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100920841 o Discurso Na Contemporaneidade Indursky f Ferreira m c l Mitmann s

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O discurso na contemporaneidade: 
materialidades e fronteiras
Organizadoras
◆ Freda Indursky ◆
◆ Maria Cristina Leandro Ferreira ◆
◆ Solange Mittmann ◆
Editora Claraluz
1ª Edição - São Carlos
2009
Coordenação Editorial
Editora Claraluz ®
Impressão e Acabamento
Prol Gráfica
Diagramação
Tiago Pavan
Elaboração de Capa
Canal 6
Conselho Editorial
Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes (UFU)
Prof. Dr. Hermes Renato Hildebrand (UNICAMP)
Profa. Dra. Maria do Rosário Gregolin (UNESP)
Profa. Dra. Marisa Martins Gama Khalil (UFU)
Prof. Dr. Nilton Milanez (UESB) 
Prof. Dr. Pedro Navarro (UEM)
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Prof. Achille Bassi, do 
Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação – ICMC/USP
 O discurso na contemporaneidade: materialidades e
 D611 fronteiras / Freda Indursky, Maria Cristina Leandro Ferreira, 
 Solange Miittman, organizadoras. 1ª edição. São Carlos : Claraluz, 
 2009. 464p. 
 ISBN 978-85-88638-44-0 
 
 Discurso. 2. Contemporâneo. 3. Subjetividade. 
 4. Fronteiras. 5. Materialidades. I. Indursky, Freda, org. 
 II. Ferreira, Maria Cristina Leandro, org. IV. Mittmann, 
 Solange, org. V. Título.
www.editoraclaraluz.com.br
SUMÁRIO
I PARTE : FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE
Eni Orlandi 
Historicidade, indivíduo e sociedade: o sujeito na contemporaneidade 13
Enrique Serrano Padrós 
Movimentos sociais: o paradoxo argentino e os desafios do tempo presente 29
Bethania Mariani 
Sujeito e discursos contemporâneos 43
Bernardo Kucinski 
Reflexões sobre o impacto da internet no campo do jornalismo 53
II PARTE : TEORIA E ANÁLISE EM PERSPECTIVA
1 – Língua, hiperlíngua e arquivo
Suzy Lagazzi 
Recorte significante na memória 65
Kátia Menezes de Sousa 
“Os homens loucos por sua língua” e a sexualidade transformada em textualidade 79
Cristiane Dias 
A língua em sua materialidade digital 89 
José Horta Nunes 
Discursividades contemporâneas e dicionário 99
Nádia Régia Maffi Neckel 
Tecedura e tessitura do discurso artístico da/na produção audiovisual: 
materialidades fronteiriças 107
Carolina Fernandes 
O ciberespaço no confronto de sentidos: uma nova leitura de arquivo 117
Fabiele Stockmans de Nardi 
Língua, cultura e competência: questões para o ensino e o discurso 125
Mónica Graciela Zoppi Fontana
O acontecimento do discurso na contingência da História 133
2 - Real da língua, do sujeito, da história e do discurso
Helson Flávio da Silva Sobrinho 
Os andaimes suspensos do discurso nos alicerces do real 147
Simone Hashiguti 
O corpo como materialidade do discurso 161
Rosane da Conceição Pereira 
Subjetividade e política de língua no discurso publicitário para o ensino de 
português no Brasil 169
Anne Francialy da Costa Araújo 
Uma língua no lugar do Um: efeitos reais de uma nomeação 183
Marluza Terezinha da Rosa 
Da (im)possível definição de língua no discurso do sujeito pesquisador em 
linguagem 193
Leda Verdiani Tfouni, Paula Chiaretti 
A mulher: inexistente ou evidente 205
Leda Verdiani Tfouni, Marcella Marjory Massolini Laureano 
As marcas do real e o equívoco da língua 2153
3 - Interdiscurso, pré-construído, discurso transverso e memória
Lucia M.A. Ferreira 
Interdiscurso e memória: nas tramas dos discursos sobre a mulher 223
Patricia Laubino Borba 
O discurso do esquizofrênico e a apropriação do discurso-outro 233
Luiza Kátia Castello Branco 
O discurso sociolinguístico sobre a língua de cabo verde: lugar de encontro da 
memória e do interdiscurso 243
Carla Letuza Moreira e Silva 
Memória, atualidade e possibilidade: a polêmica do discurso do Referendo das 
Armas na mídia impressa 253
Luciana Nogueira 
A designação da palavra integração em documentos de constituição da ALCA: o 
processo de nominalização 267
Ângela de Aguiar Araújo 
A temporalidade discursiva: o deslizamento do enunciado “Brasil, país do futuro” 
no discurso jornalístico 281
4 - Ideologia, historicidade e condições de produção
Carme Regina Schons, Solange Mittmann 
A contradição e (re)produção/transformação na e pela ideologia 295
Marci Fileti Martins 
O que pode e deve ser dito sobre ciência no discurso da divulgação científica: “Nós 
precisamos da incerteza, é o único modo de continuar” 305
Maria Virgínia Borges Amaral
Evidências de responsabilidade no discurso do pacto global 317
Verli Petri 
A emergência da ideologia, da história e das condições de produção no 
prefaciamento dos dicionários 329
A. Martín de Brum 
Alguns pressupostos teórico-metodológicos da teoria funcional da tradução: 
elementos para uma teoria discursiva da tradução 337
Ivânia dos Santos Neves
A invenção do índio: ideologia e história 347
Águeda Aparecida da Cruz Borges 
Índios Xavante X não-índios na cidade de Barra do Garças/MT: gestos de 
interpretação discursiva 357
5 - Escrita, efeito-sujeito e autoria
Evandra Grigoletto, Carmen Agustini 
A autoria na escrita de adolescentes: interfaces entre o virtual e o escolar 369
Cleudemar Alves Fernandes
Exterioridade e construção identitária em Pierre Rivière 381
Maria José Coracini 
Escrita de si, assinatura e criatividade 393
Eliane Marquez da Fonseca Fernandes
A escrita e a reescrita: os gestos da função-autor-leitor 405
Wilton Divino da Silva Júnior
Os mecanismos d’a ordem do discurso e a construção da autoria no Evangelho de 
Saramago 417
Maíra Nunes
Um autor à esquerda? Copyleft e autoria na contemporaneidade 429
Viviane Barriquello
Autoria e leitura: nas telas do discurso virtual 439
Eduardo Alves Rodrigues
A relação verbal vs. não-verbal sob a sombra da autoria em “Substãncia”, de J.G.Rosa 451
9
APRESENTAÇÃO
Como vimos fazendo desde a primeira edição do SEAD, em 2003, reunimos no 
presente volume uma amostra bastante representativa da pesquisa que se vem 
fazendo em Análise do Discurso no Brasil. Neste volume, reunidos em torno de 
um eixo temático que discute as especificidades e tendências do espaço discursivo 
brasileiro, o leitor encontrará trabalhos de autores já consagrados na área, ao lado 
de novos pesquisadores, que enriquecem, revigoram e mantêm em constante 
renovação o campo sempre efervescente do discurso.
O discurso na contemporaneidade: materialidades e fronteiras expõe os fundamentos 
teóricos e metodológicos da Análise do Discurso realizada do Brasil a partir do 
legado de Michel Pêcheux. Resultado das discussões promovidas no III SEAD - 
Seminário de Estudos em Análise do Discurso, realizado em 2007 em Porto Alegre, 
esta obra reflete sobre fronteiras e interfaces epistemológicas, com atenção para os 
discursos contemporâneos. 
É nesse sentido que a primeira parte do livro, Formas de subjetivação na 
contemporaneidade, se apresenta como um diálogo entre Análise do Discurso e áreas 
que têm o discurso e a subjetividade como seu objeto de estudo. Nesse diálogo, são 
abordados a construção simbólica do sujeito pelo Estado e pelos movimentos sociais 
urbanos, o olhar artístico e psicanalítico sobre o sujeito da arte contemporânea, o 
questionamento político sobre o sujeito da imprensa no universo digital. A partir 
dessa proposta, será possível, então, encontrar aqui um forte, singular e harmonioso 
panorama das questões envolvendo o sujeito na contemporaneidade, sob a ótica 
muito particular de analistas de discurso, psicanalistas, historiadores e jornalistas, os 
quais, cada um com suas filiações e estilos, traçam um percurso novo e diferenciado 
na forma de abordar essa temática.
O próprio caráter da teoria, de sempre rediscutir-se, exige dos analistas do discurso 
posicionamentos a respeito das fronteiras entre as noções teóricas e frente às 
materialidades discursivas da contemporaneidade. Assim,as reafirmações de nossa 
filiação e os avanços teóricos e metodológicos impostos pelas novas materialidades 
discursivas costuram os capítulos da segunda parte do livro: Teoria e análise em 
perspectiva. 
Para organizar essa segunda parte, centramos o foco em cinco pontos referenciais 
que, sob nosso juízo, representam, na cartografia do discurso, as direções de sentidos 
mais produtivas da pesquisa atual e que revelam muito de perto sua inquietante 
movimentação. Referimo-nos (1) à língua, aos desafios trazidos pela hiperlíngua 
e ao trabalho sempre instigante com o arquivo, em suas diferentes concepções; 
(2) à série produtiva da noção de real e seus desdobramentos, cuja dimensão mais 
completa ainda buscamos, em conceitos como o equívoco, o inconsciente, a ideologia 
e o silêncio; (3) às fronteiras e atravessamentos entre interdiscurso, pré-construído, 
•
10
discurso transverso e memória, cuja distinção não cessamos de reivindicar; (4) à 
historicidade e à opacidade do imbricamento entre o lingüístico e o histórico, assim 
como o efeito de transparência da ideologia e, por fim, (5) à escrita, efeito-sujeito e 
autoria, que põe em jogo o efeito-autor, com todas suas conseqüências para a deriva 
e migração dos sentidos.
