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i·· i • . i i G '(UfO 1 Sé Nl I. f\} Á 'R ,• 0 .i 2 ~ 'Y)O v . 2. 0 1 ~~ ... \,-,: {'{)A.LU.0A 1 rcLv (0A1,). b__cc;:u, e~ . ch ~~~: b~~ r;.r.;, \} l 2.0l0 I XIX. 0a ch ?o:~. 33- (;2. •·.--, ""~"~• ·r.'•:O.·.,- ~ ' -" cLu-~ ~ J~ é~ Volta ire* Daniela Kern Filho de um burguês, o notário François Arouet (1650-1722), e de Marie Marguerite d'Aumart (c. 1660-1701), uma aristocrata, o futuro poeta, en- saísta, romancista, contista, dramaturgo, polemista, crítico, filósofo e. his- toriador François Marie Arouet nasceu em Paris no dia 21 de novembro de 1694.1 Em 1704 ingressou no prestigiado College Louis-le-Grand, um dos melhores de Paris. Pouco depois, em 1705, conheceu, através do aba- de Châteauneuf (1645-1708), seu padrinho, a escritora Ninon de Leclos (1616-1705), influente cortesã à época de Luís XIV, que lhe deixou uma si~ificativa soma em dinheiro, 2 mil francos, para que comprasse livros. No colégio, François aprendeu latim e teve aulas de retórica com o jesuíta René-joseph de Tournemine (1661-1739), correspondente do sinó- logo jesuíta joachin Bouvet (164 3-1730), que viveu em Pequim até o final • A vastidão da bibliografia sobre Voltaire ainda pode ser inferida pelo hoje clássico artigo de Barr ( 195 1). Limitando-nos aqui a indicar algumas obras relevantes sobre a atuação de Voltaire como historiador, tais como o estudo pioneiro de Brumfitt (1958) e a recente análise de Volpilhac-Auger (2009). A melhor edição das obras literárias de Voltaire continua a ser Voltaire (1958). 1 A data do nascimento de Voltaire não é ponto pacifico. Ainda que hoje se aceite o dia 21 de novem- bro de 169'1:, é importante lembrar que contemporâneos de Voltaire, como seus secretários Long- champ e Wagniere. e como_ seu biógrafo Condorcet, além do próprio Volta ire , insistiam na data de 20 de fevereiro, alegando que nascera muito frágíl e que fora batiz;do, por decisão da família, apenas em novembro do mesmo ano. Ver Longchamp e Wagniere (1826:2); Condorcet (1789:3) ~&t:~t~#'r~~~~~~-~~frt.~,..~~~~~~~~;_;~~~~~~~lt~~~rlt~~~}ki;'t_~~J;;~]~~ti~~}:f;~~~{~~J.~~~~~;~.~~ti~~';~~ 34 LiÇOES DE HI ST(>RiA da vida. 2 Tournemine provavelmente foi o primeiro a despertar no jovem o interesse pela cultura chinesa, que nunca iria abandoná-lo. -· ..,...,. ·. . '· E in 1711 François deiXou 'ô-cõfêgiõ jesuita"""'t rr1deciso qúãnto ao ft.itu- ro profissional, começou a se envolver em problemas. já havia conhecido anteriormente a sociedade epicurista Libertinos do Templo , através de seu padrinho, e passou a frequentá-la. Em 1713 seu pai, insatisfeito com sua decisão de se tornar escritor e também com sua vida social, decidiu enviá- lo para Haia, como secretário de embaixada. Lá Fran(fOis arranjou novo problema ao se apaixonar e ao tentar sequestrar e converter ao catolicis- mo a jovem protestante Catherine Olympe Dunoyer, a "Pimpette", uma refugiada francesa de poucos recursos. O pai de François mais uma vez Jnf_erveio e fez com que o filho retomasse a Paris e . .p_rgmetesse estudar di- reito. Mas, em vez de trabalhar como assistente de um advogado em Paris, conforme dizia ao pai, Voltaire continuou a ocupar seu tempo com a escrita de poemas satíricos e com uma intensa vida social. Em 1717 o jovem François envolveu-se em um problema de maiores dimensões, e não mais contou com a ajuda do pai: por haver escrito versos ofensivos ao regente, Filipe, duque de Orléans (1674-1723) -lembremos que Luís XIV morrera em 1715, e que Luis XV assumiria efetivamente o trono apenas em 1723 -, passou 11 meses preso na Bastilha. O período de confinamení:o ainda assim foi proveitoso: Fnmçois começou a elaborar o poema La Ligue e a tragédia Oedipe. Em 1718, livre, François decidiu criar um pseudônimo que marcasse sua autonomia e o fim do jugo paterno. Assim surgiu o nome Voltaire, cujo sentido é controverso: anag!ama de Arouet o jovem em latim, ou de Airvault, residência da família materna em Poitou. Também em 1718 Voltaire estreou no teatro com a tragédia Oedipe, obtendo imenso sucesso. Voltaire continuou a trabalhar em seu mais ambicioso projeto da épo- ca, o poema La Ligue, mais tarde intitulado Henriade. Esse poema, que pas- sou a circular clandestinamente em 1 723 - ao tratar do reino de Henri- que IV (1553-1610), responsável pelo Édito de Nantes (1598), que pusera fim à guerra civil religiosa travada na França entre católicos e protestan- tes-, foi tido em alta conta por muitos de seus contemporâneos, como Duvemet (1734-1796), que o considerava o poema épico dos franceses ·-~;~"'-·''-" ·~·····-: :.· ,·,-,L TI\I RE ' ; '-'";)._r . , .. 35 -; .. - ·-· -- contra o fanatismo, e Condorcet (1743-1794), que nele via a mesma marca dç,g~nio_pres~~je naEneida.3 __ ,, _ .,-. •... __ , ·N~ssa época Voltaire já lia com afinco a obra d~ crítico protestante Pierre Bayle (1647-1706),4 a quem deveu muitas das estratégias críticas que haveria de adotar em seus trabalhos históricos.5 Admirador de Thomas Morus (1478-1635) e das correções que ele fizera em obras de eruditos como joseph Scalinger (1540-1609), em 1692 Bayle projetou uma vasta obra, um dicio~ário crítico protestante que haveria de responder ao Le grand dictionairé historique do católico Louis Moréri (1643-1680), e que se- ria elaborado a partir de 1696. Em seu projeto Bayle propunha a critica dos erros da história que então se praticava: "e que não me seja dito que nosso século, [. .. ] curado do espírito que reinava no precedente, olha apenas como pedanhsmos os escritos daqueles que corrigem as falsidades de fato, concernentes ou à história particular de grandes homens, ou ao nome das cidades, ou tais outras ·coisas; porque [ ... ] jamais tivemos mais apego do que hoje a esses grandes esclarecimentos". 6 Propunha também a utilização de novas fontes históricas a fim de tornar possível a correção dos vários ti- pos de erros detectados no trabalho dos historiadores: "jamais a ciência do antiquai:iado, quero dizer o estudo das medalhas, das inscrições, dos bai- xos-relevos etc., fora cultivada como o é agora. A que chega ela? A melhor estabelecer o tempo em que certos fatos particulares ocorreram; a impedir que se tome uma cidade ou uma pessoa por uma outra; a fortificar conjec- turas sobre certos ritos dos antigos; e a cem outras curiosidades [ ... )". 7 Vol- ' taire lembraria dessas lições mais tarde, ao comentar os monumentos em seu artigo Histoire, e também ao criticar com veemência a obra de Moréri.8 A relação intelectual de Voltaire com Bayle, no entanto, estava longe de ser 3 Duvemet, 1786:55; Condorcet, 1789:17. ' Para uma relação das obras de Bayle que Voltaire possuía em sua biblioteca em São Petersbur- go, comprada por Catarina a Grande após sua morte, ver Havens e Torrey (1929:4). ' Para um breve levantamento das referências elogiosas de Voltaire a Bayle ao longo de sua obra, ver Haxo (1931:461). Haxo se concentra na localização de pontos de contato entre ambos até 1726 e comenta detalhadamente possíveis influencias de Bayle no poema Hen riade. 6 Bayle, 1692:35 (todas as citações de trechos de obras que na bibliografia se encontram em francês ou inglês foram traduzidas pela autora). -.. -:.• ·-... -~ ... • 7 Ibid., p. 35. I ·- · · ._, - b · •· " ' -d·. ·árt ·· · "6 ' ·.· ( '170') "''· ...._ .,..........,,....,o.>t"""'~ ·.,-.~-'~ ··"·"'"''"'<o''~'·- .. ~-;-~ ...... _~., .~.""t'"S:'"~ -~-r~:--... -..:- · ;!".: --:~-.. r. r.c::::~~~-.:-~....._...-.-~,17"....,......-, .... ---. .. ------- ---·---- .A:-. -~----z~...;...--- ~~-·.!õ;-U•-.:r...:..·.=t..::..;:-... . ...,~-.:.-.;· .... ---o-,;.·-~ · :--~- -- - ... __ _ .....,, t'"'dra-ttln::a·ver3at:r-a rcV'faaa uo- te1on o, ver 1v1 ren .1 .. voualu:. ue10 ,:,e It:tctc , no entantO, 2 Rowbotham, 1932:1.051.l' a essa edtção em seu artigo Histoire. ' ~.-;.;:mt&Mi&~~~·/?·.~:.-~ : :_:.;:1~ -:..::·~·;~~~~r..v•.~~-!.. :~ .... ..s: __ /:.·rs:~,~ .. -:r.:.-~·7i.~- -~ ·~ !-,_:.s-·'~-... ~-~;.:')Z .t-:;~"'5n;~z~~sL~:!-..7.~~c~ ... :~~~~y~~t;,·~~:;..~n::-:::.::~-:..