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T E M A S P O L Ê M I C O S D A J U R I S D I Ç Ã O D O T R I B U N A L D E J U S T I Ç A D O R I O G R A N D E D O S U L : D O S C R I M E S A O S I L Í C I T O S D E N A T U R E Z A P Ú B L I C A I N C O N D I C I O N A D A ORGANIZADORES: DES. ROGÉRIO GESTA LEAL | PROFA. DRA. CAROLINE MÜLLER BITENCOURT ARISTIDES PEDROSO DE ALBUQUERQUE NETO | AUGUSTO CARLOS DE MENEZES BEBER | CAROLINE MÜLLER BITENCOURT | CAROLINE RITT | CLÁUDIA DE BARROS GEHRES | CYNTHIA JURUENA | DENISE FRIEDRICH | DIÓGENES V. H. RIBEIRO | EDUARDA SIMONETTI PASE | IANAIÊ SIMONELLI DA SILVA | IVAN LEOMAR BRUXEL | JANRIÊ RECK | JAYME WEINGARTNER NETO | JONATHAN AUGUSTUS KELLERMANN KAERCHER | KARINE SANTOS | LEONEL PIRES OHLWEILER | LUIZ EGON RICHTER | MAURO EVELY VIEIRA DE BORBA | NEREU GIACOMOLLI | NEWTON BRASIL DE LEÃO | RAFAEL BRANDINI | RAMÔNIA SCHMIDT | RICARDO HERMANY | ROGÉRIO GESTA LEAL TEMAS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: DOS CRIMES AOS ILÍCITOS DE NATUREZA PÚBLICA INCONDICIONADA POLÊMICOS Porto Alegre Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul 2015 Organizadores Desembargador Rogério Gesta Leal Profa. Dra. Caroline Müller Bitencourt TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: DOS CRIMES AOS ILÍCITOS DE NATUREZA PÚBLICA INCONDICIONADA 1ª edição EXPEDIENTE Organizadores Desembargador Rogério Gesta Leal Profa. Dra. Caroline Müller Bitencourt Capa Marcelo Oliveira Ames Projeto Gráfico, Diagramação, Impressão e Acabamento Departamento de Artes Gráficas do TJRS ISBN 978-85-89676-16-8 (impresso) ISBN 978-85-89676-15-1 (e-book) Tiragem 3.000 exemplares Temas polêmicos da jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul : dos crimes aos ilícitos de natureza pública incondicionada / Organizadores, Rogério Gesta Leal, Caroline Müller Bitencourt ; Aristides Pedroso de Albuquerque Neto ... [et al.]. – Porto Alegre : Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Departamento de Artes Gráficas, 2015. 384 p. ISBN 978-85-89676-16-8 (impresso) ISBN 978-85-89676-15-1 (e-book) 1. Tribunal de Justiça. Rio Grande do Sul. Jurisprudência. Comentário. 2. Improbidade administrativa. Jurisprudência. Comentário. 3. Contratação pública. Jurisprudência. Comentário. 4. Corrupção. Jurisprudência. Comentário. 5. Administração Pública. Jurisprudência. Comentário. 6. Processo penal. Jurisprudência. Comentário. 7.Investigação criminal. Jurisprudência. Comentário. 8. Responsabilidade Penal. Jurisprudência. Comentário. 9. Crime contra a Administração Pública. Jurisprudência. Comentário. I. Leal, Rogério Gesta. II. Bitencourt, Caroline Müller. III. Albuquerque Neto, Aristides Pedroso. IV. Beber, Augusto Carlos de Menezes. V. Ritt, Caroline. VI. Gehres, Cláudia de Barros. VII. Juruena, Cynthia. VIII. Friedrich, Denise. IX. Ribeiro, Diógenes V. H. X. Pase, Eduarda Simonetti. XI. Silva, Ianaiê Somonelli da. XII. Bruxel, Ivan Leomar. XIII. Reck, Janriê. XIV. Weingartner Neto, Jayme. XV. Kaercher, Jonathan Augustus Kellermann. XVI. Santos, Karine. XVII. Ohlweiler, Leonel Pires. XVIII. Richter, Luiz Egon. XIX. Borba, Mauro Evely Vieira de. XX. Giacomolli, Nereu. XXI. Leão, Newton Brasil de. XXII. Brandini, Rafael. XXIII. Schmidt, Ramônia. XXIV. Hermany, Ricardo. CDU 347.99(816.5)(094.9) Catalogação na fonte elaborada pelo Departamento de Biblioteca e de Jurisprudência do TJRS TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL ADMINISTRAÇÃO 2014-2015 Des. JOSÉ AQUINO FLÔRES DE CAMARGO – Presidente Des. LUIZ FELIPE SILVEIRA DIFINI – 1º Vice-Presidente Des. MANUEL JOSÉ MARTINEZ LUCAS – 2º Vice-Presidente Des. FRANCISCO JOSÉ MOESCH – 3º Vice-Presidente Des. TASSO CAUBI SOARES DELABARY – Corregedor-Geral da Justiça SUMÁRIO MENSAGEM INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL ...............................................................................................................................7 MENSAGEM INSTITUCIONAL DA UNISC ........................................................... 9 APRESENTAÇÃO DES. NEY WIEDEMANN NETO ................................................11 I – ANÁLISE DE CASOS DA JURISDIÇÃO CRIMINAL 1 Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa – Jayme Weingartner Neto ...............................................................15 2 Limites à investigação policial: os privilégios/direitos do cidadão no Estado Constitucional e Democrático de Direito e o papel contramajoritário da Constituição – Diógenes V. H. Ribeiro ......................................................................................................33 3 O princípio da identidade física do juiz no Processo Penal – Nereu Giacomolli .........49 4 A responsabilidade penal por extermínio de animais: um estudo de caso – Newton Brasil de Leão .......................................................................................................... 57 5 A responsabilidade penal pela apropriação indébita de contribuições sindicais: um estudo de caso – Aristides Pedroso de Albuquerque Neto ......................................... 63 6 O direito fundamental de intangibilidade domiciliar na persecução penal: um estudo de caso – Ivan Leomar Bruxel ................................................................................... 79 7 A nomeação de cargos em comissão como configuradora de crime de prefeito: um estudo de caso – Rogério Gesta Leal..........................................................................89 8 Qual o bem jurídico penal protegido no âmbito dos crimes de licitações no sistema jurídico brasileiro? – Caroline Ritt e Rogério Gesta Leal .................................................109 9 O dolo como elemento subjetivo no ato de improbidade administrativa e a necessidade de sua constatação através de uma congruente e sofisticada prova do fato – Mauro Evely Vieira de Borba ...............................................................................................................131 II – ANÁLISE DA VIOLAÇÃO DOS INTERESSES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO ÂMBITO DA CONTRATAÇÃO PÚBLICA 1 Fundamentos subjetivos utilizados nas absolvições dos agentes públicos em infrações de improbidade administrativa: uma análise dos argumentos vazios na jurisprudência – Caroline Müller Bitencourt e Eduarda Simonetti Pase .......................................................155 2 Terceiros condenados em Ações Civis Públicas por ato de improbidade administrativa: uma análise dos casos concretos – Eduarda Simonetti Pase e Janriê Reck .....................191 3 Quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriquecimento ilícito, dano ao Erário ou inobservância dos Princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões – Cynthia Juruena e Denise Friedrich ........213 4 Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurisprudência do TJRS – Karine Santos e Ricardo Hermany .......................................................................................................................229 5 Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de decisões de 1º grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa – Augusto Carlos de Menezes Beber e Luiz Egon Richter .................................................................................257 6 O nepotismo nas condenações e absolvições na Ação Civil Pública e improbidade administrativa: critérios e casos de incidência – Rafael Brandini e Ramônia Schmidt ... 285 7 Âmbitos de responsabilidade de servidor público do Poder Judiciário em Ação Civil Pública no Rio Grande do Sul: um estudo de caso concreto das Apelações 70057782294, 70055576037 e 70054719489 – Ianaiê Simonelli da Silva e Jonathan Augustus Kellermann Kaercher ......................................................................................................................... 297 8 A ação popular e o controle social da contratação pública: definindo o que tem sido objeto de ação popular em relação à prática de ato corruptivo – Caroline Müller Bitencourt e Cláudia de Barros Gehres ..............................................................................................315 9 O assédio moral na Administração Pública, dignidade humana e improbidade administrativa: questões hermenêuticas sobre a efetividade do direito administrativo – Leonel Pires Ohlweiler ....................................................................................................353 MENSAGEM INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL A probidade é o norte que deve regular as relações entre o homem e o Estado. A ausência dela representa negação de valores, fator que, infelizmente, se torna cada vez mais evidente. O afastamento do homem dos padrões éticos, como a honestidade e a honradez, faz emergir a corrupção, mal que mais aflige a humanidade neste século. Dita mazela, associada à fragilidade dos padrões éticos da sociedade, está refletida principalmente na vida pública. Sob essa ótica, a importância da obra poderia ser sintetizada pela natureza dos temas abordados, que é pauta de todos os segmentos sociais: a corrupção e crimes de alto impacto no tecido social, bem como o extraordinário papel reservado ao Poder Judiciário nesse delicado momento da vida nacional, quando o combate destas patologias constitui uma das prioridades nacionais. Conhecer o pensamento dos juízes gaúchos, bem como dar parcerias