Esperamos contribuir com a presente obra para divulgar a pesquisa de ponta que 
vem sendo feita no Brasil nos domínios do discurso. Pesquisa que não se cinge aos 
limites da área, mas busca com coragem e ousadia as contradições e dissintonias 
com os campos vizinhos, sem perder a fidelidade referencial e sem submeter-se a 
modelos fundadores. Pesquisa que constrói com clareza e sem concessões o campo 
brasileiro da Análise do Discurso. 
As Organizadoras 
PARTE I
FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE
13
 HISTORICIDADE, INDIVÍDUO E SOCIEDADE: 
O SUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE
Eni P. Orlandi
(Labeurb/Unicamp)
Mas onde cresce o perigo cresce também o que salva(?)
Introdução
Nosso objeto de reflexão é a relação entre o indivíduo e a sociedade, procurando 
compreender a forma e a necessidade dos movimentos sociais urbanos que, mal 
metaforizados, resultam na delinqüência – e ligamos a palavra delinqüência a de-
linquo que significa des-ligar, enfraquecer, pensando justamente a necessidade do 
sujeito histórico e simbólico de praticar laços sociais (E. Orlandi, 2004). 
Teoricamente, estabelecemos como quadro de referência uma teorização do 
sujeito (E. Orlandi, 2001) onde refletimos sobre a interpelação do indivíduo em 
sujeito (forma histórica do sujeito capitalista, sustentado pelo jurídico) e sua 
individualização pelo Estado, resultando daí um sujeito ao mesmo tempo livre e 
responsável. 
Visamos compreender o sujeito da modernidade e os movimentos sociais urbanos 
face à necessidade de se constituírem políticas públicas sustentadas na organização 
do consenso. Já analisamos - para compreender como este indivíduo se encontra na 
nossa formação social em que há uma sobredeterminação do social pelo urbano - o 
sujeito do grafite, do piercing, da tatuagem e do rap, o menino do tráfico (Falcões) 
que, em seu conjunto, constituem a produção do que tenho chamado de discurso 
urbano.
Sentindo necessidade de situar a conjuntura social e histórica de nossa reflexão, 
atualmente, entram para nossas considerações o mundo globalizado e as tecnologias 
de linguagem (tanto o mundo eletrônico como a mídia). Mais especificamente, e 
dada a conjuntura sócio-política contemporânea, estamos também refletindo sobre 
a migração, a mundialização, e as tecnologias de linguagem como pano de fundo 
em que sobressaem a criminalidade/delinqüência, a guerrilha, o terrorismo. Que 
resultam na divisão maniqueísta entre o Bem e o Mal. Tudo isto bem sustentado por 
discursividades que se apóiam na tensa contradição entre, de um lado, a expectativa 
de uma democracia planetária ilusória e, de outro, a prática de uma real economia 
ditatorial. O político aparece nessa conjuntura como argumento. De certa forma, 
ligado a este discurso da mundialização, da globalização, há também um discurso 
sobre a subjetividade que gostaríamos de trazer para esta reflexão.
•
14
Na consideração deste sujeito da modernidade, somos sensíveis ao que diz Melman 
(2005) sobre a “nova economia psíquica”. Ontem, diz Jean Pierre Lebrun (2005), na 
introdução ao livro de Melman, mesmo os provérbios e as máximas lembravam ao 
sujeito que tudo não era possível (Não se pode ter tudo), que é preciso assumir as 
conseqüências de seus atos (Quem semeia vento colhe tempestade). Hoje, os adágios 
evocados são os que falam de um sujeito que quer tudo (Ele quer o pão e o queijo). 
Que pensa poder tudo. Constata-se a dificuldade dos sujeitos hoje de disporem de 
balizas tanto para esclarecer a tomada de decisões como para analisar situações às 
quais se confrontam. É espantosa diz Lebrun (idem), em um mundo caracterizado 
pela violência, uma nova atitude diante da morte (eutanásia, enfraquecimento dos 
ritos), a demanda do transexual, as coerções ou mesmo as imposições do econômico, 
a emergência de sintomas inéditos (anorexia masculina, crianças hiperativas), a 
tirania do consenso, a crença nas soluções autoritárias, a transparência a qualquer 
preço, o peso do midiático, a inflação da imagem, a alienação no virtual (jogos 
de vídeos, internet) a exigência do risco zero etc. Eu acrescentaria a corrupção e 
a impunidade. Não se trata, segundo o autor, de evocar simples modificações no 
social e suas incidências sobre a subjetividade de cada um, mas de examinar uma 
mutação inédita que está produzindo seus efeitos. O autor Melman (2005) se propõe 
a refletir sobre isso e analisar essa crise de referências. Pensando a subjetividade e o 
futuro psíquico do homem contemporâneo, ele debate as questões sobre o fato de 
que o homo faber cede lugar ao homem fabricado e, neste caso, ele se interroga sobre 
esses homens novos – esses homens sem gravidade, quase mutantes – que nós temos 
que compreender. 
Segundo Melman há emergência de uma economia psíquica que não existia antes. 
As que existiam eram de oposição (revolta, marginalidade etc). Hoje não é um 
movimento de oposição é um movimento que se faz sobre seu próprio impulso. 
Passa-se de uma economia organizada pelo recalque para uma economia organizada 
pela exibição do gozo. Não é possível abrir uma revista, diz Melman (ibid), admirar 
personagens e heróis de nossa sociedade sem que eles sejam marcados pelo estado 
específico de uma exibição do gozo (fruição). Isto implica deveres radicalmente 
novos, impossibilidades, dificuldades e sofrimentos diferentes. Há um progresso 
que traz suas ameaças. Tem-se efetivamente como medida que o céu é vazio, tanto 
de Deus como de ideologias, de promessas, de referências, de prescrições e os 
indivíduos têm de se determinar eles mesmos, singularmente e coletivamente. 
Este é o sujeito que vemos teorizado no Velho Mundo, nos países ricos. Queremos 
ver em nossa reflexão como isto se passa no sul do planeta. Que ecos vivemos 
nos países pobres. O que se passa com os que, por necessidade histórica, seriam 
mutantes, mas que, pelas razões da dominação, da ideologia capitalista, não podem 
sê-lo. Os mutantes, sem as condições favoráveis do capitalismo, estes, que são o 
resto, também são os monstros? Como significá-los em suas condições?
15
Mundialização
A mundialização (L. Carroué, 2005) é um processo geo-histórico de extensão 
progressiva do capitalismo em escala planetária e que é ao mesmo tempo uma 
ideologia (O liberalismo), uma moeda (o dólar), um instrumento (o capitalismo), 
um sistema político (a democracia), uma língua (o inglês).
A mundialização tal como a conhecemos hoje data de um século e meio e seu 
processo não é linear (S. Brunel, 2007). Vem desde o fim da Guerra Fria, da era 
da comunicação “sem limite”, fim da URSS e desemboca no mito da Democracia.Alguns fatos concorrem para isto: os movimentos migratórios e a mobilidade 
populacional. Estes, por sua vez, não são um fato sem polêmica: muitas vezes são 
mais sugeridos que existentes, Isso nos leva a concluir que são espaços idealmente 
abertos, mas concretamente fechados, materializando as novas divisões: Norte/Sul; 
Oriente/Ocidente. A mundialização é mais falada que praticada. Mas nem por isso 
deixa de ter seus efeitos. Como sabemos o imaginário tem fortes conseqüências 
sobre o real.
Podemos mesmo adiantar que há uma formação ideológica capitalista dominante 
e que se pratica através da projeção de inúmeras formações discursivas que formam 
um complexo a dominante: a formação discursiva da mundialização, com a formação 
discursiva da migração, formação discursiva da ecologia, formação discursiva do 
terrorismo, formação discursiva da delinqüência etc. Esse complexo de formações 
discursivas é a manifestação, na linguagem, do fato de que o capitalismo mantém-se 
em sua dominância, praticando-se, para não ser deslocado, por estas diferentes falas 
da mundialização. Sustentadas por um mal estar de raiz: o preconceito.
Que sujeito?
Antes mesmo de entrar na questão do sujeito que se constitui nestas condições 
sócio-histórico-ideológicas, gostaria de realçar algo que venho dizendo ao longo de 
minhas reflexões.
A forma-histórica do sujeito que estamos analisando é a forma-histórica sujeito 
capitalista. Por outro lado, mesmo havendo um deslocamento nas formas como o 
capitalismo se pratica e estabelece suas relações de poder, ainda assim continuamos 
no domínio ideológico do capitalismo. Por isso, o que dissemos antes deve marcar 
uma nossa posição que não visa reproduzir o discurso da inclusão, o que visa 
transformar o dominado, o excluído, para adequá-lo às formas dominantes seja da 
cultura, seja do conhecimento, seja da classe social, nem tampouco o que pretende 
inserir o não inserido, ou integrar o não-integrado (os apocalípticos?), ou seja, falar 
do lugar em que a gestão pública se coloca como lugar do assistencialismo, do multi-
culturalismo, do comunitarismo, face à ideologia da mundialização. Não supomos 
também que temos de um lado o sistema capitalista e de outro agentes/sujeitos/
16
posições-sujeito inertes. Para nós tanto uns como os outros estão em movimento e 
se transformam. Interessa-nos pensar nos sentidos que a dominação e a resistência 
tomam nessa relação, já que tanto a estruturação como a desestruturação delas 
levam ao movimento da sociedade na história. Já que o tal consenso sobre o qual 
se apóiam as políticas “públicas” é um consenso imaginário, constituído no jogo do 
jurídico – que estabelece as bases da estrutura e funcionamento do capitalismo – e 
o administrativo, que se sustenta nas formas materiais da mundialização com suas 
práticas assistencialistas, multi-culturais e comunitaristas. 
