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O discurso na contemporaneidade: materialidades e fronteiras Organizadoras ◆ Freda Indursky ◆ ◆ Maria Cristina Leandro Ferreira ◆ ◆ Solange Mittmann ◆ Editora Claraluz 1ª Edição - São Carlos 2009 Coordenação Editorial Editora Claraluz ® Impressão e Acabamento Prol Gráfica Diagramação Tiago Pavan Elaboração de Capa Canal 6 Conselho Editorial Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes (UFU) Prof. Dr. Hermes Renato Hildebrand (UNICAMP) Profa. Dra. Maria do Rosário Gregolin (UNESP) Profa. Dra. Marisa Martins Gama Khalil (UFU) Prof. Dr. Nilton Milanez (UESB) Prof. Dr. Pedro Navarro (UEM) Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Prof. Achille Bassi, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação – ICMC/USP O discurso na contemporaneidade: materialidades e D611 fronteiras / Freda Indursky, Maria Cristina Leandro Ferreira, Solange Miittman, organizadoras. 1ª edição. São Carlos : Claraluz, 2009. 464p. ISBN 978-85-88638-44-0 Discurso. 2. Contemporâneo. 3. Subjetividade. 4. Fronteiras. 5. Materialidades. I. Indursky, Freda, org. II. Ferreira, Maria Cristina Leandro, org. IV. Mittmann, Solange, org. V. Título. www.editoraclaraluz.com.br SUMÁRIO I PARTE : FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE Eni Orlandi Historicidade, indivíduo e sociedade: o sujeito na contemporaneidade 13 Enrique Serrano Padrós Movimentos sociais: o paradoxo argentino e os desafios do tempo presente 29 Bethania Mariani Sujeito e discursos contemporâneos 43 Bernardo Kucinski Reflexões sobre o impacto da internet no campo do jornalismo 53 II PARTE : TEORIA E ANÁLISE EM PERSPECTIVA 1 – Língua, hiperlíngua e arquivo Suzy Lagazzi Recorte significante na memória 65 Kátia Menezes de Sousa “Os homens loucos por sua língua” e a sexualidade transformada em textualidade 79 Cristiane Dias A língua em sua materialidade digital 89 José Horta Nunes Discursividades contemporâneas e dicionário 99 Nádia Régia Maffi Neckel Tecedura e tessitura do discurso artístico da/na produção audiovisual: materialidades fronteiriças 107 Carolina Fernandes O ciberespaço no confronto de sentidos: uma nova leitura de arquivo 117 Fabiele Stockmans de Nardi Língua, cultura e competência: questões para o ensino e o discurso 125 Mónica Graciela Zoppi Fontana O acontecimento do discurso na contingência da História 133 2 - Real da língua, do sujeito, da história e do discurso Helson Flávio da Silva Sobrinho Os andaimes suspensos do discurso nos alicerces do real 147 Simone Hashiguti O corpo como materialidade do discurso 161 Rosane da Conceição Pereira Subjetividade e política de língua no discurso publicitário para o ensino de português no Brasil 169 Anne Francialy da Costa Araújo Uma língua no lugar do Um: efeitos reais de uma nomeação 183 Marluza Terezinha da Rosa Da (im)possível definição de língua no discurso do sujeito pesquisador em linguagem 193 Leda Verdiani Tfouni, Paula Chiaretti A mulher: inexistente ou evidente 205 Leda Verdiani Tfouni, Marcella Marjory Massolini Laureano As marcas do real e o equívoco da língua 2153 3 - Interdiscurso, pré-construído, discurso transverso e memória Lucia M.A. Ferreira Interdiscurso e memória: nas tramas dos discursos sobre a mulher 223 Patricia Laubino Borba O discurso do esquizofrênico e a apropriação do discurso-outro 233 Luiza Kátia Castello Branco O discurso sociolinguístico sobre a língua de cabo verde: lugar de encontro da memória e do interdiscurso 243 Carla Letuza Moreira e Silva Memória, atualidade e possibilidade: a polêmica do discurso do Referendo das Armas na mídia impressa 253 Luciana Nogueira A designação da palavra integração em documentos de constituição da ALCA: o processo de nominalização 267 Ângela de Aguiar Araújo A temporalidade discursiva: o deslizamento do enunciado “Brasil, país do futuro” no discurso jornalístico 281 4 - Ideologia, historicidade e condições de produção Carme Regina Schons, Solange Mittmann A contradição e (re)produção/transformação na e pela ideologia 295 Marci Fileti Martins O que pode e deve ser dito sobre ciência no discurso da divulgação científica: “Nós precisamos da incerteza, é o único modo de continuar” 305 Maria Virgínia Borges Amaral Evidências de responsabilidade no discurso do pacto global 317 Verli Petri A emergência da ideologia, da história e das condições de produção no prefaciamento dos dicionários 329 A. Martín de Brum Alguns pressupostos teórico-metodológicos da teoria funcional da tradução: elementos para uma teoria discursiva da tradução 337 Ivânia dos Santos Neves A invenção do índio: ideologia e história 347 Águeda Aparecida da Cruz Borges Índios Xavante X não-índios na cidade de Barra do Garças/MT: gestos de interpretação discursiva 357 5 - Escrita, efeito-sujeito e autoria Evandra Grigoletto, Carmen Agustini A autoria na escrita de adolescentes: interfaces entre o virtual e o escolar 369 Cleudemar Alves Fernandes Exterioridade e construção identitária em Pierre Rivière 381 Maria José Coracini Escrita de si, assinatura e criatividade 393 Eliane Marquez da Fonseca Fernandes A escrita e a reescrita: os gestos da função-autor-leitor 405 Wilton Divino da Silva Júnior Os mecanismos d’a ordem do discurso e a construção da autoria no Evangelho de Saramago 417 Maíra Nunes Um autor à esquerda? Copyleft e autoria na contemporaneidade 429 Viviane Barriquello Autoria e leitura: nas telas do discurso virtual 439 Eduardo Alves Rodrigues A relação verbal vs. não-verbal sob a sombra da autoria em “Substãncia”, de J.G.Rosa 451 9 APRESENTAÇÃO Como vimos fazendo desde a primeira edição do SEAD, em 2003, reunimos no presente volume uma amostra bastante representativa da pesquisa que se vem fazendo em Análise do Discurso no Brasil. Neste volume, reunidos em torno de um eixo temático que discute as especificidades e tendências do espaço discursivo brasileiro, o leitor encontrará trabalhos de autores já consagrados na área, ao lado de novos pesquisadores, que enriquecem, revigoram e mantêm em constante renovação o campo sempre efervescente do discurso. O discurso na contemporaneidade: materialidades e fronteiras expõe os fundamentos teóricos e metodológicos da Análise do Discurso realizada do Brasil a partir do legado de Michel Pêcheux. Resultado das discussões promovidas no III SEAD - Seminário de Estudos em Análise do Discurso, realizado em 2007 em Porto Alegre, esta obra reflete sobre fronteiras e interfaces epistemológicas, com atenção para os discursos contemporâneos. É nesse sentido que a primeira parte do livro, Formas de subjetivação na contemporaneidade, se apresenta como um diálogo entre Análise do Discurso e áreas que têm o discurso e a subjetividade como seu objeto de estudo. Nesse diálogo, são abordados a construção simbólica do sujeito pelo Estado e pelos movimentos sociais urbanos, o olhar artístico e psicanalítico sobre o sujeito da arte contemporânea, o questionamento político sobre o sujeito da imprensa no universo digital. A partir dessa proposta, será possível, então, encontrar aqui um forte, singular e harmonioso panorama das questões envolvendo o sujeito na contemporaneidade, sob a ótica muito particular de analistas de discurso, psicanalistas, historiadores e jornalistas, os quais, cada um com suas filiações e estilos, traçam um percurso novo e diferenciado na forma de abordar essa temática. O próprio caráter da teoria, de sempre rediscutir-se, exige dos analistas do discurso posicionamentos a respeito das fronteiras entre as noções teóricas e frente às materialidades discursivas da contemporaneidade. Assim,as reafirmações de nossa filiação e os avanços teóricos e metodológicos impostos pelas novas materialidades discursivas costuram os capítulos da segunda parte do livro: Teoria e análise em perspectiva. Para organizar essa segunda parte, centramos o foco em cinco pontos referenciais que, sob nosso juízo, representam, na cartografia do discurso, as direções de sentidos mais produtivas da pesquisa atual e que revelam muito de perto sua inquietante movimentação. Referimo-nos (1) à língua, aos desafios trazidos pela hiperlíngua e ao trabalho sempre instigante com o arquivo, em suas diferentes concepções; (2) à série produtiva da noção de real e seus desdobramentos, cuja dimensão mais completa ainda buscamos, em conceitos como o equívoco, o inconsciente, a ideologia e o silêncio; (3) às fronteiras e atravessamentos entre interdiscurso, pré-construído, • 10 discurso transverso e memória, cuja distinção não cessamos de reivindicar; (4) à historicidade e à opacidade do imbricamento entre o lingüístico e o histórico, assim como o efeito de transparência da ideologia e, por fim, (5) à escrita, efeito-sujeito e autoria, que põe em jogo o efeito-autor, com todas suas conseqüências para a deriva e migração dos sentidos. Esperamos contribuir com a presente obra para divulgar a pesquisa de ponta que vem sendo feita no Brasil nos domínios do discurso. Pesquisa que não se cinge aos limites da área, mas busca com coragem e ousadia as contradições e dissintonias com os campos vizinhos, sem perder a fidelidade referencial e sem submeter-se a modelos fundadores. Pesquisa que constrói com clareza e sem concessões o campo brasileiro da Análise do Discurso. As Organizadoras PARTE I FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE 13 HISTORICIDADE, INDIVÍDUO E SOCIEDADE: O SUJEITO NA CONTEMPORANEIDADE Eni P. Orlandi (Labeurb/Unicamp) Mas onde cresce o perigo cresce também o que salva(?) Introdução Nosso objeto de reflexão é a relação entre o indivíduo e a sociedade, procurando compreender a forma e a necessidade dos movimentos sociais urbanos que, mal metaforizados, resultam na delinqüência – e ligamos a palavra delinqüência