institucionais que temos feito com outros segmentos da Sociedade, como é o caso dos pesquisadores da UNISC que se debruçaram sobre a casuística de nosso Tribunal, neste livro, tem o significado de sinalizar à população acerca do entendimento do Poder Judiciário sobre os postulados morais e éticos da vida pública. Registra a sabedoria e prudência dos julgados, que repelem o desonesto e preservam as garantias da cidadania, fazendo valer o próprio significado da Justiça como valor social. A publicação serve, igualmente, como excelente fonte de informação ao administrador. Cada vez mais se exige preparo para a gestão pública. O controle social da contratação e os mecanismos que estão à disposição da cidadania são temas abordados na obra de forma acadêmica, mas, igualmente, com sentido prático. Honra-nos, sobremaneira, como Presidente do Tribunal de Justiça, apresentar a obra idealizada por ilustres juristas, que tem, como pano de fundo, a qualidade das decisões da nossa Corte. Estimo proveitosa e boa leitura. Des. José Aquino Flôres de Camargo, Presidente do TJRS. MENSAGEM INSTITUCIONAL DA UNISC O presente livro “TEMAS POLÊMICOS DA JURISDIÇÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL: DOS CRIMES AOS ILÍCITOS DE NATUREZA PÚBLICA INCONDICIONADA” é fruto de intensos estudos e debates promovidos pelo grupo de Estudos Patologias Corruptivas no Estado, Administração Pública e Sociedade, do Programa de Pós-Graduação em direito (Mestrado e Doutorado), da UNISC, coordenado pelo Doutor e Desembargador Rogério Gesta Leal, e sua interlocução com dois outros renomados programas de Pós-Graduação em Direito do Rio Grande do Sul, a saber, da Universidade Lasalle, nas figuras dos pesquisadores, Doutores e Desembargadores Jayme Weingartner Neto, Diógenes V. H. Ribeiro e Leonel Pires Ohlweiler; e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, na pessoa do pesquisador Doutor e Desembargador Nereu Giacomolli. Ainda estão presentes aqui outros ilustres desembargadores, juiz de direito, alunos do mestrado e doutorado, todos associados com o Centro de Estudos do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul, sob a Direção do Desembargador Ney Wiedemann Neto, com apoio e financiamento editorial do próprio Tribunal de Justiça do RS. As temáticas selecionadas têm gerado intensos debates nas mais diversas áreas do conhecimento, haja vista os tópicos complexos que abordam, daí a importância de se eleger a jurisprudência do Tribunal gaúcho – um dos mais respeitados em todo o País – como fio condutor da eleição dos conteúdos de cada contribuição. Optou-se pela divisão do livro em dois momentos, sendo que, as contribuições foram orquestradas conforme a linha de enfrentamento: administrativa e penal. Primeiramente, estão os trabalhos que versam sobre a análise de casos polêmicos da jurisdição criminal. A posteriori, encontram-se os casos de violação dos interesses da administração pública no âmbito da contratação pública. Uma breve explanação acerca da orientação metodológica para redação dos referidos artigos é de fundamental importância para situar o leitor, a saber, a do caso concreto, a partir de abordagens descritivas, analíticas e prospectivas. No primeiro momento, o descritivo, os esforços voltam-se aos elementos de identificação, qualificação e contextualização do caso, a fim de destacá-lo de seu contexto, elucidando-se o máximo de informações fáticas acerca dele; diagnosticar e aprofundar para uma melhor análise os elementos quantitativos e qualitativos do caso; permear com elementos que ligam o caso ao conjunto da realidade social, a partir da identificação dos agentes envolvidos, os meios e os resultados que se relacionam. No segundo momento, o analítico, buscou-se a demarcação dos fatores, variáveis, agentes que participam deste caso, bem como suas implicações múltiplas (econômicas, políticas, ideológicas, culturais, religiosas, etc.), além do enquadramento normativo matriz. No terceiro momento, o prospectivo, buscou-se definir quais os cenários de enfrentamento do caso que estão presentes na espécie, possibilidades de ação (jurídica, política, social, cultural, etc.), e tarefas a realizar – individuais ou coletivas, por meio do enfrentamento dos cenários fáticos e normativos (em todas as suas espécies), considerando-se todos os seus efeitos jurídicos, sociais, econômicos, políticos, culturais e outros; o levantamento das possibilidades de enfrentamento para realocar as perspectivas dos envolvidos fomentando as possibilidades de escolha; e por fim, o acompanhamento por intermédio de tarefas pré-ordenadas a fim de orientar a ação concreta. Ao optar-se pelo estudo da casuística dos julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, demarcou-se bem o período da pesquisa nos referidos artigos. Em momento em que a sociedade brasileira clama por uma administração mais ética e por gestões voltadas a combater e controlar o fenômeno corruptivo que tanto usurpa e inviabiliza a concretização de direitos fundamentais, esta obra pretende trazer uma reflexão crítica de casos enfrentados cotidianamente em nossos Tribunais. Que esta parceria tão salutar entre Academia e Poder Judiciário siga em frente em outros projetos de igual importância. Boa leitura a todos. Professor Doutor Desembargador Ro gério Gesta Leal, Professora Doutora CarolineMüller Bitencourt, Organizadores. APRESENTAÇÃO Em um momento como o atual, o debate acerca da improbidade administrativa é bastante oportuno e leva à diminuição de sua infiltração nas instituições, seja por meio da disseminação do conhecimento ou pela conscientização acerca da imoralidade em que estão inseridas as práticas destes atos. Como parte fundamental na preservação do Estado Democrático de Direito, o Tribunal de Justiça preocupa-se com a questão, não apenas em seu âmbito jurisdicional, mas também como objeto de estudo da sociedade em que atua e na busca da extirpação de práticas de improbidade no âmbito institucional. A importância da discussão travada nesta obra é ímpar, tanto para o Judiciário como para a sociedade em geral, pois é momento de uma reflexão moral e ética, a ser entendida sob a perspectiva daqueles que atuam na administração das demandas e das necessidades sociais. O problema necessita de um estudo aprofundado, pois apenas o debate claro e aberto acerca do tema pode promover a resolução dos conflitos postos à apreciação do Poder Judiciário e a preservação institucional. A corrupção – uma das formas pela qual se apresenta a improbidade – pode ser considerada um fenômeno inerente à sociedade moderna, e os episódios, cada vez mais constantes, abalam a credibilidade e confiança da população nas instituições públicas. O Poder Judiciário deve estar atento e atuar como um propulsor na busca pela elucidação dos elementos que medeiam a improbidade, em um diálogo direto com a sociedade, buscando um verdadeiro resgate do caráter ético da função pública, tendo sempre a moralidade administrativa como elemento basilar da Administração. Demonstrar a ótica pela qual o Judiciário vê a questão da improbidade administrativa, não apenas aos operadores do direito, mas a toda a sociedade, reforça o ideal de confiança e abre caminhos para uma reflexão profunda a respeito das consequências do fenômeno sistêmico da corrupção. A edição deste trabalho demonstra a preocupação desta Corte com a prevenção e repressão à improbidade administrativa, traduzindo-se em uma oportunidade para refletir sobre o assunto e semear um pacto de integridade em todos os setores da sociedade. Ney Wiedemann Neto, Coordenador-Geral do Centro de Estudos do TJRS. I – ANÁLISE DE CASOS DA JURISDIÇÃO CRIMINAL DISPENSA DE PENA EM TRÁFICO PRIVILEGIADO: PARA UNIVERSALIZAR UMA RESPOSTA CONCRETAMENTE JUSTA Jayme Weingartner Neto1 K bateu nas portas da Corte, já condenado a quase dois anos de reclusão, que seriam substituídos por duas penas restritivas de direito, e multa, pois, um ano antes, ao visitar o filho adolescente internado na FASE, fora flagrado, na revista antes do ingresso, com três tijolinhos de maconha (1,65g). No apelo, K alegou que, diante da bagatela, devia ser absolvido, e que não se tratava de prática habitual. K, pedreiro de profissão e primário, ficou preso preventivamente cerca de quarenta dias. K, de fato, trazia consigo a droga, como confessou. Disse que estava levando o entorpecente para seu filho, usuário de drogas desde os 14 anos de idade. Contou que o filho pedia, insistentemente, para que levasse maconha, e ele acabou cedendo. Disse que não é usuário e nunca usou drogas. K estressa o sistema de justiça criminal, ao provocar uma pergunta crucial: quid juris quando se defronta com injusto culpável e punível de crime abstratamente grave cuja moldura sancionatória, ao cabo e presentes peculiaridades pessoais e vicissitudes processuais, ainda que comprimida no limite de flexibilidade do sistema, persiste desproporcional? O presente texto, partejado pelo encontro com um K real, propõe manter a condenação, com a inarredável declaração de culpa, mas afastar a pena, que 1 – Desembargador TJRS, Doutor em Direito do Estado (PUCRS) e Mestre em Ciências Jurídico- -Criminais (Coimbra), Professor PPGDIR Unilasalle (Canoas). 