Uma vez isto esclarecido, passemos à exposição do que é ou de quem é este sujeito 
da modernidade. Sujeito cujo percurso traçamos acima. Controlado em seu ir e vir, 
dividido entre o Norte (rico) e o Sul (pobre), submetido a redes de informação e 
comunicação, ameaçado em seus processos de memória, sujeito à delinqüência, à 
violência, ao terrorismo, sem falar das ameaças ambientais etc, no entanto, “livre”, 
“democrático”, “multi-cultural”, “comunitário”, “cidadão”.
O espaço significativo da violência: ambiência e condições de produção
Podemos pensar o “espaço” face à cidade como parte das condições de produção 
que constituem a prática significativa da/na cidade. 
Concebido desse modo, o espaço (urbano) é o enquadramento dos fenômenos ou 
práticas que acontecem na cidade (P. Henry, 1998, texto sem título e data). Estamos 
considerando o espaço como parte do acontecimento discursivo urbano. E nele 
incluímos o sujeito.
Esta idéia de espaço como enquadramento permite-nos trabalhar com a forma e 
os meios materiais que constituem o espaço urbano como espaço significativo. O 
que isto quer dizer? Quer dizer que os sentidos são determinados pelas condições 
de produção, nesse caso, pelo modo como o espaço enquadra o acontecimento 
urbano. Para nós, enquadrar significa aqui determinar o espaço de significação. Uma 
pessoa atravessando a rua experimenta sentidos do espaço urbano que é diferente 
de uma pessoa atravessando a cidade em um ônibus. Porque sua experiência do 
espaço urbano é diferente. São condições de produção diferentes. São diferentes 
características e efeitos da ambiência. A maneira como as pessoas se posicionam 
em uma fila para retirar seu dinheiro no banco ou a maneira como as pessoas 
se posicionam em uma fila, desde a madrugada, para conseguir uma vaga para 
seus filhos em uma escola pública, são diferentes porque constituem espaços de 
significação urbanos diferentes, com diferentes efeitos de sentidos. São dis-posições 
diferentes do espaço (do sujeito e dos sentidos), dadas a condições de sua produção. 
Daí se conclui portanto que o espaço significa, tem materialidade e não é indiferente 
em seus distintos modos de significar, de enquadrar o acontecimento.
Thibaud (2002) com a noção de “ambiência” procura compreender como os 
17
moradores da cidade experienciam, percebem e usam lugares públicos.
Segundo Thibaud é preciso distinguir entre o ambiente que é perceptível e o 
que não é perceptível. O primeiro é o que se pode ver, escutar, cheirar ou tocar 
e que podemos chamar de ambiente sensorial. Ele se relaciona diretamente à 
experiência e ao comportamento das pessoas na sua vida cotidiana. Deste ponto 
de vista podemos observar as relações entre os moradores e o ambiente construído. 
O segundo ambiente é o que não é diretamente perceptível, o extra-sensorial. Por 
exemplo, há produtos químicos que não são percebidos, a água pode estar poluída 
e não percebermos etc. Ele questiona a psicologia ambiental que é base da política 
ambiental por simplificar demais o modo como trata a percepção da ambiência. 
A dimensão humana está aí super-simplificada, segundo Thibaud. As pessoas não 
podem ser reduzidas a sujeitos médios idênticos entre si e não reagem do mesmo 
modo ao ambiente. Além disso, as pessoas não são sujeitos isolados. O ambiente é 
uma construção social. Enfim, não se deve reduzir o ambiente a seu aspecto físico 
e sim pensar o físico articulado ao social. Sai-se assim de um modelo baseado em 
estímulos para um ambiente baseado na experiência. Eu acrescentaria: se observaria 
o ambiente em suas práticas sociais. E concordo com o autor quando ele diz que o 
ambiente da vida cotidiana é mais significativo do que parece, pois ele é a espinha 
dorsal e o fundo sobre o qual construímos a base de nosso modo de ser-no-mundo. 
Eu diria que a pergunta que fica então é a de como o ambiente significa naquilo que 
nós significamos. 
Aqui podemos retomar a noção de condições de produção tal como a tratamos 
na análise de discurso e aproximá-la da noção de ambiência quando esta não se 
reduz ao físico e, nos termos de Thibaud, torna-se um dos termos incontornáveis na 
concepção arquitetural e da ecologia urbana.
É então que Thibaud aproxima a noção de ambiência da de “qualidade difusa” 
de Dewey(1931) e, ao fazê-lo, às contribuições de ordem essencialmente técnica e 
instrumental, ele junta uma reflexão sobre sua dimensão estética, sensorial, e social. 
É uma abordagem como ele diz, qualitativa do meio ambiente sensível. Penso que é aí 
que podemos introduzir, pela aproximação com a noção de produções de condições 
(sujeito, situação, memória constitutiva), a questão da linguagem, do discurso, do 
confronto do simbólico com o político. E teremos uma noção de espaço não mais 
tecnológica mas significativa. Deixa-se de ter uma noção de espaço instrumental e 
idealista, sai-se do domínio dos projetos e do construído para a noção de processo 
de produção de um espaço em que entra a percepção e a prática pública. A noçãode ambiência passa então a se relacionar com um espaço com suas características 
formais, materiais, físicas e plásticas. O que ele denomina de dimensão sensível do 
espaço eu denominaria, pela análise de discurso, de dimensão significativa, onde se 
juntam o físico e o espacial (material) e o humano, o simbólico. Ou seja, é aí que a 
questão do espaço se articula à do sujeito, em termos da significação. O modo de se 
18
significar um espaço vai de par ao modo como são significados os sujeitos desse espaço.
A questão do campo difuso está em que o sujeito percebido no mundo nos coloca em 
contato com a globalidade de uma situação. Eu diria que é a conjuntura significativa 
que está funcionando, ou seja, não só as condições imediatas e sócio-históricas como 
a memória discursiva, a filiação de sentidos em sua rede. Veremos como, na análise 
que fazemos mais adiante do menino do tráfico isto é presente: o que cria aquela 
situação de violência que está por todo lado? A forma das casas, a falta de espaço 
amplo e livre, as feições do menino? A situação é um todo, dada sua qualidade 
difusa perceptível. É a situação como uma totalidade unificada. A experiência engaja 
um pano de fundo indeterminado na base do qual se individualizam os objetos ou 
acontecimentos em questão. Aí também se individualizam os sujeitos.Este pano de 
fundo não pode ser discriminado precisamente justamente porque ele é que dá a 
fisionomia geral do que pertence a situação. 
Do nosso ponto de vista discursivo, este pano de fundo nos mostra o engajamento 
simbólico que nos remete por sua vez à memória discursiva. É isto que dá a 
unidade pressentida de uma situação, da ambiência, enquanto pano de fundo. O 
experimentado. O já significado sócio-histórica-politicamente. O que se chama de 
qualidade difusa, penso que podemos considerar como o enquadramento de que 
falamos mais acima, que assegura um campo, uma unidade sensível da situação, 
enquanto um domínio de experiência (não contexto mas práticas lingüístico-
discursivas). Daí, diante de um espaço, se tem “uma impressão dominante global”. E 
quando penso nos “falcões” esta impressão, este sentimento é o de insegurança, de 
impossibilidade, de confronto com a morte. Percebemos objetos e acontecimentos 
e experimentamos ou sentimos a situação, a ambiência. E ela é tácita, inconsciente, 
mas se manifesta. Nos meninos de tráfico, posso dizer que esta sensação é forte, 
difusa, é experimentada e fica inscrita na memória. Como existe neles mesmos? 
Que efeitos produz? Aquilo que os afeta tão profundamente, que não começa ali e 
que não pode nem mesmo ser descrito em termos “objetivos”.
Temos nas condições de produção, pensado como ambiência, um campo mas 
é ao mesmo tempo um processo, instável, com tensões, conflitos. Instala-se uma 
sensação de inquietação, ou de prazer etc. E isto não é só um estado pessoal ou 
subjetivo mas também, eu diria, material, concreto.
Segundo Thibaud, a ambiência nos coloca em uma certa disposição afetiva. Mais 
à frente falaremos do sentimento de “humilhação” como parte da individualização 
dos sujeitos na sociedade capitalista. Mas eu penso que isto é mais complexo e tem a 
ver com o funcionamento das condições de produção e com a ideologia. Uma certa 
“ambiência”, uma certa situação é constituída por certas condições de produção 
e como somos sujeitos ideologicamente constituídos, uma situação se carrega de 
sentidos e nos coloca em uma certa disposição (afetiva diz Dewey) significativa. 
Isto que estou chamando disposição significativa é o efeito ideológico. Tudo isso se 
19
dá porque o ser, o sujeito é levado por uma exigência de organizar sua atividade em 
uma totalidade integrada e significante. Se assim é (e aí não falaríamos em atividade 
mas prática) o que se passa com o Falcão que vive sem as mínimas condições de 
integrar suas práticas em uma totalidade significante (vivendo “do lado certo na 
vida errada”)?
O movimento do corpo não se faz em um espaço vazio mas um espaço de 
interpretação afetado pelo simbólico e pelo político, dentro da história e da 
sociedade.
Dar conta do caráter ordinário da vida em comum supõe esclarecer de modo 
novo o problema da compreensão do pano de fundo, implícito: fundo comum para 
as relações sociais, condição para a sociabilidade pública. Consensual. Devemos 
problematizar o laço social em termos desta inter-coporalidade, dessa coreografia 
tácita de que tomamos parte mesmo sem saber. Questionar o ordinário permite 
colocar à prova o sentimento de familiaridade como componente fundamental do 
habitar mostrando a existência de uma “base comum”, um consenso produzido1 , 
que nos liga uns aos (e contra) os outros.