a de- linquo que significa des-ligar, enfraquecer, pensando justamente a necessidade do sujeito histórico e simbólico de praticar laços sociais (E. Orlandi, 2004). Teoricamente, estabelecemos como quadro de referência uma teorização do sujeito (E. Orlandi, 2001) onde refletimos sobre a interpelação do indivíduo em sujeito (forma histórica do sujeito capitalista, sustentado pelo jurídico) e sua individualização pelo Estado, resultando daí um sujeito ao mesmo tempo livre e responsável. Visamos compreender o sujeito da modernidade e os movimentos sociais urbanos face à necessidade de se constituírem políticas públicas sustentadas na organização do consenso. Já analisamos - para compreender como este indivíduo se encontra na nossa formação social em que há uma sobredeterminação do social pelo urbano - o sujeito do grafite, do piercing, da tatuagem e do rap, o menino do tráfico (Falcões) que, em seu conjunto, constituem a produção do que tenho chamado de discurso urbano. Sentindo necessidade de situar a conjuntura social e histórica de nossa reflexão, atualmente, entram para nossas considerações o mundo globalizado e as tecnologias de linguagem (tanto o mundo eletrônico como a mídia). Mais especificamente, e dada a conjuntura sócio-política contemporânea, estamos também refletindo sobre a migração, a mundialização, e as tecnologias de linguagem como pano de fundo em que sobressaem a criminalidade/delinqüência, a guerrilha, o terrorismo. Que resultam na divisão maniqueísta entre o Bem e o Mal. Tudo isto bem sustentado por discursividades que se apóiam na tensa contradição entre, de um lado, a expectativa de uma democracia planetária ilusória e, de outro, a prática de uma real economia ditatorial. O político aparece nessa conjuntura como argumento. De certa forma, ligado a este discurso da mundialização, da globalização, há também um discurso sobre a subjetividade que gostaríamos de trazer para esta reflexão. • 14 Na consideração deste sujeito da modernidade, somos sensíveis ao que diz Melman (2005) sobre a “nova economia psíquica”. Ontem, diz Jean Pierre Lebrun (2005), na introdução ao livro de Melman, mesmo os provérbios e as máximas lembravam ao sujeito que tudo não era possível (Não se pode ter tudo), que é preciso assumir as conseqüências de seus atos (Quem semeia vento colhe tempestade). Hoje, os adágios evocados são os que falam de um sujeito que quer tudo (Ele quer o pão e o queijo). Que pensa poder tudo. Constata-se a dificuldade dos sujeitos hoje de disporem de balizas tanto para esclarecer a tomada de decisões como para analisar situações às quais se confrontam. É espantosa diz Lebrun (idem), em um mundo caracterizado pela violência, uma nova atitude diante da morte (eutanásia, enfraquecimento dos ritos), a demanda do transexual, as coerções ou mesmo as imposições do econômico, a emergência de sintomas inéditos (anorexia masculina, crianças hiperativas), a tirania do consenso, a crença nas soluções autoritárias, a transparência a qualquer preço, o peso do midiático, a inflação da imagem, a alienação no virtual (jogos de vídeos, internet) a exigência do risco zero etc. Eu acrescentaria a corrupção e a impunidade. Não se trata, segundo o autor, de evocar simples modificações no social e suas incidências sobre a subjetividade de cada um, mas de examinar uma mutação inédita que está produzindo seus efeitos. O autor Melman (2005) se propõe a refletir sobre isso e analisar essa crise de referências. Pensando a subjetividade e o futuro psíquico do homem contemporâneo, ele debate as questões sobre o fato de que o homo faber cede lugar ao homem fabricado e, neste caso, ele se interroga sobre esses homens novos – esses homens sem gravidade, quase mutantes – que nós temos que compreender. Segundo Melman há emergência de uma economia psíquica que não existia antes. As que existiam eram de oposição (revolta, marginalidade etc). Hoje não é um movimento de oposição é um movimento que se faz sobre seu próprio impulso. Passa-se de uma economia organizada pelo recalque para uma economia organizada pela exibição do gozo. Não é possível abrir uma revista, diz Melman (ibid), admirar personagens e heróis de nossa sociedade sem que eles sejam marcados pelo estado específico de uma exibição do gozo (fruição). Isto implica deveres radicalmente novos, impossibilidades, dificuldades e sofrimentos diferentes. Há um progresso que traz suas ameaças. Tem-se efetivamente como medida que o céu é vazio, tanto de Deus como de ideologias, de promessas, de referências, de prescrições e os indivíduos têm de se determinar eles mesmos, singularmente e coletivamente. Este é o sujeito que vemos teorizado no Velho Mundo, nos países ricos. Queremos ver em nossa reflexão como isto se passa no sul do planeta. Que ecos vivemos nos países pobres. O que se passa com os que, por necessidade histórica, seriam mutantes, mas que, pelas razões da dominação, da ideologia capitalista, não podem sê-lo. Os mutantes, sem as condições favoráveis do capitalismo, estes, que são o resto, também são os monstros? Como significá-los em suas condições? 15 Mundialização A mundialização (L. Carroué, 2005) é um processo geo-histórico de extensão progressiva do capitalismo em escala planetária e que é ao mesmo tempo uma ideologia (O liberalismo), uma moeda (o dólar), um instrumento (o capitalismo), um sistema político (a democracia), uma língua (o inglês). A mundialização tal como a conhecemos hoje data de um século e meio e seu processo não é linear (S. Brunel, 2007). Vem desde o fim da Guerra Fria, da era da comunicação “sem limite”, fim da URSS e desemboca no mito da Democracia.Alguns fatos concorrem para isto: os movimentos migratórios e a mobilidade populacional. Estes, por sua vez, não são um fato sem polêmica: muitas vezes são mais sugeridos que existentes, Isso nos leva a concluir que são espaços idealmente abertos, mas concretamente fechados, materializando as novas divisões: Norte/Sul; Oriente/Ocidente. A mundialização é mais falada que praticada. Mas nem por isso deixa de ter seus efeitos. Como sabemos o imaginário tem fortes conseqüências sobre o real. Podemos mesmo adiantar que há uma formação ideológica capitalista dominante e que se pratica através da projeção de inúmeras formações discursivas que formam um complexo a dominante: a formação discursiva da mundialização, com a formação discursiva da migração, formação discursiva da ecologia, formação discursiva do terrorismo, formação discursiva da delinqüência etc. Esse complexo de formações discursivas é a manifestação, na linguagem, do fato de que o capitalismo mantém-se em sua dominância, praticando-se, para não ser deslocado, por estas diferentes falas da mundialização. Sustentadas por um mal estar de raiz: o preconceito. Que sujeito? Antes mesmo de entrar na questão do sujeito que se constitui nestas condições sócio-histórico-ideológicas, gostaria de realçar algo que venho dizendo ao longo de minhas reflexões. A forma-histórica do sujeito que estamos analisando é a forma-histórica sujeito capitalista. Por outro lado, mesmo havendo um deslocamento nas formas como o capitalismo se pratica e estabelece suas relações de poder, ainda assim continuamos no domínio ideológico do capitalismo. Por isso, o que dissemos antes deve marcar uma nossa posição que não visa reproduzir o discurso da inclusão, o que visa transformar o dominado, o excluído, para adequá-lo às formas dominantes seja da cultura, seja do conhecimento, seja da classe social, nem tampouco o que pretende inserir o não inserido, ou integrar o não-integrado (os apocalípticos?), ou seja, falar do lugar em que a gestão pública se coloca como lugar do assistencialismo, do multi- culturalismo, do comunitarismo, face à ideologia da mundialização. Não supomos também que temos de um lado o sistema capitalista e de outro agentes/sujeitos/ 16 posições-sujeito inertes. Para nós tanto uns como os outros estão em movimento e se transformam. Interessa-nos pensar nos sentidos que a dominação e a resistência tomam nessa relação, já que tanto a estruturação como a desestruturação delas levam ao movimento da sociedade na história. Já que o tal consenso sobre o qual se apóiam as políticas “públicas” é um consenso imaginário, constituído no jogo do jurídico – que estabelece as bases da estrutura e funcionamento do capitalismo – e o administrativo, que se sustenta nas formas materiais da mundialização com suas práticas assistencialistas, multi-culturais e comunitaristas. Uma vez isto esclarecido, passemos à exposição do que é ou de quem é este sujeito da modernidade. Sujeito cujo percurso traçamos acima. Controlado em seu ir e vir, dividido entre o Norte (rico) e o Sul (pobre), submetido a redes de informação e comunicação, ameaçado em seus processos de memória, sujeito à delinqüência, à violência, ao terrorismo, sem falar das ameaças ambientais etc, no entanto, “livre”, “democrático”, “multi-cultural”, “comunitário”, “cidadão”. O espaço significativo da violência: ambiência e condições de produção Podemos pensar o “espaço” face à cidade como parte das condições de produção que constituem a prática significativa da/na cidade. Concebido desse modo, o espaço (urbano) é o enquadramento dos fenômenos ou práticas que acontecem na cidade (P. Henry, 1998, texto sem título e data). Estamos considerando o espaço como parte do acontecimento discursivo urbano. E nele incluímos o sujeito. Esta idéia de espaço como enquadramento permite-nos trabalhar com a forma e os meios materiais que constituem o espaço urbano como espaço significativo. O que isto quer dizer? Quer dizer que os sentidos são determinados pelas condições de produção, nesse caso, pelo modo como o espaço enquadra o acontecimento urbano. Para