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Religião e vida

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Vida, religião e os limites da liberdade
Diego Henrique Munhoz
contatomunhoz@ig.com.br
RESUMO: Com o intuito de estabelecer um embate entre o princípio da liberdade de crença e religião com o direito à vida, este artigo basear-se-á em posições doutrinárias para progredir nesta batalha travada entre a expressão religiosa em todo e qualquer sentido e a proteção da vida infringindo qualquer direito positivado, como até mesmo a religião.
PALAVRAS-CHAVE: Liberdade – Vida – Direito – Crença – Princípios 
1. Introdução
O referido artigo traz como escopo o biodireito com a finalidade de promover um embate a cerca de dois princípios elencados na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 sendo eles o princípio da liberdade religiosa e o direito à vida juntamente com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Notar-se-á entendimentos de renomados juristas como Alexandre de Moraes, Themistocles Brandão Cavalcanti, Maria Helena Diniz, Adriana Caldas Maluf, dentre outros. Citações essas que esboçam a clara evidência de um impasse englobando a religião e a vida, assuntos que geram muitas polêmicas, varias opiniões e formas de interpretação confrontantes. 
Será discutido também a questão da transfusão sanguínea em seguidores da seita Testemunhas de Jeová, ato esse que os membros da respectiva seita encaram como uma contaminação corpórea e espiritual. 
Essa obra consistirá em explanar os limites da liberdade garantida na Constituição e de certa forma, hierarquizar esses princípios.
2. Direitos humanos fundamentais
	Ambos os princípios expostos e conceituados nos tópicos abaixo fazem parte dos direitos humanos fundamentais, incorporados, na maioria dos países, em suas Constituições e na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Definindo como “pilastra-mestra”, Alexandre de Moraes esboça:
O respeito aos direitos humanos fundamentais, principalmente pelas autoridades públicas, é pilastra-mestra na construção de um verdadeiro Estado de direito democrático. (MORAES, Alexandre de. 2005. p. 3).
Complementando:
O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos humanos fundamentais (MORAES, Alexandre de. 2005. p.21).
	Sendo de um elevado grau de relevância, a Constituição Federal apresenta expressamente a não alteração no tocante aos direitos humanos fundamentais, disposto no artigo 60:
Art. 60 	A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
[...]
§ 4º	Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV – os direitos e garantias fundamentais. (BRASIL, Constituição Federal do. 1988)
Além de a Constituição garantir a não mutabilidade dos direitos fundamentais, pune quem os discriminar: 
Art. 5º	Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; (BRASIL, Constituição Federal do. 1988)
3. Definição dos princípios
Não se pode promover um embate de princípios sem antes os definir, assim, será apresentado um arcabouço de citações e fundamentos em relação ao valor e importância desses princípios para o ser humano e a sociedade em que vive.
3.1 Princípio da liberdade religiosa
	Corriqueiramente envolvido em discussões e polêmicas midiáticas, o princípio da liberdade religiosa é um assunto que por ser de suma importância para todos os indivíduos, causa certo desgaste quando o mesmo é alvo de conversas, mesmo que sejam informais. 
Se tratando de princípio da liberdade religiosa, a Constituição Federal em seu artigo 5º, trata dos direitos e garantias fundamentais, dispondo:
Art. 5º	Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias; (BRASIL, Constituição Federal do. 1988)
Este artigo esclarece expressamente a inviolabilidade da liberdade de crença. 
Em seu livro “Direitos Humanos Fundamentais”, o constitucionalista Alexandre de Moraes cita o entendimento de Themistocles Brandão Cavalcanti, jurista e ministro do Pretório Excelso no ano de 1967, assim:
A conquista constitucional da liberdade religiosa é verdadeira consagração de maturidade de um povo, pois como salientado por Themistocles Brandão Cavalcanti, é ela verdadeiro desdobramento da liberdade de pensamento e manifestação (princípios gerais de direito público. 3. Ed. Rio de janeiro; borsoi, 1966, p.253) (MORAES, Alexandre de. 2005. p.114).
	Ainda, a respeito dessa conquista constitucional e o seu valor, Dimenstein conclui:
A religião é um elemento central da experiência humana e existe em todas as sociedades conhecidas. Traços de rituais e símbolos religiosos já se evidenciam desde o tempo das sociedades antigas, das quais temos conhecimento apenas através de vestígios arqueológicos. A religião influencia de diversas maneiras a forma pela qual vemos o mundo e reagimos ao meio que nos rodeia. Por isso, Geertz afirma, na obra A interpretação das culturas, que a religião é sociologicamente interessante não porque descreve a ordem social, mas porque a modifica. (Dimenstein, 2008, p.74)
Pode-se evidenciar também essa real importância na Constituição Política do Peru a título de informação, in verbis:
Artículo 2º, - Toda persona tiene derecho:
2,- A La igualdad ante La ley, sin discriminación alguna por razón de sexo, raza, religión, opinión o idioma. El varón y La mujer tienen iguales oportunidades y responsabilidades. La ley reconoce a La mujer derechos no menores que AL varón.