Daí que para analisar o espaço não podemos vê-lo apenas como paisagem. E nos 
confrontamos então, segundo Thibaud (idem), com a categoria do familiar, com a 
espacialidade, com a hospitalidade, que são três dimensões essenciais do habitar. E 
o que é habitar? É entreter uma relação de familiaridade com o mundo pela qual 
damos sentido ao nosso entorno. É investir um espaço de sua presença o que significa 
lhe dar corpo integrando os sentidos em uma dinâmica de conjunto. É tornar um 
espaço hospitaleiro, engajando gestos elementares nos ligando uns aos outros. Dar 
evidência ao poder expressivo que constitui o estar-junto (Thibaud, idem).
Como veremos a seguir, estas três definições do habitar mostram que, no caso que 
tomamos como exemplo, o dos meninos do tráfico, se há algum sentido em habitar, 
certamente está longe de ser o que apontam estas definições.
Violência e processos de individualização dos Sujeitos na contemporaneidade2 
 “O crime realizou muito sonho meu”(Falcão, meninos do 
tráfico)
Tenho insistido em analisar materiais que possam me dar indicações sobre os 
processos de individualização do sujeito contemporâneo. Para isto tenho analisado 
manifestações do discurso urbano tais como o grafite, a pichação, o piercing, o rap, 
a tatuagem (E. Orlandi, 2004).
De minhas análises restou que se pode reconhecer - pensando a relação desse 
sujeito assim individualizado, com o corpo político, de que recebe por este mesmo 
ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade - a forma da pessoa pública, 
20
esta correspondendo a uma forma de individualização, o sentimento de ser Um, no 
todo da sociedade. É a forma de individualização em relação à sociedade em geral, 
de que resulta o “eu comum”. Mas, como diz Bataille (1946): o pertencimento de 
fato não esgota o desejo que têm os homens de estabelecerem com seus semelhantes 
um laço social. Daí a necessidade de, além da comunidade de fato (família, Igreja, 
empresa, nação etc), estabelecermos comunidades segundas (as que temos vontade 
de eleger, em que nossos desejos podem ser satisfeitos). É para ela que se dirige 
nosso imaginário. Essas comunidades segundas são “grupos em que cada um pode 
desempenhar seu desejo de reconhecimento como o reconhecimento de seu desejo 
e de seu ser”.
Pois bem, o que acontece com este sujeito quando pensamos, no Brasil, a violência, 
mais precisamente quando pensamos um sujeito como está retratado em Falcão, 
meninos do tráfico? E esclarecemos que os tomamos apenas como exemplares dos 
milhares que estão pelas ruas.E esta é a palavrinha chave. Rua. Que está presente na 
expressão “meninos de rua”. São eles uma “comunidade”? Um “grupo social”? Como 
se relacionam com o movimento na/da sociedade? Meninos de rua inclui o Falcão, 
menino do tráfico?
a) As formas da sociedade no Estado
Segundo Schaller (2001) as relações sociais já não se estruturam como antes. Não 
temos mais a representação de classes, verticais, formando uma pirâmide em que 
estariam na base os mais pobres e no ápice a classe alta, podendo haver mobilidade 
em relação à ascensão. Os sujeitos seriam então incluídos ou excluídos socialmente. 
Já não é assim. Contemporaneamente, a relaçãonão é de classes, segundo este autor, 
mas de lugares e se representa horizontalmente: ou se está dentro ou se está fora. 
As relações não são de inclusão/exclusão mas de segregação. Uma vez segregado, é 
impossível ao sujeito entrar nas relações sociais3.
Há inúmeras teorias (por exemplo Lewkowitz e outros) que sustentam o 
esgotamento do Estado enquanto articulador simbólico e a sua redução ao técnico, 
administrativo, como ator coadjuvante enquanto o papel definidor é o da sociedade 
de mercado.
Sem negar a força do mercado contemporaneamente, a nosso ver, quando pensamos 
o Brasil, não diríamos que o Estado já não exerce sua função de articulador simbólico. 
Penso que temos de conviver com a ambigüidade produzida pela existência de 
sociedades de mercado e com a nossa, em que o Estado tem seu funcionamento 
justamente regido por sua falta e afetado pelas sociedades de mercado. Ou seja, é 
em sua falta que o Estado existe e exerce seu poder articulador do simbólico com 
o político. Em suma, o Estado funciona pela falta, produzindo o que chamamos de 
sem-sentido, que não é um vazio, mas um modo de estar na relação do político com 
21
a significação, estagnando-a no já-significado. Assim é que, nossa posição é de que 
temos de compreender os novos termos de dominação, através da compreensão de 
como se confrontam o simbólico com o político, nesses termos.
b) O corpus
Do PCC, sobre o telhado de um presídio “Liberdade para nossos presos”. De 
Marcola, no Caros Amigos, algumas palavras de seu depoimento à Comissão 
Especial – Combate à Violência, da Câmara Federal:
“Deputado: E onde foi parar esse dinheiro?
Marcola: Foi pago em extorsões feitas pela Polícia Civil e Polícia 
Militar.
Deputado: Vocês pagaram?
Marcola: Eu paguei
Deputado: E a quem pagaste todo esse negócio?
Não, isso eu não digo, porque NÃO TEM SENTIDO eu dizer 
que o policial, o fulano ou sicrano é corrupto, sendo que o sistema 
penitenciário não reabilita ninguém. A partir do momento em que o 
sistema tiver condição de reabilitar um ser humano, vou dizer quem é 
o policial corrupto(...)”..
Do livro Falcão meninos do tráfico, temos inúmeros enunciados. Vamos 
exemplificar através de alguns:
 “Criou uma mágoa dele mesmo, que até então eu comecei a entrar 
nessa vida que eu to agora, A VIDA DO CRIME, DO LADO CERTO 
NA VIDA ERRADA”
 “As crianças não são chamadas de traficantes mas de meninos.”
 Se os cana chegar aqui, não tem essa de trabalhador, não, eu sou 
bandido. Na realidade, eu não sou bandido, mas se eles chegar aqui eu 
sou. Pra eles, eu sou”.
 Amanhã ou depois tu morre, vários amigos já morreram assim.”
 “Os Falcões estão tão pobres que estão sem fé”.
 “Não eu não sou viciado, sou usuário”.
 “O que você quer ser quando crescer? Quero ser bandido”.
“Você só vai botar a mão no que tu alcança”.
c) Análise
Retomemos o que colocamos em nossa introdução: como se individualiza o sujeito 
22
contemporâneo?
Pela leitura de nossos materiais de análise uma coisa se confirma: este sujeito 
se debate em uma falta de sentidos que vem do fato de que o Estado falha como 
lugar de articulação simbólica. Isto pode ser visto em várias ocorrências: Quando 
Marcola diz que não vai dizer o nome do corrupto porque não tem sentido dizer o 
nome dele pois o Estado, o sistema penitenciário não reabilita ninguém. Portanto 
a inscrição em uma instituição (sistema penitenciário ou família) que faça o sujeito 
individualizar-se em seu sentido não está funcionando nas atuais condições. Há 
muito, eles desistiram desse modo de inscrição. E usam o discurso institucional 
apenas como estereótipo, para responder ao modo como o outro pensa sua situação. 
Para eles mesmo este é um discurso sem-sentido. é só uma referência imaginária. 
Não faz mais nenhum sentido. É só para “engatar” na conversa com os “de fora”. Só 
existe “fora” do discurso deles. É parte do discurso “sobre” eles que eles repetem 
mecanicamente. No cotidiano eles matam, ou, como é o caso dos X9, eles matam e 
queimam.
Outra coisa muito clara nestas falas é o fato de que a falta de sentido é a falta de 
espaço. Onde vivem? Em lugar nenhum. Eu durmo assim, em cima das lajes mesmo, 
fora de casa. Não tem como me esconder dentro de casa, porque se eu dormir, eu 
não sei nem o que pode acontecer.Falcão, ele só vê, não pode ser visto, não pode 
estar em lugar algum. Não tem um corpo reconhecido pela sociedade. É apenas 
o olho que vigia, do outro lado da lei, da sociedade. Não tem vida pública. Não é 
“comum”. Não existe. Não se significa no social. Não ter um lugar é estar dissolvido 
na fragmentação.
Se os home chega aqui nóis vai ser tratado como bandido. Se pá, mete bala em nós, 
mata geral, nem leva de dura.(...) Na realidade eu não sou bandido, mas se eles chegar 
aqui eu sou. Pra eles eu sou. Atente-se para o fato do uso do “aqui”, do “espaço” como 
definidor, individualizador do sujeito: aqui ele é bandido para eles, os policiais.
Não há espaço social e entre eles o espaço é disputado palmo a palmo. E como diz 
um deles: o limite é a rua. Lá todo mundo é igual.
Não há opção: O que você vai ser quando crescer? Bandido. Quando o cara sai da 
cadeia sai neurótico. O cara sai com a maior marra de bandido. Portanto não há 
escolha, não há lado, não há sentido. O próprio sentido de crime, não faz sentido: 
“O que é crime? É cometer assaltos, é praticar o tráfico mas sem deixar de respeitar 
o cidadão comum”.
E é assim que podemos entender o enunciado que me levou a esta reflexão. Um 
destes meninos conta que foi esbofeteado por um policial e acrescenta: criou uma 
mágoa dele mesmo, que até então eu comecei a entrar nessa vida que eu to agora. A 
vida do crime, do lado certo na vida errada. A vida é que está errada. O lado é certo. 
Mas se tentarmos mudar isto fica assim: A vida certa (?), do lado errado(?). Não há 
opção. Não há como des-virar este enunciado. Não há possibilidade de outro sentido.
23
Não há como estabelecer um (outro) sentido dentro desta ordem discursiva em 
que os processos de significação estão estabilizados em formações discursivas 
do capitalismo habitual: certo/errado, crime, bandido, menino/traficante etc. 
