Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Co ns tit uc io na lis m o Co nt em po râ ne o & P ol íti ca s Pú bl ic as II - C lo vi s G or cz ev sk i e M ôn ia C la ris sa H en ni g Le al (o rg .) constitucionalismo contemporâneo & políticas públicas II Clovis Gorczevski Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) constitucionalismo contemporâneo & políticas públicas II Clovis Gorczevski Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) constitucionalismo contemporâneo & políticas públicas II Editora Imprensa Livre Rua Comandaí, 801 Porto Alegre/RS CEP: 90.830.530 karla.editora@gmail.com Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C758 Constitucionalismo contemporâneo & políticas públicas II / Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal, organizadores. – 1. ed. – Porto Alegre: Imprensa Livre, 2020. 664 p. ISBN ISBN 978.65-88604-30-4 1. Constitucionalismo. 2. Políticas públicas. I. Gorczevski, Clovis. II. Leal, Mônia Clarissa Hennig. CDU 342 Bibliotecária responsável: Andréa Inês Calini – CRB 10/2029 ISBN 978.65-88604-30-4 1ª edição – 2020 É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, sem autorização expressa do autor ou da editora. A violação importará nas providências judiciais previstas no artigo 102, da Lei nº 9.610/1998, sem prejuízo da responsabilidade criminal. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO A RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA NO DIREITO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE COMO DIMENSÃO DA SOLIDARIEDADE: INTERSECÇÃO ENTRE PÚBLICO E PRIVADO André Viana Custódio Ismael Francisco de Souza A ATUAL TRANSFORMAÇÃO DO PROJETO DO DIREITO ADMINISTRATIVO SOCIAL E A ABERTURA DAS VIAS DA NECROPOLÍTICA BRASILEIRA Caroline Muller Bitencourt Davi Michels Ilha CONSEQUÊNCIAS DA MÁ GESTÃO NA PRESTAÇÃO AO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE Caroline Fockink Ritt Luiza Eisenhardt Braun JUDICIALIZAÇÃO E ATIVISMO JUDICIAL NA ÁREA DA SAÚDE: INSTITUTOS DISTINTOS PARA ABORDAGEM DA MESMA TEMÁTICA Jônatas Barcelos dos Santos Adriane Medianeira Toaldo JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: OS REFLEXOS DO DIREITO INDIVIDUAL FRENTE À COLETIVIDADE NOS MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO Vanessa Ferreira Gomes Adriane Medianeira Toaldo A PROTEÇÃO INTERNACIONAL PARA PREVENÇÃO E ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL André Viana Custódio Fernanda Martins Ramos A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19) E O EMPREGO DOMÉSTICO COMO “GUETO” FEMININO NO BRASIL: UMA ABORDAGEM PELA METATEORIA DO DIREITO FRATERNO COMO PRÁTICA DE (RES)SIGNIFICAÇÃO DO MUNDO REAL Gabrielle Scola Dutra Charlise Paula Colet Gimenez IRREPETIBILIDADE DOS VALORES RECEBIDOS DE BOA-FÉ, POR MEIO DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA ANTECIPADA, NO ÂMBITO DO DIREITO PREVIDENCIÁRIO, COMO FORMA DE GARANTIA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Josiane Borghetti Antonelo Nunes Júlia Inês Melchiors A AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA DOS DADOS PESSOAIS COMO DEVER DE PROTEÇÃO Laís Michele Brandt Luiz Gonzaga Silva Adolfo A (IM)POSSIBILIDADE DA PRISÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA SOB AS ANÁLISES DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Caroline Fockink Ritt Georgea Bernhard UMA DIALÉTICA ENTRE ALGUMAS CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS E A METATEORIA DO DIREITO FRATERNO: (IM)POSSIBILIDADES DE APROXIMAÇÕES HEURÍSTICAS COM EFICÁCIA PRÁTICA NA DINÂMICA DA SOCIEDADE COMPLEXA Gabrielle Scola Dutra Charlise Paula Colet Gimenez A PROTEÇÃO JURÍDICA ÀS MULHERES LÉSBICAS, TRANSEXUAIS E TRAVESTIS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR NA ESFERA TRABALHISTA Suzéte da Silva Reis Isadora Hörbe Neves da Fontoura AS CANDIDATURAS AVULSAS E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL André Emílio Pereira Linck Filipe Ariel Brandt A ATUAÇÃO JUDICIAL NA CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO PÓS–DEMOCRÁTICO: ENTRE O GUARDIÃO OU O ALGOZ DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS? Caroline Osório Caroline Muller Bitencourt A SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA ENTRE O DIREITO PÚBLICO E PRIVADO NO ÂMBITO DO PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL COMO FORMA DE CONCRETIZAÇÃO DA SOLIDARIEDADE Érica Veiga Alves Dérique Soares Crestane A REESTRUTURAÇÃO CURRICULAR DO ENSINO FUNDAMENTAL E OS IMPACTOS NO APRENDIZADO E NA APROVAÇÃO DOS ESTUDANTES DO MUNICÍPIO DE ENCANTADO-RS, NO ANO DE 2016 Guilherme Schneider Girotto Leila Viviane Scherer Hammes O INSTITUTO DA EXPROPRIAÇÃO NOS CASOS DE TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO Higor Neves de Freitas Dérique Soares Crestane PONDERAÇÕES SOBRE A NORMATIVIDADE DO VALOR SOCIAL DO TRABALHO, DA LIVRE INICIATIVA, E DA DOUTRINA DOS DIREITOS HUMANOS E EMPRESAS E O (IN) JUSTIFICÁVEL NÃO RECOLHIMENTO DE TRIBUTOS EM CONTEXTOS DE CRISE ECONÔMICA Lucas Reckziegel Weschenfelder OS ANIMAIS NÃO HUMANOS E A JUDICIALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Katiele Daiana da Silva Rehbein Felipe Dalenogare Alves (IN) APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA NOS CASOS DE UNIÃO HOMOAFETIVA Thânise Cassero de Souza Ana Paula Pinto da Rocha A OMISSÃO DA PREVISÃO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL À LUZ DAS TEORIAS SOBRE DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL DE HART E DWORKIN Tatiele Gisch Kuntz Helena Pacheco Wrasse A PARTICIPAÇÃO SETORIZADA NOS LUCROS OU RESULTADOS E A ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA À LUZ DA REFORMA TRABALHISTA Ana Paula Cunico Paulo Henrique Schneider A CORRUPÇÃO E A VIOLAÇÃO AO DIREITO HUMANO DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA Márcio Bonini Notari Matheus Figueiredo Nunes de Souza O DISCURSO DE ÓDIO NAS REDES SOCIAIS: LIBERDADE DE EXPRESSÃO VERSUS OS DIREITOS PERSONALÍSSIMOS Katiele Daiana da Silva Rehbein André Inácio Silva Lopes HERANÇA DIGITAL: UMA ANÁLISE DOS PROJETOS DE LEI Nº 4.099/12, 4.847/12 E 5.820/19 E OS SEUS IMPACTOS EM RELAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PRIVACIDADE Mariano Rodrigues da Costa Civana Silveira Ribeiro 10 sumário APRESENTAÇÃO Apraz-me muito apresentar esse livro que trata das te- máticas relacionadas ao Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas, neste ano de 2020, vol. II. A publicação do livro que o leitor tem em suas mãos é resultado de muito trabalho e comprometimento com a pesquisa. Os textos aqui reunidos são estudos que têm por objeto temas atuais, con- troversos e de elevada repercussão científica. O Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Douto- rado) em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, incentiva a produção de textos científicos, objetivan- do a socialização dos resultados nos últimos anos das pes- quisas, e claro, o compartilhamento do conhecimento. Com efeito, o livro Constitucionalismo Contemporâneo & Políti- cas Públicas, vai a fundo na discussões sobre judicialização e ativismo judicial na área da saúde, a atuação judicial na con- solidação do estado pós–democrático, o fenômeno das can- didaturas avulsas e o Supremo Tribunal Federal. Quais são os fundamentos da proteção internacional para prevenção e erradicação do trabalho infantil? Como a responsabilidade 11 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário compartilhada no direito da criança e adolescente constitui- -se em dimensão da solidariedade? Esse livro apresenta, ainda, atualidades sobre o direito administrativo social e a abertura das vias da necropolítica brasileira, consequências da má gestão na prestação ao direi- to fundamental à saúde. Dito de outra maneira, o livro apa- rece em tempos de (im)possibilidade da prisão em segunda instância, ou mesmo, de uma proposta dialética entre algu- mas concepções filosóficas e a metateoria do direito fraterno. Há nítida qualidade científica nos textos apresentados, e o leitor pode melhor compreender, também, sobre a supera- ção da dicotomia entre o direito público e privado no âmbito do processo de constitucionalização do direito civil, sobre a pandemia do coronavírus (covid-19) e o emprego doméstico como “gueto” feminino no brasil. A reestruturação curricular do ensino fundamental afeta no aprendizado e na aprovação dos estudantes? e o instituto da expropriação nos casos de trabalho escravo contemporâneo? Desde a irrepetibilidade dos valoresrecebidos de boa- -fé, através da tutela provisória de urgência antecipada, o discurso de ódio nas redes sociais, os animais não humanos e a judicialização de políticas públicas, ponderações sobre a normatividade do valor social do trabalho, da livre iniciativa, e da doutrina dos direitos humanos e empresas, todos con- vergem com as linhas investigativas necessárias à publicação deste maravilhoso livro. Por fim, ao tratar da autodeterminação informativa dos dados pessoais, sobre corrupção e a violação ao direito huma- no de participação política ou sobre a participação setorizada nos lucros ou resultados e a análise do princípio da isonomia à luz da reforma trabalhista, o livro Constitucionalismo Con- 12 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário temporâneo & Políticas Públicas, Vol. II., responde a uma necessidade de ações desenvolvidas à contribuição científica. A proteção