~·~~~~~~~~~~t:~f~Ji~~~~ [!I ~ 11 !ti i li ·I ,, '~ ' :j 1- I "f I 36 LIÇOES DE HISTÓRIA passiva: assim como era capaz de elogiar efusivamente o grande crítico , também era capaz de discordar dele -para Voltaire , Thomas Morus; por exemplo, não passava de um "selvagem fanático" .9 A relativa tranquilidade da vida pública de Voltaire teve fim em 1726, quando, mais uma vez devido a versos satíricos, brigou com o príncipe de Rohan-Chabot (1683-1760), foi preso e forçado a buscar exílio na Ingla- terra. Novamente Voltaire soube tirar o máximo proveito de um contra- tempo: em sua temporada inglesa frequentou proeminentes intelectuais, como Pope, conheceu Swift e compareceu ao enterro de Newton. O exílio acabou em 1728, e Voltaire retornou a Paris. Em 1731 Voltaire deu mais um passo em sua carreira de historiador, ao publicar a Histoire de Charles XII. A história do aventureiro rei sueco, retratado por Voltaire de modo bastante irônico, teve muitos defensores, como Duvernet: "Voltaire preparou a história de Charles XII; história que a posteridade olharia como um romance, se uma multidão de testemunhas oculares dela não houvesse atestado a veracidade e a exatidão". 10 Mas tam- bém haveria de atrair críticas no futuro, como as de Napoleão, que lera a obra após viajar pelos lugares descritos por Voltaire e que julgara seu relato "fraco e impreciso" Y Voltaire trabalhava em um ritmo intenso. Em 1732 começou a pensar em Le sii~cle de Louis XIV e escreveu Za!de; em1733 causou polêmica com Le temple du goüt, e em 1734 publicou as Lettres philosophiques . O escânda- lo provocado por essa obra, que comparava a França desfavoravelmente à Inglaterra , foi grande a ponto de forçar Voltaire a deixar Paris. Enquanto exemplares de sua obra eram queimados, Voltaire encontrou abrigo junto a uma velha amiga, madame du Châtelet. Os dois se tornaram amantes e passaram os nove anos seguintes no Château de Cirey, envolvidos em estu- dos de ciência e de filosofia . Durante esse período Voltaire iniciou a troca de correspondência com Frederico, o futuro rei da Prússia (1736) , publicou, juntamente com ma- clame du Châtelet (tradutora de Newton para o francês), Eléments de la 9 Ver Meyer (1958:67-68) . Para um come~tário sobre as criticas de Voltaire a Bayle e a Bemard Fontenelle (1657-1757), escritor francês que defendia a ciência e a tradição cartesiana, ver Brumfitt (1958:26). 10 Duvemet, 1786:62. 11 Ver Morley (1906:306-307). VOLTAIRE 37 philosophie de Newton (1738) e causou polêmica com mais um livro que criticava a-religião, Mahcmet ou leJar.atisme (1741). - · - ·· '-"· -J.:. Em 1744 a sobrinha de Voltaire, Marie-Louise Mignot, filha de sua irmã mais velha, Catherine, ficou viúva , e se tornou amante do tio, que já demonstrara inclinação por ela. A relação de Voltaire com madame Denis, .. como era conhecida, seria duradoura, mas não era baseada em fidelidade . Madame Denis teria ainda vários amantes, inclusive um dos amigos de Voltaire, Marmontel. O auge da boa sorte de Voltaire nesse período se deu em 17 45, quando se tornou historiógrafo da França, ingressou na Académie Française e rece- beu uma carta de gentilhomme, tudo isso porque passara a contar com amigos poderosos no reinado de Luís XV, entre eles a própria madame de Pompa- dom, amante do rei. Nesse mesmo ano apressou-se em publicar um poema sobre a batalha de Fontenoy, ocorrida em ll de maio de 1745, batalha em que os franceses, liderados pelo marechal de Saxe (1696-1750), venceram os ingleses inesperadamente. A pressa em aproveitar o interesse do públi.co pelo acontecimento ,12 no entanto, fez com que Voltaire fosse obrigado are- visar o poema muitas vezes, de modo que, apenas naquele ano, dele foram publicadas seis edições.13 A batalha de Fontenoy despertou grande interesse em Voltaire como historiador, tanto que a ela ainda iria dedicar uma detalhada análise em seu livro sobre a guerra de 1741. 14 A precisão de seu poema sobre a batalha , contudo, seria posta em dúvida por seu grande adversário, o abade Pierre- Frahçois Guyot Desfontaines (1685-1745), professor de retórica, colabo- rador do ]ournal des Sçavans e crítico contumaz de suas tragédias, naquela que seria a última querela entre ambos. Desfontaines, odiado pelos admira- 12 A pressa se justifica: eram vários os poemas e panfletos sobre a batalha que disputavam a atenção do público, tanto na Inglaterra quanto na França. Na Inglaterra , por exemplo , eram pu- blicadas sátiras sobre a batalha (ver Fontenoy, a new satyric...), assim como traduções de relatos franceses do evento (ver The journal of the .. . ). 11 A edição mais criticada por Desfontaines é a primeira. Ver Voltaire (1745). 14 Vo lta ire (1757:242) encerra o capítulo destinado à batalha de Fontenoy assim: "entramos nes- se longo detalhamento da batalha de Fontenoy porque sua importância o merece. Esse evento determinou o destino da guerra, pavimentou o caminho para a conquista dos Países Baixos, e serviu romo conrrapontn p~r~ todo~ ns desapnnt~menros. A pr~sença d0 ~~i e- rle 5et:· filho , e - - o perigo a que esses dois prtncipes e a França estavam expostos aumentaram grandemente a importância desse para sempre memorável dia" . . ~ .... ~~'#f.f~~:A'~i;.,;i.l:.a.~i!:t"?.:k'.i.~'Wft)õ~~~~...-..6t:-"~~4'i~~~~-~-";.:.é;~~~~A;rn..~\.t;,.~,,s,,,.;,~j.,.;:2f"i::''"'~:t-.::·i~.&~::r>tY.<:~~: . .;;'3;s-';.;:r~·;,,·.':.iJ..:· • .,...,:.;"'" ~·.:.·· ~· -i·s,,,~ -· ~,..i~ .. ~~~~~<' ~--Lt.:..-~r~bi.ú.-...o;:. ·~·;;t__~i.!~l~.;,&t'~t! ... ~".-E~·"'!'--.t;.·"...~~-'-~~ffl~.~..'L.k. ?4~~~~~vc.-#~~.&;il_~~.;.~'k!!~""~.,,;~..,~~·~.;--:;r"""'!;',.~(: ..-"-~;;;:_!!: ·•-' • , -:.""}.~~-~ .~.:.~-i,~ ... "'!-"·~~'!-~.J!'.I:...· ... ~~:t.V ,<t~·~.r-..- 1' .c.?:-:.. ... • ~·: te":" ... ::-!..!"'.~~~~~~ ~~ ...... .:.,.:.~..-:f~'!-"~·-~i.,~t::~~~~~~~r. 38 li ÇOfS DE HISTORIA dores de Voltaire, 15 criticou vários aspectos do poema, como a imprecisão topográfica e, sobretudo, factual : ·:você se apresenta, senhor, na primeira · edição de seu poema: como historiógrafo da França.· Bela amostra que o senhor dá de seu talento para a história! O senhor adota tudo o que lhe disseram: verdadeiro ou falso, não importa. A sua imaginação acalorada é o seu único guia: o senhor acredita em tudo, e nada discute" . 16 Desfontaines, no entanto, morreu pouco depois da sexta edição do poema vir a lume, em dezembro daquele ano, e Voltaire continuou a desfrutar da boa fase literária e política. Tudo mudou em 1747, com o incidente do jeu de la reine: após ma- dame du Châtelet perder grande soma em dinheiro em umjogo .promovi- do pela rainha, Voltaire disse que ela perdera porque estava jogando com "patifes", o que foi entendido como grave insulto e rendeu <1 Voltaire uma ordem real para deixar Paris. Voltaire primeiro refugiou-se em Sceaux, na duquesa do Maine. Nesse ínterim, madame du Châtelet morreu de parto, em 1749 (ficara grávida de outro amante), e Voltaire sentiu muito a perda. Após uma breve estada em Paris, decidiu se mudar para Potsdam, em 1751, a fim de encontrar Frede- rico da Prússia. Voltaire, que acabara de publicar uma de suas obras histó- ricas mais importantes, Le siecle de Louis XIV (1751) , na corte de Frederico escreveu, em 1752, Micromégas, uma das primeiras obras de ficção científica. Os problemas, contudo, não tardam a aparecer. Voltaire se indispôs com Maupertius, o presidente da Academia de Ciência de Berlim, foi por ele pro- cessado e, em reação, escreveu a sátira Diatribe dudocteur Akakia, que atacava seu inimigo diretamente . Voltaire foi preso e, passados alguns meses, teve de deixar Berlim em 1753. Sua atividade como historiador se intensificou: ainda em 1753 iniciou a publicação de uma obra histórica de fôlego, os Annales de l"Empire. Em 1755, já instalado em sua nova residência (les Délices), perto de Genebra, provocou mais uma vez grande repercussão com o Poeme sur le désastre de Lisbonne. E em 1756, além de lançar outra de suas obras históricas mais significativas, o Essai sur les moeurs , passou a colaborar com artigos para 15 Duvemet (1786:48) criticou Desfontaines nesses termos: "um dos mais desprezlveis e piores homens pelos. quais a república já fora envenenada". ·.- ..... - • ,. · ·· • .· · - :~ --·- ··-·· ... ,_ . - ·.-··-· • · ,.,_.,, · 16 Desfontaines, 1745:3. VOLTAIRE ' - ("<)•.' , . , •·!