos, podemos desmascarar as ilusões e passar para a criação da nossa própria liberdade, onde os valores morais não se identificam mais com o normal e o igual, e sim com a diferença. É aqui que se contextualiza o “contra-ataque dos corpos e dos prazeres”. A vontade de saber anula o poder da diferença, transformando todas as formas de poder em puro saber, isto é, em forças de domínio. O contra-ataque é o evento da retomada do poder dos corpos e dos prazeres. Este é o sentido pós-metafísico desta obra.
John Rawls (1921-2002)
	Em 1971, John Rawls publicou a sua obra Theory of Justice (Uma Teoria da Justiça), que já é considerada por muitos como um clássico da filosofia contemporânea do direito e da política.
	Em linhas gerais, a teoria de John Rawls considera que os princípios da justiça possuem uma validade universal e incondicional a partir de um acordo entre pessoas racionais, livres e iguais, em uma situação contratual justa. Tal situação contratual há de ser imparcial a fim de alcançar resultados igualmente imparciais. Esta imparcialidade, por sua vez, encontra-se naqueles que na “posição original” estão sob o “véu da ignorância”, o que impediria os participantes do acordo de serem influenciados por fatores naturais e sociais contrários ao tratamento equitativo.
A teoria da justiça de John Rawls é uma forte oposição às teorias utilitaristas que identificam as noções de justo e bom, ao verem como justo a distribuição de benefícios que maximize o bem associado com a satisfação do desejo. Assim, de acordo com uma teoria utilitarista, a sociedade seria considerada justa ainda que, a fim de maximizar os bens da maioria, exigisse o sacrifício de uma parte de seus cidadãos. Nas palavras de John Rawls:
No utilitarismo a satisfação de qualquer desejo tem algum valor em si mesma que deve ser levado em conta na decisão do que é justo. No cálculo do maior saldo de satisfação não importa, exceto indiretamente, quais são os objetos do desejo. Devemos ordenar as instituições de modo a obter a maior soma de satisfações; não questionamos a sua origem ou qualidade mas apenas o medo como a satisfação afetaria a totalidade do bem-estar.34
O “véu da ignorância” é um conceito utilizado por John Rawls para explicar a condição ideal da eleição dos princípios da justiça. Com efeito, sob o “véu da ignorância” os participantes de um contrato justo não sabem que posição ocuparão na sociedade, quais são suas concepções sobre o bem e a felicidade, nem mesmo seus atributos naturais. Pressupõe-se aqui que a eleição dos princípios 
34	 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça, p. 33.da justiça possa ocorrer sem que cada participante procure o seu próprio favorecimento em detrimento do outro e, consequentemente, da justiça contratual. 
Ademais, o “véu da ignorância” serve também como teste teórico da validade universal e incondicional dos princípios da justiça. Com efeito, a eleição de princípios de justiça realizada com conhecimento da situação em que seus participantes ocupam ou ocuparão na sociedade deve ser excluída a priori como injusta.
A partir desta lógica contratual hipotética, dois princípios deveriam caracterizar, segundo Rawls, uma sociedade justa. 
Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras.
Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos35.
O primeiro princípio tem prioridade sobre o segundo e a segunda parte (b) do segundo princípio tem prioridade sobre a primeira. Isto interdita a troca das liberdades

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