jurídica às mulheres lésbicas, transexuais e travestis vítimas de violência doméstica e familiar na esfera trabalhista, a omissão da previsão do livre convencimento motivado no código de processo civil e a (in) aplicabilidade da lei maria da penha nos casos de união homoafetiva desta- cam a importância, aprofunda a discussão e as especificida- des, fundamentos e as consequências, próprias do Constitu- cionalismo Contemporâneo e das Políticas Públicas. Dito isso, na condição de egresso, tenho a honra de apresentar, agradecer e parabenizar todos os autores que con- fiaram suas pesquisas a publicação deste livro. Boa leitura a todos! Dr. Vinícius Almada Mozetic Programa de Pós-graduação em Direito Mestrado e Doutorado - Universidade do Oeste de Santa Catarina 13 sumário A RESPONSABILIDADE COMPARTILHADA NO DIREITO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE COMO DIMENSÃO DA SOLIDARIEDADE: INTERSECÇÃO ENTRE PÚBLICO E PRIVADO André Viana Custódio(1) Ismael Francisco de Souza(2) Considerações iniciais Partindo-se da perspectiva das mudanças ocorridas em função da constitucionalização do Direito, paradigma pelo 1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com pós- -doutorado na Universidade de Sevilha/Espanha. Coordenador Adjunto e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado - da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Coordenador do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e Líder do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social (UNISC). 2 Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - RS (UNISC); Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, graduado em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Professor e pesquisador Permanente do Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Direito e da graduação em Direito na disciplina de Direito da Criança e do Adolescente (UNESC). Líder do Grupo de Pesquisa: Direito da Criança e do Adolescente e Políticas Públicas. Pesquisador do Núcleo de pesquisa em Política, Estado e Direito (NUPED). 14 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário qual é possível afirmar a recepção pelo ordenamento cons- titucional publicista de conteúdos antes tidos por excelência como temas de direito privado, todo o ordenamento jurídico acaba, pela força normativa Constitucional, por reproduzir, axiologicamente e materialmente, seu conteúdo. Neste senti- do, os princípios constitucionais e aqueles típicos do direito privado passam a ser vetores interpretativos dos valores cons- titucionais, destacando-se, entre esses, a solidariedade. A ideia de solidariedade, a que este estudo se refere, apresenta-se enquanto dimensão materializadora dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, garantidos por meio da responsabilidade compartilhada entre família, sociedade e Estado, enquanto agentes responsáveis solidariamente pelo or- denamento constitucional pela proteção daqueles com até 18 anos de idade. A tríplice responsabilidade compartilhada entre família, sociedade e Estado remete à ideia basilar de que os direitos da população infantil serão garantidos por meio da atuação oriunda dessas três dimensões, ou seja, por meio da respon- sabilidade pública do Estado no cumprimento dos dispositi- vos constitucionais e legais, que assegurará, além do respeito ao desenvolvimento de crianças e adolescentes em condição peculiar, as condições sociais, ambientais e familiares adequa- das ao desenvolvimento de potencialidades individuais e da sociabilidade, complementando-se ainda esta responsabilida- de na perspectiva da responsabilização no reconhecimento e garantia de direitos por parte da família e da sociedade. Este trabalho trata, especialmente, destas duas últimas instâncias responsáveis, ou seja, família e sociedade, tendo em vista cons- tituírem-se de relações privadas com novos deveres impostos 15 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário pelos valores constitucionais, tanto da natureza dessas relações quanto do direito da população infantil. Por estes pressupostos, esta pesquisa não será delimitada ao dever imperativo legalmente estabelecido à atuação do Es- tado na garantia dos direitos de crianças e adolescentes, que encontra nas políticas públicas o mecanismo de excelência para a implementação de direitos fundamentais. A análise se pautará na responsabilização estendida aos particulares por meio da solidariedade, caracterizadora da vinculação aos di- reitos fundamentais de crianças e adolescentes, e que se re- veste de verdadeiro dever de agir e de não omissão nos casos de violação. Nesse sentido, inicialmente se aborda a constituciona- lização do direito privado no paradigma do Estado Demo- crático de Direito contemporâneo; a solidariedade em seus aspectos conceituais e como princípio basilar do ordena- mento constitucional brasileiro para finalizar com a carac- terização da responsabilidade compartilhada com a família e a sociedade em geral, instâncias de excelência das relações privadas, pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes como uma das dimensões da solidariedade. A Constitucionalização como novo paradigma para as relações privadas A compreensão da constitucionalização do Direito como matriz axiológica e interpretativa para os ordenamen- tos jurídicos em suas diversas dimensões e, especialmente, no âmbito das relações privadas, requer a abordagem dos direi- tos fundamentais enquanto seus principais instrumentos de materialização. Estes direitos foram inseridos em momentos 16 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário e contextos sociais diferenciados, iniciando-se por meio da inserção dos direitos e liberdades individuais. A localização histórica e temporal remete à Revolução Francesa e, em es- pecífico, à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Com a emergência da Revolução Francesa surge o modelo Estado Liberal, responsável pelo rompimento com o modelo Absolutista. Pautado no modo de produção capi- talista, esta nova forma de Estado, influenciado pelas ideias iluministas, foi responsável por considerável avanço ao cen- tralizar no homem, e não mais em uma ordem divina, as dis- cussões de matriz política e jurídica. O Estado liberal vincula-se diretamente na defesa e na garantia das liberdades individuais por meio da lei, ou seja, o Estado, neste contexto, zela pelo exercício da liberdade dos cidadãos de forma que possam, de forma harmoniosa, perseguir seus objetivos. Nesse sentido, o Estado coloca-se à disposição do indivíduo, a serviço do interesse comum a todos aqueles que, a partir de então, se encontraram livrese iguais. (LEAL, 2007). O contexto de liberdade e não interfe- rência do Estado nas relações particulares torna-se terreno ideal à codificação das leis civis, tendo em vista que as re- lações jurídicas dos cidadãos se centram no individualismo, patrimonialismo e autonomia de vontade. Dentre os papeis agora desempenhados, ao Estado caberia garantir o exercício do direito à propriedade privada e não invadir as relações de caráter privado, ou seja, a liberdade de contratar foi um dos pilares dessas codificações. (CARDOSO, 2010). Este modelo constitui-se no que se chamou de Estado garantidor, centrado no Poder Legislativo como âmbito de referência dos direitos fundamentais de primeira dimensão. Os direitos fundamentais de primeira dimensão, tais como 17 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à expressão, que se caracterizam pelo viés do individualismo, acabam, diante do Estado, por lhe impor o dever de abster-se como garan- tia do exercício da liberdade individual. Por esta razão, Sarlet (2012) os denomina como direitos fundamentais negativos. É contemporânea ao surgimento do Estado Liberal a ideia de diferenciação entre direito público e privado, desempenhando aquele o papel de disciplinar o Estado e sua organização e, este, a responsabilidade de regulamentar os interesses da sociedade civil e da organização econômica. (FACCHINI NETO, 2010). Assim, ao Estado caberia regular suas relações para com os subordinados, desiguais, enquanto que o direito privado regularia as relações particulares entre iguais. Esta separação do direito remete à ideia central da co- dificação liberal, o qual acarretou na incidência das Consti- tuições como referente das relações entre Estado e indivíduos e a incidência dos Códigos Civis como regulamentadores das relações entre mercado e sociedade. (SARMENTO, 2006). A partir do século XIX, por meio de reivindicações de cunho social pela classe trabalhadora organizada, inicia-se no ideário constitucional a inserção de direitos cuja popula- ção integralmente passa a ser titular. Inicia-se, neste contex- to, o chamado constitucionalismo social, tendo como marcos fundamentais a Constituição mexicana de 1917 e a Consti- tuição de Weimar, na Alemanha de 1919. Este constituciona- lismo, aliado ao insurgente Estado Social, torna-se a matriz para a intervenção formal, tanto nas relações privadas quanto na economia. (CARVALHO, 2012, p. 47-49). Assim, tanto o século XIX quanto o século XX tor- nam-se o berço do novo modelo denominado Estado Social, 18 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário tendo em vista a ineficácia do Estado liberal no tocante à or- ganização da sociedade que, naquele contexto, sofria as con- sequências nefastas do modo de produção capitalista, desta- cando-se, entre