>"· ·'·· .. ~ 39 ' a Encyclopédie . Um deles é o verbete histoire, 17 em que sintetiza os temas e pontos de vista que desenvol.vera em suas obras históricas _anteriores. As- sim, Voltaire fala tanto sobre os chineses18 quanto sobre as pesquisas de an- tiquário, tanto sobre Carlos XII (1682-1718) e os costumes turcos19 quanto sobre as vitórias do marechal ~e Saxe. Voltaire insiste na necessidade de verificação dos fatos pelo historiador e no cuidado com relação ao uso de fontes, ainda que ele mesmo, diferentemente de Bayle, obcecado por notas de rodapé, não sostumasse citar as suas. 20 A preocupação com a veracidade dos fatos não era exclusiva de Voltaire e se refletia em outras obras da épo- ca, como o Traité des différentes sortes de preuves qui servent à établir la vérité de l'histoire (1758), de Henri Griffet (1698-1771) . Obra muito bem-suce- dida, nela o autor, organizador dos trabalhos históricos do padre Gabriel Dàniel (1649-1728), procurou classificar todos os erros que se podiam encontrar na história (~rros de datas, de fatos, de circunstâncias, de geo- grafia). A admiração por Bayle não é ocultada: "Bayle, em seu Dictionnaire, muitas vezes encontra o próprio m. de Thou incorrendo em erro a respeito da data de diversos fatos memoráveis que se haviam passado em seu tem- po, e que para ele teria sido muito fácil verificar" _H Quanto ao cuidado de Voltaire no que diz respeito aos fatos com os quais trabalhava, não apenas detratores como Desfontaines o criticavam. Hume, por exemplo, em carta enviada a um amigo, comentando a Histoire universelle (1753) de Voltaire, não o poupou: "eu sei que não se pode confiar no autor com relação aos fatos; mas sua visão geral é por vezes sonante, e sempre divertida"Y Pouco depois de redigir Candide, Voltaire adquiriu em 1758 aproprie- dade de Ferney, localizada na fronteira franco-suíça, para onde se mudou com madame Denis. No ano seguinte Candide foi publicado com estrondo- 17 Voltaire, 1765:220-225. 18 Ver especialmente Rowbotham (193t: 1053, 1057 e 1063). Para uma análise da fa lta de orien- tação historicista no modo como Voltaire tratava a moderna cultura chinesa, ver Rosenthal (1958:172) 19 Ao discorrer sobre os turcos, Voltaire condenava vivamente a existência dos eunucos, de- monstrando uma preocupação pelo tema caracterlstica dos pensadores iluministas. Cf. Goss- man (1982:40-50). 20 Brumfitt, 1958:129. 21 Griffet; "1"769:82. . 22 Meyer, 1958:51. .:· ,;" ..... - --- ·-· · '··l~3?~~~"f#1~??!:·t<:~·~:~:~~i~!i:t~~2;g~.~I~~~:~L:~~~1~~I~~!:i&1!~;t~~~~;;;_{1~k::B'fi7:~:gÇt:irl~1:t~~<t~fl-át~~~~1:&.~~2'~~"'t~"-~ ! I I I. I; li I I I I ! i t' ,, " i· li I ~ ' ~ ! ,, ;: ij i ! 40 liÇOE S DE HISTORIA so sucesso em toda a Europa, e Voltaire deu prosseguimento a seus traba- lhos históricos, escrevendo a Histoire de ~a Russie sous Piemde Grand:·' -, A partir de 1762 uma nova etapa da vida pública de Voltaire teve iní- cio, com o rumoroso caso Jean Calas. O comerciante protestante Jean Calas (1698-1762), de Toulouse, em 9 de março de 1762 fora condenado pelo assassinato do filho, Marc-Antoine, 28 anos (1732-1761). No dia seguinte, jurando inocência até o final, foi cruelmente morto na roda. Alegou-se que ele teria matado o filho por não concordar com sua conversão ao ca- tolicismo. Voltaire ficou muito perturbado com a condenação e passou a acompanhar os fatos de perto. Convencido da inocência de Calas, recebeu em Femey seus outros filhos, Pierre e Donat. Mais do que isso, passou a liderar uma intensa campanha pública contra o magistrado municipal de Toulouse, David de BeaÚdrigue, a quem denunciou por acusar Calas injus- tamente, e chegou mesmo a fazer com que a viúva de Calas se apresentasse a Luís XV, causando grande comoção na corte. Os argumentos de Voltaire, explorados no Traité sur la tolerance (1763), eram incisivos: "mas se um pai de família inocente é entregue às mãos do erro [ ... ], se os árbitros de sua vida[ ... ] podem matar impunemente por um decreto, então o clamor público se eleva, cada um temendo por si próprio; vemos que ninguém tem garantia de vida diante de um tribunal erigido para zelar pela vida dos cidadãos [ ... ]"_23 Seus esforços foram recompensados: em fevereiro de 1765 Beaudrigue foi destituído de sua função, e em 9 de março Jean Calas, finalmente, foi reabilitado. Ficara provado que Marc-Antoine não fora as- sassinado, mas cometera suicídio, e que a família procurara ocultar o fato na esperança de que ele merecesse um enterro cristão. Os últimos anos de Voltaire, passados em Ferney, foram muito ativos: uma celebridade europeia publicou volumosas obras como o Dictionnaire philosophique portatif (1764), inspirado naquele de Bayle, com vários arti- gos escritos para a Encyclopédie, e as Questions sttr l'Encyclopédie (1770), sua última obra filosófica. Em 1775 suas Oeuvres completes começaram a ser publicadas pelo editor Cramer, e em 1775 Voltaire retornou a Paris para a estreia triunfante da tragédia Irene . Provavelmente para agradar Benjamin Franklin (1706-1790), ingressou em 4 de abril na loja maçônica das Neuf 23 Voltaire, 1831:223-224. VOLTAIRE 41 Soeurs, que fora fundamental para a ocorrência da revolução americana. -·---Em 30 de maio, ·h\:htuge da fama, Voltaire faku~u. deixand-o pa:r~:ntás·um·-· imenso legado intelectual e inúmeros seguidores. Ainda que o futuro lhe reservasse maior fama como autor de Candi- de do que como historiador, ~to é que sua obra histórica nunca deixou de ser estudada. Nas primeiras décadas do século XIX, P C. f Daunou (1761-1840) e os outros ideólogos, por exemplo, por ela manifestavam grande apreço. Os ingleses, por outro lado, na mesma época a criticavam quramente: ThÓmas Carlyle (1795-1881) entre 1830 e -1840 atacava a falta de fé de Voltaire , e Thomas Macaulay (1800-1859) não aceitava sua crítica à autoridade. 24 A sorte do Voltaire historiador na Inglaterra mu- daria radicalmente a partir da metade do século XIX, como se percebe na afirmação de H. T. Buckle (1821-1862) em sua History of civilization in England (1857): "fui mais minucioso ao afirmar as imensas obriga- çôes que a história deve a Voltaire porque, na Inglaterra, existe contra ele um preconceito, que nada a não ser ignorância, ou algo pior do que ignorância, pode desculpar; e porque, tomando-o no todo, ele é prova- velmente o maior historiador que a Europa jamais produziu". 25 A partir de Buckle uma série de historiadores racionalistas irá valorizar Voltaire, como John Morley (1838-1923), que a ele dedicou uma obra em 1871, na qual elogia efusivamente seu "novo método de escrever a história" .26 No século XX Voltaire continuará a encontrar partidários e críticos. Se Paul Meyer nos lembra que os contemporâneos de Voltaire não o viam como um historiador revolucionário e que essa ideia surgiu apenas na historiografia doséculo XIX,27 ].]. Brumfitt em poucas palavras foi capaz de indicar a real importância de Voltaire, ainda hoje, para o estudo da história e de sua escrita: "seja ou não Voltaire, como alguns de seus mais entusiasmados admiradores afirmaram, o pai da moderna escrita histó- rica, ele é certamente o mais típico e o mais universal dos historiadores do Iluminismo" 28 24 Newman, 1977:1349. 25 Buckle, 1862:591-592 . 26 Modey, 1Q06:107 27 Meyer, 1958:52. 28 Brumfiu , 1958: l. ~ ' ~i~g:_êfi;i,':'~{-%~~~f!it4riÊ,~lUiktdi~#t~'WJL~~~~·::f:..~~té~!-~i!fí~~1.~:~.'f~~~~'f;)Y~~~1~t:~~·~~~~::ré~~.!~~~~~;~~~J~~~~~~~ii~ "' 42 ;·..: LiÇOES DE HISTORIA Principais obras de Voltaire: ·• Oedipe, 1718; .. -- .~. • .. ~.,·. :. . .'.~" ... ~~-.. •.. ,. ~ .. · ·~· · .· + La Henriade, 1723; + Histoire de Charles XII, 1731; + Za!re, 1732; + Le temple du gout, 1733; + Lettres philosophiques sur les anglais, 1734; + Eléments de la philosophie de Newton, 1738; + Le fanatisme, ou Mahomet le prophete, 17 41; + Remarques sur l'histoire, 1742; + Nouvelles considérations sur l'histoire, 1744; + Zadig, ou la destinée, 17 4 7; + Le siecle de Louis XIV, 1751; + Micromégas, 1752; + Annales de l'Empire depuis Charlemagne, 1754; + Essai sur l'histoire génerale et sur les moeurs et l'espirit des nations, 1756; + Histoire de la guerre de 1741 , 1756; + Poemes sur le désastre de Lisbonne et sur la !oi naturelle, 1756; + Candide, 1759; + Histoire de la Russie sous Pierre le Grand, 1759-1763; + Pieces originales concemant la mort des sieurs de Calas, 1762; + Traité sur la tolérance, 1763; + Dictionnaire philosophique portatif, 1764; + Précis du siecle de Louis XV, 1768; + Les guebres, 1769; + Histoire du parlement de Paris, 1769; + Questions sur I'Encyclopédie, 1770-1772. · HISTÓRIA29 História é o relato dos fatos tidos por ve rdadeiros; ao contrário da fábula, que é o relato dos fatos tidos por falsos. Há a história das opiniões, que nada mais é do que a coletânea dos erros humanos; a história das artes, talvez a mais útil de todas, quando . --. _ _..,._ -~ ' ~-~....., " --~- . - ..... ~ .. .,.-;.:...:· . ...,._.,........_;,;-· : '{'"" 29 Voltaire, 1765:220-225 (tradução e notas de Daniela Kern). . VOLT AI-RÉ L•·. , .. . 