nós, enquadrar significa aqui determinar o espaço de significação. Uma pessoa atravessando a rua experimenta sentidos do espaço urbano que é diferente de uma pessoa atravessando a cidade em um ônibus. Porque sua experiência do espaço urbano é diferente. São condições de produção diferentes. São diferentes características e efeitos da ambiência. A maneira como as pessoas se posicionam em uma fila para retirar seu dinheiro no banco ou a maneira como as pessoas se posicionam em uma fila, desde a madrugada, para conseguir uma vaga para seus filhos em uma escola pública, são diferentes porque constituem espaços de significação urbanos diferentes, com diferentes efeitos de sentidos. São dis-posições diferentes do espaço (do sujeito e dos sentidos), dadas a condições de sua produção. Daí se conclui portanto que o espaço significa, tem materialidade e não é indiferente em seus distintos modos de significar, de enquadrar o acontecimento. Thibaud (2002) com a noção de “ambiência” procura compreender como os 17 moradores da cidade experienciam, percebem e usam lugares públicos. Segundo Thibaud é preciso distinguir entre o ambiente que é perceptível e o que não é perceptível. O primeiro é o que se pode ver, escutar, cheirar ou tocar e que podemos chamar de ambiente sensorial. Ele se relaciona diretamente à experiência e ao comportamento das pessoas na sua vida cotidiana. Deste ponto de vista podemos observar as relações entre os moradores e o ambiente construído. O segundo ambiente é o que não é diretamente perceptível, o extra-sensorial. Por exemplo, há produtos químicos que não são percebidos, a água pode estar poluída e não percebermos etc. Ele questiona a psicologia ambiental que é base da política ambiental por simplificar demais o modo como trata a percepção da ambiência. A dimensão humana está aí super-simplificada, segundo Thibaud. As pessoas não podem ser reduzidas a sujeitos médios idênticos entre si e não reagem do mesmo modo ao ambiente. Além disso, as pessoas não são sujeitos isolados. O ambiente é uma construção social. Enfim, não se deve reduzir o ambiente a seu aspecto físico e sim pensar o físico articulado ao social. Sai-se assim de um modelo baseado em estímulos para um ambiente baseado na experiência. Eu acrescentaria: se observaria o ambiente em suas práticas sociais. E concordo com o autor quando ele diz que o ambiente da vida cotidiana é mais significativo do que parece, pois ele é a espinha dorsal e o fundo sobre o qual construímos a base de nosso modo de ser-no-mundo. Eu diria que a pergunta que fica então é a de como o ambiente significa naquilo que nós significamos. Aqui podemos retomar a noção de condições de produção tal como a tratamos na análise de discurso e aproximá-la da noção de ambiência quando esta não se reduz ao físico e, nos termos de Thibaud, torna-se um dos termos incontornáveis na concepção arquitetural e da ecologia urbana. É então que Thibaud aproxima a noção de ambiência da de “qualidade difusa” de Dewey(1931) e, ao fazê-lo, às contribuições de ordem essencialmente técnica e instrumental, ele junta uma reflexão sobre sua dimensão estética, sensorial, e social. É uma abordagem como ele diz, qualitativa do meio ambiente sensível. Penso que é aí que podemos introduzir, pela aproximação com a noção de produções de condições (sujeito, situação, memória constitutiva), a questão da linguagem, do discurso, do confronto do simbólico com o político. E teremos uma noção de espaço não mais tecnológica mas significativa. Deixa-se de ter uma noção de espaço instrumental e idealista, sai-se do domínio dos projetos e do construído para a noção de processo de produção de um espaço em que entra a percepção e a prática pública. A noçãode ambiência passa então a se relacionar com um espaço com suas características formais, materiais, físicas e plásticas. O que ele denomina de dimensão sensível do espaço eu denominaria, pela análise de discurso, de dimensão significativa, onde se juntam o físico e o espacial (material) e o humano, o simbólico. Ou seja, é aí que a questão do espaço se articula à do sujeito, em termos da significação. O modo de se 18 significar um espaço vai de par ao modo como são significados os sujeitos desse espaço. A questão do campo difuso está em que o sujeito percebido no mundo nos coloca em contato com a globalidade de uma situação. Eu diria que é a conjuntura significativa que está funcionando, ou seja, não só as condições imediatas e sócio-históricas como a memória discursiva, a filiação de sentidos em sua rede. Veremos como, na análise que fazemos mais adiante do menino do tráfico isto é presente: o que cria aquela situação de violência que está por todo lado? A forma das casas, a falta de espaço amplo e livre, as feições do menino? A situação é um todo, dada sua qualidade difusa perceptível. É a situação como uma totalidade unificada. A experiência engaja um pano de fundo indeterminado na base do qual se individualizam os objetos ou acontecimentos em questão. Aí também se individualizam os sujeitos.Este pano de fundo não pode ser discriminado precisamente justamente porque ele é que dá a fisionomia geral do que pertence a situação. Do nosso ponto de vista discursivo, este pano de fundo nos mostra o engajamento simbólico que nos remete por sua vez à memória discursiva. É isto que dá a unidade pressentida de uma situação, da ambiência, enquanto pano de fundo. O experimentado. O já significado sócio-histórica-politicamente. O que se chama de qualidade difusa, penso que podemos considerar como o enquadramento de que falamos mais acima, que assegura um campo, uma unidade sensível da situação, enquanto um domínio de experiência (não contexto mas práticas lingüístico- discursivas). Daí, diante de um espaço, se tem “uma impressão dominante global”. E quando penso nos “falcões” esta impressão, este sentimento é o de insegurança, de impossibilidade, de confronto com a morte. Percebemos objetos e acontecimentos e experimentamos ou sentimos a situação, a ambiência. E ela é tácita, inconsciente, mas se manifesta. Nos meninos de tráfico, posso dizer que esta sensação é forte, difusa, é experimentada e fica inscrita na memória. Como existe neles mesmos? Que efeitos produz? Aquilo que os afeta tão profundamente, que não começa ali e que não pode nem mesmo ser descrito em termos “objetivos”. Temos nas condições de produção, pensado como ambiência, um campo mas é ao mesmo tempo um processo, instável, com tensões, conflitos. Instala-se uma sensação de inquietação, ou de prazer etc. E isto não é só um estado pessoal ou subjetivo mas também, eu diria, material, concreto. Segundo Thibaud, a ambiência nos coloca em uma certa disposição afetiva. Mais à frente falaremos do sentimento de “humilhação” como parte da individualização dos sujeitos na sociedade capitalista. Mas eu penso que isto é mais complexo e tem a ver com o funcionamento das condições de produção e com a ideologia. Uma certa “ambiência”, uma certa situação é constituída por certas condições de produção e como somos sujeitos ideologicamente constituídos, uma situação se carrega de sentidos e nos coloca em uma certa disposição (afetiva diz Dewey) significativa. Isto que estou chamando disposição significativa é o efeito ideológico. Tudo isso se 19 dá porque o ser, o sujeito é levado por uma exigência de organizar sua atividade em uma totalidade integrada e significante. Se assim é (e aí não falaríamos em atividade mas prática) o que se passa com o Falcão que vive sem as mínimas condições de integrar suas práticas em uma totalidade significante (vivendo “do lado certo na vida errada”)? O movimento do corpo não se faz em um espaço vazio mas um espaço de interpretação afetado pelo simbólico e pelo político, dentro da história e da sociedade. Dar conta do caráter ordinário da vida em comum supõe esclarecer de modo novo o problema da compreensão do pano de fundo, implícito: fundo comum para as relações sociais, condição para a sociabilidade pública. Consensual. Devemos problematizar o laço social em termos desta inter-coporalidade, dessa coreografia tácita de que tomamos parte mesmo sem saber. Questionar o ordinário permite colocar à prova o sentimento de familiaridade como componente fundamental do habitar mostrando a existência de uma “base comum”, um consenso produzido1 , que nos liga uns aos (e contra) os outros. Daí que para analisar o espaço não podemos vê-lo apenas como paisagem. E nos confrontamos então, segundo Thibaud (idem), com a categoria do familiar, com a espacialidade, com a hospitalidade, que são três dimensões essenciais do habitar. E o que é habitar? É entreter uma relação de familiaridade com o mundo pela qual damos sentido ao nosso entorno. É investir um espaço de sua presença o que significa lhe dar corpo integrando os sentidos em uma dinâmica de conjunto. É tornar um espaço hospitaleiro, engajando gestos elementares nos ligando uns aos outros. Dar evidência ao poder expressivo que constitui o estar-junto (Thibaud, idem). Como veremos a seguir, estas três definições do habitar mostram que, no caso que tomamos como exemplo, o dos meninos do tráfico, se há algum sentido em habitar, certamente está longe de ser o que apontam estas definições. Violência e processos de individualização dos Sujeitos na contemporaneidade2 “O crime realizou muito sonho meu”(Falcão, meninos do tráfico) Tenho insistido em analisar materiais que possam me dar indicações sobre os processos de individualização do sujeito contemporâneo. Para isto tenho analisado manifestações do discurso urbano tais como o grafite, a pichação, o piercing, o rap, a tatuagem (E. Orlandi, 2004). De minhas análises restou que se pode reconhecer - pensando a relação desse sujeito assim