3,- A La libertad de conciencia y de religión, en forma individual o asociada. No hay persecución por razón de ideas o creencias. El ejercicio público de todas las confesiones ES libre, siempre que no ofenda a La moral o altere El orden público. (PERÚ, La Constitución Política Del. Marzo de 1985)
Moraes é enfático ao dizer:
O constrangimento à pessoa humana, de forma a constrangê-lo a renunciar sua fé, representa o desrespeito à diversidade democrática de idéias, filosofias e a própria diversidade espiritual. (MORAES, Alexandre de. 2005. p.115).
A partir dessas citações, constrói-se um fundamento sólido quanto ao valor e o grau de importância que a religião e a liberdade de expressá-la têm na sociedade. Ferindo este princípio, apunhalar-se a democracia como um todo, o direito à liberdade e, de imensurável importância, o princípio da dignidade humana, pois, para aquele que crê em sua crença, sua dignidade é formada por determinados aspectos e principalmente pelos que regem sua religião.
3.2 Direito à vida
Interpretado e conceituado como o princípio fundamental para a existência e efetivação dos demais, o direito à vida é imprescindível para o ordenamento ser cumprido e assim estabelecer a ordem e a estabilidade jurídica.
Art. 5º	Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (BRASIL, Constituição Federal do. 1988)
Novamente no artigo 5º, que determina os direitos e garantias fundamentais, seu “caput” expressa em primeiro lugar à inviolabilidade do direito à vida, nota-se a importância magistral do mesmo por estar no topo posto em umpatamar prioritário, primitivo, excelso. 
Novamente um paralelo com a Constituição do Peru, a título de informação, dispondo:
Artículo 1º, - La persona humana es El fin supremo de La sociedad y Del estado. Todos tienen La obligación de respetarla y protegería.
Artículo 2º, - Toda persona tiene derecho:
1 ,- A La vida, a un nombre propio , a La integridad física y AL libre desenvolvimiento de su personalidad. AL que esta por nacer se Le considera nacido para todo lo que Le favorece. (PERÚ, La Constitución Política Del. Marzo de 1985)
No artigo 1º e no inciso 1 do artigo 2º se assegura o respeito e proteção da vida, confirmando o pré-requisito para que sejam cumprido todos os princípios seguintes.
Segundo Alexandre de Moraes, o Estado tem uma obrigação dupla em razão do direito à vida, a primeira sendo dever de manter a pessoa humana viva e a segunda dando condições para sua subsistência de uma forma digna, na íntegra:
A constituição federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, pois o seu asseguramento impõe-se, já que se constitui em pré requisito à existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal assegura, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência. (MORAES, Alexandre de. 2005. p.76).
	Moraes é brilhante em dizer que o asseguramento do direito à vida se constitui em pré-requisito para até mesmo existir os demais. Sem a proteção da vida, não se estabelece sentido algum em defender outros direitos e princípios.
4. Conflito de princípios
	Entende-se que todos os princípios são de extrema importância para a sociedade, mas, há o que podemos chamar de hierarquia entre os mesmos, princípios que são superiores a outros; a hermenêutica é de suma importância para uma interpretação correta de nossas leis. Nesse sentido, nascem às discussões em razão do valor de cada garantia, do não cumprimento de um direito para a garantia de outro.
	Naturalmente, faz-se o embate com relação aos transplantes de órgãos e o recebimento de sangue versus a liberdade de crença, pois, algumas seitas religiosas proíbem e interpretam sendo um tipo de contaminação corporal/espiritual. 
	Deve-se compreender que a liberdade de crença positivada na Lei Suprema tem um limite, não uma liberdade absoluta; tem-se um ordenamento jurídico que deve ser respeitado e seguido e as seitas e religiões obrigam-se a cumpri-lo. Entre o direito à vida e a liberdade religiosa de uma forma límpida pode-se enxergar uma desproporção grandiosa, à vida para o Estado e para a sociedade como um todo tem uma importância superior à religião.