43 ·-------···---··-- ------ ela acrescenta ao conhecimento da invenção e do progresso das artes a descrição de seu :necanismo; a história natural , impropri~ment.e chama- da de história, e que é uma parte essencial da física. A história dos acontecimentos divide-se em sagrada e profana. A história sagrada é uma continuação das operações divinas e miraculosas, por meio das quais aprouve '"'a Deus conduzir outrora a nação judia, e exercer hoje nossa fé . Não tratarei em absoluto desta matéria respeitável. Os primeiros fundamentos de toda história são as narrativas dos pais aos filhcis, transmitidas de uma geração a outra; eles são apenas prováveis em sua origem, e perdem um grau de probabilidade a cada geração. Com o tempo , a fábula cresce, e a verdade se perde: de onde vem que todas as origens dos povos são absurdas. Assim, os egípcios teriam sido governados pelos deuses durante muitos séculos; em se- guida, por semideuses; enfim, teriam tido reis durante 11.340 anos: e o Sol, neste espaçô de tempo, teria mudado quatro vezes de oriente e de poente. Os fenícios pretendiam estar estabelecidos em seu país há 30 mil anos; e esses 30 mil anos estariam repletos com tantos prodígios quanto os da cr0nologia egípcia. Sabe-se que maravilhoso ridículo reina na antiga história dos gregos. Os romanos, por mais sérios que fossem, não envolveram menos em fábulas a história de seus primeiros séculos . Esse povo tão recente, em comparação com as nações asiáti- cas, esteve 500 anos sem historiadores. Assim, não é surpreendente que Rômulo tenha sido o filho de Marte ; que uma loba tenha sido sua ama de leite; que tenha marchado com 20 mil homens de sua cidade, Roma, contra 25 mil combatentes da cidade dos sabinos; que a seguir ele tenha se tomado deus ; que Tarquínio o Velho tenha cortado uma pedra com uma navalha; e que uma vestal tenha arrastado por terra um barco com seu cinto30 etc. Os primeiros anais de todas as nossas nações modernas não são menos fabulosos: as coisas prodigiosas e improváveis devem ser regis- tradas, mas como provas da credulidade humana; elas entram na histó- ria das opiniões. JO .As lendas de·Romulo, fundador de Roma, de Tatquínio o Velhcre da vestal Sãó narradas peló historiador romano Tito Uvio (59 a.C.-17 d .C.) em A história de Roma (Ab Urbe Condita) . ~~~"Wilefíilf.'!i.-.:~~~~Je~·.,~-;>e~.$~~--:-·J · ·· -:- ···~;.!!<],~mn-~~..i:Y;~~H,~•i;;-.#;-;:r,t~~~f.'i~'"'~J;~gí'l;'lf..-.:~,~~'A·":;-:..+'1'>b~ .. \}'f:r-::~ •• ~i""~1~"t"'~1'!@:..Y.~~ ~t~!.S~~~~~"tt.~~~'-"=1"~ -- -~-x~~ .. :l'~~l:f~'?~;~~,r~~ -~ -~-· -~~~-l.~~~-~.w~~"""~~w:~x;TI;'Lr~t-~~,;,~~~:&1:~Â-..;;~.~:ti-t;,~·~~-:';:?~.,__t')~~~_!-::.-~~*~:.fu4-=-~~.J.-:·4ff·E{.~~w~\~~~~~~ 11 li r ! ; I I·! I I li ! l: ! .. '· 1: l 1: I; ., i :: l! , ' i; ; ! t] ~ I I 44 LIÇOES DE HISTORIA Para conhecer com certeza alguma coisa da história antiga há ape- nas um meio, é ver se restam alguns monumentos incontestáveis; te- mos apenas três por escrito: o primeiro é a coletânea das observações astronômicas sucessivamente feitas durante 1. 900 anos na Babilônia, enviadas por Alexandre à Grécia, e empregadas no Almagesto de Ptolo- meu.31 Essa sequência de observações, que remonta a 2.234 anos antes de nossa corrente era, prova invencivelmente que os babilônios exis- tiam como povo muitos séculos antes: porque as artes nada mais são do que a obra do tempo; e a preguiça natural aos homens os deixa milhares de anos sem outros conhecimentos e sem outros talentos do que aque- les de se alimentar, de se defender das injúrias do ar, e de se degolar. Que o julguemos pelos germanos e pelos ingleses do tempo de César, pelos tártaros de hoje, pela metade da África, e por todos os povos que encontramos na América, excetuando sob certos aspectos os reinos do Peru e do México, e a república de Tlaxcala.32 O segundo monumento é o eclipse central do Sol, calculado na China 2.155 anos antes de nossa corrente era e reconhecido como ver- dadeiro por todos os nossos astrônomos. É preciso dizer a mesma coisa dos chineses e dos povos da Babilônia; eles já compõem sem dúvida um vasto império civilizado. Mas o que coloca os chineses acima de todos os povos da Terra é que nem suas leis, nem seus costumes, nem a língua que entre eles falam os letrados, nada mudou em cerca de 4 mil anos. No entanto essa nação, a mais antiga de todos os povos que subsistem hoje, aquela que possuiu o mais vasto e mais belo país, aque- la que inventou quase todas as artes antes que aprendêssemos algumas delas, sempre foi omitida, até nossos dias, em nossas pretensas histórias universais; e quando um espanhol e um francês faziam o recenseamento das nações, nem um nem outro deixava de chamar seu país de primeira monarquia do mundo. 31 Cláudio Ptolomeu (c. 100-c. 170): matemático, geógrafo e astrônomo grego , autor da Grande sintaxe matemdtica (140), importante obra sobre astronomia em que desenvolve o sistema geo- çt;.mrico, e que será c~m-ª'da pelos á(abes de Almagesto. . _ _ • 32 SitÜada em território que hoje pertence ao México, era uma nação independente no período pré-colombiano, que nunca foi dominada pelos astecas. VOLTAIRE 45 O terceiro monumento, muito inferior aos outros dois , subsiste ·· nos mármores dt::Arundel:33 a crônica de Atenas neles i"ci··gn ..... -ada 263 anos antes de nossa era; mas ela remonta apenas a Cécrops, 1.319 anos além do tempo em que fora gravada. Eis na históriade toda a Antigui- dade os únicos conhecimentos incontestáveis que temos. Não é surpreendente qu; não se tenha nenhuma história antiga pro- fana anterior a cerca de 3 mil anos. As revoluções deste globo, a longa e universal ignorância dessa arte que transmite os fatos pela escrita disso são a causa; aihda há vários povos que dela não fazeiJ:l nenhum uso. Essa arte foi comum apenas entre um número muito pequeno de nações civili- zadas, e ainda estava em muito poucas mãos. Nada de mais raro entre os franceses e os germanos do que saber escrever até os séculos XIII e XIV: quase todos os atàS eram atestadvs apenas por testemunhas. Na França- · foi apenas sob Carlos Vll,34 em 1454, que foram redigidos por escrito os costumes da FraRça. A arte de escrever era ainda mais rara entre os espa- nhóis, e decorre disso que sua história seja tão seca e tão incerta, até os tempos de Fernando e de Isabel. Vê-se por ai o quanto o número muito pequeno de homens que sabem escrever pode se impor. Há nações que mbjugaram uma parte da Terra sem ter o uso dos caracteres da escrita. Sabemos que Gengis Khan conquistou uma parte da Asia no começo do século XIII; mas não é nem por ele, nem pelos tártaros que o sabemos. Sua história escrita pelos chineses, e traduzida pelo padre Gaubil,35 diz que esses tártaros não dominavam de modo algum a arte de escrever. ' -E quase certo que entre 100 nações mal havia duas que usassem os caracteres da escrita. 33 Colecionados por Thomas Howard, conde de Arundel (1585-1646), compreendiam várias pe- ças gregas catalogadas já em 1628; Voltaíre menciona especificamente aquelas referentes às crô- nicas de Paras (c. 260 a.C.), que contam a história de Atenas entre 1582 e 354 a.C., e que foram publicadas pela primeira vez em 1763, em edição bihngue (grego/latim), sob o titulo de Arunde- lian marbles, Marmora Oxoniensia , pelo antiquário ingles Richard Chandler (1737-1810). 34 Com a ajuda de Joana d'Arc, Carlos VII (1403-1461) foi sagrado rei da França em 1429. Aperfeiçoou o sistema fiscal, reestru turou os exércitos e expulsou os ingleses de quase todo o território frances. 3 ' Antoine Gaubil ( 1689- l 759): jesuíta que se instala em Pequim em 1722 e lá vive até o final da vida, sob o nnrnP ele Snn Kiun-y11ne. Tr~.çimiu p<trP. o franrl'~ divers~-? obras rhineS<>s, entrP. .as , quais aquela a que Volta ire se refere, a Historie de: Ge:ntchiscan et de toute la dynastit: des mongous, ses succe:sst:urs, conquérans de la Chine (Paris, 1739). ~~;1f1Á~i&~~~~.?iJ~;{~~~~St~~~~~~~~J~~~4~~~~~~~t:~,~~~ft.~Jf~~~~;,\_~~1'k.?;;·;:;t;~~~~~::;~j:j~~~~;~~~.'\{~~~~'U~':l.~~?ã~;~t.;~ 46 liÇOE S DE HI STÓRIA Restam monumentos de uma outra espécie, que servem para cons- tatar somente a_antiguidade recuada de· alguns poy()_s qu~JJrecede!!l Y?~ , _ •. , -.. . , ·-- ~~ ·- ~- 4 _ ... ....-;:.::."-. -'~·...::_,.,,. _._y_; ..... t··.J~ ·-· .-.. · ·. .... .., .... ~... . . .. . ,...· . . . ~ .( .