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T12 BOTTOMORE, Tom. “Sociedade Civil” in Dicionário do Pensamento Marxista, Rio de Janeiro, Zahar, (pp. 351/352) 1988. Embora a expressão "sociedade civil" fosse usada por autores como Locke e Rousseau para descrever o governo civil em contraposição à sociedade natural ou estado da natureza, o conceito marxista vem de Hegel. Na obra deste a sociedade civil ou burguesa, enquanto esfera dos indivíduos que deixaram a unidade da família para ingressar na competição econômica, é contrastada com o Estado, ou sociedade política. A sociedade civil é uma arena de necessidades particulares, interesses egoístas e divisionismo, dotada de um potencial de autodestruição. Para Hegel, só através do Estado pode o interesse universal prevalecer, uma vez que ele discorda de Locke, Rousseau e Adam Smith no que diz respeito à existência de qualquer racionalidade inata à sociedade civil que leve ao bem geral. Marx vale-se do conceito de sociedade civil em sua crítica a Hegel e ao idealismo alemão em textos como A questão judaica, a "Crítica da filosofia do direito de Hegel: introdução" e os Manuscritos econômicos e filosóficos, nos quais a discussão se faz na linguagem hegeliana daquele período de sua obra. A categoria praticamente desaparece nas obras posteriores de Marx embora se possa argumentar que algumas das implicações de sua anterior discussão permanecem importantes para a visão que Marx tinha da política. A sociedade civil aparece igualmente nos primeiros escritos de Marx como uma medida da transição da sociedade feudal para a burguesa. Definida por Marx como o terreno do materialismo crasso, das modernas relações de propriedade, da luta de cada um contra todos e do egoísmo, a sociedade civil surge, insiste ele, da destruição da sociedade medieval. Anteriormente, os indivíduos eram parte de muitas sociedades diferentes, como as guildas ou os estados, cada uma das quais tinha um papel político, de modo que não havia um domínio civil à parte. Quando essas sociedades parciais se desagregaram, emergiu a sociedade civil, na qual o indivíduo tornou-se de suma importância. Os antigos laços de privilégio foram substituídos pelas necessidades egoístas de indivíduos atomísticos, separados uns dos outros e da comunidade. Os únicos laços que existem entre eles são proporcionados pela lei, que não é produto de sua vontade e não se ajusta à sua natureza, mas que domina as relações humanas pela ameaça de punição. A natureza fragmentária e conflitante da sociedade civil, com suas relações de propriedade, carece de um tipo de política que não reflita esse conflito, mas seja dele abstraído e afastado. O Estado moderno torna-se necessário (e ao mesmo tempo limitado) pelas características da sociedade civil. A fragmentação e miséria da sociedade civil escapam ao controle do Estado, que está restrito a atividades formais, negativas, e se torna impotente devido ao conflito que é a essência da vida econômica. A identidade política dos indivíduos como cidadãos na sociedade moderna é separada de sua identidade civil e de sua função na esfera produtiva como comerciante, operário ou latifundiário. Duas divisões desenvolvem-se simultaneamente na análise de Marx: a divisão entre os indivíduos encerrados em sua privacidade e a divisão entre o domínio público e o privado, ou entre Estado e sociedade. Marx contrasta o idealismo dos interesses universais (tal como representado pelo Estado moderno) e a abstração do conceito do cidadão (que é moral porque vai além de seu interesse estreito e imediato) com o materialismo do homem real na sociedade civil. A ironia, segundo Marx, está em que, na sociedade moderna, os propósitos mais universais, morais e sociais, tais como encarnados no ideal do Estado, estão a serviço de seres humanos sujeitos à condição parcial e degradada dos desejos egoísticos individuais, da necessidade econômica. É nesse sentido que a essência do Estado moderno encontra-se nas características da sociedade civil, nas relações econômicas. Para que o conflito da sociedade civil seja verdadeiramente superado e para que o pleno potencial dos seres humanos possa realizar-se, tanto a sociedade civil, como o seu produto, a sociedade política, devem ser abolidas, para o que é necessário uma revolução tanto social como política que liberte a humanidade. Muito embora GRAMSCI continue a usar a categoria para referir-se à esfera privada ou não-estatal, o que inclui a economia, seu retrato da sociedade civil é muito diferente do traçado por Marx. Para Gramsci, a sociedade civil não é simplesmente uma esfera de necessidades individuais, mas de organizações, e tem o potencial de auto-regulação racional e de liberdade. Gramsci insiste na organização complexa da sociedade civil como o "conjunto de organismos comumente chamados de privados'", onde a HEGEMONIA e O "consentimento espontâneo" são organizados (Gramsci, 1971c: 12-13). E argumenta que qualquer distinção entre a sociedade civil e o Estado é apenas metodológica, já que mesmo uma política de não-intervenção como a do laissez faire é estabelecida pelo próprio Estado (1971c: 60). Nas notas que Gramsci escreveu na prisão, as metáforas que descrevem as relações entre o Estado e a Sociedade Civil variam. (...) Enquanto Marx insiste na separação entre o Estado e a Sociedade Civil, Gramsci enfatiza a inter-relação de ambos, argumentando que, conquanto o uso cotidiano e limitado da palavra Estado possa referir-se ao governo o conceito de Estado inclui, na realidade, elementos da sociedade civil. O Estado, estritamente concebido como governo, é protegido pela hegemonia organizada na sociedade civil, ao passo que a hegemonia da classe dominante é fortalecida pelo aparelho coercitivo estatal. Mas o Estado também tem uma "função ética" ao tentar educar a opinião pública e influenciar a esfera econômica. Por sua vez, o próprio conceito de lei deve ser ampliado, diz Gramsci, já que elementos de costume e hábito podem exercer, na sociedade civil, uma pressão coletiva no sentido da conformidade, sem coerção ou sanções. (...) Embora admita um papel para o Estado no desenvolvimento da sociedade civil, adverte contra a perpetuação da estatolatria ou culto do Estado (1971c: 268). Na realidade, o desaparecimento do Estado é redefinido por Gramsci em termos de um pleno desenvolvimento dos atributos auto-reguladores da sociedade civil. Ao passo que, nas obras de Marx, a sociedade civil é retratada como o terreno do egoísmo individual, a perspectiva de Gramsci está referida à análise hegeliana dos Estados e corporações como elementos organizativos que representam interesses corporativos de um modo coletivo na sociedade civil e do papel da burocracia e do sistema jurídico na regulamentação da sociedade civil e na sua conexão com o Estado Gramsci assinala, porém, que Hegel não tinha experiência das modernas organizações de massas, da qual, aliás, Marx também carecia, apesar de sua maior sensibilidade para com as massas (op. cit., p. 259). (...). Uma compreensão do conceito de sociedade civil, tanto em pensadores marxistas como em pensadores não-marxistas, leva a um exame do próprio conceito de política. Esse conceito envolve relações entre indivíduos e a comunidade, uma visão da sociedade como organizada ou não, o delineamento dos domínios público e privado. Embora a expressão "sociedade civil" desapareça nas últimas obras de Marx, o tema do desaparecimento da política como uma esfera distinta não-controlada pela sociedade e de sua substuição por um novo tipo de democracia reaparece em A guerra civil na França, é encontrado em O Estado e a Revolução, de Lenin, e desenvolvido posteriormente por Gramsci.
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