16 Jayme Weingartner Neto se revela concretamente desarrazoada, aplicando-se o instituto da dispensa de pena que, embora sem previsão em regra específica do sistema penal brasileiro, coaduna-se com os princípios e vetores que orientam nossa política criminal.2 Para tanto, em breve preliminar, enfatiza-se a atualidade sociológica do tema, em face do caráter epidêmico que o consumo/tráfico de drogas assume nesta quadra da vida real, de modo a multiplicar os casos difíceis. Basta, por exemplo, trocar K por E, supondo uma mulher matricial, parente ou afeto de um apenado e que, por circunstâncias muito variadas, tenta ingressar com droga nos estabelecimentos prisionais. A seguir, enquadra-se o caso de K no aspecto mais amplo da racionalidade da resposta jurisdicional. Na sequência, diante da ausência de regra positivada no direito brasileiro e, até onde conheço, de precedentes, o texto cumpre o dever redobrado de fundamentar a senda jurisprudencial aventada.3 Ao cabo, procuro justificar as referências ao direito comparado e à doutrina estrangeira, sumarizando a estratégia de política criminal. O contexto no qual se movem K e seu filho adolescente representa um dos grandes desafios sociais deste início de século, encontrar uma política pública adequada para enfrentar os problemas de saúde e segurança públicas mais evidentes, na esteira da dimensão econômica, decorrentes do fenômeno mundial do uso e abuso de drogas. Ressalto, logo, que há uma disputa intercultural fermentando na esfera pública, sobressaindo, em nível nacional, a polêmica em torno das “marchas da maconha” – tendo o STF assegurado aos diversos grupos sociais os direitos fundamentais de reunião e liberdade de expressão com o objetivo de criticar os modelos normativos em vigor, inclusive podendo exercer proselitismo em torno do abolicionismo penal na matéria, o que não se confunde com incitação à prática de 2 – Essa, ao menos, foi a resposta encontrada na Apelação-Crime nº 70053574067, TJRS, Terceira Cri- minal, Rel. Des. Jayme Weingartner Neto, j. em 27/6/2013. No acórdão, à unanimidade, deu-se parcial provimento ao apelo para manter a condenação, mas dispensar o cumprimento da pena, inclusive a de multa, certificando-se, para fins de antecedentes, a data do trânsito em julgado da decisão colegiada como data do cumprimento da pena. 3 – Já consignei, no contexto de correição parcial que versava sobre declaração incidental de incons- titucionalidade (nº 70051127132, TJRS, 3ª Câm. Crim.), que se exige do magistrado fundamentação robusta, clara e objetiva, “mormente ao veicular tese visivelmente minoritária, bem como recomenda-se diálogo, horizontal e vertical, com os precedentes judiciais em sentido contrário, notadamente Súmula e decisões dos Tribunais Superiores”. 17 Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa delito nem se identifica com apologia de fato criminoso.4 No plano exterior, notória a iniciativa do Uruguai, cuja Lei 19.172, de 07/01/2014, mesmo rejeitada por 63% da população, legalizou, sob certas condições regulamentadas, a importação, produção, aquisição, armazenamento, comercialização e distribuição de maconha. Embora o atual modelo brasileiro pareça dominante (medidas de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, que convivem com a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas), inclusive na linha das convenções internacionais, é possível que estejamos atravessando uma fase de transição, flexibilizando-se as políticas nacionais (mais do que fruto de convicção ideológica, por razões pragmáticas diante das dificuldades de combate efetivo ao narcotráfico), adotando experimentações (como o Uruguai) e incrementando a luta contra as organizações criminosas.5 Mesmo em relação ao tráfico, as respostas não costumamser homogêneas, em voga, articuladas com políticas de saúde, alternativas ao encarceramento, como a previsão de redução e substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direito no que se tem chamado, no Brasil, de tráfico privilegiado.6 Seja como for, as taxas de encarceramento permanecem altíssimas e as ocorrências apresentam viés de alta. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014, considerada a quantidade de crimes tentados/consumados, o tráfico de drogas é a segunda maior incidência, subindo de 25,5% em 2012 para 25,9% em 2013 (146.276 casos, de um total de 563.711)7. 4 – Na ADPF nº 187, rel. Min. Celso de Mello, j. 15/6/2011, o STF deu, ao art. 287 do Código Pe- nal, interpretação conforme à Constituição “de forma a excluir qualquer exegese que possa ensejar a criminalização da defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, inclusive através de manifestações e eventos públicos”. Para além das celeumas a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso e dos fins exclusivamente medicinais ou científicos (art. 2º da Lei nº 11.343/2006). 5 – Do que é testemunho, no Brasil, a Lei nº 12.850, de 02/8/2013, não obstante o Projeto de Lei da Câmara nº 37, de 2013, que representa certo endurecimento na política nacional de drogas, por exemplo com a internação involuntária para tratamento do usuário, isto é, sem o consentimento do dependente de drogas. 6 – Destinado, nos termos do § 4º do art. 33 da Lei de Drogas – aprofundado o benefício, causa pessoal de diminuição de pena, pelo STF (para além da previsão original do legislador) –, ao agente, cumula- tivamente, primário, de bons antecedentes, que não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. 7 – Perde apenas para os crimes contra o patrimônio, que representam 48,9% dos crimes. Para que se tenha uma ideia das grandezas, o terceiro item, em ordem decrescente, os crimes contra as pessoas 18 Jayme Weingartner Neto Em Portugal, a política criminal é matéria de direito positivo. Parte-se da Lei nº 17/2006, de 23 de maio (Lei Quadro da Política Criminal), que versa sobre definição de objetivos, prioridades e orientações em matéria de prevenção da criminalidade, investigação criminal, ação penal e execução das penas e medidas de segurança. A condução da política geral é detalhada em leis sucessivas, de dois em dois anos. Sintomático o tratamento ao tráfico de drogas na Lei nº 38/2009, de 20 de julho, que regulou o biênio 2009-2011. Seu art. 2º, alínea “a”, dentre os objetivos específicos, elenca a prevenção, repressão e redução da criminalidade violenta, grave ou organizada, categoria na qual inclui a associação criminosa dedicada ao tráfico de drogas. Logo a seguir, tendo em conta a dignidade dos bens jurídicos tutelados e a necessidade de proteger as potenciais vítimas, considera crime de prevenção prioritária o tráfico de drogas (art. 3º, 1, “f ”). Nada obstante, adiante, ao delimitar o âmbito das orientações sobre a pequena criminalidade, refere o tráfico de menor gravidade ou praticado pelo traficante consumidor (art. 15, letra “d”), sendo medida aplicável, neste caso, dentre outras, a possibilidade de arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 16, 1, “a”).8 (homicídios simples e qualificados, sequestro e cárcere privado) alcançam 11,9% dos casos (o sen- so comum aposta na forte correlação entre homicídios e disputa por territórios entre traficantes) – cf. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014 (ano 8), Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Tabelas 38 e 39 – Quantidade de crimes tentados/consumados, pp. 78-80, disponível em http://www. forumseguranca.org.br/storage/download//8anuariofbsp.pdf, acesso em 07/01/2014. Se a taxa na- cional, em 2013, para o tráfico, chegou a 73,3 ocorrências por 100 mil habitantes, no Rio Grande do Sul a taxa vai a 89,2; no que tange à posse e uso, para uma taxa nacional de 60,5, o Rio Grande do Sul apresenta impressionantes 130,1 (idem, Tabela 7 – Leis especiais, por tipo, p. 26). Quanto ao sistema penitenciário, Fábio de Sá e Silva observa: “O crescente encarceramento, com ênfase em jovens, negros e por cri- mes associados a entorpecentes, o crescimento do déficit de vagas em estabelecimentos penais, e o aumento do número de presos em situação provisória explicam por que o Brasil caminha resoluto para alcançar posições de destaque entre os países que mais encarceram.” (Anuário, p. 82, grifei) – atualmente em quarto lugar no ranking, atrás do EUA, China e Rússia, o Brasil já supera a China considerada a taxa de presos por 100 mil habitantes; em 2013, 393,3 para cada 100 mil (Tabela 30 – Presos nos sistemas penitenciários e sob custódia das polícias, pp. 64-5), dos quais 40,1% são provisórios (contra 37,6% em 2012), cf. Tabela 32 – Distribuição dos presos no sistema penitenciário, por situação prisionária, p. 68 – nunca é demais lembrar que a razão presos/vagas subiu de 1,6 em 2012 para 1,7 em 2013 (Tabela 34 – Presos no sistema penitenciário, vagas existentes, razão entre presos e vagas e déficit de vagas, p. 70). 