·-·' . ,, - -t· -·- -. .. . ' ·· das as épocas conhecidas e todos os livros; são os prodígios de arquite- tura, como as pirâmides e os palácios do Egito, que resistiram ao tempo. Heródoto, que viveu há 2.200 anos, e que os viu, não pôde descobrir junto aos padres egípcios em que tempo eles foram erguidos. É difícil dar à mais antiga das pirâmides menos de 4 mil anos de idade, mas é preciso considerar que esses esforços da ostentação dos reis somente poderiam ter começado muito tempo depois do es- tabelecimento das cidades. Mas, para construir cidades em um país inundado todos os anos, teria sido necessário a princípio elevar o terreno, fundar as cidades sobre estacas nesse terreno lodoso e torná- las inacessíveis à inundação; seria preciso, antes de tomar esse partido necessário, e antes de estar em situação de tentar esses grandes tra- balhos, que os povos praticassem retiros durante a cheia do Nilo, no meio dos rochedos que formam duas cadeias à direita e à esquerda desse rio. Teria sido necessário que esses povos reunidos tivessem os instrumentos da lavoura, aqueles da arquitetura, um grande conheci- mento da agrimensura, com·leis e uma civilização: tudo isso nemanda necessariamente um espaço de tempo prodigioso. Vemos pelos longos detalhes que retardam todos os dias nossos empreendimentos, os mais necessários e os menores, quão difícil é fazer grandes coisas, e que é preciso não apenas uma obstinação infatigável, mas várias gerações animadas dessa obstinação. No entanto, que seja Menés, ou Thot, ou Quéops, ou Ramsés36 que tenham erguido uma ou duas dessas prodigiosas massas, através delas não seremos instruídos sobre a história do antigo Egito: a língua deste povo está perdida. Não sabemos então outra coisa a não ser que, antes dos mais antigos historiadores, havia do que fazer uma história antiga. Aquela que nomeamos antiga e que é, com efeito, recente não re- monta a mais de 3 mil anos: não ternos antes desse tempo nada além de 36 Menés: faraó que unificou o alto e o baixo Egito, fundando, assim, a primeira dinastia (c. 3100 a.C.). Thot: deus eglpcio, considerado o inventor da escrita. Quéops segundo faraó da quarta dinastia, governou o Egito entre 2589 e 2566 a.C. Ramsés U ou o-Grande: terceiro faraó eglpcio da nona dinastia, reinou entre 1279 e 1213 a.C. I I I ! I ·I ! I I I I I \ ~ V OL TAl RE'' ' ,~_ ,-.;) . 47 ' ' algumas probabilidades: apenas dois livros profanos conservaram essas probabilidades; a crônica chinesa e a história de Heródoto. As antigas crôi-ticas ~hine;ã; clize~ ~~~peito ape~a~ a esse império separado do ' resto do mundo. Heródoto, mais interessante para nós, fala da Terra então conhecida; ele encanta os gregos ao lhes recitar os nove livros "' de sua história, pela novidade desse empreendimento e pelo charme de sua dicção, e sobretudo pelas fábulas. Quase tudo o que ele conta sobre a fé dos estrangeiros é fabuloso: mas tudo o que viu é verdadeiro. Ficamos sabehdo por meio dele, por exemplo, que. extrema opulência e que esplendor reinavam na Ásia Menor, hoje pobre e despovoada. Ele viu em Delfos37 os presentes de ouro prodigiosos que os reis da Lídia38 haviam enviado a Delfos, e fala a ouvintes que conheciam Delfos como ele. Ora, que espaço de tempo foi necessário transcorrer antes que os reis da Udia tivessem podido reunir o suficiente de tesouros supérfluos para oferecer presentês tão consideráveis a um templo estrangeiro! Mas quando Heródoto relata os contos que escutara, seu livro não passa de um romance que se assemelha às fábulas do Milhão.39 É um Candaulo40 que mostra sua mulher completamente nua a seu amigo Giges; é essa mulher, qne por modéstia deixa a Giges apenas a opção de matar seu marido, de desposar a viúva, ou de perecer. É um oráculo de Delfos que adivinha que ao mesmo tempo que fala, Creso,41 a 100 léguas dali, faz cozinhar uma tartaruga em um prato de bronze. Rollín,42 que repete todos os contos dessa espécie, admira a ciência do oráculo, e a veracidade de Apolo, assim como o pudor da esposa do rei Candaulo; 37 Antiga cidade grega localizada junto ao monte Parnaso. 38 Antigo reino da Ásia Menor que se situava na atual província turca de Manisa. 39 Il Milione: O livro das maravilhas, relato da viagem à China escrito em 1298 e reescrito entre 1310 e 1320 por Marco Polo (1254-1324) . 40 Último rei lidio (?-680 a.C.) da dinastia heráclida; segundo Heródoto, colocou o amigo Giges secretamente no quarto da esposa para que a visse nua e desfrutasse de sua beleza. O restante da história é resumido por Volta ire. Giges opta por matar Candaulo, iniciando assim uma nova dinastia, a mermnada. 41 Último rei lidio (596-54 7 a.C.) da dinastia mermnada, tornou-se famoso pela imensa riqueza. Foi derrotado por Ciro. 12 Charles Rollin (1661-1741): historiador francês, escreveu ao final da vida obras históricas, como a famosa Hi5tória antiga (1730-1738) e a Hi5tória romana. já em sua época, como se per- cebe pe.J.oirOnico comentário de Voltaire, Rollin era conhecido por reunir-ac!iticamente fatos e · o· mitos em suas compilações. llllllllll~~~~~ll~~~~~~~~~f.f.~~~-~- i~~~~~-- ~~-~~:~~:~~--~~~~~:.!:~~--~~-~~~~~~~- -~_---N!:~.-~~~·· !"'~~~~~~, ~----~.~~~~-.~~~!~~~.t~~~~m~~~~~~~~~::f~,~~~~~~~~4~~~~~:f~~I~~~rr~~~\~f;.~i~~~5t~~~~ li !' i ' I I ! L .. l! h li L L l l I l L í. I J L li l! I! 11 . l H I i j 48 liÇOE S DE HISTORIA e sobre esse assunto propõe à civilização que impeça os jovens de se ba- nharem no rio. O tempu é tão caro, e a história tão imensa, que é·preeiso poupar aos leitores tais fábulas e tais moralidades. A história de Ciro43 é toda desfigurada pelas tradições fabulosas . Há a grande aparência de que esse Kiro, que chamamos de Ciro, à frente dos povos guerreiros do Elam,44 tenha com efeito conquistado a Babilônia amolecida pelas delicias. Mas não se sabe somente qual rei reinava então na Babilônia; uns dizem Baltasar, outros Anabot. Heródoto faz com que Ciro morra em uma expedição contra os massagetas.45 Xenofonte, em seu romance moral e polftico,46 f?z com que morra em seu leito. Não se sabe outra coisa nessas trevas da história a não ser que des- de muito tempo vastos impérios e tiranos houve cujo poder se fundava na miséria pública; que a tirania chegava a despir os homens de sua virilidade, para deles se servir em infames prazeres ao sair da infãncia, e para empregá-los em sua velhice na guarda das mulheres; que a supers- tição governava os homens; que um sonho era visto como um aviso do céu, e que decidia a paz e a guerra etc. A medida que Heródoto em sua história se aproxima de seu tem- po, ele é mais instruído e mais verdadeiro. É preciso confessar que a história começa para nós apenas cem os ataques dos persas contra os gregos. Não se encontra antes desse grande acontecimento nada além de narrativas vagas, envolvidas por contos pueris. Heródoto torna-se o modelo dos historiadores, quando descreve esses prodigiosos pre- parativos de Xerxes'~7 para ir subjugar a Grécia e a seguir a Europa. Ele o leva, seguido de cerca de 2 milhões de soldados, de Susa'~8 a Atenas. Ele nos mostra como estavam armados os tantos povos diferentes que H Ciro o Grande (c. 556-530 a.C.): fundador do império persa, foi o responsável por grandes conquistas, entre as quais a da Babilônia, em 539 a.C. H Região do Irã antigo ocupada pelos descendentes de Elam, primeiro filho de Sem. •s Povo cita governado pela rainha Tomiris, a qual, segundo Heródoto, teria assassinado Ciro. 16 Voltaire refere-se à Ciropédia (A educação de Ciro), obra em que Xenofonte apresenta, sob luz muito positiva, a vida de Ciro o Grande. ., Rei persa (c. 519- c. 466 a.C.), filho de Dario l, travou com os gregos as guerras médicas. Venceu a batalha das Termópilas e arrasou Atenas, mas teve sua frota destruída em Salamina. 18 Antiga capital do Elam, foi destru!da por Assurbanipal em 646 a.C., tran.sfqrmada em capital do império aquemtntda por Dario l e ocupada por Alexandre em 331 a.C., tornando-se, a partir de então, um centro de cultura helenlstica. VOLTAIRE 49 esse monarca arrastou consigo; nenhum foi esquecido, do fundo da : · AráliraY do Egito; -até para além da Bactriana'~9 e da exlTe:nidade- ·3e- · tentrional do mar Cáspio, país então habitado por povos poderosos, e hoje por tártaros errantes. Todas as nações, desde o Bósforo da Trácia50 até o Ganges, estavam sob se~s estandartes. Vê-se com surpresa que esse príncipe possuía tanto território quanto o que teve o império romano; ele tinha tudo o que pertence hoje ao grande mongol abaixo do Ganges, toda a Pérsia, todo o país dos usbeques,51 todo o império dos turcos, se''dele se excetuar a România, e ainda possuía a Arábia. Vê-se pela extensão de seus Estados qual é o erro dos declamadores em verso e em prosa ao considerarem louco Alexandre, vingador da Grécia, por haver subjugado o império do inimigo dos gregos. Ele não foi ao Egito, a Tiro~2 e à Índia a não ser porque devia, uma vez que Tiro, o Egito e a Índia pertenciam à dominação que havia devastado a Grécia. Heródoto teve o mesmo mérito que Homero; ele foi o primeiro historiador, assim como Homero foi o primeiro poeta épico; e todos os dois colhiam as belezas próprias de uma arte desconhe:cida antes deles. É um espetáculo admirável em Heródoto esse imperador da Ásia e da África, que faz passar sua ime.nsa armada sobre uma plataforma da Ásia à Europa, que toma a Trácia, a Macedônia, a Tessália,53 a Acaia54 superior, e que entra em Atenas abandonada e deserta. Não se espera de modo algum que os atenienses sem cidade, sem território, refugiados n'os barcos com alguns outros gregos, coloquem em fuga a numerosa frota do grande rei, que voltem para casa como vencedores, que forcem Xerxes a recolher ignominiosamente os restos de sua armada, e que em seguida o proíbam por um tratado de navegar em seus mares. Essa superioridade 19 Antiga região a que hoje corresponde parte do Afeganistão, e cuja capital era Bactros. 