tais consequências, as desigualdades sociais. Neste contexto, o Estado passa a intervir com vistas a promo- ver e garantir a igualdade efetiva entre todos, atendendo às necessidades coletivas por meio de direitos. Há a transmuta- ção do Estado de garantidor para prestador, ou seja, surgem os direitos considerados de segunda dimensão, que seriam positivados, posteriormente, nas constituições consideradas modernas. (BAGATINI, 2014). Outro momento paradigmático para os países no mar- co do constitucionalismo ocorre no após a Primeira Guerra Mundial, com a divisão pautada na dicotomia Estado e so- ciedade civil, em contexto de conflitos nas diversas camadas populacionais e sociais que objetivavam interesses diversos, bem como a intervenção estatal minimamente direcionada à economia para a garantia da livre concorrência, mas que, paradoxalmente, torna-se motor de desigualdades socioeco- nômicas. Por essa razão, muda-se a forma de se reconhecer o direito, agora entendido como conjunto de regras e manda- mentos de otimização, ou seja, princípios, que, além de apon- tar os objetivos que se espera, sejam realizados pelo Estado constitucional. (OLIVEIRA, 2002). Leal (2007) aborda este período afirmando que o Esta- do, após a Segunda Guerra, atua sobre a economia, regulan- do-a, de forma a promover a reconstrução e o crescimento daqueles que foram destruídos pelos conflitos. Alia-se, ainda a este argumento, o fato de que a legislação de cunho libe- ral, pautada na igualdade formal perante a lei, não impediu a desigualdade, mas potencializou a exploração daqueles con- 19 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário siderados mais fracos e vulneráveis pelos mais fortes (REIS, 2003). Salienta-se, agora nas Constituições, os direitos funda- mentais de segunda dimensão, pautados na igualdade mate- rial, rompendo com o sentido meramente formal, materiali- zado nos direitos fundamentais de primeira dimensão. Por meio destes, promove-se direitos como saúde, educação, mo- radia, previdência social, trabalho, assistência, ou seja, pro- tege os cidadãos contra riscos individuais e sociais. (LEAL, 2007). No entanto, o que se observou foi o igual esgotamento do modelo de Estado Social, o que abriu a possibilidade para o estabelecimento do Estado Democrático de Direito ou Es- tado Pós-Social, cujo objetivo é a garantia da igualdade com vistas à dignidade humana, transformando, assim, a realida- de social. (SARMENTO, 2006). Neste sentindo, em que pese as mudanças no tocante às dimensões de direitos fundamentais, o que se observou, nos séculos XVIII e XX, em relação às leis oriundas de ambos modelos de Estado liberal e social, é a separação total entre as funções das Constituições e as codificações civilistas, o que acarretou na distinção e no fortalecimento da ideia de direito público e privado. Apenas com as mudanças após a Segunda Guerra, se observou um reordenamento jurídico nos países ocidentais, responsáveis por reorganizar hierarquicamente suas leis de forma a colocar a Constituição no ápice ou centro dos sistemas jurídicos. Por meio desta alteração foi possível a chamada constitucionalização do direito privado. A constitucionalização do direito privado não significa, exclusivamente, a acolhida por parte da Constituição de ma- térias ou conteúdos que anteriormente eram tratados somen- 20 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário te pelo direito privado, mas, sim, por um fenômeno pelo qual o direito estivesse vinculado ao âmbito civilista ou das leis espe- ciais, que passa a ser interpretado e aplicado de acordo com o conteúdo axiológico da Constituição. (PERLINGIERI, 2008). De acordo com Reis (2003), em função do princípio da constitucionalidade é estabelecida a exigência de acordar aos princípios da Constituição todos os atos praticados, sob pena de inexistência, nulidade, anulabilidade ou ineficácia, ou seja, não há que se conceber a ideia de um direito pri- vado autônomo, mas todo o ordenamento torna-se consti- tucionalizado, alterando-se o paradigma de forma a proteger a pessoa humana e não mais a proteção patrimonial ditada pelo ideal burguês, central no sistema liberal. Por esta ideia, o autor afirma ocorrer o fenômeno da despatrimonialização do direito privado em virtude da sua obediência à constitu- cionalização, que requer a predominância do princípio da dignidade da pessoa humana, ocorrendo, dessa forma, “[…] a repersonalização do direito privado, no sentido de (re)co- locar o indivíduo do topo da proteção deste direito privado” (REIS, 2003, p. 780). Apesar desse movimento centralizador das Consti- tuições iniciar após a Segunda Guerra Mundial, no Brasil, verifica-se que a norma responsável pela unificação do or- denamento privado surge apenas em 1988, pormeio da Constituição Federal promulgada em 5 de outubro. Nesta, as normas de direito privado afetas à propriedade, à família, aos contratos, ou seja, àquele conteúdo da seara da autonomia do indivíduo, passam a ter na Constituição e não mais no Código Civil, sua fonte primária. Destaca-se na Constituição Federal de 1988 sua centralidade axiológica na dignidade da pessoa humana, na erradicação da pobreza, na liberdade, na 21 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário igualdade material e na solidariedade social, caracterizando um verdadeiro reordenamento no âmbito da interpretação e da aplicação das leis civis. Tendo em vista o objetivo desse trabalho de demons- trar o princípio da responsabilidade compartilhada do Di- reito da Criança e do Adolescente como dimensão da solida- riedade, importa apresentar a solidariedade como elemento intrínseco à aplicação dos valores e direitos fundamentais nas relações privadas. Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que a solidariedade é elemento integrador do ordenamento jurídico. Solidariedade: aspectos conceituais Antes de se abordar aspectos fundacionais a respeito da solidariedade, importa salientar sua vinculação aos direitos fundamentais. Nesse sentido, tendo como ponto de partida a igualdade como elemento pilar dos direitos chamados de segunda dimensão, a solidariedade foi a responsável por in- troduzir na ordem jurídica o respeito à dignidade humana, caracterizando, assim, aqueles direitos fundamentais que se- riam reconhecidos como de terceira dimensão, inserindo-se a própria solidariedade nesta classificação. A Constituição Federal de 1988, como já afirmado, inovou ao introduzir no ordenamento jurídico um conjunto de princípios que passaram a constituir a diretriz do direito privado, como a dignidade humana e a solidariedade social, caracterizando-os como princípios fundamentais do Estado brasileiro (SANTOS, 2009). Esta introdução de princípios reorganizadores do sistema jurídico acabou por tornar em- blemática a nova hermenêutica a ser aplicada nas normas de 22 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário direito privado, passando as mesmas a serem lidas, interpre- tadas a aplicadas por meio da Constituição. (FACHIN, 2009). O advento da democracia, após um longo período de regime totalitário, acarretou a necessidade de alteração po- lítica por meio da assembleia constituinte de 1987, situação que tornou, nas palavras de Fachin (2009, p. 21), “a Carta Magna da jovem nação brasileira algo mais que a Constitui- ção de papel que Ferdinand Lassale desenhara nos idos do século XIX”. Ou seja, a Constituição Federal de 1988 estaria, naquele contexto, de acordo com os fatores reais de poder estabelecidos, ressignificando as instituições políticas a partir dos anseios dos movimentos sociais partícipes daquele mo- mento. Era a constituição real. (FACHIN, 2009). Neste contexto se eleva a dignidade humana como princípio fundamental da República e, também, a solidarie- dade, enquanto princípio e direito, impactando ambos os princípios o ordenamento jurídico, de forma a reordenar o sistema e cultura jurídica até então em vigor. Assim, a soli- dariedade enquanto princípio, ou seja, enquanto mandato de otimização, deverá ser concretizado no plano fático o máxi- mo possível sempre, constituindo-se, ainda, como cláusula pétrea. Enquanto direito fundamental, a solidariedade pode- rá ser exigida perante o Estado e a sociedade, destacando-se, nesta dimensão, o vínculo entre os indivíduos, tendo em vis- ta que a existência da solidariedade depende da sua relação para com o outro. Ainda na seara conceitual, a abordagem da solidarie- dade remete, em um primeiro momento, a sua vinculação às funções do Estado, não excluindo, desta instância, a própria formação da sociedade como âmbito responsável pela complementação e pelo aperfeiçoamento de outros valores 23 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário significativos, como a igualdade e a liberdade. (SILVA, 2008). A abordagem da solidariedade compõe, dessa forma, duas dimensões, seja enquanto princípio fundamental e/ou enquanto direito fundamental, objetivando em ambos, sub- sidiar a ação do indivíduo na sociedade de forma que suas condutas sejam pautadas pela ética, tornando-os assim res- ponsáveis para com a organização social e os demais indiví- duos que a compõem. Importa destacar na dimensão principiológica que a solidariedade constitui um dos mecanismos de materializa- ção da dignidade humana. Nesse sentido, ambos os princí- pios se relacionam e impactam, em igual medida, tanto nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, marcadamente constitucionais, quanto na dinâmica das relações nas socie- dades modernas, tendo em vista que a solidariedade é impos- ta como direito e como dever. A abordagem de Duguit (2009) contribuiu significa- tivamente para o fortalecimento da ideia da solidariedade enquanto regra de conduta basilar para as relações sociais, considerando que, para este autor, é a sociedade o conjunto dessas relações, a dinâmica sobre a qual se fundamenta o di- reito. Neste sentido, Duguit compartilha da ideia de que as relações inseridas na sociedade ora são pautadas na solidarie- dade adjetivada como “por semelhança” e, também, naquela necessária à “divisão do trabalho”, tendo em vista que a os indivíduos na sociedade possuem necessidades comuns e di- ferentes que acarretariam na formação desses vínculos, aptos a ajudar-lhes reciprocamente e assegurar, assim, a satisfação dessas necessidades. (DUGUIT, 2009). Há que se considerar que a contemporaneidade traz em sua essência a pluralidade, situação fática que requer maior 24 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário participação e comprometimento individual, tanto na ges- tão do público quanto para com o próprio desenvolvimento pessoal. Esta participação teria na solidariedade um de seus principais motrizes. Este fundamento remete à concepção do direito em sua dimensão objetiva, tendo a solidariedade social como dire- triz. Nesse sentido, é possível afirmar a existência da solida- riedade em todas as organizações sociais, tanto naquelas em que existam necessidades comuns quanto naquelas em que essa similitude não exista. Sobre esse fundamento, o autor categoricamente firma a solidariedade social como objetivo maior, tanto do direito (valor jurídico) quanto da conduta in- dividual (valor social). (DUGUIT, 2009). Na lógica funcional de Duguit, um ato só tem valor social e jurídico se for determinado por um fim conforme a “solidariedade social”, e não porque ele tem como sustentação unicamente a vontade do sujeito. [...] Na medida em que para a formação da ordem social é preciso existir manifestações de vontade dos indivíduos, que a ordem social implica um processo de exteriorização das vontades individuais, os atos de vontade não terão valores jurídicos pela simples manifestação da vontade do sujeito. Será precisa que os atos individuais, necessários à criação da ordem social, sejam determi- nados pelo fim da “solidariedade social”. (FARIAS, 1998, p. 227). A opção por Duguit neste trabalho se justifica pela ideia de que o fundamento social é basilar da liberdade in- dividual, pautando as condutas dos indivíduos em sociedade por meio de normas sociais e jurídicas que assim determi- nam, exigindo de cada pessoa um comportamento solidário, consolidando um verdadeiro dever ético para com os demais. 25 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário Por esta perspectiva,o autor aponta a funcionalidade do di- reito como diretriz a lembrar indivíduos e sociedade de suas responsabilidades para com o equilíbrio das relações sociais, por meio dos deveres éticos de solidariedade. Principalmente no que tange à responsabilidade para com a defesa dos direitos de crianças e adolescente, a mes- ma deve ser considerada, de maneira compartilhada, por não apenas o Poder Público, por meio de políticas públicas, pos- sui o dever para com a implementação e garantia dos direitos da população infantil, mas, também, a sociedade em geral, e cada um dos seus membros devem compartilhá-la, no senti- do de atuar sempre, não se omitindo individualmente diante de violação desses direitos. A solidariedade na ordem constitucional brasileira: um novo paradigma para as relações privadas Antes de abordar os fundamentos teóricos e jurídicos do direito da infância no Brasil, há que se referir ao contexto jurídico nacional, considerando que o mesmo sofreu signifi- cativa mudança por meio da Constituição de 1988, responsá- vel pela implementação dos direitos fundamentais e, ainda, da afirmação da dignidade humana e a solidariedade como objetivos fundamentais da República, identificado na reda- ção do artigo 3º, I, que afirma literalmente ser objetivo “cons- truir uma sociedade livre, justa e solidária” (BRASIL, 1988). Por esta perspectiva, a solidariedade torna-se verdadeira nor- ma inserida no novo ordenamento jurídico, exigindo que o intérprete à compreensão do direito como instrumento de ordenação social seja pautado na ideia de justiça. (CARDO- SO, 2010). 26 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário A solidariedade fixada na ordem constitucional brasi- leira, a partir de 1988, resulta de duas situações significativas, a saber, a Ditadura Militar - que persistiu por longo período da história nacional e foi a responsável pela supressão de di- reitos e garantias fundamentais individuais e o reordenamen- to de ordem global, ocorrido pós Segunda Guerra Mundial, responsável pela elevação da dignidade humana, como apoio da evolução dos direitos fundamentais. Assim, a solidarieda- de passa a ocupar importante papel neste novo paradigma jurídico, sendo responsável não apenas pela manutenção da ordem e paz social, mas igualmente, garantidora da liberdade e dignidade, reordenando valorativamente a conduta de cada individuo no sentido da responsabilidade social. Por essa razão, há que se afirmar que, tanto a constitu- cionalização do direito privado quanto a solidariedade como novo paradigma, acarretaram a vinculação dos particulares de maneira direta, aos direitos fundamentais. Nesse sentido, deve-se considerar, a título de incidência desses direitos no âmbito da vida privada, a determinação constitucional do ar- tigo 5º, §1º referente à aplicabilidade imediata e direta desses direitos e princípios, o que não exclui a seara das relações e do direito privado (SARLET, 2000). Ao se considerar a eficácia dos direitos fundamentais, esta deve ser analisada tanto verticalmente como horizon- talmente também nas relações regulamentadas pelo direito privado, em que pese as divergências relativas à sua aplica- ção nessa instância. Primeiramente, a eficácia horizontal re- fere-se à vinculação dos particulares nas suas relações entre iguais. Sob esta perspectiva, a organização estatal e sua estru- tura estarão solidificadas no sentido de garantir os direitos fundamentais por meio da aplicação das normas de direito 27 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário privado nos casos levados às instâncias estatais pelos particu- lares, solucionando possíveis conflitos (SARLET, 2000). No tocante à eficácia vertical, refere-se a garantia dos indivíduos perante a atuação estatal. O Estado, nesse sentido, tem a obri- gação de não agredir tais direitos e, ainda, fazer com que os particulares os respeitem. A aplicação e a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais torna-se discussão central para a problemática deste trabalho, na medida em que se questiona a possibilida- de de responsabilizar o cidadão pela violação e não garantia de direitos fundamentais de crianças e adolescente. Há que se salientar que a abordagem da proteção dos direitos e garantias de indivíduos perante o poder estatal, por meio da perspecti- va da eficácia vertical, não se mostrou suficiente ao longo da história, tendo em vista que os particulares igualmente vio- lam direitos fundamentais. A questão é a que a proteção nas relações interprivadas exige a solidariedade como condão de responsabilidade social, ao compartilhar com os indivíduos o dever de ação nos casos de violação de direitos fundamentais, o que obrigatoriamente os vincula horizontalmente. Inserido nessa lógica, o comunitarismo também se as- senta na solidariedade e, por esta perspectiva, é possível se afirmar a noção do respeito aos direitos fundamentais, logo, a vinculação entre os particulares, já que os indivíduos soli- dários não estariam sujeitos a tratar os demais como instru- mentos, mas como fins em si mesmos, corresponsabilizam-se pelos direitos fundamentais inalienáveis dos demais mem- bros da comunidade. (ETZIONI, 2001). 28 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário A responsabilidade compartilhada como dimensão da solidariedade no Direito da Criança e do Adolescente No âmbito do Direito, a criança torna-se sujeito de cuida- dos especiais por sua condição peculiar de pessoa em desenvol- vimento por meio do reconhecimento dos seus direitos huma- nos. Destaca-se na articulação dos direitos humanos a infância a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, responsável pela inserção da teoria da proteção integral. A ideia central da proteção integral à criança e ao adolescente foi capaz de articular uma teoria própria em determinado momento histórico, porque conseguiu ao mesmo tempo conjugar necessi- dades sociais prementes aos elementos complexos que envolveram mudança de valores, princípios, regras e neste contexto conviver com a perspectiva emancipadora do reconhecimento dos direitos fundamentais à criança e ao adolescente. (CUSTÓDIO, 2008, p. 22). A Convenção sobre os Direitos da Criança resultou dos trabalhos de comemoração dos vinte anos da Declaração dos Direitos das Crianças e Ano Internacional da Criança de 1959 que, por iniciativa da delegação polonesa, formulou o proje- to da convenção com ampla participação de representantes dos 43 países membros da Comissão de Direitos Humanos da ONU e de vários organismos intergovernamentais e orga- nizações não governamentais. Nesse sentido, “a Convenção supera, por decisão dos próprios Estados, visões excludentes sobre diferenças culturais que impedem de construir padrões jurídicos comuns para todas as pessoas, em relação a seus direitos fundamentais.” (VERONESE, 2015). 