Contemporaneamente, há uma demanda social em que o jogo das formações, 
portanto a filiação de memória é outra. E, assombrados pela falta, pelo sem lugar, 
esses sujeitos vivem em cheio o sem-sentido, balançados de um lado para outro na 
sua insignificância para a sociedade e para a história. Na sua falta de “corporalidade” 
(no corpo social). Na sua inviabilidade. Em seu apagamento. Pois é essa a sua 
realidade. Já foram há muito segregados e nem chegam a ser um caso de polícia 
(repressão) só de extinção ( forma radical de segregação). Se há sentidos múltiplos 
e incertos eles não se sustentam numa racionalidade do Estado ou numa lógica do 
social mas na falta de espaço. Você só vai botar a mão no que tu alcança.
d) Reflexões conclusivas provisórias
Teriam os Falcões a impressão de fazerem parte de um grupo? Conseguiriam eles 
construir uma ilusão grupal capaz de “acalmar a angústia da cisão do sujeito?”. 
É-lhes possível imaginar-se em um corpo compacto que possui a liturgia e seus 
rituais comoventes em que a morte não entra? Ora, a morte é a experiência de seu 
dia-a-dia.
Como habitar um espaço? Esta é a questão fundamental. E que espaço é este? 
São estratégias de subjetivação diversas – habitar, desacelerar, suspender etc – 
que trabalham sobre um mesmo material subjetivo: fragmentos e subjetividades 
fragmentadas. Fazer de um fragmento uma situação implica transformar cada 
situação em um mundo habitável.
Pergunto-me - ainda que isto seja humanamente insuportável - se isto está 
ocorrendo com os meninos do tráfico, mas ocorre certamente com o pichador. Este 
é capaz, por seu gesto de simbolização, a letra, da produção de uma subjetividade 
capaz de habitar esse espaço e essetempo ao irromper no social com seu gesto não 
desejado mas possível, pelo traço, pelo signo, pela grafia. É instantânea. Pode nem 
durar. Mas se dá. O pichador não sucumbe ao sem-sentido, ao contrário, afetado 
pelo não-sentido, ele rompe em “outro” sentido. Momentaneamente.
Isto ocorre com o “Falcão”? Penso que não. No abismo social em que ele vive, preso 
da fragmentação, ele não consegue, nem por um átimo, constituir uma situação. Ele 
é apenas um fragmento. Descartável.
E o que acabamos de dizer mais acima mostra que o “Falcão” é pressionado pela 
falta de lugar, pela impossibilidade de se criar uma “situação”, de se produzir um 
espaço. Ele não habita. Não pode ir e vir.
Creio necessário explicitar aqui a distinção que tenho feito (E. Orlandi, 1992) entre 
o “não-sentido” – que é o não-experimentado, o que ainda não significa mas por 
24
uma necessidade histórica poderá vir a significar – e o “sem-sentido” , que é aquilo 
que já fez sentido e fica apenas em um imaginário imobilizado incapaz de significar. 
Aquilo que já não significa mais. Tornou-se in-significante.
Isto quer dizer, nos termos em que estamos desenvolvendo nossa análise, que 
encontrar uma situação(um (outro) espaço) para o sujeito é encontrar um sentido e 
tornar possível o movimento de sua individualização: poder estar; instalar (se em) 
uma situação. Passar do não-sentido ao sentido possível, “de modo que o irrealizado 
advenha formando sentido do interior do não-sentido” (Pêcheux, 1975). Mas, 
nas condições em que vivem esses meninos, como fazê-lo, tendo o Estado como 
funcionamento da falta enquanto articulador do político com o simbólico, e tendo 
o tráfico como condição de vida? Ficando do lado certo, na vida errada. É a única 
resposta que nossa sociedade disponibiliza nesse momento. E que estes meninos 
dolorosamente su-portam. Face ao sem-sentido em que estão mergulhados.
Há possibilidade de transformar este espaço? Eu, de minha parte, serei sempre 
pessimista enquanto a palavra “democracia” surtir seu efeito mágico...É preferível 
dizer que não sabemos o nome do que virá do que tentar usar as palavras que já se 
historicizaram enquanto cortantes sentidos da nossa humanidade.
Humilhação ou Execração Pública?
Situando-nos criticamente em relação à questão da mundialização mas sem 
desprezar seus efeitos, podemos observar outros modos de tratar desta questão.
É sabido como P. Ansart (2007) desenvolve uma rica reflexão sobre os sentimentos 
na política. Não é de se estranhar portanto que desenvolvam-se atualmente estudos e 
discursos sobre a “humilhação”. Interessa-nos a humilhação enquanto ela se oferece 
como uma prática social. 
O nosso sujeito – menino do tráfico, o falcão – certamente poderia ser pensado 
como um sujeito humilhado. Mas seria muito fácil. Seria ajustá-lo à sociedade rica 
de consumo que nos mantêm, países pobres, ao sabor de suas políticas de força e 
suas teorizações. 
Alguns destes autores, remetem a questão da humilhação ao conceito de alienação 
em Marx (1844,1867). Caso em que o objeto produzido pelo trabalhador aparece 
como estranho e independente a ele. Alheio a si mesmo. 
Quanto mais valor o trabalhador cria, mais ele fica diminuído, mais sem valor e 
desprezível se torna (Marx, idem). 
Claudine Haroche (2007) discorre depois sobre o que faz a sociedade de 
consumo com o indivíduo: perda de singularidade, de criatividade, de imaginação, 
a consciência de si. E penso como os meus meninos do tráfico já estão longe de 
poderem ser incluídos numa descrição como essa. Para isso, teriam que ser contados 
entre os que teriam um mínimo de relação com a sociedade envolvente. Eu me 
25
pergunto se posso considerar, no caso dos falcões, meninos do tráfico, o trabalho 
para o traficante como um trabalho. E o que isto acarretaria ao eu interior deste 
indivíduo.
Haroche acrescenta a isso a busca da visibilidade, aspiração pela qual o indivíduo 
é valorizado, que acompanha novas formas de poder, de dominação econômica, 
política e social. O que, por sua vez, se acompanha de transformações no tipo de 
personalidade. A invisibilidade seria sinônimo de inutilidade, de insignificância, de 
inexistência. No nosso caso, lembremos que o falcão evita justamente a visibilidade. 
É o que vê mas não pode ser visto. Onde o falcão se ancora na sua busca de poder? 
Na sua capacidade de ser invisível. Aí é que ele ganha importância, existência, 
significância. Na sua imagem franzina, aí ele ganha poder. Logo, não é na sua 
visibilidade que ele busca poder. É na sua relação com o tráfico, no fato de carregar 
uma arma, de ser Falcão.
As sociedades, segundo alguns autores, podem ser distinguidas em duas categorias 
opostas: a de transcendência e a do individualismo. Se somos uma sociedade do 
individualismo – e é o caso da sociedade contemporânea – a questão do outro se 
coloca imediatamente. Como a presença do outro é incontornável, o problema que 
se põe é o de como tratar este outro. E o que se pergunta Enriquez (ibid) é se “eu 
devo respeitar sua dignidade ou ao contrário eliminá-lo de uma maneira ou de outra 
pela violência, e fazê-lo, pois sucumbir sob o peso da humilhação” Ora, se pensamos 
o menino do tráfico e as nossas sociedades do Sul a representação que prevalece na 
vontade de humilhar é a de uma distinção central e definitiva entre duas espécies 
humanas: os capitalistas e os proletários, os colonizadores e os colonizados, os super-
homens e os sub-homens, aqueles que têm o direito de viver e aqueles que não têm o 
direito de existir. E aqui penso no que desenvolvo neste trabalho sobre preconceito: 
o preconceito incide sobre a existência mesma do indivíduo, negando-lhe a vida.
Continuando, Enriquez (idem) define o que é humilhar, nestas condições: consiste 
em colocar o indivíduo em uma posição em que lhe é impossível responder à violência 
sem se arriscar, onde ele só pode se submeter calado, se situar na “sombra do nome” 
de quem o humilha, ser obrigado a se identificar com o agressor, de experimentar 
a vergonha, de mentir ou dissimular para se proteger. Progressivamente ele perde 
sua identidade, sua estima e o respeito de si. Aqui reencontramos nosso Falcão. 
Ele perde seus direitos estabelecidos, recebe desprezo, ele já não pode “enfrentar 
o abismo” em pé, como diria Enriquez, citando Castoriadis. Mas creio que já se 
foi, com estes meninos, além da humilhação: o sentimento é de execração pública. 
Quando nosso menino do tráfico diz que “está no lado certo da vida errada”, não 
estaria ele dizendo que está tentando ficar em pé frente ao abismo? Sua vida não tem 
sentido para si nem para os outros. Ele pode desaparecer sem deixar traço.
Enriquez continua a falar sobre a humilhação de forma muito interessante –mas 
creio que é uma humilhação que se endereça ao homem médio. O delinqüente não 
26
está a seu alcance.
Se volto ao que diz Castoriadis, “enfrentar o abismo em pé”4 , e se procedo 
discursivamente, podemos produzir aí um efeito metafórico, uma deriva, deslocando 
de uma formação discursiva para outra, o que é dito relativamente à humilhação.
Desse modo, o menino do tráfico, quando afirma “eu estou do lado certo na vida 
errada” está afirmando que não está ao alcance da humilhação. Ele está fora das 
relações sociais que se apresentam como dominantes na formação social capitalista, 
e a humilhação só é possível nelas (assim como o pichador está fora do alcance da 
escola porque não escreve com letras do alfabeto). Se estivessem no interior dessas 
relações seriam humilhados. Eles se negam a isso. Estão no lado certo (“em pé”). 
Da vida errada (“enfrentando o abismo”). Eis o efeito de sentido produzido por este 
deslizamento, por esta deriva metafórica.
Esses sujeitos, do modo como são individualizados na sociedade sobre a qual 
estamos refletindo, sociedade que se constitui na conjuntura da mundialização com 
todos seuscomponentes como expusemos neste estudo, não estão ao alcance do 
consenso. Por isso são, de certo modo, para nós, in-compreensíveis. 