50 Bósforo: estreito localizado na Turquia, que limita a Europa e a Ásia ligando o mar Negro ao mar de Mármara. Trácia: antiga região do sudeste da Europa, cujo território corresponde a partes das atuais Grécia, Turquia e Bulgária. 51 Ou seja, o Usbequistão . 52 Antiga cidade fenícia , era uma grande potência comercial na época de Alexandre e correspon- de à atual Sur, no Ubano. 53 Região da Grécia central, conhecida na época de Homero como Eólia. 51 Região da Grécia localizada na costa norte do Peloponeso. IJ."i'~·~~·~,u~~;,....-.•;;;,...; ~~?,~~.l:~~:;o:.,~~'liiW...,.~'-'S.ti).""~~'·~.~ ·· ·.-•.'-<~'*~~i!~'~~;~l..-,;>~~~ri~<;>t::·~;,:~;t·::,.;,~.;:.::~:.:"u:!{i,.~.::.u~-;:.'ll'~~;:: ; }_;;,~,."f.:t;,-:;,: ·...;,~,.~.~ -'._,.:.-;S<Jl;;;.;,-, :f'·;.:: ·~&· .. "·":~~"::.~~:ii,q ~~!:~.li3'.:r>;~'""i~'i~S..~if'St:â3~1..:~~~z~~"!o~ ... t:/!l:,.;;::~ ... ~---;-g..!JÇ."B,?".2.:~.:7:.·.~-·lifi,~~""'-t -o. :--; , ......... ~-.~~~r...6..''2F..-W~.:.~·-,.-~.,.·~i";.~ ~ · _ tt:1-:y,_ _ .-Jc~·~-~t.'o(f."f ... ~"1'-,.')!!.~_~~~--~~---:.tt~"!":~'~~l~'-"·~·-'~.-~~~!$':a"'~~-~~--=-~...:.nl>t.~!t'~~~~ 50 ' li ÇÚ ES DE H ISTÚRIA de um pequeno povo generoso e livre sobre toda a Ásia escrava é talvez o que há de mais glorioso entre os homens. Ficamos sabendo também por . ~-ri{êiÓ'"ãe~s~"événtõ""que Ôs povos do b éiélente s~~i)fe foram ~lhÔ;~s -~a rinheiros do que os povos asiáticos. Quando lemos a história moderna, a vitória de Lepanto faz lembrar aquela de Salamina, 55 e comparamos dom João da Áustria e Colonna56 a Temístocles e a Euribíades. 57 Eis talvez o único fruto que se pode tirar do conhecimento desses povos recuados. Tuddides, sucessor de Heródoto, se limita a nos detalhar a história da guerra do Peloponeso, país que não é maior do que uma província da França ou da Alemanha, mas que produziu homens em todo gênero dignos de uma reputação imortal; e como se a guerra civil, o mais hor- rível dos flagelos, acrescentasse um novo calor e novas forças morais ao espírito humanQ, é nesse tempo que todas as artes floresceram na Grécia. É assim que eles começam a se aperfeiçoar a seguir em Roma em outras guerras civis do tempo de César, e que renascem ainda em nossos séculos XV e XVI da era corrente, entre os tumultos da Itália. Após essa guerra do Peloponeso, descrita por Tucidides, vem o tempo célebre de Alexandre, príncipe digno de ser educado por Aris- tóteles, que funda muito mais cidades do que as que os outros des- truíram, e que muda o comércio do universo. De seu tempo, e daquele de seus sucessores,floresceu Cartago, e a república romana começou a fixar nela os olhares das nações. Todo o resto está soterrado na barbárie, os celtas, os germanos, todos os povos do Norte são desconhecidos. A história do império romano é a que mais merece nossa atenção, porque os romanos foram nossos mestres e nossos legisladores. Suas leis ainda estão em vigor na maior parte de nossas províncias; sua língua ainda se fala, e muito tempo após sua queda ela foi a única língua na 55 Batalha naval de Lepanto: em 7 de outubro de 1571 o império otomano foi derrotado em Lepanto, na Grécia, pela Liga Santa (reino de Espanha, República de Veneza, Estados pontifícios e cavaleiros de Malta), sob o comando de d.joão da Áustria (1547-1578), estrategista militar, filho bastardo de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano. Batalha de Salamina: em setembro de 480 a.C. os gregos liderados por Temistocles venceram, em Salamina, os persas conduzidos por Xerxes. 56 Marcantonio Colonna (1535-1584): almirante italiano, foi capitão-geral da frota da Liga Santa conduzida por d . João da Áustria na batalha de Lepanto. . .... ~ •• - .--5'.J~l~~oS_t;..sJ.s.J.1.1:12.~~ ,.Ç):_l)oQ!ç~_ds , Es~Q.Q.~ g!:ner.al <lt~n~~nsr., .fq.i.o. r~pons.ável pela . . estratégia qúe levou os gregos à vitória na batalha de Salamina. Euribiades: general espartano que, juntamente com Temlstocles, dirigiu a frota grega na batalha de Salamina. I 1 ......... 7 ... VoLTAIRE.' ~ [. :} · .... ·~ 51 qual se redigiam os atos públicos na Itália, na Alemanha, na Espanha, na França, na Inglaterra, na Polônia . . Com o. desmembramento do império romano no Ocidente come- ça uma nova ordem de coisas, e é o que se chama de história da Idade Média; história bárbara de povos bárbaros que, tornados cristãos, não se tornam melhores. .. Enquanto a Europa é assim transtornada, vemos aparecer no sécu- lo VII os árabes, até então confinados em seus desertos. Eles estendem seu poderio e,'sua dominação à alta Ásia, à África, e invade)ll a Espanha; os turcos os sucedem, e estabelecem a sede de seu império em Constan- tinopla, no meio do século XV. É no final desse século que um novo mundo é descoberto, e logo depois a política da Europa e as artes assumem uma forma nova. A arte da imprensa e a restauração das ciências fazem com que enfim tenhamos histórias sMficientemente fiéis, ao invés das crônicas ridículas encerradas nos claustros desde Gregório de Tours.58 Cada nação na Eu- ropa logo tem seus historiadores. A antiga indigência se transforma em excesso: não há nenhuma cidade que não queira ter sua história particu- lar. Estamos prostrados pelo peso das minúcias. Um homem que quer se instruir é obrigado a se ater ao fio dos grandes acontecimentos, e a descartar todos os pequenos fatos particulares que vêm atravessados; ele colhe na multiplicidade de revoluções o espírito dos tempos e os costumes dos povos. É preciso sobretudo se ater à história de sua pátria, estudá-la, possuí-la, reservar para ela os detalhes, e lançar uma vista ' mais geral sobre as outras nações. A história delas é interessante apenas pelas relações que têm conosco, ou pelas grandes coisas que fizeram; as primeiras eras desde a queda do império romano são, como se ob- servou em outra parte, apenas aventuras bárbaras, sob nomes bárbaros, com exceção do tempo de Carlos Magno. A Inglaterra permanece quase isolada até o reino de Eduardo III;59 o Norte é selvagem até o século X; 58 Bispo de Tours e historiador (c. 539-594), cuja principal obra, originalmente chamada de Dez livros de história , mais tarde recebeu o nome de História dos francos . Tal obra, que narra a história desde o surgimento do mundo até o reinado dos francos, em 572, era muito malvista na época de Voltaire, entre outros motivos devido ao latim em que fora escrita, considerado pouco elegante quando comparado àquele das obras de Cícero e Virgílio. . 59 Rei (l31Z:-T377) da Iriglaterrà, tran·srormou seú reiríó em urná grànde potêridã'li:ülit'ar e enr 1340, ao reivindicar também o trono da França, deu inicio à Guerra dos Cem Anos. f I: 52 liÇOES DE HI STORIA YOLTAIRE 53 i r: a Alemanha é por muito tempo uma anarquia. As querelas dos impe- radores e dos papas desolam por 600 anos a Itália, e é difícil perceber · a verdade através das paixões dos escritores pouco instruídos que de- ram as crônicas informes desse tempo infeliz . A monarquia da Espanha possui apenas um evento sob os reis visigodos, e esse evento é aquele de sua destruição. Tudo é confusão até o reino de Isabel e Fernando. A França até Luís XI60 está às voltas com males obscuros sob um governo sem regra. Daniel61 bem pretendeu que os primeiros tempos da França são mais interessantes do que aqueles de Roma: ele não percebeu que o começo de um tão vasto império é tanto mais interessante quanto mais débil, e que amamos ver a pequena fonte de uma torrente que inundou a metade da Terra. se apodera pelas armas. Ali descobrimos que somas consideráveis, e · ·que espécie de tributo pagou o rei luí~ Xi ao re1 Eduardo lV,~ que ele · poderia combater; e quanto dinheiro a rainha Elisabeth emprestou a Henrique o Grande65 para ajudá-lo a subir ao trono etc. I ; i I l L I li l " J; i Da utilidade da história. I;ssa vantagem consiste na comparação que um homem de Estado, um cidadão pode fazer das leis e dos costumes estrangeiros com aqueles de seu país: é o que estimula as nações a supe- rarem umas à? outras nas artes, no comércio, na agricultura. As grandes faltas passad~s servem muito em todo gênero. Não -saberíamos mais re- colocar diante dos olhos os crimes e infortúnios causados por querelas absurdas. É certo que, à força de renovar a memória dessas querelas, impedimo-las de renascer. 