individualizado, com o corpo político, de que recebe por este mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade - a forma da pessoa pública, 20 esta correspondendo a uma forma de individualização, o sentimento de ser Um, no todo da sociedade. É a forma de individualização em relação à sociedade em geral, de que resulta o “eu comum”. Mas, como diz Bataille (1946): o pertencimento de fato não esgota o desejo que têm os homens de estabelecerem com seus semelhantes um laço social. Daí a necessidade de, além da comunidade de fato (família, Igreja, empresa, nação etc), estabelecermos comunidades segundas (as que temos vontade de eleger, em que nossos desejos podem ser satisfeitos). É para ela que se dirige nosso imaginário. Essas comunidades segundas são “grupos em que cada um pode desempenhar seu desejo de reconhecimento como o reconhecimento de seu desejo e de seu ser”. Pois bem, o que acontece com este sujeito quando pensamos, no Brasil, a violência, mais precisamente quando pensamos um sujeito como está retratado em Falcão, meninos do tráfico? E esclarecemos que os tomamos apenas como exemplares dos milhares que estão pelas ruas.E esta é a palavrinha chave. Rua. Que está presente na expressão “meninos de rua”. São eles uma “comunidade”? Um “grupo social”? Como se relacionam com o movimento na/da sociedade? Meninos de rua inclui o Falcão, menino do tráfico? a) As formas da sociedade no Estado Segundo Schaller (2001) as relações sociais já não se estruturam como antes. Não temos mais a representação de classes, verticais, formando uma pirâmide em que estariam na base os mais pobres e no ápice a classe alta, podendo haver mobilidade em relação à ascensão. Os sujeitos seriam então incluídos ou excluídos socialmente. Já não é assim. Contemporaneamente, a relaçãonão é de classes, segundo este autor, mas de lugares e se representa horizontalmente: ou se está dentro ou se está fora. As relações não são de inclusão/exclusão mas de segregação. Uma vez segregado, é impossível ao sujeito entrar nas relações sociais3. Há inúmeras teorias (por exemplo Lewkowitz e outros) que sustentam o esgotamento do Estado enquanto articulador simbólico e a sua redução ao técnico, administrativo, como ator coadjuvante enquanto o papel definidor é o da sociedade de mercado. Sem negar a força do mercado contemporaneamente, a nosso ver, quando pensamos o Brasil, não diríamos que o Estado já não exerce sua função de articulador simbólico. Penso que temos de conviver com a ambigüidade produzida pela existência de sociedades de mercado e com a nossa, em que o Estado tem seu funcionamento justamente regido por sua falta e afetado pelas sociedades de mercado. Ou seja, é em sua falta que o Estado existe e exerce seu poder articulador do simbólico com o político. Em suma, o Estado funciona pela falta, produzindo o que chamamos de sem-sentido, que não é um vazio, mas um modo de estar na relação do político com 21 a significação, estagnando-a no já-significado. Assim é que, nossa posição é de que temos de compreender os novos termos de dominação, através da compreensão de como se confrontam o simbólico com o político, nesses termos. b) O corpus Do PCC, sobre o telhado de um presídio “Liberdade para nossos presos”. De Marcola, no Caros Amigos, algumas palavras de seu depoimento à Comissão Especial – Combate à Violência, da Câmara Federal: “Deputado: E onde foi parar esse dinheiro? Marcola: Foi pago em extorsões feitas pela Polícia Civil e Polícia Militar. Deputado: Vocês pagaram? Marcola: Eu paguei Deputado: E a quem pagaste todo esse negócio? Não, isso eu não digo, porque NÃO TEM SENTIDO eu dizer que o policial, o fulano ou sicrano é corrupto, sendo que o sistema penitenciário não reabilita ninguém. A partir do momento em que o sistema tiver condição de reabilitar um ser humano, vou dizer quem é o policial corrupto(...)”.. Do livro Falcão meninos do tráfico, temos inúmeros enunciados. Vamos exemplificar através de alguns: “Criou uma mágoa dele mesmo, que até então eu comecei a entrar nessa vida que eu to agora, A VIDA DO CRIME, DO LADO CERTO NA VIDA ERRADA” “As crianças não são chamadas de traficantes mas de meninos.” Se os cana chegar aqui, não tem essa de trabalhador, não, eu sou bandido. Na realidade, eu não sou bandido, mas se eles chegar aqui eu sou. Pra eles, eu sou”. Amanhã ou depois tu morre, vários amigos já morreram assim.” “Os Falcões estão tão pobres que estão sem fé”. “Não eu não sou viciado, sou usuário”. “O que você quer ser quando crescer? Quero ser bandido”. “Você só vai botar a mão no que tu alcança”. c) Análise Retomemos o que colocamos em nossa introdução: como se individualiza o sujeito 22 contemporâneo? Pela leitura de nossos materiais de análise uma coisa se confirma: este sujeito se debate em uma falta de sentidos que vem do fato de que o Estado falha como lugar de articulação simbólica. Isto pode ser visto em várias ocorrências: Quando Marcola diz que não vai dizer o nome do corrupto porque não tem sentido dizer o nome dele pois o Estado, o sistema penitenciário não reabilita ninguém. Portanto a inscrição em uma instituição (sistema penitenciário ou família) que faça o sujeito individualizar-se em seu sentido não está funcionando nas atuais condições. Há muito, eles desistiram desse modo de inscrição. E usam o discurso institucional apenas como estereótipo, para responder ao modo como o outro pensa sua situação. Para eles mesmo este é um discurso sem-sentido. é só uma referência imaginária. Não faz mais nenhum sentido. É só para “engatar” na conversa com os “de fora”. Só existe “fora” do discurso deles. É parte do discurso “sobre” eles que eles repetem mecanicamente. No cotidiano eles matam, ou, como é o caso dos X9, eles matam e queimam. Outra coisa muito clara nestas falas é o fato de que a falta de sentido é a falta de espaço. Onde vivem? Em lugar nenhum. Eu durmo assim, em cima das lajes mesmo, fora de casa. Não tem como me esconder dentro de casa, porque se eu dormir, eu não sei nem o que pode acontecer.Falcão, ele só vê, não pode ser visto, não pode estar em lugar algum. Não tem um corpo reconhecido pela sociedade. É apenas o olho que vigia, do outro lado da lei, da sociedade. Não tem vida pública. Não é “comum”. Não existe. Não se significa no social. Não ter um lugar é estar dissolvido na fragmentação. Se os home chega aqui nóis vai ser tratado como bandido. Se pá, mete bala em nós, mata geral, nem leva de dura.(...) Na realidade eu não sou bandido, mas se eles chegar aqui eu sou. Pra eles eu sou. Atente-se para o fato do uso do “aqui”, do “espaço” como definidor, individualizador do sujeito: aqui ele é bandido para eles, os policiais. Não há espaço social e entre eles o espaço é disputado palmo a palmo. E como diz um deles: o limite é a rua. Lá todo mundo é igual. Não há opção: O que você vai ser quando crescer? Bandido. Quando o cara sai da cadeia sai neurótico. O cara sai com a maior marra de bandido. Portanto não há escolha, não há lado, não há sentido. O próprio sentido de crime, não faz sentido: “O que é crime? É cometer assaltos, é praticar o tráfico mas sem deixar de respeitar o cidadão comum”. E é assim que podemos entender o enunciado que me levou a esta reflexão. Um destes meninos conta que foi esbofeteado por um policial e acrescenta: criou uma mágoa dele mesmo, que até então eu comecei a entrar nessa vida que eu to agora. A vida do crime, do lado certo na vida errada. A vida é que está errada. O lado é certo. Mas se tentarmos mudar isto fica assim: A vida certa (?), do lado errado(?). Não há opção. Não há como des-virar este enunciado. Não há possibilidade de outro sentido. 23 Não há como estabelecer um (outro) sentido dentro desta ordem discursiva em que os processos de significação estão estabilizados em formações discursivas do capitalismo habitual: certo/errado, crime, bandido, menino/traficante etc. Contemporaneamente, há uma demanda social em que o jogo das formações, portanto a filiação de memória é outra. E, assombrados pela falta, pelo sem lugar, esses sujeitos vivem em cheio o sem-sentido, balançados de um lado para outro na sua insignificância para a sociedade e para a história. Na sua falta de “corporalidade” (no corpo social). Na sua inviabilidade. Em seu apagamento. Pois é essa a sua realidade. Já foram há muito segregados e nem chegam a ser um caso de polícia (repressão) só de extinção ( forma radical de segregação). Se há sentidos múltiplos e incertos eles não se sustentam numa racionalidade do Estado ou numa lógica do social mas na falta de espaço. Você só vai botar a mão no que tu alcança. d) Reflexões conclusivas provisórias Teriam os Falcões a impressão de fazerem parte de um grupo? Conseguiriam eles construir uma ilusão grupal capaz de “acalmar a angústia da cisão do sujeito?”