8 – O Anexo (Fundamentação das prioridades e orientações da política criminal) explicita: “(...) con- trolar as principais fontes de perigo para os bens jurídicos, combater fenómenos que minam o Estado de direito democrático, como o tráfico de influência, a corrupção e o branqueamento, reprimir o tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas (...) A importância da prevenção e repressão do tráfico de 19 Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa K trazia consigo, para entregar ao filho, um pouco de maconha. Materialidade e autoria incontroversas, no jargão forense. Ainda que não destinado ao comércio, ficou comprovada a circulabilidade do entorpecente. Logo, conduta tipificada no art. 33 da Lei nº 11.343/06. Pode-se, evidentemente, discordar da vereda legal, cogitar de alternativas, mas, no Estado democrático de direito, a política criminal, em primeira linha, é densificada pelo legislador, mormente em temas altamente controvertidos, tanto moral quanto empiricamente. Todavia, a simples punição de K (que já “pagou” quarenta dias no Presídio Central, vale lembrar), mesmo na figura privilegiada do § 4º do art. 33, assombra a consciência/sensibilidade dos sujeitos processuais. O Ministério Público, em segundo grau, na busca da proporcionalidade, opinou pela desclassificação para o delito previsto no artigo 33, § 3º, da Lei nº 11.343/06 (tráfico de uso compartilhado), e, na excepcionalidade do caso concreto, dando-se por extinta a punibilidade, considerando a pena corporal (já experimentada na “preventiva”) como suficiente.9 Ademais, sendo o tráfico crime de perigo abstrato, cujo bem jurídico protegido é a saúde pública, a priori não se aplica o princípio da insignificância nos delitos relacionados aos entorpecentes, sendo irrelevante a pequena quantidade de droga apreendida (STJ, HC 156543 / RJ, 6ª T., j. em 25/10/11 e HC 248652 / MT, 5ª T., j. em 18/10/12, STF HC 102940/ES, 1ª T., j. em 15/02/11 e HC 103684 / DF, Tribunal Pleno, j. em 21/10/10).10 NR – Analisadas as circunstâncias e os estupefacientes e substâncias psicotrópicas justifica a sua manutenção como prioridades. (...) é sabido que a criminalidade violenta contra bens patrimoniais tem como uma das principais causas a necessida- de de sustentar o consumo de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas” – item 3, §§ 1º e 8º; “Por último, também a figura do consumidor-traficante justifica a aplicação de orientações sobre pequena criminalidade, tanto mais que a Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, descriminalizou o consumo de estupefacientes, convertendo-o em ilícito de mera ordenação social. Por vezes, as situaçõesde pequeno tráfico instrumental de consumo reclamam, acima de tudo, uma intervenção terapêutica e não a puni- ção pura e simples” – item 4, último §. 9 – Embora a bondade do argumento, descarto a hipótese porque o comportamento de K não se amol- da perfeitamente ao tipo penal em comento. Certo que se pode afirmar que a prática deu-se eventual- mente e sem objetivo de lucro, o que indica incidência típica parcial. Todavia, há incontornáveis distin- ções. Primeira, a conduta imputada a K é de trazer consigo e não de oferecer. Segunda, embora a intenção de K fosse entregar o entorpecente à pessoa de seu relacionamento (filho), a droga não se destinava para consumo conjunto. K afirmou peremptoriamente – e com lealdade (abandonando a linha inaugurada pela defesa técnica) – que não é e nunca foi usuário de drogas. 10 – A questão é polêmica e comporta nuanças que podem alterar o juízo de adequação típica, sempre a depender da constelação fática. A 2ª Turma do STF, por exemplo, concedeu “habeas corpus” de ofício 20 Jayme Weingartner Neto elementos presentes nos autos, restava comprovada a prática delituosa de K. Não sendo, então, caso de absolvição, as regras do jogo indicavam a manutenção da condenação. Tratava-se, a seguir, de estabelecer a pena de K. Já havia manifestado entendimento, em casos similares (ingressar no presídio, durante visita, levando drogas para entrega a detento), cogitando a possibilidade de aplicação fundamentada (e controlável) do princípio da proporcionalidade, para suspender a eficácia da pena acaso consequente, inclusive como atitude pragmática, de evidente repercussão política e repto à administração prisional. Mas não de forma genérica e gerando precedentes de duvidosa assimilação sistemática, e sim no diapasão da prudência jurisdicional, creio que virtude inafastável do Poder Judiciário. As tensões do caso em tela provocaram-me mais intensa reflexão, ao cabo da qual considero possível, proporcional e razoável chegar a resultado semelhante (não idêntico), dispensando-se a pena, sem entretanto violar a teoria geral do delito e tampouco conspurcar o contexto fático que exsurge do contraditório, de modo que a solução proclame-se em sua integridade lógica e axiológica, sem subterfúgio, capaz de harmonizar as exigências tópicas de justiça que o caso encerra e, preservada a segurança jurídica (consideração sistêmica), universalizar-se caso reproduzam-se materialmente as condições de aplicação do decisum.11 para absolver condenado pela prática dos crimes de tráfico e associação para o tráfico. Na espécie, o paciente estava em posse de 1,5g de maconha para “alegados fins de tráfico” e a Turma concluiu não haver prova da existência do fato, diante da pequena apreensão e da ausência de outras diligências inves- tigatórias, pelo que a condenação “representara medida nitidamente descabida”. A Turma oficiou ao CNJ “para que fosse avaliada a uniformização do procedimento da Lei 11.343/2006, em razão da reite- ração de casos idênticos aos dos presentes autos nos quais a inadequada qualificação jurídica dos fatos teria gerado uma resposta penal exacerbada” (HC 123221/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 28/10/2014). Já o STJ, pela Sexta Turma, parece manter a orientação – impossibilidade de aplicação do princípio da insignificância –, mesmo nos casos de porte de substância entorpecente para consumo próprio (art. 28 da Lei de Drogas), como se vê no RHC 37.094/MG, rel. Min. Rogério S. Cruz, j. 04/11/2014, in verbis: “1. Independentemente da quantidade de drogas apreendidas, não se aplica o princípio da insignificância aos delitos de porte de substância entorpecente para consumo próprio e de tráfico de drogas, sob pena de se ter a própria revogação, contra legem, da norma penal incriminadora. Preceden- tes.” (Grifos próprios). 11 – Aqui, válido o ensinamento de Rosito (2012, p. 297), o qual aduz que “a virtude está em identi- ficar o ponto de equilíbrio entre a excessiva flexibilidade, orientada pela justiça do caso concreto, e a excessiva rigidez na aplicação do direito, decorrente do princípio da legalidade, com os limites técnicos impostos pelo ordenamento jurídico, os quais são reveladores de segurança jurídica. O problema central 21 Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa Repito a pergunta da introdução: o que fazer quando se impõe a condenação por crime abstratamente grave cuja sanção, no substrato de vida examinado, mesmo levada ao limite inferior, revela-se desproporcional? A um, evitar a tentação da desconstrução dogmática,12 afirmando com simplicidade que há tipicidade, pois inocorre, aqui, crime impossível;13 que não socorre causa de exclusão da ilicitude e tampouco exculpação por inexigibilidade de conduta diversa (a coação moral que parece aflorar no coração do pai pedreiro não ultrapassa a barreira do resistível).14 A dois, recusar o atalho do decisionismo,15 seja enviesando de tal consiste na individuação de formas idôneas a garantir um equilíbrio racional entre o livre convencimen- to judicial no exame do caso concreto e a necessidade de segurança”. 12 – Nesse sentido, “a pretensão de rejeitar o método dogmático, por considerá-lo inútil, é um infanti- lismo jurídico, próprio de pretensos teóricos gerais que jamais enfrentaram os problemas concretos de algum ramo do saber jurídico. Quando prescindimos da construção desses conceitos, caímos no campo das soluções arbitrárias.” (ZAFFARONI, 2002, p. 166). 13 – Observo que considerar atípico o fato imputado a K significaria, rigorosamente, afirmar a sua irrele- vância penal, uma conduta socialmente neutra aos olhos da tutela penal. Já fundamentei a inviabilidade de reconhecer crime impossível em situações similares. Mesmo que, ad argumentandum tantum, se tratasse de crime de resultado (no caso, o verbo nuclear imputado na denúncia, trazer consigo, aponta para delito formal), não seria o caso de crime impossível. A revista pessoal e nos pertences, no ingresso, quando em visita, ou no retorno à casa prisional, embora constitua elemento que dificulta, não inviabiliza comple- tamente a consumação do delito. Não se trata, portanto, de absoluta ineficácia do meio empregado, mas, apenas, de relativa ineficácia. Por oportuno, como argumento analógico, ressalto que é firme o enten- dimento no STJ no sentido de que a existência de aparato de segurança no estabelecimento comercial não ilide, de forma absolutamente eficaz, a consumação do delito de furto (HC 251913/RS, 6ª T., j. em 13/11/2012). De igual forma, a existência de procedimento de revista pessoal e nos pertences, no ingresso em estabelecimento prisional, não é totalmente eficaz de modo a impedir completamente a consumação de delito de tráfico na modalidade “trazer consigo” drogas para entrega a terceiros dentro do estabeleci- mento prisional. Fato, aliás, notório, a rigor dispensando maiores considerações (confira-se o Voto Venci- do, Apelação-Crime 70053819603, Terceira Câmara Criminal TJRS, j. 09/05/13). 14 – Reconhecer exculpação importaria, a seu turno, proclamar que não há reprovação social em re- lação à conduta de K, o que dificilmente passaria num escrutínio imparcial em qualquer auditório relevante e, certamente, não foi aceito pela FASE e seus agentes socioeducadores. Parece evidente, no contexto do caso, que era exigível de K outra conduta, descabido (e sequer alegado) o reconhecimento de vis compulsiva, isto é, coação moral irresistível (art. 22, 1ª parte, CP), que demandaria constrangimen- to de tal monta que se tornasse impossível de ser vencido por K, diante de ameaça de mal grave, certo e inevitável. Certo que a coação moral resistível importa atenuação de pena (art. 65, III, “c”, CP), inócua, na lógica do texto, em face da solução de dispensa depena. 