11-,· Para penetrar no labirinto tenebroso da Idade Média é preciso o recurso aos arquivos, e deles não possuímos quase nenhum. Alguns antigos conventos conservaram estatutos, diplomas, que contêm doa- ções, cuja autoridade é às vezes contestada; não há ali uma coletãnea em que possamos nos esclarecer sobre a história política, e sobre o di - reito público da Europa. A Inglaterra é, de todos os países, aquele que tem, sem dúvida, os arquivos mais antigos e mais contínuos. Esses atos recolhidos por Rimer, sob os auspícios da rainha Ana, começam com o século XII e foram continuados sem interrupção até nossos dias. Eles espalham uma grande luz sobre a história da França. Eles fazem ver, por exemplo, que Guienne62 pertenceu aos ingleses em soberania absoluta, quando o rei da França Carlos V63 a confiscou por um decreto, e dela É por haver lido os detalhes das batalhas de Creci, de Poitiers, de Azincourt, de ~aint-Quentin,66 de Graveniles etc., que o célebre mare- chal de Saxe67 se determinou a buscar, na medida em que podia, o que chamou de affaires de poste .68 I l ! I Os exemplos causam um grande efeito sobre o espírito de um pnncipe que lê com atenção. Ele verá que Henrique IV empreendeu sua grande guerra, que deveria mudar o sistema da Europa, apenas de- pois de haver se certificado o suficiente do vigor da guerra para poder sustentá-la por vários anos sem nenhum socorro às finanças. M Rei (1442-1483) da Inglaterra, foi ele o beneficiado do Tratado de Picquigny, assinado com Luis XI da França, seu principal inimigo. 65 Henrique IV (1553-1610), rei da França. Huguenote, tornou-se rei em 1589 com o auxilio de Elizabeth 1 da Inglaterra, que o apoiou no combate à Liga Católica da França, contrária a 60 Rei (1423-1483) da França, sob seu reinado é encerrada a Guerra dos Cem Anos com a In- sua coroação. Converteu-se ao catolicismo e assinou em 1598 o Édito de Nantes, assegurando glaterra. O Tratado de Picquigny (14 75) , que possibilitou tal desfecho, envolveuuma grande liberdade religiosa aos protestantes franceses. soma de dinheiro para que os ingleses abandonassem a França, e é a esse evento que Voltaire 66 Batalha de Creci: parte da Guerra dos Cem Anos, ocorreu em 1346 entre as tropas de Edu- fará referência . ardo Ili da Inglaterra e Filipe de Valois. Batalha de Poitiers: também parte da Guerra dos Cem 61 Gabriel Daniel (1649-1728): padre jesuíta e historiador francês, foi autor de vasta obra. Vol- Anos, foi travada entre França e Inglaterra em 19 de se tembro de 1356. Batalha de Azincourt: ta ire aqui se refere a sua obra mais famosa , a Histoire de F rance depuis l'établissement de la mo- ocorreu em 25 de outubro de 1415, no norte da França, igualmente como parte da Guerra dos narchiefrançaise (1713). Cem Anos, e foi travada entre Henrique V da Inglaterra e as tropas comandadas por Charles I 62 Antiga província do sudoeste da França, tinha como capital a cidade de Bourdeaux e, junta- d'Albret. Batalha de Saint-Quentin: ocorrida em 10 de agosto de 1557, resultou na vitória da mente com a Gasconha, formava desde o século XII o ducado de Aquitânia. Tomou-se inglesa Espanha de Filipe li sobre a França. 1 em 1154 e retomou à França em 1453, do modo como Voltaire irá relatar. 1 67 Maurice de Saxe (1696-1750): filho ilegítimo de Augusto, rei da Polônia, em 1743 tomou-se ·11 63 Rei (1338-1380) da França, recuperou boa parte do território que e)a perdera para a Tngla- m~n·-:ha! {la F-:-~nça . U;.-. dos m:lic-rrs ~<.' >3tF'zi5 : "'s r;:;il\ tqr:::õ d~ ép:J~â.; · deL'<5'-''Uffi<!· Obra ::.0L1~ a ··' v ·. fi terra após a assmatura do Tratado de Brétigny pelos reis Eduardo III da Inglaterra e João li de 1 arte da guerra, Mes réveries (1757) ij França , em 1360 , 68 Disputa de postos. tI .i . I ) , 1 ~ '-"' "\ ··~· - '1 ·5'! ·' I , • ., · I' " · _ • .-~· \~_;- •• -:: • ;•.oo.)~•"'•'"'.:""' lt>"', --..,~o. ,::0.-, • ,, .. '••,..,"; ,'. ..... - ~ • .:t:ot'i,'. ·-· ., !-1 ·1· •!>óv-<~·...;-_.-;.;ti_~-·.'J~r:~~~t;;;~s:,~"'~.J.···~"'~·::f.l'./~!~~1"~'-~"'"~~·t#e<.:m!~·=~~~~~.?''-~~-~~~~~;o~t.-':)~·:F:!~~c,v;,K~.:;·~~-.-.• ~~·~l;t;r;,t~--:~";,.;~r.r~~-2-~-~s-.!tf:if~4..~ff1<ill 11-:!.•!.::-~~~ -- ~-··":'-!• "'--~~,..;~_l_~~ .. ;.~~ .. ~~·~,-z.~,.N:.(,'j~~.:r--..~~'t. "Bl~~#-7-:d...,.._._ _, _ ~ .. •,t"f~4;_'t_ ,;;.,:.r~.:r.~- ·Je- ~. ~ ... ~_..~._.• ... ~ · • ~u •- •~ • _ Y,, , _.,._ o#' (;.;p~. -. • ~ - 54 'i• '· LIÇOES DE HISTÚRIA Ele verá que a rainha Elisabeth, recorrendo somente ao comércio e . _ .. ,.,,. .• ,, ~:;t.~_;.;!~;S~~?.!lli~, resistiu aoJ~o~en?.so Fil_ip~ Il~~9• ~ qu! .•Aos na'(i()~ que ela colocou no mar contra a Invencível Armada, três quartos foram fornecidos pelas cidades comerciais da Inglaterra . A França não atingida sob Luís XIV, depois de nove anos da mais infeliz guerra, mostrará evidentemente a utilidade das regiões de fronteira que ele construiu. 70 Em vão o autor das causas da queda do império romano71 culpajustiniano de haver tido a mesma política de Luís XIV Ele deve culpar apenas os imperadores que negligencia- ram esses locais fronteiriços, e que abriram as portas do império aos bárbaros. Enfim, a grande utilidade da história moderna, e a vantagem que ela apresenta em relação à antiga, é ensinar a todos os potentados que desde o século X sempre nos reunimos contra um poder demasiada- mente preponderante. Esse sistema de equilíbrio sempre foi desconhe- cido dos antigos, e esta é a razão dos sucessos do povo romano, que, tendo formado uma milícia superior àquela dos outros povos, subjuga- os um após o outro, do Tibre ao Eufrates. Da certeza da história. Toda certeza que não é demonstração mate- mática não passa de uma extrema probabilidade. Não há outra certeza histórica. Quando Marco Polo fala pela primeira vez, mas sozinho, da gran- deza e da população da China, não foi acreditado, e não podia exigir crédito. Os portugueses, que entraram nesse vasto império vários sécu- los depois, começaram a tornar a coisa prováveL Ela hoje é certa, dessa certeza que nasce da disposição unânime de milhares de testemunhas oculares de diferentes nações, sem que ninguém tenha reclamado con- tra seu testemunho. 69 Rei (1527-1598) do então vasto império espanhol. 70 Sébastien ]e Preste, de Vauban (1633-1707), audacioso engenheiro militar, nomeado comissá- rio das fortificações em 1678, sob Luís XIV, construiu mais de 160 fortes , sobretudo nas regiões de fronteira da França, e é a isso que se refere Voltaire. 71 Aqui Voltaire critica Montesquieu (1689-1755), autor de Consídératíons sur les causes de la grandeur dcs romaíns et de leur décadence (1734). Mais tarde Marmontel, amigo de Voltaire, irá se valer dessa original aproximação entre justiniano-e-Luís XIV ao cônceber sua ·fáírioSa' 'peÇá Bélisaire (1767). ·::...:.. ---...: - ~- VOLTAI RE.· ·I; 55 r-- Se dois ou três historiadores somente tivessem escrito a aventura ~9 rei Cl!,~los_ Xll,72 q~~. se obstinandp a permanecer nos Es~ados do sultão seu benfeitor, contra a vontade deste, confrontou-se, com seus domésticos, contra uma armada de janízaros73 e de tártaros, eu teria suspenso meu julgamento; r;:as tendo falado com várias testemunhas oculares, e jamais tendo ouvido alguém colocar essa ação em dúvida, é bem necessário nela acreditar, porque, depois de tudo, se ela não é nem sábia, nem ordinária, ela não é contrária nem às leis da natureza, nem ao caráter do.herói. A história do homem da máscara de ferroH teria passado em meu espírito por um romance, se não a tivesse conhecido através do genro do cirurgião que cuidou desse homem em sua última enfermidade. Mas como o oficial que o vigiava então também me atestou o fato, e todós aqueles que sobre ele deveriam estar instruídos para mim o confirma- ram, e os filhos dos· ministros de Estado, depositários desse segredo, que ainda vivem, dele estavam cientes como eu, dei a essa história um grande grau de probabilidade, grau, no entanto, abaixo daquele que faz crer o affaire de Bender, porque a aventura de Bender teve mais testemu- nhas' do que aquela do homem da máscara de ferro . O que repugna ao curso ordinário da natureza não deve de modo algum ser acreditado, a menos que seja atestado por homens animados de espírito divino. Eis por que no artigo deste dicionário é um grande paradoxo dizer que se deveria crer em toda Paris que afirmasse ter visto ressuScitar um morto, como se crê em toda Paris quando diz que ga- nhamos a batalha de Fontenoy. Parece evidente que o testemunho de toda Paris sob~e algo improvável não deveria ser igual ao testemunho de toda Paris sobre uma coisa prováveL Aí estão as primeiras noções da santa metafísica. Este dicionário é consagrado à verdade, um artigo 72 Rei (1682-1718) da Suécia e militar talentoso, lutou contra Pedro o Grande da Rússia e Au- gusto li da Polônia. Derrotado, refugia-se no império otomano, mais especificamente na cidade turca de Bender, em 1709, lá permanecendo com cerca de 40 soldados até 1714. Volta ire a ele dedicou uma de suas primeiras obras históricas, Charles XII (1731). 