. É-lhes possível imaginar-se em um corpo compacto que possui a liturgia e seus rituais comoventes em que a morte não entra? Ora, a morte é a experiência de seu dia-a-dia. Como habitar um espaço? Esta é a questão fundamental. E que espaço é este? São estratégias de subjetivação diversas – habitar, desacelerar, suspender etc – que trabalham sobre um mesmo material subjetivo: fragmentos e subjetividades fragmentadas. Fazer de um fragmento uma situação implica transformar cada situação em um mundo habitável. Pergunto-me - ainda que isto seja humanamente insuportável - se isto está ocorrendo com os meninos do tráfico, mas ocorre certamente com o pichador. Este é capaz, por seu gesto de simbolização, a letra, da produção de uma subjetividade capaz de habitar esse espaço e essetempo ao irromper no social com seu gesto não desejado mas possível, pelo traço, pelo signo, pela grafia. É instantânea. Pode nem durar. Mas se dá. O pichador não sucumbe ao sem-sentido, ao contrário, afetado pelo não-sentido, ele rompe em “outro” sentido. Momentaneamente. Isto ocorre com o “Falcão”? Penso que não. No abismo social em que ele vive, preso da fragmentação, ele não consegue, nem por um átimo, constituir uma situação. Ele é apenas um fragmento. Descartável. E o que acabamos de dizer mais acima mostra que o “Falcão” é pressionado pela falta de lugar, pela impossibilidade de se criar uma “situação”, de se produzir um espaço. Ele não habita. Não pode ir e vir. Creio necessário explicitar aqui a distinção que tenho feito (E. Orlandi, 1992) entre o “não-sentido” – que é o não-experimentado, o que ainda não significa mas por 24 uma necessidade histórica poderá vir a significar – e o “sem-sentido” , que é aquilo que já fez sentido e fica apenas em um imaginário imobilizado incapaz de significar. Aquilo que já não significa mais. Tornou-se in-significante. Isto quer dizer, nos termos em que estamos desenvolvendo nossa análise, que encontrar uma situação(um (outro) espaço) para o sujeito é encontrar um sentido e tornar possível o movimento de sua individualização: poder estar; instalar (se em) uma situação. Passar do não-sentido ao sentido possível, “de modo que o irrealizado advenha formando sentido do interior do não-sentido” (Pêcheux, 1975). Mas, nas condições em que vivem esses meninos, como fazê-lo, tendo o Estado como funcionamento da falta enquanto articulador do político com o simbólico, e tendo o tráfico como condição de vida? Ficando do lado certo, na vida errada. É a única resposta que nossa sociedade disponibiliza nesse momento. E que estes meninos dolorosamente su-portam. Face ao sem-sentido em que estão mergulhados. Há possibilidade de transformar este espaço? Eu, de minha parte, serei sempre pessimista enquanto a palavra “democracia” surtir seu efeito mágico...É preferível dizer que não sabemos o nome do que virá do que tentar usar as palavras que já se historicizaram enquanto cortantes sentidos da nossa humanidade. Humilhação ou Execração Pública? Situando-nos criticamente em relação à questão da mundialização mas sem desprezar seus efeitos, podemos observar outros modos de tratar desta questão. É sabido como P. Ansart (2007) desenvolve uma rica reflexão sobre os sentimentos na política. Não é de se estranhar portanto que desenvolvam-se atualmente estudos e discursos sobre a “humilhação”. Interessa-nos a humilhação enquanto ela se oferece como uma prática social. O nosso sujeito – menino do tráfico, o falcão – certamente poderia ser pensado como um sujeito humilhado. Mas seria muito fácil. Seria ajustá-lo à sociedade rica de consumo que nos mantêm, países pobres, ao sabor de suas políticas de força e suas teorizações. Alguns destes autores, remetem a questão da humilhação ao conceito de alienação em Marx (1844,1867). Caso em que o objeto produzido pelo trabalhador aparece como estranho e independente a ele. Alheio a si mesmo. Quanto mais valor o trabalhador cria, mais ele fica diminuído, mais sem valor e desprezível se torna (Marx, idem). Claudine Haroche (2007) discorre depois sobre o que faz a sociedade de consumo com o indivíduo: perda de singularidade, de criatividade, de imaginação, a consciência de si. E penso como os meus meninos do tráfico já estão longe de poderem ser incluídos numa descrição como essa. Para isso, teriam que ser contados entre os que teriam um mínimo de relação com a sociedade envolvente. Eu me 25 pergunto se posso considerar, no caso dos falcões, meninos do tráfico, o trabalho para o traficante como um trabalho. E o que isto acarretaria ao eu interior deste indivíduo. Haroche acrescenta a isso a busca da visibilidade, aspiração pela qual o indivíduo é valorizado, que acompanha novas formas de poder, de dominação econômica, política e social. O que, por sua vez, se acompanha de transformações no tipo de personalidade. A invisibilidade seria sinônimo de inutilidade, de insignificância, de inexistência. No nosso caso, lembremos que o falcão evita justamente a visibilidade. É o que vê mas não pode ser visto. Onde o falcão se ancora na sua busca de poder? Na sua capacidade de ser invisível. Aí é que ele ganha importância, existência, significância. Na sua imagem franzina, aí ele ganha poder. Logo, não é na sua visibilidade que ele busca poder. É na sua relação com o tráfico, no fato de carregar uma arma, de ser Falcão. As sociedades, segundo alguns autores, podem ser distinguidas em duas categorias opostas: a de transcendência e a do individualismo. Se somos uma sociedade do individualismo – e é o caso da sociedade contemporânea – a questão do outro se coloca imediatamente. Como a presença do outro é incontornável, o problema que se põe é o de como tratar este outro. E o que se pergunta Enriquez (ibid) é se “eu devo respeitar sua dignidade ou ao contrário eliminá-lo de uma maneira ou de outra pela violência, e fazê-lo, pois sucumbir sob o peso da humilhação” Ora, se pensamos o menino do tráfico e as nossas sociedades do Sul a representação que prevalece na vontade de humilhar é a de uma distinção central e definitiva entre duas espécies humanas: os capitalistas e os proletários, os colonizadores e os colonizados, os super- homens e os sub-homens, aqueles que têm o direito de viver e aqueles que não têm o direito de existir. E aqui penso no que desenvolvo neste trabalho sobre preconceito: o preconceito incide sobre a existência mesma do indivíduo, negando-lhe a vida. Continuando, Enriquez (idem) define o que é humilhar, nestas condições: consiste em colocar o indivíduo em uma posição em que lhe é impossível responder à violência sem se arriscar, onde ele só pode se submeter calado, se situar na “sombra do nome” de quem o humilha, ser obrigado a se identificar com o agressor, de experimentar a vergonha, de mentir ou dissimular para se proteger. Progressivamente ele perde sua identidade, sua estima e o respeito de si. Aqui reencontramos nosso Falcão. Ele perde seus direitos estabelecidos, recebe desprezo, ele já não pode “enfrentar o abismo” em pé, como diria Enriquez, citando Castoriadis. Mas creio que já se foi, com estes meninos, além da humilhação: o sentimento é de execração pública. Quando nosso menino do tráfico diz que “está no lado certo da vida errada”, não estaria ele dizendo que está tentando ficar em pé frente ao abismo? Sua vida não tem sentido para si nem para os outros. Ele pode desaparecer sem deixar traço. Enriquez continua a falar sobre a humilhação de forma muito interessante –mas creio que é uma humilhação que se endereça ao homem médio. O delinqüente não 26 está a seu alcance. Se volto ao que diz Castoriadis, “enfrentar o abismo em pé”4 , e se procedo discursivamente, podemos produzir aí um efeito metafórico, uma deriva, deslocando de uma formação discursiva para outra, o que é dito relativamente à humilhação. Desse modo, o menino do tráfico, quando afirma “eu estou do lado certo na vida errada” está afirmando que não está ao alcance da humilhação. Ele está fora das relações sociais que se apresentam como dominantes na formação social capitalista, e a humilhação só é possível nelas (assim como o pichador está fora do alcance da escola porque não escreve com letras do alfabeto). Se estivessem no interior dessas relações seriam humilhados. Eles se negam a isso. Estão no lado certo (“em pé”). Da vida errada (“enfrentando o abismo”). Eis o efeito de sentido produzido por este deslizamento, por esta deriva metafórica. Esses sujeitos, do modo como são individualizados na sociedade sobre a qual estamos refletindo, sociedade que se constitui na conjuntura da mundialização com todos seuscomponentes como expusemos neste estudo, não estão ao alcance do consenso. Por isso são, de certo modo, para nós, in-compreensíveis. Assim como são in-compreensíveis os sentidos do que sejam movimentos sociais5, quando pensamos a sua “legalidade” se não nos limitamos às definições dadas pelos que tomam como referência o sistema capitalista. E se não o fazemos, e pensamos que todo o tempo a sociedade e seus sujeitos estão em movimento na história, movimento que, barrado, não significado politicamente, explode em sentidos que estão na base da produção da delinqüência, da marginalidade, do terrorismo, da ilegalidade etc, nos tornamos, nós mesmos, in-compreensíveis. Sem dúvida é assim que posso ler o que diz o secretário José Mariano Beltrame, na Veja de 31 de outubro de 2007: “No Brasil, e no Rio de Janeiro em particular, a convivência promíscua entre o legal e o ilegal provocou uma situação ambígua (incompreensível?eu diria). Chegamos a um ponto em que precisamos decidir. A sociedade deve escolher de que lado está”. Ainda que fale em situação ambígua, para ele não há ambigüidade. De acordo com os padrões da sociedade capitalista há linhas nítidas que separam o legal do ilegal quando se trata do pobre, do delinqüente, da criminalidade categórica. E dentro do discurso neo-liberal, ainda que ele declare que, ao longo do tempo, a insegurança atual foi construída por interferência política irresponsável e ausência de políticas públicas, é a sociedade que deve escolher seu lado. Já que não se discute o que o Estado está fazendo nesta história. É o mesmo que dizer que podemos saltar fora da história e escolhermos onde estaremos. É claro que então estaremos do lado certo, na vida certa. É o que falta para significarmos que quem não está na vida certa são os que podem, devem mesmo, ser extintos (”vidas vão ser dizimadas”). São os que não merecem viver. E se argumenta que a “geografia” do Rio de Janeiro favorece a situação atual de guerra6. Como se o espaço da violência fosse apenas um espaço 27 empíricamente discernível. E, portanto, uma vez a sociedade decidindo de que lado quer estar, o