	Em sua obra, Alexandre de Moraes cita algumas resoluções e conclui explanando que a liberdade religiosa não se estabelece em um grau absoluto, assim:
A Constituição Federal assegura o livre exercício do culto religioso, enquanto não forem contrários à ordem, tranqüilidade e o sossego públicos, bem como compatíveis com os bons costumes (STF – RTJ 51/344). Dessa forma, a questão das pregações e curas religiosas devem ser analisadas de forma a não obstaculizar a liberdade religiosa garantida constitucionalmente, nem tampouco acobertar práticas ilícitas (STJ – RT 699/376). Obviamente, assim como as demais liberdades públicas, também a liberdade religiosa não atinge um grau absoluto, não sendo, pois, permitido a qualquer religião ou culto atos atentatórios à lei, sob pena de responsabilização civil e criminal. (MORAES, Alexandre de. 2005. p.119).
	Contudo, analisando da visão do adepto religioso, sua crença esta superior ao direito à vida, pois o próprio ser divino, seguido pelo adepto, foi quem lhe deu “o sopro de vida”. Pode-se entender que ao desrespeitar seu direito de liberdade religiosa, o religioso esteja sofrendo um preconceito ou até mesmo uma tortura, pois, no caso da transfusão de sangue, o adepto entende que se for “contaminado” com aquele ato irá herdar o castigo eterno, o inferno; assim, se forma uma tortura mental martirizando a pessoa que sofreu o desrespeito a liberdade de exercer sua crença. Sendo assim, a lei 9.455/97 conceitua o crime de tortura:
 
Art. 1.º	 Constitui crime de tortura:
I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
c) em razão de discriminação racial ou religiosa.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos. (Lei N. 9.455 de 7 de abril de 1997)
	E, na Constituição é vedada a prática de tortura:
Art. 5º	Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; (BRASIL, Constituição Federal do. 1988)
	Em sua obra, Moraes cita o entendimento da Assembléia Geral das Nações Unidas sobre a tortura relacionada à discriminação e o desrespeito a religião:
O termo tortura, para a Assembléia Geral das Nações Unidas, significa: Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou contra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam conseqüência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorra (artigo 1º da convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, adota pela resolução nº 39946 da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10-12-1984) (MORAES, Alexandre de. 2005. p.103).
A liberdade garantida é a de seguir qualquer crença desde que respeite o ordenamento jurídico, pois, a Constituição não iria garantir uma liberdade que infringisse as próprias normas nela estabelecida, e muito menos para servir de pretexto para o cometimento de crimes e infrações.
	Em um caso concreto, nota-se que a liberdade religiosa prevaleceu sobre um mero costume local:
Importante salientar, como faz Leda Boechat Rodrigues, em sede de liberdade religiosa a decisão histórica da Suprema Corte America, non caso “West Virgínia State Board of Education v. Barnette, 319, U.S. 624 (1943)”, onde, provocada por adeptos da seita “Testemunhas de Jeová”, foi declarada a inconstitucionalidade de lei estadual que exigia a saudação compulsória à bandeira sob pena de expulsão do colégio. Os requerentes alegavam que, por motivos de convicção religiosa, era-lhes vedado esse gesto, pois contrariava a proibição bíblica de adoração a imagens gravadas. O Tribunal, alterando posicionamento anterior (Minersville School District v. Gobitis, 210. U.S. 586 – 1940), reconheceu a ampla liberdade religiosa. (MORAES, Alexandre de. 2005. p.115).
	Salienta-se que, ocorreu neste caso um embate entre a religião e um tipo de patriotismo, em razão disso, o princípio da liberdade se sobrepôs a um simples juramento da bandeira nacional, uma situação onde não está ferindo a vida nem a dignidade da pessoa humana. 
	A vida do ser humano é o bem mais precioso que a Constituição e o Estado protege e defende como no 1º artigo da Carta Magna:
Art. 1º	A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estadose Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
[...]
III – a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, Constituição Federal do. 1988)
	Para a construção da dignidade, o indivíduo deve ter a garantia da vida e, com as mínimas condições, mantê-la. 
	Ao se debater esse assunto é aberto um rol de subitens como no caso da transfusão de sangue.