15 – Há interessante abordagem crítica ao fenômeno, que explora o conceito de zona de autar- quia, “o espaço institucional em que as decisões não estão fundadas em um padrão de racionalidade 22 Jayme Weingartner Neto modo a apreciação dos fatos que resultariam artificiosos e quase irreconhecíveis a um observador imparcial, seja proclamando tout court o resultado justo, segundo o diapasão da sensibilidade magistral, desacompanhada do supedâneo normativo e sistemático. A três, com humildade, reconhecer que, em sendo assim, impõe-se a condenação, seguindo-se que tal conduta, pese sua especificidade, é criminosa e que a resposta sistêmica adequada é declará-lo alto e bom som, inclusive porque não há como extinguir sua punibilidade, à míngua de regra autorizadora – o que leva em conta exigências razoáveis (e democraticamente postas) de prevenção geral e segurança jurídica. A quatro, enunciar as peculiaridades – que tornam a dosimetria tradicional demasiada –, inclusive para que a comunidade jurídica e a opinião pública possam aferir a prudência da avaliação realizada. Quinto, elencar pressupostos necessários para a dispensa da pena, num esforço de demonstrar que o instituto coaduna- -se com o sistema normativo e que futura e eventual aplicação há de amparar-se também em requisitos objetivos e, portanto, ser previsível. Com olhos em K, dos passos um e dois ocupei-me ao motivar a manutenção da condenação nas sanções do art. 33, caput, da Lei de Drogas, presente a minorante prevista no § 4º do citado artigo e justificando a impossibilidade de considerar aperfeiçoado o suporte fático do § 3º do mesmo artigo (ou crime impossível, ou bagatelar). O passo três parece-me premissa aceita por qualquer sistema de justiça que atue no espaço do Estado democrático de direito. Enfrento, na sequência, as tensões dos passos quatro e cinco. O que há, portanto, de peculiar no caso em tela, que torna imperativa solução que esgarça, para aquém, a moldura legal posta pelo legislador? Em realidade, uma confluência de fatores. K é um pai trabalhador de toda uma vida (contava com 50 anos quando do interrogatório), pedreiro, cuja conduta social é abonada e, a boa índole, atestada. Primário, sem qualquer antecedente. A prova oral fala por si, desnecessário qualquer floreio literário. A esposa é funcionária pública municipal, trabalha [...]. Tem dois filhos, um de 14 e outro de 18, que se encontrava preso na FASE por tráfico e que é usuário de drogas desde os 14. qualquer, ou seja, em que as decisões são tomadas sem fundamentação” – sendo raro o caso de que se assuma a postura (“decido assim porque eu quero”), sendo de esperar “alguma forma de falsa fundamen- tação cujo objetivo seja conferir aparência racional a decisões puramente arbitrárias” –, além de apontar a pessoalidade da jurisdição brasileira, conjugados o uso de argumentos de autoridade e uma racionalidade puramente estratégica, tudo a redundar que o “objetivo da autoridade não é, nesse registro, argumentar em nome da melhor solução possível para o caso, mas sim apresentar as razões pelas quais formou sua opinião pessoal sobre qual deve ser a melhor solução para o caso.” (RODRIGUEZ, 2013, p. 69-80). 23 Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa O controle familiar era difícil: o casal saía para trabalhar de manhã e só voltava à noite; o filho estudava até meio-dia e, quando chegavam do serviço, estava em casa. Atribui o ato infracional do filho às más companhias, da [...], que o adolescente continuou a frequentar depois que se mudaram para a [...]. Nas suas palavras: “A gente não tinha como controlar ele. Eu e a mãe dele tinha que trabalhar. Ele estava estudando no [...]. Nós estávamos pagando seiscentos ‘pila’ por mês e trancou a matrícula dele na metade do ano e nós tivemos que continuar pagando para não sujar o nome.”. Quanto ao garoto de 14, perguntado sobre “rédea curta em cima dele”, declarou-se tranquilo, pois “até religioso ele é, se batizou na igreja. A mãe dele também se batizou.” Durante a internação do filho, por aproximadamente um ano e dois meses, visitava-o sempre, revezando-se o casal entre as visitas de quarta-feira e do sábado. Ressalta, mais de uma vez, que em todas, “todas” as oportunidades, visitavam o filho: “Quando a minha mulher não ia na quarta-feira, eu ia. Eu ia no sábado. Em todas as visitas, eu ia visitar ele. [...] Quando ela não pode ir, eu trabalho até meio-dia no serviço e vou para levar as coisinhas para ele lá, para comer, levar roupa. E, sábado, vamos nós três – eu, a mulher e o irmão dele pequeno.”. Pois bem, neste contexto, fazia mais de mês “que ele [o filho internado] estava me enchendo o saco, porque é muito problema na cabeça, serviço e ele. Aí, tanto foi, que eu não sei o que me deu na cabeça que eu... J: Que o senhor levou? I: [Acenou positivamente]. Porque não adianta eu dizer que sou usuário, porque nunca usei droga nenhuma, nunca. Em 50 anos, nunca precisei disso aí. J: Mas como seu filho lhe importunava para o senhor levar droga? Como ele fazia? I: [em todas visitas] Ele pedia: ‘Pai, dá um jeitinho aí! Traz maconha’. Eu digo: ‘Não posso. Nunca fiz isso. Vou acabar me atrapalhando ainda’. Foi o que aconteceu, isso aí. [...] Ele é usuário. Eu não sei se dão remédio para ele, porque ele pediu duas vezes tratamento lá e também não providenciariam uma clínica.”. E, no início de uma tarde de um dia primaveril, K acabou sucumbindo... realizada uma revista, teve que tirar toda a roupa e o agente encontrou as três trouxinhas de maconha na cueca de K. O policial militar de plantão foi acionado. K “teve uma postura tranquila, não teve, não esboçou qualquer reação”. Perguntado o motivo, respondeu: “O guri pede!”. E o socioeducador respondeu para K: “Mas o senhor é pai. O Senhor não pode fazer uma coisa dessas”. Embora ocorra com alguma frequência apreenderem drogas, “não chegou a haver um fato como esse de K”. O flagrante foi homologado pelo Juiz Plantonista e convertido em “prisão preventiva na garantia da ordem pública para evitar reiteração delitiva própria 24 Jayme Weingartner Neto do crime de tráfico” (simples assim). Ao pedir a liberdade provisória, alegando excessivo rigor, a defesa técnica explicou que K “vez em quando faz uso de pequena quantidade” e esqueceu a pequena porção, “sem maldade nenhuma”, no bolso de sua calça. O pedido foi indeferido, já que a matéria “precisa ser esclarecida com o mérito”. Relator do habeas, indeferi a liminar, pois, embora interposto por defensor constituído, “não foi acostado documento algum. Não veio aos autos sequer o decreto prisional ora atacado. Portanto, por ora, não há como verificar o contexto fático-jurídico em que se fundamenta o pedido”. Pautado na primeira sessão subsequente, e à vista das informações, o habeas foi concedido à unanimidade. O fato é que K permaneceu preso cautelarmente, no Presídio Central – com toda a precariedade humanística consabida – cerca de 40 dias. Tal circunstância o Procurador de Justiça considerou “como punição suficiente”.16 Reparo, nesta quadra, que, modo leal e digno, o réu confessou lisamente sua conduta, embora exponencialmente mais grave do que o assumido pela defesa técnica na primeira manifestação processual, exercendo sua autodeterminação existencial sem reserva mental, deixando de refugiar-se num atalho jurídico que poderia emergir da sombra probatória. Também por isso, em homenagem à dignidade que concretamente exerceu no processo, soaria mais que excessivo impor ao pai, para beneficiar-se da conduta privilegiada (art. 33, § 3º, da Lei de Drogas), o consumo conjunto. Se ele, K, não enveredou por tal caminho, mesmo assumindo as vestes de uma formalização in bonam partem, penso que também ao Poder Judiciário resta vedado o recurso da extinção dapunibilidade, que, como premissa, exigiria admitir que K tentava fumar maconha com o filho na FASE, logo ele, pai de família que tem o filho afligido “sob a tortura da droga” – paradoxalmente, a figura privilegiada, nesta configuração fática hipotética, parece mais hedionda que o tráfico em si, na sua modalidade simples. O que me leva ao quinto passo, para justificar e tecer parâmetros que substanciem a dispensa de pena como melhor solução para o caso em tela. Proporção e razoabilidade, ligadas a noções de justiça e equidade, sempre estiveram presentes nas diversas vertentes que desafiam o conceito de direito. Seja na tradição germânica, 16 – A detração (o cômputo da prisão provisória), segundo o comando legislativo (art. 1º da Lei nº 12.736/2012), é vetor a ser considerado pelo juiz que profere sentença condenatória – valor subse- quente à norma –, certo que a regra bitola a operação “para fins de determinação do regime inicial de pena privativa de liberdade” (art. 387, § 2º, do CPP). 