outro lado (o lado da vida errada) fosse finalmente solucionado. É só o que nos falta para vivermos um capitalismo sem risco, seguro, sustentável, feliz. Bibliografia Bataille, G “Les sens moral de la sociologie” in Critique, Paris, 1946. Brunel, S. Qu´est-ce que la mondialisation, Sciences Humaines,nº 1805, Paris, 2007. Carroué, L. et alii, La mondialisation, genèse, acteurs et enjeux , Brésl, Paris, 2005. Castoriadis, C. Sujeito e verdade no mindo social histórico,Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2007. Castoriadis, C. As Encruzilhadas do labirinto,a ascensão da insignificância, Paz e Terra, São Paulo, 2002. Deloye e Haroche, Cl,(ed) Le sentiment d´humiliation, Paris, Ed. In Press, 2007. Enriquez E. “Croyances et mécanismes de défense dans les communautés”, in Esprit de corps , démocratie et espace public, Guglielmi et alii (org.), Paris: PUF, 2005. Enriquez E. in Deloye e Haroche, 2007. Guglielmi, GJ Esprit de corps, démocratie et espace public, Paris, PUF, 2005 Haroche, Cl. “Modèles de comportements et types d´aspirations dans les mouvements de jeunesse em Allemagne (1918-1933)”, in Esprit de corps, démocratie et espace public, Guglielmi et alii (org), Paris: PUF, 2005 Lewkowics et alii Del fragmento a la situación, Buenos Aires, Altamira, 2003. MV Bill e Celso Athayde Falcão,meninos do tráfico, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006. Marx K. O Capital(1867), Civilização Brasileira, 1980. Marx K. Manuscritos econômico-filosóficos (1844), Boitempo, Rio de Janeiro, 2005. Orlandi, E As Formas do Silêncio, Ed. Unicamp, Campinas, 1992. Orlandi, E. Discurso e Texto, Campinas, Pontes eds, 2001. Orlandi, E “A flor da pele: indivíduo e sociedade”, in Escrita e Escritos, B. Mariani (org), Clara Luz, 2006. Orlandi, E Cidade dos Sentidos, Campinas, Pontes eds, 2004. M. Pêcheux Les Vérités de la Palice, Maspero, Paris, 1975. Trad. Bras. Ed. Unicamp, 1988, Semântica e Discurso. Schaller, J. “Construire um vivre ensemble dans une démocratie renouvelée”, USP, São Paulo, 2001. 28 Notas 1 Fizemos um amplo estudo – em projeto temático da Fapesp (2004/2008) – em que mostramos como este “consenso” é produzido e como o imaginário desse consenso, assim produzido, serve de base à produção de políticas públicas. De meu lado, tenho pensado essa inter-corporalidade na formulação de que o corpo do sujeito está atado ao corpo urbano, tendo sua forma de vida determinada pela natureza e qualidade dessa relação. E me distingo aí do que desenvolve Thibaud a esse respeito. 2 Esta parte foi apresentada em uma versão mais extensa no CIAD, em São Carlos, em 2006. 3 Concordo com Schaller que a forma da relação é de segregação – uma vez posto fora, o indivíduo não conta para a sociedade, nem em sua existência política, nem física mesmo – e também concordo que esta é a forma da representação de classes, mas não aceito uma forma de interpretar isso, que é assim dito, como se não se pensasse mais a sociedade de classes, ou que a relação não é de classes. Estamos sempre ainda no sistema capitalista. O que está em questão, para mim, aí é a representação da relação social. Não o fato e a forma de sua existência. 4 Retomamos Castoriadis sem no entanto deixar de fazer a ressalva que esta (enfrentando o abismo) é uma expressão fortemente marcada pela discursividade religiosa (cf. por exemplo Gênesis). Daí propormos a deriva, o deslocamento para outra formação discursiva. 5 Os sentidos de movimentos sociais variam mas em geral têm sua padronização: a noção de movimento social tem servido para denominar uma organização estruturada com o fim de criar associação de pessoas ou entidades a fim de obter a promoção ou a defesa de objetivos face à sociedade. Podem ser legais ou ilegais. No modo como o vemos, discursivamente, assim como a identidade é um movimento na história, também a sociedade está em constante movimento na história. Há, pois, movimentos sociais contínuos. Qual a forma que eles apresentam e com a qual se representam? Quais são reconhecidos? Esta é a questão. Na formação discursiva dominante, o PCC, por exemplo, não pode ser considerado um movimento social. Toda sociedade constrói um sistema de valores e é em relação a eles que se considera um movimento social específico. 6 Claro que há sim um aspecto geográfico que favorece a criminalidade: entroncamento de grandes rodovias, aspectos de organização da cidade etc. Mas isto é só um elemento do modo de se praticar a criminalidade e não define sua existência como tal. 29 MOVIMENTOS SOCIAIS: O PARADOXO ARGENTINO E OS DESAFIOS DO TEMPO PRESENTE Enrique Serra Padrós (UFRGS) Hermanos y Hermanas: (…) Toma ya nuestro rostro, toma ya nuestra voz. Nuestra vida la anda. Haste oído nuestro para escuchar del otro la palabra. (...) Ya no serás tu, Ahora eres nosotros. Subcomandante Marcos Introdução O presente trabalho apresenta algumas reflexões introdutórias sobre os desafios que enfrentam os movimentos sociais desde os anos 90, quer dizer, dentro do período da história recente identificado como pós-guerra fria. A análise está centrada na experiência paradigmática da Argentina, laboratório de experiências sociais inéditas após a crise de 2001. Um esclarecimento inicial corresponde a uma opção metodológica do autor em tratar de movimentos sociais de forma genérica. Tal opção se justifica pelas características e formato do texto e pela compreensão de que o fundamental é a compreensão da lógica das situações percebidas e dos elementos comuns na atuação de protagonistas que, inquestionavelmente, detém particularidades e que possuem inteligibilidade a partir de fatores de origem, de efeitos conjunturais, de trajetórias específicas e de interação com o meio políticoe social em que atuam. • 30 Pós-guerra fria, neoliberalismo e pensamento único As profundas transformações estruturais que desde o final dos anos 70 foram corroendo as relações de produção vigentes, promoveram o gradual abandono da lógica fordista, do Estado de bem-estar e da defesa do pleno emprego. Tais transformações impactaram ainda mais, em função de estarem vinculadas a fatores que, agindo em outro plano da existência concreta, assinalavam a débâcle e desaparecimento da URSS e do socialismo real, a conformação da globalização neoliberal e a imposição do pensamento único (globalitário1), marcos fundamentais para a compreensão da nova realidade internacional e da nova relação de forças sociais derivadas daquela dinâmica. Enquanto repercutia o discurso apologético do fim da história e da consagração da superioridade do capitalismo sobre o socialismo, Eric Hobsbawm apontava para a configuração de um mundo de barbárie, marcado pela perda dos valores iluministas (racionalidade, cientificidade, fraternidade/solidariedade, felicidade coletiva, inclusão, etc.)2. Conseqüentemente, a banalização da violência, da indiferença e da desigualdade acompanhava o processo de desintegração político-social, gerando aquilo que Franz Hinkelammert denominou, na época, cultura da desesperança3, ou seja, a disseminação de uma percepção marcada pelo desespero, pela impotência diante da re-significação que transformava direitos historicamente conquistados em meros privilégios que, em nome de um igualitarismo de mercado, deviam ser extirpados. A ofensiva conservadora contra o socialismo (enquanto concepção) foi acompanhada de uma aguda escalada contra toda forma de organização e de participação que não fosse naqueles espaços de suporte da nova ordem. Dessa forma, o mundo do trabalho foi um dos alvos centrais, embora não ficasse restrita a ele. Nesse sentido, a intolerância passou a ser mecanismo de reordenamento restritivo, por parte do capital, produzindo, entre as populações visadas, incerteza, insegurança, violência, deterioração das relações de convivência e procura de saídas extremadas. Dentro dessa perspectiva, Zilda Iokoi4 aponta que “num mundo cada vez mais desigual, com expansão crescente da miséria, das guerras e as dificuldades decorrentes do descaso com o meio ambiente, vive-se como nunca situações de intolerância que inviabilizam o multiculturalismo”.Ou seja, paradoxalmente, no mundo da mundialização dos fatores econômicos e do estreitamento das distâncias, via rede mundial de computadores e revolução das telecomunicações, a tendência homogenizadora das práticas políticas, sociais e culturais dos centros capitalistas desenvolvidos denuncia como nocivos à civilização àquelas culturas e aqueles coletivos que resistem a essa onda pasteurizadora e destruidora dos sentimentos de pertencimento particular. 31 A perspectiva que Iokoi estabelece para a compreensão do fenômeno da intolerância é instigante: “A intolerância têm se manifestado em decorrência da idéia de que todos os povos do mundo não formam a humanidade (...)”.5 Portanto, há um componente fundamental dentro da lógica do tempo recente da globalização neoliberal, a idéia de uma exclusão que nega a própria identidade humana, relegando a uma situação de marginalização (de estar a margem) inédita na história contemporânea. Situações históricas anteriores, caracterizadas com esse teor de gravidade foram resultado da ação visível de decisões políticas (quase sempre estatais), diferentemente do que ocorre nas últimas décadas, onde a entidade mercado, apresentada como desconectada do mundo concreto dos homens, carrega, de forma abstrata, essa responsabilidade desumanizadora. Segundo Iokoi, a intolerância se manifesta, na atualidade através de Formas regressivas de práticas religiosas, xenofobias reabertas no continente europeu, fundamentalismos antigos e novos, disputas imperialistas, egoísmos e narcisismos individualistas e pela contínua imposição das desigualdades sociais. 