29 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário Destaca-se o preâmbulo da Convenção, que funda- menta a solidariedade como um dos pilares essenciais para a vida em sociedade, apontando, ainda, a necessidade de que as crianças, para que estejam preparadas para viver em so- ciedade, sejam educadas “[...] de acordo com os ideais pro- clamados na Carta das Nações Unidas, especialmente com espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade”. (ONU, 1989). Ressalta-se ainda neste impor- tante documento, o artigo 5º, que aduz Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, onde for o caso, dos membros da família ampliada ou da comunidade, conforme determinem os costumes locais, dos tutoresou de outras pessoas legalmente responsáveis, de proporcionar à criança instrução e orientação adequadas e acordes com a evolução de sua capacidade no exercício dos direitos reco- nhecidos na presente Convenção. (ONU, 1989). Neste sentido, há a garantia da autonomia dos pais e responsáveis na escolha da forma como conduzirão a criação, instrução e orientações de seus filhos. Salienta-se, no entanto, que a autoridade exercida pelos pais ou por entidade admi- nistrativa nesta condição é limitada pelo ordenamento jurí- dico e pelos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, devendo a família respeitar esses direitos e não extrapolar os limites legais reconhecidos, para que as crianças alcancem o pleno desenvolvimento em harmonia com os princípios da Convenção e, gradativamente, de acordo com o desenvolvi- mento de suas faculdades, possam exercer seus direitos com autonomia. Neste sentido, 30 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário A Convenção, então, opera como um ordenador das relações entre a criança, o Estado e a família, que se estrutura a partir do reco- nhecimento de direitos e deveres recíprocos. Seguindo a tradição contida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Con- venção é profundamente respeitosa com a relação criança-família, enfatizando o papel das políticas sociais básicas e de proteção da criança e da família, limitando a intervenção tutelar do Estado a uma última instância que supõe que falharam os esforços da família e dos programas sociais gerais. (PEREIRA, 1996, p. 67). Por esta razão, a Convenção define os direitos da crian- ça mais emblematicamente em relação à sociedade do que em relação à família, determinando a esta instância o direito de ser protegida contra intervenções arbitrárias e ilegais do Estado, situação que afetaria a própria criança. Salienta-se, no entanto, que seria legítima a intervenção do Estado para a proteção da criança. Assim determina o artigo 18 da Con- venção: 1. Os Estados Partes enviarão os seus melhores esforços a fim de assegurar o reconhecimento do princípio de que ambos os pais têm obrigações comuns com relação à educação e ao desenvolvimento da criança. Caberá aos pais ou, quando for o caso, aos represen- tantes legais, a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua preocupação fundamental visará ao interesse maior da criança. [...] (ONU, 1989). Por este dispositivo, verifica-se a responsabilidade solidária dos pais e do Poder Público, ficando aqueles pri- mordialmente com a função de educar seus filhos e, este, de apoiá-los na função. A solidariedade, inicialmente apontada 31 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário pela Convenção, encontra materialidade no ordenamento ju- rídico brasileiro a partir da Constituição da República Fede- rativa do Brasil de 1988, Carta que alterou definitivamente o paradigma que imperava, até então, sobre a infância. Fruto da mobilização da sociedade civil e de entidades não gover- namentais, o que já caracteriza a solidariedade entre particu- lares no tocante à proteção da infância e à inclusão dos direi- tos da criança e do adolescente, foi exaustivamente discutida durante a Assembleia Nacional Constituinte, resultando na redação do seguinte artigo da Constituição de 1988: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988). Verifica-se, desta forma, a consagração máxima em âmbito constitucional da teoria da proteção integral, desta- cando-se na norma os princípios basilares como a prioridade absoluta e a tríplice responsabilidade compartilhada entre a família, a sociedade e o Estado para a efetivação dos direi- tos. Destaca-se, ainda, os direitos especiais de proteção, bem como as diretrizes para uma política de atendimento dos di- reitos da criança e do adolescente. (CUSTÓDIO, 2006, p. 16). A Constituição reveste-se de verdadeiro marco na his- tória jurídica do país ao instituir os direitos humanos e ele- var a dignidade humana ao patamar de fundamento cons- titucional. Nesse sentido, tanto a dignidade humana quanto 32 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário os direitos fundamentais acabam por constituir os princípios constitucionais incorporadores de exigências de justiça e dos valores éticos, dando suporte axiológico ao sistema jurídico brasileiro. (PIOVESAN, 2009). Aqui se encontra a solidariedade, responsável pela de- terminação de cumprimento dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes nas relações privadas, ao elevar a fa- mília e a sociedade como responsáveis. Esta observação é im- portante diante do atual cenário que não apresenta mais con- tornos definidos entre as instâncias públicas e privadas no tocante aos direitos fundamentais de crianças e adolescente, pois “[...] princípio emancipatórios atrelados aos direitos hu- manos e democracia, não podem mais permanecer cingidos com exclusividade à esfera das relações em que o Estado se faça presente.” (SARMENTO, 2010, p. 49). O “princípio da tríplice-responsabilidade”, que deve ser compartilhada entre família, sociedade e Estado, reves- te-se de dimensão da solidariedade, não do ponto de vista da obrigatoriedade provedoras dos direitos da população in- fantil por parte do Estado, mas porque cabe a todos, família e sociedade civil em geral, na prática das relações cotidianas, resguardar os direitos da população infantil, ou seja, estes di- reitos devem ser garantidos pelos três âmbitos: família, socie- dade e Estado. Em suma, a garantia dos direitos da criança e do adolescente per- passa a responsabilidade pública no sentido de cumprir e pôr em prática aquilo que está disposto no texto legal, bem como perpassa o respeito à condição peculiar de desenvolvimento, assegurando condições familiares e ambientais adequadas ao estímulo das po- tencialidades individuais e de sua sociabilidade. Seguindo os pas- 33 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário sos dessa análise, a cidadania de crianças e adolescentes refere-se ao reconhecimento dos direitos da população infanto-juvenil, no plano formal e legal, por parte do Estado, da família e da sociedade. (RAPOSO, 2009, p. 47-48). A materialização da solidariedade, mediante a respon- sabilidade compartilhada entre família e sociedade, é vislum- brada quando analisada por meio dos direitos protetivos, encontrados na parte final do artigo 227 e, também, no pa- rágrafo 4º, ao afirmar que “A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescen- te.” (BRASIL, 1988). Tais direitos protetivos afirmam a regra constitucional de efetividade e garantia de direitos funda- mentais exigida não apenas do Estado, mas igualmente da fa- mília e sociedade, no tocante a afastar a criança e adolescen- te de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão, sob pena de responsabiliza- ção individual. Nesta diretriz, o artigo 5º da Lei nº 8069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente, aduz que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de ne- gligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. (BRASIL, 1990).Ainda na seara do Estatuto da Criança e do Adolescen- te, o cumprimento da determinação constitucional encontra- -se garantido a partir do artigo 70, referente específico das medidas de prevenção, determinando que “É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente” (BRASIL, 1990). Este dever, repre- sentativo da solidariedade, coaduna com o disposto no artigo 73 do mesmo diploma, ao afirmar que “A inobservância das 34 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário normas de prevenção importará em responsabilidade da pes- soa física ou jurídica, nos termos desta Lei.” (BRASIL, 1990). Importa salientar que a elevação da dignidade humana a fundamento constitucional relaciona-se diretamente à ne- cessidade de se pautar o tratamento dispensado às crianças e aos adolescentes pela “humanidade”, seja nas relações verti- cais do Estado ou nas relações horizontais entre indivíduos na esfera privada. É a vedação oriunda do ordenamento jurí- dico, pautado na solidariedade, que não admite qualquer tra- tamento desumano ou degradante. O princípio da dignidade humana, quando não garantido nas relações privadas que as crianças e adolescentes estão submetidos, é violado sempre que estes sofrerem qualquer tipo de maus-tratos, pois a dig- nidade humana