25 Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa como proporcionalidade (com seus subprincípios analisados em procedimento trifásico, cláusula inerente ao Estado de direito, art. 1º CF), seja na senda norte- -americana, como razoabilidade (ancorada no devido processo legal substantivo, art. 5º, LIV, CF), o que importa é “a constatação, amplamente difundida, de que a aplicabilidade dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade não está excluída de qualquer matéria jurídica” (SARLET, 2009, p. 396) – naturalmente, trata-se, aqui, do plano da proibição de excesso. A razoabilidade guarda estreita relação com o terceiro subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito (a ponto de a doutrina polemizar acerca da fungibilidade de ambas),17 no esforço de equilíbrio entre meios utilizados e fins colimados, na busca da justa medida, “já que mesmo uma medida adequada e necessária poderá ser desproporcional” (SARLET, 2009, p. 398). Identifico aqui o problema de K, pois a condenação criminal, ultrapassados os filtros racionais da teoria geral do delito e a prova de fogo do acertamento fático realizado pelo contraditório e pela ampla defesa, é medida adequada e necessária, mas “medidas adequadas e necessárias podem, ainda assim, resultar em compressão excessiva do bem afetado pela restrição” (SARLET, 2009, p. 399) – a pena final, no caso, implica excesso, cotejada com as peculiaridades fáticas e vicissitudes processuais especificadas no anterior passo quatro. Percebo que o refúgio, ainda que via analogia material pro reo, nalguma forma de extinção da punibilidade (perdão judicial, por exemplo), desconstitui a declaração de culpa ínsita à sentença condenatória (ex vi dos arts. 107 e 120 do Código Penal), o que desequilibra a equação e violaria a proporcionalidade – agora no horizonte da proibição de insuficiência –, nos tópicos adequação e necessidade, com reflexos presumíveis e verossímeis em termos de prevenção geral.18 17 – No sentido de que o princípio da razoabilidade-proporcionalidade engloba termos a empregar-se de modo fungível, vide BARROSO, 2010, p. 258 e 305. Contra tal equiparação, confira-se SARLET, 2012, p. 213. 18 – Discorrendo acerca das pulsões psicológicas de vingança, e seus reflexos no processo civilizador (Norbert Elias), o neurocientista de Harvard Steven Pinker pergunta (e responde): “Portanto a vingança compensa no mundo real? A ameaça verossímil de punição induz o temor no coração dos potenciais exploradores e os dissuade da exploração? A resposta dos laboratórios é sim. Na verdade, quando as pessoas testam jogos do dilema do prisioneiro em experimentos, elas tendem para estratégias de olho por olho e terminam por desfrutar dos frutos da cooperação. (...) A vingança só pode funcionar como uma contenção caso o vingador tenha uma reputação de ser decidido na vingança e determinado a empreendê- -la mesmo a um alto custo. Isso ajuda a explicar por que a ânsia de vingança pode ser tão implacável, consumidora e, em alguns casos, autodestrutiva (como ocorre com os adeptos do fazer justiça com as 26 Jayme Weingartner Neto Daí a inspiração do direito comparado, notoriamente o instituto da dispensa de pena, previsto no art. 74º do Código Penal Português, localizado no Título III (das consequências jurídicas do fato) do Livro I (Parte Geral), precisamente no Capítulo IV (escolha e medida da pena) e cujos pressupostos vão elencados no referido artigo, 1, alíneas ‘a’, ‘b’, e ‘c’. Literalmente: Artigo 74.º (Dispensa de pena) 1. Quando o crime for punível com pena de prisão não superior a 6 meses, ou só com multa não superior a 120 dias, pode o tribunal declarar o réu culpado mas não aplicar qualquer pena se: a) A ili- citude do facto e a culpa do agente forem diminutas; b) O dano tiver sido re- parado; e c) À dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção [...]19. Trata-se, no campo da penalogia, consoante a Introdução [equivalente a nossa Exposição de Motivos], 8 (Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de setembro), de importante inovação na matéria: Na verdade, ‘pode o tribunal não aplicar qualquer pena se a culpa do agente for diminuta, o dano tiver sido reparado e a tal se não opuserem as exigências da recuperação do delinquente e da prevenção geral’ (artigo 75º, nº 1 [74º, nº 1]). [...] Com tais medidas – que o Comité de Ministros do Conselho da Europa re- comenda em resolução de Março de 1976 e que se encontram já consagradas, por exemplo, na Inglaterra, França (por recente lei de 11 de junho de 1975) e também na Áustria (Código Penal, § 42º) – espera o Código dotar a adminis- tração da justiça penal de um meio idóneo de substituição de curtas penas de prisão ou mesmo da pronúncia de outras penas que nem a protecção (sic) da sociedade nem a recuperação do delinquente parecem seriamente exigir20. próprias mãos que matam uma esposa infiel ou um forasteiro insultuoso). Mais ainda, ela é mais efetiva quando o alvo sabe que a punição veio do vingador, de modo que pode redirecionar seu comportamento em relação ao vingador do futuro. Isso explica por que uma ânsia de vingança só se consuma quando o alvo fica sabendo que foi escolhido para sofrer a punição. Esses impulsos implementam aquilo que os teóricos do direito chamam de dissuasão específica: uma punição que é direcionada a um determinado malfeitor de modo a impedi-lo a reincidir em um crime. A psicologia da vingança também implementa o que os teóricos do direito chamam de dissuasão geral: uma punição publicamente decretada que é con- cebida para afugentar terceiros da tentação do crime.” (PINKER, 2013, p. 720-721. Grifos próprios). 19 – Código Penal Português, http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_main.php. Acesso em 12 jun. 2012. 20 – Código Penal Português, http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_main.php. Acesso em 12 jun. 2012. 27 Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa A ideia político-criminal que preside o instituto é a declaração de culpa sem declaração de pena. Na lição de Figueiredo Dias: Do que se trata aqui é, na verdade, de comportamentos que integram to- dos os pressupostos da punibilidade – que constituem, isto é, acções (sic) ilícitas, típicas, culposas e puníveis –, mas não determinam a aplicação de qualquer pena (antes só a declaração de que o agente é culpado) em virtu- de de seu caráter bagatelar, ligado à falta de carência de punição do facto concreto. Em casos tais, manda a lei que se não aplique uma pena, pura e simplesmente, porque ela não surge, perante as finalidades que deveria cumprir, como necessária. (DIAS, 1993, p. 314. Grifos no original). Note-se que o instituto não pertence à categoria da punibilidade do fato (hipótese em que ainda estaria dentro da doutrina do crime),mas sim “já ao domínio específico das consequências jurídicas do crime, e, portanto, como produto de um acto (sic) especial de determinação da pena” (DIAS, 1993, p. 315- 316). Tanto que a sentença que pronuncia uma dispensa de pena é uma sentença condenatória (assim prevista formalmente no CPP Português, art. 375º-3),21 inclusive acarretando condenação em custas. “Tudo isto faz compreender que a problemática da dispensa de pena se desenvolve a um nível político-criminal e dogmático diferente do das condições de punibilidade do facto e, na verdade, ao nível da determinação da pena; não sendo pois exactamente a categoria da dignidade punitiva do facto – a mesma que está na base das condições materiais de punibilidade – mas a da necessidade da pena que dá fundamento ao instituto.” Pode-se, assim, vislumbrar “algo de uma pena de substituição” e, embora pareça formalmente contraditório, “o que existe verdadeiramente é uma pena de declaração de culpa, ou, se se preferir, uma espécie de admoestação em que esta resulta, sem mais, da declaração de culpa” (DIAS, 1993, p. 317. Grifos no original). Quanto aos pressupostos, tenho que podem ser transpostos ao direito brasileiro, mas reconheço que o maior embaraço seria a pena aplicável – pois em Portugal é preciso que o crime seja punível com pena de prisão não superior a 6 meses, na lógica legislativa de que o instituto geral da dispensa de pena só tenha lugar em relação à pequena criminalidade, num juízo abstrato de que se trata de 21 – Código de Processo Penal Português. http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_main.php. Acesso em 11 jun. 2013. 