Assim como são in-compreensíveis os sentidos do que sejam movimentos sociais5, 
quando pensamos a sua “legalidade” se não nos limitamos às definições dadas pelos 
que tomam como referência o sistema capitalista. E se não o fazemos, e pensamos 
que todo o tempo a sociedade e seus sujeitos estão em movimento na história, 
movimento que, barrado, não significado politicamente, explode em sentidos que 
estão na base da produção da delinqüência, da marginalidade, do terrorismo, da 
ilegalidade etc, nos tornamos, nós mesmos, in-compreensíveis.
Sem dúvida é assim que posso ler o que diz o secretário José Mariano Beltrame, 
na Veja de 31 de outubro de 2007: “No Brasil, e no Rio de Janeiro em particular, 
a convivência promíscua entre o legal e o ilegal provocou uma situação ambígua 
(incompreensível?eu diria). Chegamos a um ponto em que precisamos decidir. A 
sociedade deve escolher de que lado está”.
Ainda que fale em situação ambígua, para ele não há ambigüidade. De acordo com 
os padrões da sociedade capitalista há linhas nítidas que separam o legal do ilegal 
quando se trata do pobre, do delinqüente, da criminalidade categórica. E dentro do 
discurso neo-liberal, ainda que ele declare que, ao longo do tempo, a insegurança 
atual foi construída por interferência política irresponsável e ausência de políticas 
públicas, é a sociedade que deve escolher seu lado. Já que não se discute o que o 
Estado está fazendo nesta história. É o mesmo que dizer que podemos saltar fora da 
história e escolhermos onde estaremos. É claro que então estaremos do lado certo, 
na vida certa. É o que falta para significarmos que quem não está na vida certa são 
os que podem, devem mesmo, ser extintos (”vidas vão ser dizimadas”). São os que 
não merecem viver. E se argumenta que a “geografia” do Rio de Janeiro favorece a 
situação atual de guerra6. Como se o espaço da violência fosse apenas um espaço 
27
empíricamente discernível. E, portanto, uma vez a sociedade decidindo de que lado 
quer estar, o outro lado (o lado da vida errada) fosse finalmente solucionado. É só o 
que nos falta para vivermos um capitalismo sem risco, seguro, sustentável, feliz.
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1988, Semântica e Discurso.
Schaller, J. “Construire um vivre ensemble dans une démocratie renouvelée”, USP, 
São Paulo, 2001.
28
Notas
1 Fizemos um amplo estudo – em projeto temático da Fapesp (2004/2008) – em 
que mostramos como este “consenso” é produzido e como o imaginário desse 
consenso, assim produzido, serve de base à produção de políticas públicas. De 
meu lado, tenho pensado essa inter-corporalidade na formulação de que o corpo 
do sujeito está atado ao corpo urbano, tendo sua forma de vida determinada pela 
natureza e qualidade dessa relação. E me distingo aí do que desenvolve Thibaud a 
esse respeito.
2 Esta parte foi apresentada em uma versão mais extensa no CIAD, em São Carlos, 
em 2006.
3 Concordo com Schaller que a forma da relação é de segregação – uma vez posto 
fora, o indivíduo não conta para a sociedade, nem em sua existência política, nem 
física mesmo – e também concordo que esta é a forma da representação de classes, 
mas não aceito uma forma de interpretar isso, que é assim dito, como se não se 
pensasse mais a sociedade de classes, ou que a relação não é de classes. Estamos 
sempre ainda no sistema capitalista. O que está em questão, para mim, aí é a 
representação da relação social. Não o fato e a forma de sua existência.
4 Retomamos Castoriadis sem no entanto deixar de fazer a ressalva que esta 
(enfrentando o abismo) é uma expressão fortemente marcada pela discursividade 
religiosa (cf. por exemplo Gênesis). Daí propormos a deriva, o deslocamento para 
outra formação discursiva.
5 Os sentidos de movimentos sociais variam mas em geral têm sua padronização: 
a noção de movimento social tem servido para denominar uma organização 
estruturada com o fim de criar associação de pessoas ou entidades a fim de obter a 
promoção ou a defesa de objetivos face à sociedade. Podem ser legais ou ilegais. No 
modo como o vemos, discursivamente, assim como a identidade é um movimento 
na história, também a sociedade está em constante movimento na história. Há, pois, 
movimentos sociais contínuos. Qual a forma que eles apresentam e com a qual se 
representam? Quais são reconhecidos? Esta é a questão. Na formação discursiva 
dominante, o PCC, por exemplo, não pode ser considerado um movimento social. 
Toda sociedade constrói um sistema de valores e é em relação a eles que se considera 
um movimento social específico.
6 Claro que há sim um aspecto geográfico que favorece a criminalidade: 
entroncamento de grandes rodovias, aspectos de organização da cidade etc. Mas 
isto é só um elemento do modo de se praticar a criminalidade e não define sua 
existência como tal.
29
 MOVIMENTOS SOCIAIS: 
O PARADOXO ARGENTINO 
E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE
Enrique Serra Padrós
(UFRGS)
Hermanos y Hermanas:
(…) Toma ya nuestro rostro,
 toma ya nuestra voz.
Nuestra vida la anda.
Haste oído nuestro
 para escuchar del otro la palabra.
(...) Ya no serás tu,
Ahora eres nosotros.
Subcomandante Marcos
Introdução
O presente trabalho apresenta algumas reflexões introdutórias sobre os desafios 
que enfrentam os movimentos sociais desde os anos 90, quer dizer, dentro do 
período da história recente identificado como pós-guerra fria. A análise está 
centrada na experiência paradigmática da Argentina, laboratório de experiências 
sociais inéditas após a crise de 2001. Um esclarecimento inicial corresponde a uma 
opção metodológica do autor em tratar de movimentos sociais de forma genérica. 
Tal opção se justifica pelas características e formato do texto e pela compreensão 
de que o fundamental é a compreensão da lógica das situações percebidas e dos 
elementos comuns na atuação de protagonistas que, inquestionavelmente, detém 
particularidades e que possuem inteligibilidade a partir de fatores de origem, de 
efeitos conjunturais, de trajetórias específicas e de interação com o meio políticoe 
social em que atuam. 
•
30
Pós-guerra fria, neoliberalismo e pensamento único
As profundas transformações estruturais que desde o final dos anos 70 foram 
corroendo as relações de produção vigentes, promoveram o gradual abandono 
da lógica fordista, do Estado de bem-estar e da defesa do pleno emprego. Tais 
transformações impactaram ainda mais, em função de estarem vinculadas a 
fatores que, agindo em outro plano da existência concreta, assinalavam a débâcle 
e desaparecimento da URSS e do socialismo real, a conformação da globalização 
neoliberal e a imposição do pensamento único (globalitário1), marcos fundamentais 
para a compreensão da nova realidade internacional e da nova relação de forças 
sociais derivadas daquela dinâmica.
Enquanto repercutia o discurso apologético do fim da história e da consagração da 
superioridade do capitalismo sobre o socialismo, Eric Hobsbawm apontava para a 
configuração de um mundo de barbárie, marcado pela perda dos valores iluministas 
(racionalidade, cientificidade, fraternidade/solidariedade, felicidade coletiva, 
inclusão, etc.)2. Conseqüentemente, a banalização da violência, da indiferença e 
da desigualdade acompanhava o processo de desintegração político-social, gerando 
aquilo que Franz Hinkelammert denominou, na época, cultura da desesperança3, ou 
seja, a disseminação de uma percepção marcada pelo desespero, pela impotência 
diante da re-significação que transformava direitos historicamente conquistados 
em meros privilégios que, em nome de um igualitarismo de mercado, deviam ser 
extirpados. 
A ofensiva conservadora contra o socialismo (enquanto concepção) foi 
acompanhada de uma aguda escalada contra toda forma de organização e de 
participação que não fosse naqueles espaços de suporte da nova ordem. Dessa 
forma, o mundo do trabalho foi um dos alvos centrais, embora não ficasse restrita 
a ele. Nesse sentido, a intolerância passou a ser mecanismo de reordenamento 
restritivo, por parte do capital, produzindo, entre as populações visadas, incerteza, 
insegurança, violência, deterioração das relações de convivência e procura de saídas 
extremadas. 
Dentro dessa perspectiva, Zilda Iokoi4 aponta que “num mundo cada vez 
mais desigual, com expansão crescente da miséria, das guerras e as dificuldades 
decorrentes do descaso com o meio ambiente, vive-se como nunca situações de 
intolerância que inviabilizam o multiculturalismo”.Ou seja, paradoxalmente, no 
mundo da mundialização dos fatores econômicos e do estreitamento das distâncias, 
via rede mundial de computadores e revolução das telecomunicações, a tendência 
homogenizadora das práticas políticas, sociais e culturais dos centros capitalistas 
desenvolvidos denuncia como nocivos à civilização àquelas culturas e aqueles 
coletivos que resistem a essa onda pasteurizadora e destruidora dos sentimentos de 
pertencimento particular. 
31
A perspectiva que Iokoi estabelece para a compreensão do fenômeno da intolerância 
é instigante: “A intolerância têm se manifestado em decorrência da idéia de que todos 
os povos do mundo não formam a humanidade (...)”.5 Portanto, há um componente 
fundamental dentro da lógica do tempo recente da globalização neoliberal, a idéia 
de uma exclusão que nega a própria identidade humana, relegando a uma situação 
de marginalização (de estar a margem) inédita na história contemporânea. Situações 
históricas anteriores, caracterizadas com esse teor de gravidade foram resultado 
da ação visível de decisões políticas (quase sempre estatais), diferentemente do 
que ocorre nas últimas décadas, onde a entidade mercado, apresentada como 
desconectada do mundo concreto dos homens, carrega, de forma abstrata, essa 
responsabilidade desumanizadora. 