não consegue conviver com o desrespeito, a humilhação e o descaso para com a integridade física e psí- quica do ser humano. A vinculação dos particulares na garantia dos direitos de crianças e adolescentes nas relações privadas ou sociais é reflexo da condição de sujeitos de direitos que, obrigato- riamente, exige respeito à sua titularidade de direitos funda- mentais, não mais admitindo que a população infantil seja mero objeto passivo da discricionariedade dos adultos. A condição de sujeitos de direitos remete à compreen- são da relação entre igualdade e cidadania, relação esta primordial à ideia de solidariedade, tendo em vista que os vínculos de solidariedade são percebidos por meio de arti- culação mista necessária à coesão social esperada nas socie- dades contemporâneas, marcadamente plurais e complexas (DOMINGUES, 2002, p. 173). Nessa lógica, é urgente uma reformulação ética e política capaz de restaurar o sujeito responsável, de forma a se consolidar a solidariedade nas 35 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário relações privadas de forma a garantir direitos de crianças e adolescentes na pluralidade da sociedade contemporânea. O problema da responsabilidade deve ser colocado em termos com- plexos. De um lado, cada um deve reconhecer-se responsável por suas palavras, por seus escritos, por seus atos. De outro, tomando como base a ecologia da ação, ninguém é responsável pelo modo como suas palavras são entendidas, como seus escritos são compre- endidos, como seus atos são mal interpretados, distorcidos. [...] Há uma outra responsabilidade, que é oriunda de nossa comunidade de destino planetário. E ela que sempre relembra nossa parcela de responsabilidade nesse destino comum, e não somente no que diz respeito ao presente, mas também ao futuro. (MORIN, 2000, p. 71-72). É por esta razão que a solidariedade se constitui em processos sociais específicos, por meio dos quais tanto os in- divíduos quanto a sociedade, entendida como coletividade, reconhecem socialmente direitos e deveres considerados jus- tos perante outros indivíduos e própria coletividade, sendo promovida por vias diferenciadas que, por vezes, se refor- çam ou tornam-se conflituosas, tanto no consciente coletivo quanto no individual ou institucional. Esta definição ancorada na concepção de Domingues (2002), quando traduzida para os direitos de crianças e ado- lescentes, aduz que a solidariedade materializada por meio da responsabilidade compartilhada pela família e sociedade civil no tocante à efetividade e à garantia desses direitos, ne- cessita, além do corpo institucional do Estado, por meio de políticas públicas para a efetividade e integração social, que as relações individuais e coletivas, seja familiar ou comuni- 36 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário tária, sejam pautadas não só em benefício individual, mas dos demais. Logo, a solidariedade possui diversas dimensões, concretizadas na vida social, e implica no comprometido do agir individual e coletivo das instâncias privadas para a ga- rantia dos direitos de crianças e adolescentes no marco da proteção integral. Considerações finais Pelas razões de ordem teórica expostas ao longo do trabalho, foi possível verificar que a constitucionalização do direito privado, ocorrida no paradigma mais recente do constitucionalismo, não implica-se, consubstancialmente, na abrangência por parte da Constituição dos códigos e demais leis infraconstitucionais de natureza especial, mas no fato de que, após a instauração de novos preceitos e valores consti- tucionais, todo o ordenamento infraconstitucional, incluin- do-se aquelas leis e códigos que regulam as relações priva- das, obrigatoriamente deverão se adequar a estes preceitos e valores. Isso significa afirmar que tanto o processo legislati- vo quanto os critérios hermenêuticos deverão, obrigatoria- mente, considerar a Constituição, situação que torna possí- vel afirmar que se passou de um direito civil codificado para um direito civil constitucionalizado, ou seja, não mais existe a autonomia que historicamente o direito civil sempre pos- suiu. Esta alteração mostrou-se necessária sob a perspectiva da aplicabilidade das normas civilistas nas relações privadas, tendo em vista a centralidade da Constituição Federal, suas normas e princípios. No tocante à abordagem teórica, importa considerar que a ideia de solidariedade - que interessa a este trabalho 37 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário - parte do pressuposto de que os indivíduos e suas coletivi- dades, ou seja, família ou comunidades, estão inseridos em uma dimensão complexa, o que torna suas relações privadas integrantes do todo social, do qual o Estado não é excluído. Desta forma, a sociedade torna-se lócus ideal de liberdade do indivíduo, de colaboração mútua e, ainda, espaço harmonio- so por meio do qual dialogicamente serão efetivados direitos e deveres numa lógica de solidariedade. Logo, a solidariedade e a liberdade individual devem ser coordenadas e harmoni- zadas para que, juntamente com os novos princípios consti- tucionais, se possa promover o diálogo entre ordenamento jurídico e espaço social, reordenando as relações privadas no sentido de efetividade dos valores constitucionais. Esta abordagem, no entanto, implica na vinculação dos atores das relações privadas, ou seja, os particulares, ao con- teúdo mais significativo da Constituição: os direitos funda- mentais de crianças e adolescentes. Por esta razão, foi imperioso relatar aspectos da eficá- cia desses direitos que, verticalmente, vincula o Estado em duas dimensões, primeiro na implementação de mecanismo de implementação e garantia de direitos, organizados por meio de sua estrutura institucional e de políticas públicas e, por segundo, no dever de atuação por meio de sua estrutura nos casos de violação e abusos de direitos fundamentais pelos particulares em suas relações privadas e sociais, seja de ofí- cio por determinação legal ou por meio de provocação dos próprios indivíduos. Salienta-se, ainda, que é dever de cada um o respeito aos direitos fundamentais dos demais, o que caracteriza, inicialmente, a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. 38 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas PúblicasII Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário Assim, resta sustentar que a ideia de sistema implica na vinculação e na eficácia obrigatória das relações privadas aos direitos fundamentais, excluindo-se, por óbvio, aquela seara que compete exclusivamente ao Poder Público. Esta vincu- lação, na perspectiva do constitucionalismo e seus valores, como a liberdade e, principalmente, a igualdade, é necessária ao reordenamento paradigmático que a Constituição promo- veu ao Direito da Criança e do Adolescente, no tocante à base principiológica e ao Sistema de Garantia de Direitos, cuja res- ponsabilidade, pelos direitos e garantias, requer não apenas a atuação do Estado, mas o dever de agir de todos, nos casos de ameaça ou violação aos direitos. Na seara de conduta dos indivíduos e suas relação pri- vadas, ou seja, família, comunidade local e sociedade em ge- ral, em que pese este dever de responsabilidade solidária se manifestar em um primeiro momento por imposição legal, tendo em vista que é “dever da família, da sociedade e do Estado” garantir com prioridade absoluta os direitos funda- mentais da população infantil, de acordo com o artigo 227 da Constituição Federal, a solidariedade se apresenta como elemento imperativo de forma a coordenar a atuação dos in- divíduos e sociedade que, moralmente, passam a sentir res- ponsáveis pela garantia dos direitos de crianças e adolescen- tes. Esta internalização na consciência individual e social da responsabilidade pelos direitos de todas as crianças requer a solidariedade social, de forma que essa se tornaria um valor objetivamente moral e imperativo das regras que pautarão os indivíduos na sociedade, tanto seus direitos quanto seus deveres. Por esta razão, foi abordada a ideia de Duguit para explicitar a responsabilidade compartilhada na instancia da família e da sociedade como a mais adequada. 39 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário Diante das situações de violação de direitos a que crian- ças e adolescentes estão expostos, se buscou demonstrar que o Direito da Criança e do Adolescente, ao elencar a tríplice responsabilidade compartilhada, trazendo para a instância do dever de garantia de diretos, a família e a sociedade em geral o fez de forma a promover a solidariedade na seara além da estatal, fortalecendo o papel do direito como instrumento de transformação da realidade social manifesta nas relações privadas. Esta transformação, ocasionada pela solidariedade, não pode e nem deve ficar unicamente a cargo do Estado, mas deve, obrigatoriamente, ser desempenhada no âmbito das re- lações privadas, tendo em vista que estas estão mais próximas das violações e da possibilidade de atuação para enfrentá-las. Referências BAGATINI, Julia. A responsabilidade civil na sociedade de risco e a ideia de solidariedade: uma abordagem a partir da Constitucionalização do direito privado. (Dissertação de Mestrado em Direito). Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, 2014. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 20 de jun. 2017. BRASIL. Lei Nº. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/>. Acesso em 20 de jun. 2017. 40 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário CARDOSO, Alenilton da Silva. Princípio da solidariedade: o paradigma ético do direito contemporâneo. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2010. CARVALHO. Osvaldo Ferreira de. A Constitucionalização e a Internacionalização dos Direitos Fundamentais. Revista da Defensoria Pública da União. n. 43 Jan/fev.2012. CONRADO, M.; PINHEIRO, R. F. (Coords.). Direito Privado e Constituição: ensaios para uma recomposição valorativa da pessoa e do patrimônio. Juruá: Curitiba, 2009. CUSTÓDIO, André Viana. Os novos direitos da criança e do adolescente. Revista Espaço Jurídico, v. 7, jan/jun, Joaçaba: Unoesc, 2006. CUSTÓDIO, André Viana. Teoria da proteção integral: pressuposto para compreensão do Direito da Criança e do Adolescente. Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, UNISC v. 29, 2008. DOMINGUES, José Maurício. Interpretando a modernidade: imaginário e instituições. Rio de Janeiro: FGV, 2002. DUGUIT, Léon. Fundamentos do direito. São Paulo: Martin Claret, 2009. ETZIONI, Amitai. La tercera vía hacia uma buena sociedad: propuestas desde el comunitarismo. Madrid: Minima Trotta, 2001. FACHIN, Luiz Edson. O Direito Civil contemporâneo, a norma constitucional e a defesa do pacto emancipador. In: CONRADO, M.; PINHEIRO, R. F. (Coords.). Direito Privado e Constituição: ensaios para uma recomposição valorativa da pessoa e do patrimônio. Juruá: Curitiba, 2009. 41 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário FACCHINI NETO, Eugênio. Ref lexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang. (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. FARIAS, José Fernando de Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. LEAL, Mônia Clarissa Hennig. Jurisdição Constitucional aberta: reflexões sobre a legitimidade e os limites da jurisdição constitucional na ordem democrática. Uma abordagem a partir das teorias constitucionais alemã e norte-americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. LEAL, Rogério Leal (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2003. MORIN, Edgar. A ética do sujeito responsável. In: CARVALHO, Edgard de Assis Et Tal (Org.). Ética, solidariedade e complexidade. São Paulo: Palas Athena, 2000. OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Direito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. ONU. Organização das Nações Unidas. Convenção sobre os Direitos da Criança. 1989. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/>. Acesso em 15/06/2017. PEREIRA, Tânia da Silva Pereira. Estatuto da Criança e do Adolescente: Estudos sociojuridicos. Rio de Janeiro. Renovar, 1996. 42 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. PIOVESAN, Flávia. A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://200.195.147.74/faculdade/revista_direito/3edicao/Artigo%203.pdf>. Acesso em: 15/11/2019. PIOVESAN, Flávia; IKAWA, Daniela (coords.). Direitos Humanos: fundamentos, proteção e implementação. Vol. 2. Curitiba: Juruá, 2007. RAMIRES, Rosana Laura de Castro Farias. Reflexões sobre a proteção dos direitos humanos das crianças. In: PIOVESAN, Flávia; IKAWA, Daniela (coords.). Direitos Humanos: fundamentos, proteção e implementação. Vol. 2. Curitiba: Juruá, 2007. RAPOSO, Clarissa Tenório Maranhão. Infância e violência doméstica: tendências e perspectivas na defesa dos direitos das crianças e adolescentes no município de Maceió. Disponível em: <http://www.bdtd.ufpe.br/ tedeSimplificado//tde_busca/arquivo.php?codArquivo=412>. Acesso em: 15/09/2019. REIS, Jorge Renato dos. A construção do direito privado e o novo código civil. In: LEAL, Rogério Leal (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2003. SANTOS, Murilo Rezende dos. As funções da boa-fé objetiva na relação obrigacional. Revista de Direito Privado, São Paulo, n. 38, p. 205-260, abr. 2009. 43 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas PúblicasII Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. SARLET, Ingo Wolfgang (Org). A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações particulares. São Paulo: Malheiros, 2008. VERONESE, Josiane Rose Petry. Estatuto da Criança e do Adolescente: Um novo paradigma. In: VERONESE, Josiane Rose Petry; LÉPORE, Paulo Eduardo; ROSSATO Luciano. Estatuto da Criança e do Adolescente: 25 anos de desafios e conquistas. São Paulo: Saraiva, 2015. 44 sumário A ATUAL TRANSFORMAÇÃO DO PROJETO DO DIREITO ADMINISTRATIVO SOCIAL E A ABERTURA DAS VIAS DA NECROPOLÍTICA BRASILEIRA(1) Caroline Muller Bitencourt(2) Davi Michels Ilha(3) Considerações iniciais O presente artigo tem o propósito de analisar os retro- cessos na perspectiva das políticas públicas e participação po- pular no cenário da necropolítica brasileira atual tendo como parâmetro a perspectiva do Direito Administrativo social 1 O presente artigo é fruto da bolsa científica PUIC, no âmbito do projeto Direito Ad- ministrativo Direito Administrativo social frente ao estado pós-democrático: desafios as políticas públicas e ao controle social. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Pesquisadora vinculada ao Centro de Estudos e Pesquisa em Políticas Públicas. E-mail: carolinemb@unisc.br. 3 Graduando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), bolsista na modalidade PUIC, orientado pela Professora Dra. Caroline Muller Bitencourt. Membro do grupo de pesquisa Controle Social e Estado Pós-democrático. E-mail: daviilha00@gmail.com. 45 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário e com bases nas reformas administrativas que estão sendo efetuadas a partir das leis ordinárias e medidas provisórias, evidenciando uma situação que se pode chamar de necropo- lítica. A pesquisa se justifica pela necessidade de tratar das ameaças aos preceitos do Direito Administrativo social e do avanço na necropolítica, uma vez que ambos ajudam a des- truir a democracia liberal e a consolidar a pós-democracia brasileira com políticas de austeridade que retraem a promo- ção de políticas públicas, e contribuem ao esvaziamento da participação e o do controle social. O problema de pesquisa apresenta-se da seguinte forma: é possível afirmar que o atual cenário político brasileiro está na contramão da perspectiva de um Direito Administrativo so- cial que afeta o âmbito das políticas públicas e a participação e controle social? Tem-se por objetivo discutir como a necro- política tem avançado a partir das transformações administra- tivas e ações governamentais, que evidenciam um abandono do Direito Administrativo social no Brasil, ao menos, em duas de suas grandes caraterística: a tutela igualitária e efetiva dos direitos fundamentais e a participação e controle social. Com o objetivo de responder o problema de pesqui- sa, o estudo se divide em duas sessões: compreender o que seria o Direito Administrativo social e a importância da tu- tela igualitária de direitos sociais e participação social para esse conceito, demonstrando a forte ligação entre participa- ção popular, Direito Administrativo social, controle social e políticas públicas. Em um segundo momento, apontar de que maneira a chamada necropolítica brasileira tem afetado drasticamente o Estado social brasileiro a partir do desmente das políticas públicas e abandono de espaços de participação e controle social. 46 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário A hipótese é que há um projeto de desmanche do Es- tado social a partir da desarticulação, tanto de programas e políticas públicas, especialmente as de ordem social, relegan- do ao Estado um papel subsidiário na concretização da tu- tela igualitária dos direitos, afetando, também, o âmbito de participação e controle social e caracterizando o que se pode chamar de um projeto necropolítica. O método de aborda- gem utilizado é o dialético e o método de procedimento é o bibliográfico. A matriz do Direito Administrativo social: a garantia do mínimo existencial sob a perspectiva da tutela da igualdade e a abertura à participação e controle social O Direito Administrativo social surgiu no Brasil em parte como oposição a uma corrente em alta nos anos 1990 que dava ao Estado um papel subsidiário, chamada de Direi- to Administrativo Neoliberal. Diante de tal corrente dos anos 90, muitos administrativistas se levantaram contra o Direi- to Administrativo Neoliberal que estava tomando o Brasil, dentre os principais, Celso Antônio Bandeira de Mello, des- tacando a importância do Estado como garantidor de direi- tos fundamentais nos países subdesenvolvidos, e no Brasil, especificamente, tendo em vista que a Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) traz um modelo de bem-estar ao Estado bra- sileiro, lhe pondo obrigações para com direitos econômicos e sociais, tendo o Estado a obrigação constitucional de intervir em prol da promoção da igualdade material. Essa visão do Estado e seu papel pode-se chamar Direito Administrativo Social, que defende que a Constituição, além de não justifi- 47 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário ca a subsidiariedade do Estado, também impõe ao Estado a obrigação de intervir na sociedade a fim de materialmente garantir direitos sociais. É preciso, então, demarcar os espaços para o desenvolvimento do Direito Administrativo social, que, nas lições de Hachem, tem como proteção central a tutela das igualdades