28 Jayme Weingartner Neto crime leve – de menor potencial ofensivo, na dicção do art. 98, I, CF. Entretanto, o tráfico é, consabido, crime hediondo por equiparação (CF, art. 5º, XLIII). Penso, contudo, contornável a objeção por dois argumentos: (i) a privação de liberdade no caso de K foi afastada na consideração final da pena, justo em função de minorante prevista pelo legislador (§ 4º do art. 33 da Lei de Drogas), o que permitiu, consoante regra geral posta no art. 44 do Código Penal, a substituição por penas restritivas de direito – vale dizer, o sistema penal brasileiro, sopesado legislativa e jurisprudencialmente (notadamente em face de decisões do STF), permite que o tráfico de drogas pelo qual K foi condenado não seja punido com pena de prisão, vetor axiológico relevante; (ii) a dispensa de pena aplicada ao caso dos autos, nas franjas da pequena criminalidade que orbita em torno da epidemia de saúde pública causada pelo atual estágio do tráfico de drogas, compensa a ausência de previsão legislativa específica, com a casuística prudencial realizada pelo Poder Judiciário. No mais, a culpabilidade é diminuta, inclusive pela presença de coação moral resistível, como já sinalei, e sopesados todos os fatores (também a quantidade bagatelar, insuficiente para afetar a tipicidade, mas impressiva e preponderante na dosimetria, aliás junto com a natureza comparativamente menos lesiva do entorpecente, a par da personalidade que K demonstrou e a conduta social auferida – nos termos do art. 42 da Lei nº 11.343/2006) conclui-se que a imagem global pende claramente para um limite de culpabilidade que, embora presente, situa-se na “zona inferior da moldura penal”. Não há dano concreto a ser reparado, tratando-se de crime sem vítima específica e tutelada, como objeto jurídico, a saúde pública. Finalmente, não se opõem exigências preventivas. Evidente, no que tange à prevenção especial, que K não precisa ser neutralizado, despido de periculosidade que periclite a segurança pública e tampouco carece de específica necessidade de socialização. Do ponto de vista da prevenção geral, a dispensa de pena será admissível sempre que, verificados os restantes pressupostos, o tribunal considere que, com a circunstância de o agente ser declarado culpado – o que o instituto da dispensa de pena necessaria- mente supõe –, ligada à natureza condenatória da sentença (supra § 471) e à sua comunicação ao registro criminal [DL nº 39/83, art. 3º, d), hoje L nº 12/91, de MAI21, art. 15º, d)], se alcança o liminar mínimo de pre- venção geral de integração ou de defesa do ordenamento jurídico, não sendo por 29 Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa isso, do ponto de vista da prevenção geral necessária a imposição de uma pena. (DIAS, 1993, p. 320. Grifos no original). Em face de todo arrazoado, necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime em apreço (art. 59, caput, do Código Penal), a melhor solução encontrada foi manter a condenação de K, declarando-o culpado, mas não se lhe aplicar qualquer pena, não subordinando a dispensa de pena ao cumprimento de quaisquer condições, deveres ou regras de conduta. Anoto, por outro lado, que a dispensa de pena, não dizendo respeito às condições do fato delituoso, “mas à necessidade de pena, é eminentemente individual e incomunicável aos comparticipantes” (DIAS, 1993, p. 321. Grifos no original). O recurso ao direito comparado e à doutrina estrangeira, para além da proximidade matrística com o paradigma lusitano, escuda-se na percepção de que Pascal estava errado ao estranhar a dignidade científica da Jurisprudência (Pensées, 1670, fragmento 294, o erro ou a verdade da justiça não resistiriam à travessia dos Pirineos). Em 1998, em Milão, Roxin realizou célebre conferência sobre As tarefas futuras da ciência penal e iniciou sustentando que o objeto desta ciência é muito mais homogêneo do que se tem sugerido e que “a diversidade das normas nacionais não desqualifica a unidade da Ciência do Direito Penal” (ROXIN, 2009, p. 192). Dentre as tarefas científicas no plano nacional, estava logo a elaboração do direito nacional sobre a base internacional, pelo que um determinado problema, a par da tradição pátria, deve buscar argumentos da dogmática dos outros países, “na direção de uma aproximação gradual entre os diversos sistemas penais” (ROXIN, 2009, p. 195). Outra grande tarefa é a reforma do sistema sancionatório, que há de ser socialmente construído e polimorfo a fim de dar conta das “aquisições científicas e das experiências da práxis do mundo inteiro” (ROXIN, 2009, p. 201). Em suma, lançar mão do instituto de dispensa de pena ao caso de K harmoniza, modo proporcional e razoável, as exigências de segurança jurídica, pois a confirmação da condenação mantém a reprovação ao fato delituoso, e de justiça tópica, que demanda a modulação extraordinária que se opera na consequência jurídica do crime, com o ajuste da pena, satisfeita com a declaração de culpa. Cada vez mais, as “opiniões dominantes hoje na doutrina penal alemã não orientam seus sistemas na realidade do ser, como na causalidade ou na finalidade, mas sim na função e finalidade do Direito Penal”, é dizer, os fundamentos sistemáticos baseiam-se na política criminal (ROXIN, 2011, p. 48. Grifos próprios). É consenso hoje na Alemanha (e em Portugal, acrescento), 30 Jayme Weingartner Neto que ao injusto segue a categoria da culpabilidade. Ela tem origem, de acordo com minha concepção, nas finalidades de se determinar a respon- sabilidade penal individual e precisa, em minha opinião, de uma extensão do ponto de vista da prevenção, porque a punição não depende somente da culpabilidade, mas também da necessidade de prevenção. (ROXIN, 2011, p. 53).22 Ao ressaltar a noção de que a política criminal constitui irredutível categoria transcendental de toda decisão de um tribunal criminal, Costa Andrade é lapidar: “Ao decidir do se, do como e do quanto duma condenação penal, o Tribunal cumpre a lei, dando expressão aos desígnios de política criminal, presentes, de forma mais ou menos exposta, mais ou menos larvada, em todos os preceitos legais convocados para a soluçãodo caso” (ANDRADE, 2009, p. 214. Grifos no original). Enfatiza, ainda, os problemas da execução das reações criminais, em geral, e da ressocialização, em particular, que correspondem a indeclinável imperativo constitucional, além de um “programa expressa- mente assumido pela lei ordinária”, sendo certo que é o juiz que “iden- tifica, assume e pondera os valores coenvolvidos na hora de decidir em nome ou em função da ressocialização; é ele que opera a superação dos conflitos e detém o domínio dos institutos de mais óbvia relevância resso- cializadora. (ANDRADE, 2009, p. 217).23 Espero, ao cabo, sustente-se a racionalidade da decisão jurisdicional fundamentada no texto, orientada pela melhor política criminal e ancorada numa concepção teleológico-racional do sistema penal. 22 – A concepção sistêmica de Roxin implica agregar as necessidades de prevenção à culpabilidade, agrupando-as numa categoria que chama de “Responsabilidade”. A solução do texto não implica, ne- cessariamente, adesão global à tese. De toda sorte, chega-se ao mesmo resultado: “A pena pode, por exemplo, ser desejável por razões de reinserção social, ser fixada abaixo da medida da culpabilidade, ou mesmo ser completamente dispensada se não há necessidade de prevenção”. (ROXIN, 2011, p. 55). 23 – Dentre tais institutos, menciona a “escolha e medida da pena, suspensão da execução da pena de prisão, trabalho a favor da comunidade, liberdade condicional” (idem). Lembra, também, que a atuali- zação de figuras processuais, como o arquivamento em caso de dispensa de pena, “depende sempre da intervenção necessária e decisiva do Tribunal” (ANDRADE, 2009, p. 218). 31 Dispensa de pena em tráfico privilegiado: para universalizar uma resposta concretamente justa REFERÊNCIAS ANDRADE, Manuel da Costa. “Bruscamente no verão passado”, a reforma do Código de Processo Penal: observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2014 (ano 8). 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Lei nº 38/2009, de 20 de julho (Objetivos, prioridades e orientações de política criminal para o biênio 2009-2011). Disponível em: http://www. pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1117&tabela=leis. Acesso em: 08 jan. 2015. RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais: racionalidade da tutela jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2012. ROXIN, Claus. Prólogo. In OLIVÉ, Juan Carlos Ferre, et al. Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. _____. Pasado, presente y futuro del derecho procesal penal. Trad. Óscar Julián Guerrero Peralta. Buenos Aires: Rubinzal, 2009. SARLET, Ingo Wolfgang (et al). Curso de direito constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. 32 Jayme Weingartner Neto _____. Eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. José Henrique Pierangeli. 4ª ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. LIMITES À INVESTIGAÇÃO POLICIAL: OS PRIVILÉGIOS/DIREITOS DO CIDADÃO NO ESTADO CONSTITUCIONAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O PAPEL CONTRAMAJORITÁRIO DA CONSTITUIÇÃO Diógenes V. Hassan Ribeiro1 INTRODUÇÃO A pesquisa trazida à publicação teve a intenção de por em discussão alguns pontos, possivelmente não esclarecidos, sobre a investigação policial e suas limitações. As noções que aqui se procuram colocar partem da ideia de que os direitos fundamentais são contramajoritários – esta é uma das suas características. Assim, o cidadão tem direitos contra o Estado que, paradoxalmente, foram positivados pelo Estado. Viver em sociedade, é certo, implica uma sobrecarga de obrigações e limitações recíprocas. Essas limitações, responsabilidades e obrigações, contudo, não são de tal monta que o cidadão fique plenamente submisso às vontades e desejos daqueles que exercem uma parcela do poder público estatal, daí o papel contramajoritário da Constituição Federal. De qualquer modo, os direitos fundamentais, a seu turno, por igual não são direitos absolutos, no sentido de serem ilimitados. Há limites aos direitos constitucionais, mas há limites a esses limites. 