6 Um dos aspectos destacados na dinâmica da ofensiva conservadora contra os trabalhadores e suas organizações foi o enfraquecimento dos partidos de esquerda e das estruturas sindicais, atingidos pela combinação de efeitos produzidos pelo colapso soviéticos (mudança de paradigmas) e pela desestruturação do Estado de bem-estar social. No caso latino-americano, a ofensiva sobre o mundo do trabalho e dos seus instrumentos de organização não conseguiu evitar o deslocamento da ação de resistência para velhos e novos movimentos sociais que foram se reestruturando ou constituindo durante a luta contra o neoliberalismo e as diretrizes do Consenso de Washington.7 Os novos movimentos sociais No final dos anos 80, as derrotas eleitorais de projetos de base popular no México, no Brasil e na Nicarágua (o melancólico fim da Revolução Sandinista), entre outros, simultâneos à simbólica queda do Muro de Berlim e, pouco depois, ao aparentemente desconcertante colapso soviético, produziram refluxos importantes nas organizações tradicionais da esquerda. A ofensiva contra as conquistas trabalhistas, a confusão dos partidos da esquerda tradicional (autocríticas, rupturas, divisões, mutações, etc.), a direitização de reconhecidos intelectuais à lógica do mercado e aos novos tempos e a ação em grande escala do pensamento único através das grandes corporações midiáticas induziram à despolitização da sociedade e, conseqüentemente, sua 32 desmobilização em defesa dos seus direitos. O estadunidense James Petras foi um dos primeiros a perceber que os efeitos negativos das políticas neoliberais aplicadas na América Latina, durante os anos 90, estavam gerando subjetividades, ainda pouco visíveis, entre os setores mais marginalizados e periféricos. Em 1996, antecipava os germes contestatórios que detectava a contrapelo da onda neoliberal. No artigo América Latina: a esquerda contra-ataca,8 apontava duas questões essenciais quanto à relação de forças naquela conjuntura. Por um lado, reafirmava as limitações de atuação e as contradições de certos partidos de esquerda e sindicatos, no embate contra a onda neoliberal sendo que, alguns deles, chegaram a assumir um claudicante adesismo. Por outro lado, identificava, de forma premonitória, o surgimento e a vitalidade de novos e desconhecidos movimentos sociais. Neles destacava uma certa autonomia de decisão e atuação diante das estruturas partidária e vislumbrava originalidade nas formas de organização, na coesão interna, nos mecanismos de solidariedade e, independente de reivindicações de ordem estrutural na ênfase em pautas específicas que davam sentido aos movimentos. Petras destacava que no MST (Brasil), no movimento dos cocaleros (Bolívia), na Confederação Nacional dos Camponeses (Paraguai), nas Madres da Praça de Maio e nos piqueteros (Argentina) assim como nas guerrilhas das FARC (Colômbia) e dos zapatistas do EZLN (México), afloravam disposição para o embate político (não-institucional), justamente no momento de maior refluxo da esquerda tradicional e suas formas de organização. Esses movimentos e organizações se consolidavam fora das tradicionais estruturas de manifestação dos anseios populares constituindo uma nova experiência que procurava resgatar alguns aspectos positivos da experiência acumulada das lutas sociais locais com modalidades originais surgidas nos embates aferidos diante das novas condições históricas que se ofereciam. Um dos principais exemplos a destacar é o uso inédito e eficiente das novas redes de comunicação por parte dos zapatistas. A imagem do subcomandante Marcos a cavalo e com um laptop no meio da selva Lacandona mas conectado com o mundo via Internet expressa essa adequação à nova realidade e o uso dos novos recursos potencializando politicamente um movimento que os incorpora no seucotidiano de resistência. Uma outra característica desses movimentos, comum a todos eles e que se configura como resposta a um problema da maior magnitude colocado pelas práticas neoliberais é o combate à exclusão. Este fenômeno se mostra diferente daquilo que em outros tempos podia ser entendido como fases de desemprego conjuntural; a luta contra a exclusão estrutural passou a integrar um leque maior e diverso de atingidos nos ambientes urbanos, mas nas zonas rurais, acabou configurando uma identidade peculiar a determinados movimentos. Nesse sentido, o surgimento de movimentos camponeses originados de uma determinada atividade produtiva (caso dos cocaleros bolivianos), ou populações inteiras atingidas por deslocamentos 33 de rios, construção de barragens, vítimas de desmatamento ou de outras agressões contra o meio ambiente e o ecossistema no qual estão inseridos, mostram tomadas de consciência que fogem aos padrões tradicionais. Um outro elemento particular e de significado histórico tem sido o resgate do protagonismo dos movimentos indígenas. A recuperação dessa identidade assim como a dos mestiços têm adquirido conotações políticas inegáveis e acrescentado questões que impõem novos desafios para interlocutores governamentais que precisaram, diante dos fatos concretos, reconhecer um tardio estatuto de cidadania que apresenta singularidades de valores e referências. A Bolívia, o México, o Equador e o Peru são os países mais atingidos por essa crescente e persistente tendência. Mesmo o Chile, onde a comunidade Mapuche representa uma dimensão demográfica menor que a dos outros países citados quanto à presença indígena, suas demandas, denúncias e manifestações consolidam um espaço político que extrapola a própria comunidade para converter-se em ação que procura e gera apoio e solidariedade nacional. O paradoxo argentino Um caso particular quanto aos limites e desafios para os novos movimentos sociais é o da Argentina pré e pós-2001, sendo esse ano, o da grande crise e falência institucional (Argentinazo). Para sua abordagem, partiremos da recente disputa eleitoral naquele país;9 entendemos que ela é paradoxal quanto à atuação e espaço político que ocupam e possibilidades concretas que projetam atualmente os movimentos sociais em um cenário de crises, incertezas e tensionamento político- militar ao qual não faltam os condicionantes externos. O caso argentino é ilustrativo das dificuldades de autonomização dos movimentos sociais que crescem exponencialmente em situações de crise profunda, mas que parecem ressentir-se quando, em fase posterior, encontram dificuldade para não serem cooptados pelo funcionamento político da tradição partidária ou da burocracia sindical. Ou seja, a revitalização e a re-institucionalização dos instrumentos político-partidários se colocam como desafios primordiais para os novos atores sociais. As iniciativas estatais e da sociedade política de, por vias formalistas, enquadrar as vigorosas mobilizações sociais originadas no ápice da crise econômico-financeira e política de dezembro de 2001 constituem uma ação de sobrevivência do establishment para evitar potenciais situações (impensáveis) de mudanças estruturais. É importante lembrar que a crise de 2001 foi o corolário do colapso político, moral e ético das instituições diante da tentativa de auto-desresponsabilização do poder econômico e da exigência aos setores médios (e populares, evidente), de pagar a conta 34 dos “alegres” anos do neoliberalismo desenfreado das duas administrações Menem. Os setores sociais médios vítimas de uma política estatal de confisco bancário (corralito) elaboraram formas de organização para proteger-se de uma situação de descalabro global. Para isso, se apropriaram de práticas de luta e resistência que os setores populares vinham desenvolvendo desde os anos 90, quando já sofriam os efeitos das políticas neoliberais (privatizações, desindustrialização, redução da prestação estatal de serviços sociais, etc.). Curiosamente o programa neoliberal do menemismo contou com a simpatia de significativa parcela dos setores médios, ofuscados com a ilusória fórmula da paridade cambial (um dólar = um peso). Esses mesmos setores, não só ignoravam ou negavam solidariedade àquelas primeiras vítimas das práticas neoliberais, como apoiavam as tentativas estatais de criminalização dos atos de resistência. O movimento piquetero surgiu em meados dos anos 90 quando pequenas cidades do interior da Argentina sofreram paralisia econômica com o fechamento ou privatizações de empresas estatais, fontes essenciais de trabalho e sobrevivência para a maior parte da população local. O desemprego crônico, a pobreza transformando- se em miséria, a sensação de desamparo e a desobrigação do Estado de suas responsabilidades com essas pequenas populações, multiplicadas muitas vezes pelo interior mais pobre do país, geraram novas formas de denúncia e luta social. As primeiras organizações piqueteras foram associações dessas populações carentes, esquecidas pelos partidos políticos e sindicatos, que partiram para a interrupção das grandes estradas (piquetes, barreiras), impedindo o trânsito de caminhões que abasteciam cidades maiores e até a capital do país. Essa foi a forma mais eficiente encontrada para chamar a atenção dos grandes conglomerados urbanos e dos poderes constituídos e denunciar a dramática situação de abandono em que estavam imersas aquelas famílias. Paulatinamente, outras formas de lutas foram incorporadas ou adaptadas como marchas, greves, saques, ocupações e as ollas populares (sopões). A modalidade de luta piquetera se espalhou e se organizou por todo o país. As palavras do padre Spagnolo, vinculado às populações carentes, levantaram a auto-estima e a dignidade do movimento: “Se Jesus vivesse, seria piquetero”. 