	Adriana Caldas traz em sua obra “Curso de bioética e biodireito” um entendimento claro sobre esse conflito:
A realização de transfusão de sangue, ou não, nos casos em que há indicação clínica ou terapêutica para tal, envolve o choque de dois direitos da personalidade: o direito à liberdade religiosa de um lado (ligado ao direito à autonomia) e o direito à vida de outro. A questão abrange fundamentalmente os adeptos da religião Testemunhas de Jeová, cujo conflito é dos mais conhecidos. (MALUF, Adriana C. R. F. D., 2013. p. 368
	Como dito anteriormente, existem algumas seitas, especialmente os Testemunhas de Jeová que enxergam a transfusão de sangue como uma contaminação, sendo assim, proíbem seus fiéis a praticar tal ato, neste caso, o nobre professor Álvaro Villaça Azevedo apud “Curso de Bioética e Biodireito” por autoria de Adriana Caldas traça seu entendimento:
Leciona Álvaro Villaça Azevedo que “a dignidade da pessoa humana é um dos princípios fundamentais protegidos constitucionalmente. Nela se incluem além do direito à vida, o direito à autonomia, uma vez que o paciente é sujeito de direitos e direito à liberdade, aqui se entendendo principalmente a liberdade religiosa”. Por entender que a recusa à transfusão de sangue é um direito do paciente, entende o professor que não configura-se o crime de omissão de socorro nos termos do art. 135 do Código Penal, uma vez que o dolo e o abandono do paciente são elementos imprescindíveis à caracterização do mesmo. Por outro lado, a transfusão forçada consistiria em crime de constrangimento ilegal nos termos do art. 146 do Código Penal. (MALUF, Adriana C. R. F. D., 2013. p. 368 – 369)
Reforçando o que antes fora comentado:
Devemos ressaltar que a crença religiosa – liberdade de crença – é um direito humano fundamental reconhecido constitucionalmente, prendendo-se à convicção pessoal que influencia a vida do fiel e condiciona suas escolhas e os rumos que adota na vida, culminando no direito à escolha do tratamento médico que lhe parecer mais adequado. (MALUF, Adriana C. R. F. D., 2013. p. 369)
	
	No caso de haver recusa na transfusão sanguínea, o Conselho Federal de Medicina regulamentou através da Resolução CFM nº 1021/80 as ocasiões onde os médicos devem realizar ou não a transfusão:
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, usando da atribuição que lhe confere a lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e considerando o disposto no artigo 153, parágrafo 2º da Constituição Federal; no artigo 146 e seu parágrafo 3º, inciso I e II do Código Penal; e nos artigos 1º, 30 e 49 do Código de Ética Médica; considerando o caso de paciente que, por motivos diversos, inclusive os de ordem religiosa, recusam a transfusão de sangue; considerando finalmente o decidido em sessão plenária deste Conselho realizada no dia 26 de setembro de 1980, resolve: adotar os fundamentos do anexo PARECER, como interpretação autêntica dos dispositivos deontológicos referentes a recusa em permitir a transfusão de sangue, em casos de iminente perigo de vida.
PARECER PROC. CFM nº 21/80
O problema criado, para o médico, pela recusa dos adeptos da Testemunha de Jeová em permitir a transfusão sanguínea, deverá ser encarada sob duas circunstâncias:
1 – A transfusão de sangue teria precisa indicação e seria a terapêutica mais rápida e segura para a melhora ou cura do paciente. Não haveria, contudo, qualquer perigo imediato para a vida do paciente se ela deixasse de ser praticada.
Nessas condições, deveria o médico atender o pedido de seu paciente, abstendo-se de realizar a transfusão de sangue. Não poderá o médico proceder de modo contrário, pois tal lhe é vedado pelo disposto no artigo 32, letra “f” do Código de Ética Médica:
“Não é permitido ao médico:
f) exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente resolver sobre sua pessoa e seu bem-estar”.
2 – O paciente se encontra em iminente perigo de vida e a transfusão de sangue é a terapêutica indispensável para salvá-lo.
Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permiti-la. O médico deverá sempre orientar sua conduta profissional pelas determinações de seu Código. No caso, o Código de Ética Médica assim prescreve:
“Artigo 1º - A medicina é uma profissão que tem por fim cuidar da saúde do homem, sem preocupações de ordem religiosa...”. (Resolução CFM nº 1021/80 disponível em WWW.saude.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=307# acesso em 11/09/13)
Esta discussão dividiu-se ainda entre duas situações: o capaz e o incapaz.