Segundo Iokoi, a intolerância se manifesta, na atualidade através de 
Formas regressivas de práticas religiosas, xenofobias reabertas no continente 
europeu, fundamentalismos antigos e novos, disputas imperialistas, egoísmos 
e narcisismos individualistas e pela contínua imposição das desigualdades 
sociais. 6
Um dos aspectos destacados na dinâmica da ofensiva conservadora contra os 
trabalhadores e suas organizações foi o enfraquecimento dos partidos de esquerda 
e das estruturas sindicais, atingidos pela combinação de efeitos produzidos pelo 
colapso soviéticos (mudança de paradigmas) e pela desestruturação do Estado de 
bem-estar social. No caso latino-americano, a ofensiva sobre o mundo do trabalho e 
dos seus instrumentos de organização não conseguiu evitar o deslocamento da ação 
de resistência para velhos e novos movimentos sociais que foram se reestruturando 
ou constituindo durante a luta contra o neoliberalismo e as diretrizes do Consenso 
de Washington.7
Os novos movimentos sociais
No final dos anos 80, as derrotas eleitorais de projetos de base popular no México, 
no Brasil e na Nicarágua (o melancólico fim da Revolução Sandinista), entre outros, 
simultâneos à simbólica queda do Muro de Berlim e, pouco depois, ao aparentemente 
desconcertante colapso soviético, produziram refluxos importantes nas organizações 
tradicionais da esquerda. A ofensiva contra as conquistas trabalhistas, a confusão dos 
partidos da esquerda tradicional (autocríticas, rupturas, divisões, mutações, etc.), a 
direitização de reconhecidos intelectuais à lógica do mercado e aos novos tempos 
e a ação em grande escala do pensamento único através das grandes corporações 
midiáticas induziram à despolitização da sociedade e, conseqüentemente, sua 
32
desmobilização em defesa dos seus direitos. 
O estadunidense James Petras foi um dos primeiros a perceber que os efeitos 
negativos das políticas neoliberais aplicadas na América Latina, durante os anos 
90, estavam gerando subjetividades, ainda pouco visíveis, entre os setores mais 
marginalizados e periféricos. Em 1996, antecipava os germes contestatórios que 
detectava a contrapelo da onda neoliberal. No artigo América Latina: a esquerda 
contra-ataca,8 apontava duas questões essenciais quanto à relação de forças naquela 
conjuntura. Por um lado, reafirmava as limitações de atuação e as contradições 
de certos partidos de esquerda e sindicatos, no embate contra a onda neoliberal 
sendo que, alguns deles, chegaram a assumir um claudicante adesismo. Por outro 
lado, identificava, de forma premonitória, o surgimento e a vitalidade de novos e 
desconhecidos movimentos sociais. Neles destacava uma certa autonomia de decisão 
e atuação diante das estruturas partidária e vislumbrava originalidade nas formas de 
organização, na coesão interna, nos mecanismos de solidariedade e, independente 
de reivindicações de ordem estrutural na ênfase em pautas específicas que davam 
sentido aos movimentos. Petras destacava que no MST (Brasil), no movimento dos 
cocaleros (Bolívia), na Confederação Nacional dos Camponeses (Paraguai), nas 
Madres da Praça de Maio e nos piqueteros (Argentina) assim como nas guerrilhas 
das FARC (Colômbia) e dos zapatistas do EZLN (México), afloravam disposição 
para o embate político (não-institucional), justamente no momento de maior 
refluxo da esquerda tradicional e suas formas de organização. 
Esses movimentos e organizações se consolidavam fora das tradicionais estruturas 
de manifestação dos anseios populares constituindo uma nova experiência que 
procurava resgatar alguns aspectos positivos da experiência acumulada das lutas 
sociais locais com modalidades originais surgidas nos embates aferidos diante das 
novas condições históricas que se ofereciam. Um dos principais exemplos a destacar 
é o uso inédito e eficiente das novas redes de comunicação por parte dos zapatistas. 
A imagem do subcomandante Marcos a cavalo e com um laptop no meio da selva 
Lacandona mas conectado com o mundo via Internet expressa essa adequação à 
nova realidade e o uso dos novos recursos potencializando politicamente um 
movimento que os incorpora no seucotidiano de resistência. 
Uma outra característica desses movimentos, comum a todos eles e que se 
configura como resposta a um problema da maior magnitude colocado pelas práticas 
neoliberais é o combate à exclusão. Este fenômeno se mostra diferente daquilo que 
em outros tempos podia ser entendido como fases de desemprego conjuntural; a 
luta contra a exclusão estrutural passou a integrar um leque maior e diverso de 
atingidos nos ambientes urbanos, mas nas zonas rurais, acabou configurando uma 
identidade peculiar a determinados movimentos. Nesse sentido, o surgimento de 
movimentos camponeses originados de uma determinada atividade produtiva 
(caso dos cocaleros bolivianos), ou populações inteiras atingidas por deslocamentos 
33
de rios, construção de barragens, vítimas de desmatamento ou de outras agressões 
contra o meio ambiente e o ecossistema no qual estão inseridos, mostram tomadas 
de consciência que fogem aos padrões tradicionais. 
Um outro elemento particular e de significado histórico tem sido o resgate do 
protagonismo dos movimentos indígenas. A recuperação dessa identidade assim 
como a dos mestiços têm adquirido conotações políticas inegáveis e acrescentado 
questões que impõem novos desafios para interlocutores governamentais que 
precisaram, diante dos fatos concretos, reconhecer um tardio estatuto de cidadania 
que apresenta singularidades de valores e referências. A Bolívia, o México, o 
Equador e o Peru são os países mais atingidos por essa crescente e persistente 
tendência. Mesmo o Chile, onde a comunidade Mapuche representa uma dimensão 
demográfica menor que a dos outros países citados quanto à presença indígena, 
suas demandas, denúncias e manifestações consolidam um espaço político que 
extrapola a própria comunidade para converter-se em ação que procura e gera 
apoio e solidariedade nacional. 
O paradoxo argentino
Um caso particular quanto aos limites e desafios para os novos movimentos 
sociais é o da Argentina pré e pós-2001, sendo esse ano, o da grande crise e falência 
institucional (Argentinazo). Para sua abordagem, partiremos da recente disputa 
eleitoral naquele país;9 entendemos que ela é paradoxal quanto à atuação e espaço 
político que ocupam e possibilidades concretas que projetam atualmente os 
movimentos sociais em um cenário de crises, incertezas e tensionamento político-
militar ao qual não faltam os condicionantes externos. 
O caso argentino é ilustrativo das dificuldades de autonomização dos movimentos 
sociais que crescem exponencialmente em situações de crise profunda, mas que 
parecem ressentir-se quando, em fase posterior, encontram dificuldade para 
não serem cooptados pelo funcionamento político da tradição partidária ou 
da burocracia sindical. Ou seja, a revitalização e a re-institucionalização dos 
instrumentos político-partidários se colocam como desafios primordiais para 
os novos atores sociais. As iniciativas estatais e da sociedade política de, por vias 
formalistas, enquadrar as vigorosas mobilizações sociais originadas no ápice da 
crise econômico-financeira e política de dezembro de 2001 constituem uma ação 
de sobrevivência do establishment para evitar potenciais situações (impensáveis) de 
mudanças estruturais. 
É importante lembrar que a crise de 2001 foi o corolário do colapso político, moral 
e ético das instituições diante da tentativa de auto-desresponsabilização do poder 
econômico e da exigência aos setores médios (e populares, evidente), de pagar a conta 
34
dos “alegres” anos do neoliberalismo desenfreado das duas administrações Menem. 
Os setores sociais médios vítimas de uma política estatal de confisco bancário 
(corralito) elaboraram formas de organização para proteger-se de uma situação de 
descalabro global. Para isso, se apropriaram de práticas de luta e resistência que 
os setores populares vinham desenvolvendo desde os anos 90, quando já sofriam 
os efeitos das políticas neoliberais (privatizações, desindustrialização, redução da 
prestação estatal de serviços sociais, etc.). Curiosamente o programa neoliberal do 
menemismo contou com a simpatia de significativa parcela dos setores médios, 
ofuscados com a ilusória fórmula da paridade cambial (um dólar = um peso). 
Esses mesmos setores, não só ignoravam ou negavam solidariedade àquelas 
primeiras vítimas das práticas neoliberais, como apoiavam as tentativas estatais de 
criminalização dos atos de resistência. 
O movimento piquetero surgiu em meados dos anos 90 quando pequenas cidades 
do interior da Argentina sofreram paralisia econômica com o fechamento ou 
privatizações de empresas estatais, fontes essenciais de trabalho e sobrevivência para 
a maior parte da população local. O desemprego crônico, a pobreza transformando-
se em miséria, a sensação de desamparo e a desobrigação do Estado de suas 
responsabilidades com essas pequenas populações, multiplicadas muitas vezes pelo 
interior mais pobre do país, geraram novas formas de denúncia e luta social. As 
primeiras organizações piqueteras foram associações dessas populações carentes, 
esquecidas pelos partidos políticos e sindicatos, que partiram para a interrupção 
das grandes estradas (piquetes, barreiras), impedindo o trânsito de caminhões que 
abasteciam cidades maiores e até a capital do país. Essa foi a forma mais eficiente 
encontrada para chamar a atenção dos grandes conglomerados urbanos e dos poderes 
constituídos e denunciar a dramática situação de abandono em que estavam imersas 
aquelas famílias. Paulatinamente, outras formas de lutas foram incorporadas ou 
adaptadas como marchas, greves, saques, ocupações e as ollas populares (sopões). A 
modalidade de luta piquetera se espalhou e se organizou por todo o país. As palavras 
do padre Spagnolo, vinculado às populações carentes, levantaram a auto-estima e a 
dignidade do movimento: “Se Jesus vivesse, seria piquetero”. 10 
A causa piquetera e de outros grupos excluídos e esquecidos durante a festa 
neoliberal da paridade cambial foi acolhida, entretanto, pelas organizações de 
direitos humanos, especialmente pela associação Madres de Plaza de Mayo. Há quase 
quinze anos do fim da ditadura Madres, Abuelas, HIJOS, Familiares de Desaparecidos 
e outras organizações continuavam lutando contra o descaso governamental, a 
impunidade, a desmemoria e a permanência dos crimes cometidos pelo terrorismo 
de Estado. Com as consignas Verdad y Justicia, Nunca Más, as rondas na Praça 
de Maio, as manifestações e atos públicos diversos e a restituição de identidade 
de crianças seqüestradas, o movimento de direitos humanos, de forma, diversa e 
desigual, foi politizando sua forma de atuação. 