10 A causa piquetera e de outros grupos excluídos e esquecidos durante a festa neoliberal da paridade cambial foi acolhida, entretanto, pelas organizações de direitos humanos, especialmente pela associação Madres de Plaza de Mayo. Há quase quinze anos do fim da ditadura Madres, Abuelas, HIJOS, Familiares de Desaparecidos e outras organizações continuavam lutando contra o descaso governamental, a impunidade, a desmemoria e a permanência dos crimes cometidos pelo terrorismo de Estado. Com as consignas Verdad y Justicia, Nunca Más, as rondas na Praça de Maio, as manifestações e atos públicos diversos e a restituição de identidade de crianças seqüestradas, o movimento de direitos humanos, de forma, diversa e desigual, foi politizando sua forma de atuação. 35 O grupo que mais radicalizou nas suas posturas foi o liderado por Hebe Bonafini (Madres de Plaza de Mayo) e no final dos anos 90 começou a se aproximar das instâncias piqueteras e de outras organizações populares. As Madres foram e são uma expressão política curiosa da história política recente na Argentina. Primeiro, pela carga de tragédia que carregam e pelo fato de serem vítimas do mesmo processo que desapareceu e matou filhos e roubou netos. Segundo, porque até hoje, quase três décadas após os eventos que as originaram, ainda não se fez justiça no sentido pleno, e durante muitos anos, já em democracia, foram sistematicamente ludibriadas, enganadas ou ignoradas. Terceiro, porque diante da passagem inexorável do tempo conseguiram gerar relações sociais que através de muita disposição e luta política conseguiu sensibilizar boa parte das novas gerações tornando atual as suas demandas, mas assumindo também como suas as preocupações e os problemas das gerações mais jovens, as que corresponderiam aos seus filhos e netos. Diante de milhares de jovens as Madres marcam a sua função: “(...) llevaron a nuestros hijos, pero nacimos las Madres. Ellos nos parieron aquí, a esta lucha, tratamos de ser el puente entre ellos y ustedes.”11Diante da coerência das posturas e da justeza das causas assumidas as Madres passaram a receber um reconhecimento ético quase universal entre os setores democráticos, em um país onde a corrupção se instalou nos altos escalões da vida política e econômica e passou a ser disseminada por toda a sociedade, mídia de por meio, como sinônimo de esperteza. A sabedoria das organizações de direitos humanos foi o de estar presente, na linha de frente, em toda manifestação reivindicada pelos setores populares e de incorporar a sua luta, as consignas por melhores salários, trabalho, educação, saúde, etc. Mostrando extrema lucidez na vinculação de suas demandas históricas com os problemas do presente, no final do governo Menem, denunciavam: “La falta de trabajo es un crimen, pero un crimen que nadie paga y nosotros queremos que los que hoy cometen el crimen dejándonos sin trabajo lo paguen y lo paguen caro”.12 Essa fala das Madres conferia à exclusão e seus derivados, uma conotação que ganhava outra dimensão nas palavras das suas lideranças. Se as Madres, as mesmas que eram vítimas do desaparecimento de filhos e seqüestro de netos, apontavam a exclusão social como ato criminoso de responsabilidade do governo, isto conferia outra legitimidade às denúncias dos setores abandonados ou em fase de sê-lo. Após a reeleição de Menem, em 1995, já eram perceptíveis os sintomas negativos do modelo e o seu esgotamento (desemprego crescente, dificuldade em manter a paridade cambial e o generalizado endividamento da população em dólares); os efeitos começaram a se espalhar por todo o tecido social. A situação foi herdada pela administração De la Rua, que não rompeu com o modelo vigente, frustrou os eleitores que o elegeram para mudar a orientação econômica e, com isso, aprofundou o impacto global da crise latente. Esta explodiu, após novos percalços, em dezembro 36 de 2001, com o decreto governamental de confisco das contas bancárias para fazer frente aos compromissos externos; ato seguido, o descontentamento acumulado durante meses, se traduziu em uma imediata e crescente resistência “quase” espontânea e um brutal incremento repressivo. Diante das manifestações de indignação, particularmente dos setores médios (principais atingidos com o confisco), o governo respondeu com ferocidade repressiva; os embates dos dias 19 e 20 deixaram um saldo de quase trinta pessoas mortas. Na quinta-feira dia 20, entre as imagens mais contundentes dos acontecimentos ocorridos no centro de Buenos Aires estavam as que mostravam uma coluna que avançava pela Praça de Maio. Na linha de frente caminhavam, de braços dados, as Madres, carregando a grande faixa da sua organização (quinta- feira é o dia das clássicas rondas ao redor do monumento central da praça). As imagens da brutal arremetida da polícia a cavalo contra as Madres são portadoras de uma dupla expressão. Primeiro, a de um governo acuado e de um aparato de segurança impregnado de uma tradição de violência não descontaminada. Segundo, o significado político da postura daquelas mulheres, de idade variável entre 60 e 90 anos, encabeçando uma multidão multifacetada que as reconhecia na sua liderança e que atraiam a ira impotente do aparato repressivo. Diante dos fatos e tentando evitar o que considerava um desafio a sua autoridade, De la Rua decretou o estado de sítio, instrumento autoritário fruto de atitude irresponsável e insensível do presidente diante de uma sociedade argentina que expressava cotidianamente a tragédia de dezenas de milhares de desaparecidos e de centenas de crianças roubadas.13 O resultado foi que, superando pela primeira vez o medo residual do tempo da ditadura, a população, ignorando o decreto, como uma gigantesca onda pacífica sob a cadência dos panelaços, transbordou os esquemas coercitivos e fincou pé na histórica praça do centro de Buenos Aires onde ecoou a consigna emblemática “Que se vayan todos”, e forçou a renúncia do presidente. Nesse momento as instituições colapsaram. Em poucos dias, outros quatro presidentes interinos fracassaram na tentativa de encontrar alguma saída para uma crise inédita e de enormes proporções. Enquanto uma complexa engenharia política tentava recompor os “cacos” quebrados dos poderes constituídos, dos partidos14 e da estrutura sindical, a Argentina se converteu num verdadeiro laboratório de experiências sociais de um Estado literalmente quebrado. A peculiaridade daqueles eventos é que diante das notícias da fuga de especuladores, da opção repressiva do governo e do descaso das elites político-econômicos com o conjunto da população, ocorreu uma confluência de piqueteros, desempregados, jovens sem perspectivas de trabalho, familiares de desaparecidos e setores médios confiscados que superou o dique repressivo de contenção de uma democracia esvaziada de consciência cívica e descompromissada com o porvir da população. A população procurou saídas diante da crise de governabilidade e se organizou 37 de múltiplas formas para contornar uma situação dramática: sem presidente, sem sucessores, sem dinheiro, com bancos fechados, com o comércio fechado e boa parte da vida produtiva do país paralisada. Foi nesse momento que começaram a surgir novas formas de organização social, algumas micro, outras mais complexas. Assembléias vizinhais (barriales), feiras de troca (trueque), novos movimentos piqueteros, ações de ocupação e recuperação de fábricas, entre outras práticas, foram iniciativas que marcaram uma refundação cidadã que objetivava reconfigurar, sob certa forma, o Estado e os métodos tradicionais de fazer política. O caso mais emblemático dessa reconfiguração de experiências coletivas e solidárias para enfrentar situações tão adversas, a margem de partidos e sindicatos foi o movimento pela recuperação de fábricas. Nesse sentido, a ação pela manutenção dos postos de trabalho veio acompanhada pela iniciativa de incorporar e apropriar-se de saberes e funções não habituais, de desenvolver uma cultura de trabalho cooperativo e autogestionário e a criação e experimentação de redes de apoio comunitárias, interligando a unidade produtiva e fonte de trabalho, direta ou indireta, para muitas famílias do entorno barrial com as outras unidades produtivas ou prestadoras de serviço da vizinhança, passando pela própria discussão das prioridades comunitárias (escolas, creches, posto de saúde, etc) em profícua interação com as fábricas retomadas, sobretudo quando elas são fator vital de recuperação do conjunto global da comunidade. Símbolo de toda essa luta tem sido a fábrica de cerâmica Zanon (na província de Neuquén), a maior de todas as unidades recuperadas (com sete anos de experiência em andamento) e que tem enfrentado tentativas de retomada, por parte dos antigos proprietários, problemas de financiamento e de concorrência e a falta de apoio público; mesmo assim, tem resistido e conseguido aumentar índices de produtividade e incorporado mais trabalhadores a sua linha de produção. Apesar do revigoramento e da renovação de experiências inéditas, observadas, estudadas e analisadas internacionalmente, o paradoxo argentino apresenta uma frustrante surpresa. A criatividade e ousadia política para encontrar saídas coletivas àquela conjuntura acabou sofrendo erosão e acentuado refluxo poucos meses depois da queda de De la Rua. A institucionalização de uma saída provisória com o governo Duhalde e, posteriormente, a consolidação eleitoral de Nestor Kirchner, recuperou a dinâmica política de perfil mais tradicional e caudatária dos mecanismos históricos da cultura peronista. A estabilidade institucional apoiada pelos setores médios, como forma de esvaziar processos mais radicais, obteve resultados concretos. A volta à normalidade significou esvaziar correntes e lideranças mais radicais, recolocar a tradição sindical como mecanismo de
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