a partir de uma Administração Pública inclusi- va, apartada de um Direito Administrativo individualista, que, além de se preocupar com a realização da dimensão in- dividual dos direitos fundamentais, tenha por preocupação a efetivação de ações universalizantes, que alcancem todos os cidadãos necessitados e não apenas aquelas que possuem meios de buscar a tutela judicial. A proposta de um Direito Administrativo Social entra em colisão com a proposta de um Direito Administrativo Neoliberal, pois esse “[...] propõe a diminuição das incumbências administrativas ligadas à prestação direta de utilidades matérias imprescindíveis a sa- tisfação das necessidades da cidadania, conferindo ao Estado um papel subsidiário” (HACHEM, 2013, 149). Desse modo, forma-se um novo paradigma calçado na dignidade da pessoa e nos direitos fundamentais que dela decorrem, tendo uma preocupação em reconhecer a eficácia jurídica dos direitos sociais da Constituição e de assegurá- -los. Pode-se falar, então, de um Direito Constitucional da efetividade. Assim, além do neoliberalismo na administração pública, também o positivismo jurídico reducionista à letra formal da lei deu espaço a uma visão onde também entram no ordenamento jurídico os princípios constitucionais explí- citos e implícitos bem como as normas de direitos humanos de tratados internacionais. Assim, se passa de uma legalidade estrita para uma legalidade ampla. Após a Constituição, po- 48 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário de-se falar em um período de ampla intervenção judiciária na administração pública para a garantia dos direitos sociais. Sendo, por vezes, concedida de forma indiscriminada e não criteriosa os pedidos dos cidadãos frenteà administração pú- blica quando tratava-se de direitos sociais, principalmente o direito a saúde (HACHEM, 2013). A discussão acerca do mínimo existencial, tão impor- tante ao Direito Administrativo, comporta uma disputa im- portante ao Direito Administrativo: o mínimo existencial é tudo o que é exigível da administração pública em matéria de direitos sociais ou é o mínimo, podendo se exigir mais? Ou, ainda, o mínimo existencial é a única parte dos direitos so- ciais que são fundamentais? Das duas correntes, uma diz que o mínimo existencial é tudo que se pode exigir da adminis- tração pública, e ir além disso incharia o Estado, fazendo-o adentrar exageradamente na sociedade civil e no mercado e comprometendo as políticas públicas que visariam a contem- plar o todo. A segunda corrente diz que o mínimo existen- cial é aquilo que, com certeza, a administração pública deve fornecer, que é o piso e não o teto dos direitos sociais e sua efetividade, sendo de total direito do cidadão buscar que tal mínimo seja contemplado, mas também havendo a possibi- lidade de se buscar outros direitos sociais por parte da ad- ministração pública, sendo que estes, por sua vez, devem ser ponderados com outros princípios para ver se seria possível ou não a sua aplicação de modo a beneficiar o todo, e esta é a corrente do Direito Administrativo Social (HACHEM, 2013). Conceito tão importante, o mínimo existencial não deve se sujeitar inteiramente a ser o que em cada caso se acha que ele é, embora se deva olhar para a realidade fática das situações em que será posto. Assim, no Brasil de hoje, o míni- 49 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário mo existencial seria o direito à saúde, à educação, à assistên- cia aos desamparados e o acesso à justiça. Ainda, o mínimo existencial e os direitos sociais não são a mesma coisa e, entre suas diferenças, podemos destacar que “O mínimo existen- cial dirige-se ao combate da miséria ou pobreza absoluta, ao passo que os direitos econômicos e sociais destinam-se à promoção da igualdade material entre os indivíduos.” (HA- CHEM, 2013, p. 360). Os direitos sociais devem ser vistos sob um prisma que contemple igualmente a todos. Ou seja, os direitos sociais de- vem ser efetivos, mas também levados com igualdade para a população, sem que uma parte se beneficie indiscrimina- damente e comprometa o orçamento das políticas sociais que visariam a atender ao todo. Afinal, “Eventuais exageros cometidos na esfera judicial podem impedir ou prejudicar a implementação equânime desses direitos pela via adminis- trativa”. (HACHEM, 2013, p. 352). Assim, pode-se questionar quais direitos sociais devem ser plenamente contemplados pela administração pública, cujo descumprimento enseja na busca por sua concretização via judicial. Para resolver tal situação, surgiu na doutrina, no início dos anos 2000, a ideia de que o Judiciário poderia conceder o mínimo existencial, e o que for além disso caberia ao Exe- cutivo e Legislativo contemplar com seus serviços públicos e implementação de políticas públicas. É importante ressalvar que tal é uma restrição à atuação do Poder Judiciário, não um limite ao Poder Executivo e Legislativo em questão de polí- ticas públicas e efetivação de direitos sociais. Assim, ocorre uma alteração na dogmática jurídica brasileira “com vistas à igualdade na implementação dos direitos econômicos e so- ciais passa a restringir parcialmente o campo de legitimidade 50 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário da atuação judicial.” (HACHEM, 2013, p. 353). Tal visão se funda na ideia de que os direitos sociais devem ser efetivos para todos, e não apenas para aqueles com capacidade de in- gressar judicialmente contra a administração pública. Assim, passamos no Brasil da ideia de um Direito Constitucional Efetivo para um Direito Constitucional Igualitário. Afinal, gastos excessivos com demandas individuais e pontuais que comprometam o orçamento público destinado ao todo acabam por comprometer atendimentos públicos e políticas públicas, como já foi visto acima. Dessa forma, con- corda-se com a segunda corrente, afirmando que o mínimo existencial é o piso, o mínimo que a administração pública deve cumprir em relação aos direitos sociais, podendo, toda- via, haver o pedido para que direitos sociais que não estejam dentro do mínimo existencial também sejam contemplados pela administração pública. Importa dizer que, nos direitos que não estejam dentro do que já traçamos como mínimo existencial, será feita uma ponderação com outros princípios, não tendo os restantes direitos sociais tanta força quanto os contemplados pelo mínimo existencial. (HACHEM, 2013). Dessa forma, demonstra-se a importância do mínimo existencial na luta por garantias de direitos sociais, na luta do Direito Administrativo Social. Deve-se frisar, ainda, que o Direito Administrativo Social visa a garantir a materialidade dos direitos fundamentais sociais. Como a doutrina jurídica bem sabe, embora os direitos individuais tenham surgido an- tes no tempo, são os direitos sociais que têm primazia lógica sobre os direitos individuais, pois sem os direitos sociais não é possível que materialmente haja direitos individuais. Ainda, como princípio fundamental do Direito Admi- nistrativo Social se encontra a supremacia do interesse pú- 51 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário blico sobre o interesse privado. Alguns autores advogam que o interesse público não é algo determinável realmente e, por isso, deve ser deixado de lado. Todavia, em verdade, quando posto em seu devido contexto, o conceito de interesse público demonstra não ser uma abstração infundada, mas algo que pode ser detectável efetivamente na realidade. Assim, a am- plitude de seu conceito se demonstra algo positivo, pois ele é assim capaz de adequar-se mais flexivelmente a situações concretas. (GABARDO, 2017). Embora na esfera do “dever-ser” talvez o interesse pú- blico e privado sempre coincidam, na realidade tal situação não acontece, e o direito, muitíssimas vezes, precisa tratar do conflito entre a esfera do interesse público e do interesse pri- vado. Diz Gabardo (2017, p. 101) “[...] o plano jurídico atua justamente porque os interesses privados e públicos em geral se contradizem, se negam e se excluem em um sem número de vezes (o contrário é a exceção).” O interesse público não só tem a supremacia, mas também é indisponível, o que quer dizer que os administradores não têm a faculdade de dispor do interesse público como bem queiram, abrindo mão dele se quiserem, mas tem a obrigação de fazer valer o interes- se público. Sendo que tal supremacia do interesse público é, segundo Gabardo (2017), o fundamento do Direito Admi- nistrativo Social. Importa considerar que, como diz Bobbio (2018), a distinção público/privado se duplica na distinção política/economia, sendo que a preponderância do público sobre o privado é a preponderância do político sobre o eco- nômico. É importante recordar que o Estado social, visando a integração das camadas marginalizadas pelo Estado liberal, nada tem de socialista ou comunista, pois está buscando uma 52 Constitucionalismo Contemporâneo & Políticas Públicas II Clovis Gorczevski e Mônia Clarissa Hennig Leal (org.) sumário integração das classes, o que vai em encontro a luta de classes e sua ideia de impossibilidade de conciliação entre as classes. Dessa forma, não é correto atribuir as pautas sociais (ao me- nos não exclusivamente) aos marxistas/revolucionários, pois, embora suas teorias influam no Estado Social, há uma rup- tura com a ideia de ditadura do proletariado ou com a cren- ça no fim do Estado e no
Compartilhar