Adriana Caldas Maluf menciona o entendimento de Diego Gracia:
O paciente reconhecidamente capaz deve poder exercer a sua autonomia plenamente. Esse posicionamento foi utilizado por Diego Gracia, que aduz que essa situação é paradigmática no exercício da autonomia do indivíduo frente a pressões sociais. (MALUF, Adriana C. R. F. D., 2013. p. 370)
Já no caso do incapaz:
Quando a situação envolve menores de idade ou outros pacientes tidos como incapazes, como por exemplo uma pessoa acidentada inconsciente, a questão ganha outras conotações, pois o papel de proteger o paciente, apesar da vontade expressa de seus responsáveis legais, deve ser ampliado, prevalecendo aqui o direito à vida do menor, seu bem supremo. (MALUF, Adriana C. R. F. D., 2013. p. 370)
	Nesse âmbito, se debate a questão do filho incapaz, que não tem discernimento, sendo obrigado a abrir mão da doação do sangue e até mesmo discutindo se a criança ou adolescente tem essa noção de escolha.
	Para isso, o Estatuto da Criança e do Adolescente aborda, assim como a Constituição, direitos e garantias imprescindíveis, dispondo:
Art. 5.º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 7.º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:
I – ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;
II – opinião e expressão;
III – crença e culto religioso;
IV – brincar, praticar esportes e divertir-se;
V – participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
VI – participar da vida política, na forma da lei;
VII – buscar refúgio, auxílio e orientação.
Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990)
Acima foram citados vários artigos do ECA onde protegem a liberdade de culto e crença do menor mas, enfatiza o direito à vida e à saúde, deixando novamente nítida a superioridade da vida em relação as demais garantias.
Maria Helena Diniz apud Adriana Caldas esboça uma frase excepcional e fundamental:
O direito à liberdade religiosa dos pais termina quando surge o direito de viver do filho menor; além, disso, é responsabilidade do Estado preservar a incolumidade pessoal de seus cidadãos. (MALUF, Adriana C. R. F. D., 2013. p. 371)
E mesmo que o menor tenha discernimento e opte pela não transfusão em razão da religiãopode ser feito o pedido por autorização judicial deferindo o ato médico.
5. Considerações Finais
Conclui-se que, os direitos humanos fundamentais são verdadeiramente imprescindíveis para a elaboração, constituição e validade de um ordenamento jurídico, como o do Brasil, embasado no princípio da dignidade da pessoa humana. Sendo assim, até mesmo a emenda/modificação dos direitos fundamentais é protegida e proibida de acordo com o artigo 60 da CF.
Analisado foi o direito à vida, direito esse que é essencial para a proteção e gozo dos demais, já que à vida é o primeiro e principal requisito para se ter expectativa de direitos. E também o princípio da liberdade religiosa que, do mesmo modo está exposto na Constituição e protegido como sendo direito fundamental do cidadão, mas que em determinadas situações vem a conflitar com o direito à vida, como no caso da transfusão de sangue que é proibida por algumas seitas religiosas.
Sendo assim, o escopo deste artigo foi principalmente estabelecer o grau de importância e de hierarquia entre o direito à vida e o princípio da liberdade religiosa.
Entende-se por fim que, o direito à vida por ser o precursor de todos os demais direitos, por tratar do bem jurídico de maior importância e que o Estado mais protege que é a vida, torna-se superior ao princípio da liberdade religiosa.
Ressaltando que, não se exclui a estima e o valor da liberdade na totalidade e na área específica da religião, este princípio é de enorme acuidade e importância para se estabelecer e construir também a dignidade da pessoa humana. Mas, no caso específico da transfusão de sangue referente ao risco de vida, a proteção da vida torna-se superior não somente a este princípio como todos os demais.
A opinião pessoal do autor deste artigo segue a linha majoritária e defendida nas páginas anteriores, que o direito à vida se sobrepõe a qualquer outro princípio devido a sua superior importância. Assim, encerra-se com o entendimento do Barão de Montesquieu: “A liberdade é o direito de fazer tudo quanto as leis permitem: e, se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem, não teria mais liberdade porque os outros teriam idêntico poder”.
6. Referências Bibliográficas
BRASIL, Constituição Federal, Publicada em 05 de Outubro de 1988.
BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, disponível em WWW.saude.caop.mp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=307# acesso em 11/09/13.
DIMENSTEIN, Gilberto; ASSUMPÇÃO RODRIGUES, Marta M.; GIANSANTI, Alvaro Cesar. 10 lições de sociologia para um Brasil cidadão. Volume único. Ed. FTD. São Paulo, 2008.
LEI N. 9.455 de 7 de abril de 1997.
MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas. Curso de Bioética e Biodireito. São Paulo: Atlas, 2ª Edição. 2013.
MONTESQUIEU, Barão de. Disponível em WWW.frases.globo.com/Barao-de-Montesquieu/2545 acesso em 19/09/13.
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais.São Paulo, Atlas, 2005.
PERÚ, La Constitución Política, Publicada en Marzo de 1985.

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