35
O grupo que mais radicalizou nas suas posturas foi o liderado por Hebe Bonafini 
(Madres de Plaza de Mayo) e no final dos anos 90 começou a se aproximar das 
instâncias piqueteras e de outras organizações populares. As Madres foram e são 
uma expressão política curiosa da história política recente na Argentina. Primeiro, 
pela carga de tragédia que carregam e pelo fato de serem vítimas do mesmo processo 
que desapareceu e matou filhos e roubou netos. Segundo, porque até hoje, quase três 
décadas após os eventos que as originaram, ainda não se fez justiça no sentido pleno, 
e durante muitos anos, já em democracia, foram sistematicamente ludibriadas, 
enganadas ou ignoradas. Terceiro, porque diante da passagem inexorável do 
tempo conseguiram gerar relações sociais que através de muita disposição e luta 
política conseguiu sensibilizar boa parte das novas gerações tornando atual as suas 
demandas, mas assumindo também como suas as preocupações e os problemas das 
gerações mais jovens, as que corresponderiam aos seus filhos e netos. Diante de 
milhares de jovens as Madres marcam a sua função: “(...) llevaron a nuestros hijos, 
pero nacimos las Madres. Ellos nos parieron aquí, a esta lucha, tratamos de ser el 
puente entre ellos y ustedes.”11Diante da coerência das posturas e da justeza das causas assumidas as Madres 
passaram a receber um reconhecimento ético quase universal entre os setores 
democráticos, em um país onde a corrupção se instalou nos altos escalões da 
vida política e econômica e passou a ser disseminada por toda a sociedade, mídia 
de por meio, como sinônimo de esperteza. A sabedoria das organizações de 
direitos humanos foi o de estar presente, na linha de frente, em toda manifestação 
reivindicada pelos setores populares e de incorporar a sua luta, as consignas por 
melhores salários, trabalho, educação, saúde, etc. Mostrando extrema lucidez na 
vinculação de suas demandas históricas com os problemas do presente, no final do 
governo Menem, denunciavam: “La falta de trabajo es un crimen, pero un crimen 
que nadie paga y nosotros queremos que los que hoy cometen el crimen dejándonos 
sin trabajo lo paguen y lo paguen caro”.12 Essa fala das Madres conferia à exclusão 
e seus derivados, uma conotação que ganhava outra dimensão nas palavras das 
suas lideranças. Se as Madres, as mesmas que eram vítimas do desaparecimento 
de filhos e seqüestro de netos, apontavam a exclusão social como ato criminoso 
de responsabilidade do governo, isto conferia outra legitimidade às denúncias dos 
setores abandonados ou em fase de sê-lo. 
Após a reeleição de Menem, em 1995, já eram perceptíveis os sintomas negativos 
do modelo e o seu esgotamento (desemprego crescente, dificuldade em manter a 
paridade cambial e o generalizado endividamento da população em dólares); os 
efeitos começaram a se espalhar por todo o tecido social. A situação foi herdada 
pela administração De la Rua, que não rompeu com o modelo vigente, frustrou os 
eleitores que o elegeram para mudar a orientação econômica e, com isso, aprofundou 
o impacto global da crise latente. Esta explodiu, após novos percalços, em dezembro 
36
de 2001, com o decreto governamental de confisco das contas bancárias para fazer 
frente aos compromissos externos; ato seguido, o descontentamento acumulado 
durante meses, se traduziu em uma imediata e crescente resistência “quase” 
espontânea e um brutal incremento repressivo. 
Diante das manifestações de indignação, particularmente dos setores médios 
(principais atingidos com o confisco), o governo respondeu com ferocidade 
repressiva; os embates dos dias 19 e 20 deixaram um saldo de quase trinta 
pessoas mortas. Na quinta-feira dia 20, entre as imagens mais contundentes dos 
acontecimentos ocorridos no centro de Buenos Aires estavam as que mostravam 
uma coluna que avançava pela Praça de Maio. Na linha de frente caminhavam, de 
braços dados, as Madres, carregando a grande faixa da sua organização (quinta-
feira é o dia das clássicas rondas ao redor do monumento central da praça). As 
imagens da brutal arremetida da polícia a cavalo contra as Madres são portadoras 
de uma dupla expressão. Primeiro, a de um governo acuado e de um aparato de 
segurança impregnado de uma tradição de violência não descontaminada. Segundo, 
o significado político da postura daquelas mulheres, de idade variável entre 60 e 90 
anos, encabeçando uma multidão multifacetada que as reconhecia na sua liderança 
e que atraiam a ira impotente do aparato repressivo. 
Diante dos fatos e tentando evitar o que considerava um desafio a sua autoridade, 
De la Rua decretou o estado de sítio, instrumento autoritário fruto de atitude 
irresponsável e insensível do presidente diante de uma sociedade argentina que 
expressava cotidianamente a tragédia de dezenas de milhares de desaparecidos e de 
centenas de crianças roubadas.13 O resultado foi que, superando pela primeira vez o 
medo residual do tempo da ditadura, a população, ignorando o decreto, como uma 
gigantesca onda pacífica sob a cadência dos panelaços, transbordou os esquemas 
coercitivos e fincou pé na histórica praça do centro de Buenos Aires onde ecoou 
a consigna emblemática “Que se vayan todos”, e forçou a renúncia do presidente. 
Nesse momento as instituições colapsaram. Em poucos dias, outros quatro 
presidentes interinos fracassaram na tentativa de encontrar alguma saída para uma 
crise inédita e de enormes proporções. Enquanto uma complexa engenharia política 
tentava recompor os “cacos” quebrados dos poderes constituídos, dos partidos14 
e da estrutura sindical, a Argentina se converteu num verdadeiro laboratório de 
experiências sociais de um Estado literalmente quebrado.
A peculiaridade daqueles eventos é que diante das notícias da fuga de especuladores, 
da opção repressiva do governo e do descaso das elites político-econômicos com 
o conjunto da população, ocorreu uma confluência de piqueteros, desempregados, 
jovens sem perspectivas de trabalho, familiares de desaparecidos e setores médios 
confiscados que superou o dique repressivo de contenção de uma democracia 
esvaziada de consciência cívica e descompromissada com o porvir da população. 
A população procurou saídas diante da crise de governabilidade e se organizou 
37
de múltiplas formas para contornar uma situação dramática: sem presidente, sem 
sucessores, sem dinheiro, com bancos fechados, com o comércio fechado e boa 
parte da vida produtiva do país paralisada. Foi nesse momento que começaram a 
surgir novas formas de organização social, algumas micro, outras mais complexas. 
Assembléias vizinhais (barriales), feiras de troca (trueque), novos movimentos 
piqueteros, ações de ocupação e recuperação de fábricas, entre outras práticas, foram 
iniciativas que marcaram uma refundação cidadã que objetivava reconfigurar, sob 
certa forma, o Estado e os métodos tradicionais de fazer política.
O caso mais emblemático dessa reconfiguração de experiências coletivas e 
solidárias para enfrentar situações tão adversas, a margem de partidos e sindicatos 
foi o movimento pela recuperação de fábricas. Nesse sentido, a ação pela 
manutenção dos postos de trabalho veio acompanhada pela iniciativa de incorporar 
e apropriar-se de saberes e funções não habituais, de desenvolver uma cultura de 
trabalho cooperativo e autogestionário e a criação e experimentação de redes de 
apoio comunitárias, interligando a unidade produtiva e fonte de trabalho, direta ou 
indireta, para muitas famílias do entorno barrial com as outras unidades produtivas 
ou prestadoras de serviço da vizinhança, passando pela própria discussão das 
prioridades comunitárias (escolas, creches, posto de saúde, etc) em profícua interação 
com as fábricas retomadas, sobretudo quando elas são fator vital de recuperação do 
conjunto global da comunidade. 
Símbolo de toda essa luta tem sido a fábrica de cerâmica Zanon (na província 
de Neuquén), a maior de todas as unidades recuperadas (com sete anos de 
experiência em andamento) e que tem enfrentado tentativas de retomada, por parte 
dos antigos proprietários, problemas de financiamento e de concorrência e a falta 
de apoio público; mesmo assim, tem resistido e conseguido aumentar índices de 
produtividade e incorporado mais trabalhadores a sua linha de produção. 
Apesar do revigoramento e da renovação de experiências inéditas, observadas, 
estudadas e analisadas internacionalmente, o paradoxo argentino apresenta uma 
frustrante surpresa. A criatividade e ousadia política para encontrar saídas coletivas 
àquela conjuntura acabou sofrendo erosão e acentuado refluxo poucos meses depois 
da queda de De la Rua. A institucionalização de uma saída provisória com o governo 
Duhalde e, posteriormente, a consolidação eleitoral de Nestor Kirchner, recuperou a 
dinâmica política de perfil mais tradicional e caudatária dos mecanismos históricos 
da cultura peronista. A estabilidade institucional apoiada pelos setores médios, 
como forma de esvaziar processos mais radicais, obteve resultados concretos. 
A volta à normalidade significou esvaziar correntes e lideranças mais radicais, 
recolocar a tradição sindical como mecanismo de

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