1 – Desembargador da 3a Câmara Criminal do TJRS; Doutor em Direito Público (UNISINOS, 2006); Mestre em Direito Público (UNISINOS, 2001); Professor titular do PPGD (Sociedade e Acesso à Justi- ça) e da graduação (Direito Constitucional) do UNILASALLE - CANOAS/RS. 34 Diógenes V. Hassan Ribeiro Com efeito, a Constituição impõe diversos limites aos direitos fundamentais, mas também há os limites a esses limites. Assim, quando a Constituição estabelece, no art. 5º, XI, que a casa é asilo inviolável, logo em seguida enuncia as hipóteses em que não prevalece esse direito/garantia fundamental. Essa limitação se vê na possibilidade de ingressar na casa, até então inviolável, se estiver sendo praticado um crime e houver, portanto, situação de flagrante. A outra hipótese é a de desastre, caso em que também fica suspenso esse direito/garantia fundamental, com a possibilidade de ingresso na casa para salvar as pessoas vitimadas ou tentar, de outras maneiras, proteger outras pessoas. E, em qualquer hipótese, na ocorrência de desastre, ou não, também fica suspenso esse direito para que se preste socorro ao morador da casa. No caso de mandado judicial, o seu cumprimento somente pode ocorrer durante o dia. Nesse último caso está prevista a limitação da inviolabilidade, mas no próprio texto há uma limitação/restrição ao limite imposto, pois a execução do ato somente pode ocorrer à luz do dia. Assim, erigida a casa como asilo inviolável, válido enfatizar a expressão asilo que tem sentido, e aqui tem muito mais sentido, ou deveria ter, porque o constituinte poderia ter preferido outra expressão, ou simplesmente eliminado essa expressão, dizendo, simplesmente, que a casa é inviolável. Pelo contrário, o constituinte fez constar a expressão asilo, cheia de sentido. Na etimologia dessa palavra há a concepção de refúgio, assim como o seu significado como lugar de proteção, de amparo. No direito internacional público há a noção de asilo político2, em que os políticos ou pessoas eventualmente perseguidas por governos se asilam em embaixadas de outros países, buscando proteção da perseguição política que sofrem. Nesses termos, essa palavra, asilo, sem dúvida alguma é cheia de sentidos e não pode deixar de ser lida. Colocado esse exemplo inicial, no decorrer do artigo ora publicado, procurar- -se-á trazer à discussão alguns pontos sobre as limitações ao Estado no confronto com os direitos contramajoritários constantesda Constituição Federal. No início convém reconhecer que a criminalidade contemporânea evoluiu e, por isso, possui 2 – O caso atual mais famoso de asilo político é de Julian Assange, o criador do site WikiLeaks, que tem prisão decretada pela Suécia, mas que obteve asilo político na Embaixada do Equador, em Londres, e que está lá há mais de 2 anos. A prisão decorre de acusação por abusos sexuais, mas o receio é de que, preso na Suécia, haja a entrega do asilado ao Estados Unidos, quando então poderá responder pelas di- vulgações de informações secretas e de suposta segurança realizadas no citado site (Acesso em 03 mai. 2015 no http://oglobo.globo.com/mundo/equador-mantera-asilo-politico-julian-assange-12931461). 35 Limites à investigação policial: os privilégios/direitos do cidadão no Estado Constitucional e Democrático de Direito e o papel contramajoritário da Constituição novas, por assim dizer, “tecnologias3”. No outro vértice, compreensível que o aparato estatal de segurança pública e de polícia judiciária também seja dotado de modernas tecnologias, compreendidas estas como instrumentos legais e, ainda, instrumentais tecnológicos. Na última parte a abordagem será, propriamente esse confronto ético/legal/constitucional, entre os meios e os fins, especificamente quanto aos limites ao poder de investigar, prender, enfim, processar. 1. A CRIMINALIDADE CONTEMPORÂNEA E SUAS “TECNOLO- GIAS” Embora seja até incompreensível, há organizações criminosas. Antigamente havia quadrilhas, mas, na contemporaneidade há organizações. Essa mudança, essa sutil mudança, também é cheia de sentidos. Quando se cogitava apenas do tipo do art. 288 do Código Penal, em momento anterior à Lei nº 12.850/2013, havia uma simplicidade maior na significação do delito nessa modalidade, porque se tratava da chamada “quadrilha ou bando”. Atualmente fala-se em “associação criminosa” naquele tipo penal e, desde Lei nº 9.304/1995 fala-se em “organização criminosa”, embora não com a atualização conceitual de que trata a Lei nº 12.850/2013. O antigo art. 288, na sua redação revogada, mencionava que constituía crime “associarem-se, mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes”. A redação atual tipifica o crime de “associação criminosa” e enuncia: “associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes”. Portanto, atualmente, bastam 3 pessoas, enquanto que antes devia haver ao menos 4 pessoas para ser considerada a hipótese de quadrilha ou bando. E a Lei nº 12.850/2013 produziu profunda e importante alteração na compreensão do que seja “organização criminosa”, em relação ao que havia na Lei nº 9.034/1995, esta que já possuía 18 anos de edição e merecia uma atualização. A Lei nº 12.850/2013 trouxe a definição do que seja organização criminosa4, conforme o art. 1º, § 1º: 3 – Quando se tratar de criminalidade, a expressão tecnologia vem entre aspas porque não se compreen- de que o ilícito deva ter igual tratamento que o lícito. É um preconceito semântico do autor apenas. Mas quando se tratar de tecnologia propriamente, a expressão quer significar: técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da atividade humana. Portanto, a adaptação legislativa é um instrumento posto à disposição da investigação policial e que introduz novos meios de investigação. 4 – Esta definição já existia e estava inserta no art. 1º da Lei 12.694/2012, que possibilitou o julgamento colegiado, em primeiro grau, de crimes praticados por organizações criminosas. 36 Diógenes V. Hassan Ribeiro Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional. Assim, para a associação criminosa bastam 3 pessoas, no mínimo, enquanto que para considerar haver organização criminosa deve haver 4 pessoas, pelo menos. O essencial, portanto, na organização criminosa é que está “estruturalmente ordenada” e que há “divisão de tarefas”. Nesses termos, se antes havia a formação de quadrilha ou bando para a prática de crimes, desde há muitos anos houve uma evolução sensível, em outros países. Na Itália havia a máfia, ou La cosa nostra. Nos Estados Unidos, quando a máfia italiana lá chegou, passou a ser conhecida como sindicato do crime. Há algumas décadas são conhecidas outras organizações internacionais como, na Colômbia, o Cartel de Medelín e o Cartel de Cali, assim como outras mais antigas: a Yakuza de origem japonesa, a máfia russa e a máfia chinesa (tríade). Há também máfias da prostituição que operam com o tráfico de mulheres e pessoas. No Brasil, as organizações criminosas, dizem alguns, teria iniciado com o popular “jogo do bicho”, pois, com a sua proibição, passaram a existir contraventores em todas as regiões do país. Também há a hipótese da ditadura militar, que teria feito com que os presos políticos dividissem suas celas com os presos comuns e, daí, aqueles teriam com estes aprendido formas de melhor se organizarem. E existem diversas organizações criminosas que nasceram nas casas prisionais e, ainda e pior, de lá são comandadas. Há o PCC – Primeiro Comando da Capital, o Comando Vermelho Rogério Lemgruber (que teria nascido da união entre presos políticos e presos comuns). No Rio Grande do Sul há, atualmente, a chamada organização “Balas na Cara”. Existem outras em diversos estados da Federação, mas algumas têm ramificações e extensões em diversos estados. Atualmente, no Rio de Janeiro existem várias organizações criminosas: (i) máfia das vans; (ii) máfia da milícias; (iii) máfia do óleo; (iv) máfia das drogas; (v) máfia das máquinas caçaníqueis; e (vi) máfia do jogo do bicho, além de outras. É certo que algumas funcionam vinculadas a outras, como se chegou a dizer em relação ao narcotráfico que passa a agir conjuntamente com algumas outras. A corrupção, ou a participação de servidores públicos, policiais ou não, 37 Limites à investigação policial: os privilégios/direitos do cidadão no Estado Constitucional e Democrático de Direito e o papel contramajoritário da Constituição e possivelmente de políticos, assim como a lavagem de dinheiro, andam sempre juntas com essas máfias. Assim, as organizações criminosas se estruturam e se vinculam em regiões, bem como atuam com divisão de tarefas e de funções, atemorizando os cidadãos que convivem com esse tipo de delinquência, ou cooptando esses mesmos cidadãos e “empregando” outros. Por igual, em busca de proteção, cooptação, compromisso e de silêncio, prestam favores e determinados “serviços públicos”. Essa estrutura organizada opera envolvendo pessoas que possuem alto conhecimento técnico, com formação superior, como auxiliares em comunicações por sistemas de internet, de lavagem de dinheiro e de logística operacional. Pessoas que literalmente vivem da prática de crimes, como se fosse uma profissão. Não é possível, portanto, prosseguir no combate à criminalidade dos tempos atuais, com instrumentos, legais inclusive, do combate à criminalidade de antes, que operava ostensivamente, com roubos a bancos e carros fortes, com roubos a cidadãos, sequestros, estelionatos, estupros, tráfico de drogas em espectro irrelevante. Isso não quer dizer que essa criminalidade de antes não existe mais. Pelo contrário, continua a existir. Todavia, para o combate à criminalidade dos tempos atuais exige- -se um melhor preparo investigatório e, para tanto, são necessários instrumentos contemporâneos, legais e técnicos, especialmente de formação dos policiais. 2. A TECNOLOGIA NA INVESTIGAÇÃO
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