73 Do turco Yeni Tcheri, ou "nova força", soldados de origem cristã que compunham a elite do exército dos sultões otomanos e que, quando crianças, foram sequestrados, transformados em -escrávos e convertidos ao-Isla. Essa prátiéa permaneceu··até ·o início 'do·sééulo"XX. - c ' · "'Voltaire trata disso no capítulo 25 deLe siecle de Louis XIV (1751). l i I! I; i I I I! f ~ I, ; ' f ;· fi I i L i! fi !: ; í . i : I ; l; I ! I ,, I! 'I 1: li H i I ij 56 l1Ç0ES DE HISTÓRIA deve corrigir o outro, e se aqui for encontrado algum erro, ele deve ser corrigido por um homem mais esclareeido. Incerteza da história. Distinguimos os tempos em fabulosos e his- tóricos. Mas os temposhistóricos deveriam ter sido distinguidos eles mesmos em verdades e em fábulas . Não falo aqui das fábulas reconhe- cidas hoje em dia como tais; não se trata, por exemplo, dos prodígios com os quais Tito Lívio embelezou ou mimou sua história. Mas nos fa- tos mais aceitos que razões haveria para duvidar? Que atentemos para o fato de que a república romana ficou cinco séculos sem historiado- res, e que o próprio Tito Lívio deplora a perda dos anais dos pontífices e dos outros monumentos que pereceram quase todos no incêndio de Roma, pleraque interiere,75 que sonhemos que nos 300 primeiros anos a arte da escrita era muito rara; rarae per eadem tempora litterae. 76 Seria permitido então duvidar de todos os acontecimentos que não estão na ordem ordinária das coisas humanas . Teria sido bem provável que Rõmulo , neto do rei dos sabinos, tivesse sido forçado a raptar as sabinas para ter mulheres. A história de Lucrécio seria mesmo veros- símil? Pode-se crer facilmente na palavra àe Tito Lívio, que o rei Por- sena 77 fugiu cheio de admiração pelos romanos porque um fanático teria querido assassiná-lo? Não seríamos levados, ao contrário, a crer em Políbio/8 anterior a Tito Lívio em 200 anos, que diz que Porsena subjugou os romanos? A aventura de Regulus,79 encerrado pelos car- 7 ' "Quase inteira". Citação extraída do inicio do Livro VI da História de Roma desde sua fundação , de Tito Uvio, em que descreve o incêndio de Roma. 76 "E pela raridade da escrita nesse tempo recuado", frase de Tito Uvio extraída do mesmo pa- rágrafo mencionado na nota anterior. 77 lars Porsena (séc. VI a.C.): rei etrusco que, em auxilio ao rei romano deposto Lucius Tar- quinus Superbus, teria invadido Roma. Voltaire aponta uma famosa divergência quanto ao su- cesso ou não nessa invasão existente entre os autores que tratam desse episódio (Tito Uvio e Pol!bio). 78 Historiador (c. 203-120 a.C.) grego que, refém dos romanos, viveu 16 anos na Itália. Sua obra mais importante são As histórias , em quarenta volumes, dos quais restam os cinco primeiros . Nessa obra narra a transformação de Roma na maior pot~ncia do Mediterrâneo . abarcando o período que vai de 264 a 146 a.C. 79 Marcus Ati lius Regulus (?- c. 250 a.C.) : general romano na Primeira Guerra Púnica (256 a.C.), foi tomado como pris ioneiro pelo general espartano mercenário Xantipo e conduzido a Cartago, onde foi morto. Várias versões sobre o modo como morreu mais tarde passaram a circular em Roma, talyez como propaganda contra .Cartago. Segundo nm<>. delas, Regules teria sido. colo- · cado em uma cesta costurada com pontas de ferro; segundo outra, teria sido jogado em uma masmorra escura e então, depois de ter as pálpebras cortadas, obrigado a olhar para o sol. · .;f:7J,il, VOLTAIAE 57 tagineses em um tonel guarnecido de pontas de ferro, mereceria que nela acreditássemos? Folíbio, contemporâneo, dela niio temd alada se fosse verdadeira? Sobre ela não diz uma palavra . Não é uma grande presunção que esse conto tenha sido inventado apenas longo tempo depois para tornar os carta,gineses odiosos? Abram o dicionário de Moréri80 no artigo Régulus, ele lhes garante que o suplício desse roma- no é reportado em Tito Lívio. No entanto, a década em que Tito Lívio teria podido ~alar disso está perdida; e temos apenas o suplemento de Freinsemius:81 e ocorre que esse dicionário citou apenas um alemão do século XVII, acreditando citar um romano do tempo de Augusto . Faríamos volumes imensos de todos os fatos célebres e reconhecidos dos quais é preciso duvidar. Mas os limites deste artigo não permitem que nos estendamos. · Os monumentos, as cerimônias anuais, as próprias medalhas são pro- vas históricas? $'amos naturalmente levados a crer que um monumen- to erigido por uma nação para celebrar um acontecimento dele atesta a certeza. No entanto, se esses monumentos não foram erguidos por contemporâneos, se celebram alguns fatos pouco verossímeis, provam. outra coisa a não ser que se quis consagrar uma opinião popular? A coluna rostrata erigida em Roma pelos contemporâneos de Dui- lius é sem dúvida uma prova da vitória naval de Duilius.82 Mas a estátua do augúrio Navius,83 que cortou um calhau com uma navalha, provaria ela que Navius havia operado esse prodígio? As estátuas de Ceres e de 80 Louis Moréri' (1643-1680): padre francês, autor da enciclopédia de orientação católica Le grand dictionaire historique, ou le mélange curieux de l'histoire sacrée et profane (1674) . Obra muito consultada e criticada no século XVIII , dela Voltaire possuía a edição holandesa em citlco volu- mes, de 1740, e o suplemento francês em dois volumes, de 1749. 81 Johann Freinsemius (1608-1660), literato que se tornou professor honorário na Universidade de Heidelberg até sua morte. Seus suplementos à história romana de Tito Llvio representam uma tentativa de preencher suas lacunas. 82 Colunas rostratas de Duilius (Columnae Rostratae Dui li i): erigidas no Fórum Romano por Caius Duilius Nepos em homenagem a sua vitória na batalha de Mylae, contra os cartagineses, em 260 a.C.- primeira batalha naval vencida pelos romanos. Delas subsiste apenas uma. 83 Attus Navius: adivinho durante o reino de Tarquinius Priscus, quinto rei de Roma (616 -578 .a .C.),.op0~-5'! ,~. tent~!Í'!a do i!"lperado~ de dupl>r1r o nümero rl.as C!tt: t1''t:i.!1s t:que:;t~<'S.(:H·:i~~ do exército romano composta de 80 a 100 legionários, com direito a voto no senado), e para mostrar seu poder teria cortado um calhau com uma navalha . · · -:.. , J ·.~: ... ~--- J~:~~~~~~?ii~~~~~$~:~~~~r~~~~~:@~'f.~!~~~~~~~~4~j~tt§~~~í.~t:t;_,~i:~~~~~:~~~~~~~~r4~~~~i~~~~~~)~~~-~~ .•?:""',,. 58 •.:n liÇOES DE HI STÓRI A Triptolemo,84 em Atenas, seriam testemunhos incontestáveis de que Ce- res teria ensinado a agricultura aos aténienses? O famoso Laocoonte}5 que s~b~ist~·~t~--tão int~iro, atest~ ~e~~~~ ~e;d;d~ · ci; histórla do cavalo de Troia? As cerimônias, as festas anuais estabelecidas por toda uma nação, não constatam melhor a origem que se lhes atribui . A festa de Árion86 conduzido sobre um golfinho celebrava-se entre os romanos como en- tre os gregos. A do fauno evocava sua aventura com Hércules e Onfale,87 quando esse deus, apaixonado por Onfale, toma o leito de Hércules pelo de sua amante. A famosa festa das lupercais88 teria se estabelecido em honra à loba que amamentara Rômulo e Remo. Sobre o que estaria fundada a festa de Órion, celebrada no dia 5 doe; idos89 de maio? Eis aquVHirieu recebeu em sua casa Júpiter, Netuno e Mercúrio, e quando seus hóspedes foram se despedir, esse bom homem, que não possuía mulher alguma, e que desejava ter um filho, testemunhou sua dor aos três deuses. Não ouso exprimir o que eles fizeram sobre a pele do boi que Hirieu lhes havia servido como refeição;90 eles cobriram a seguir essa pele com um pouco de terra, e disso n~sceu Órion ao cabo de nove meses. s• Ceres, a deusa romana que ensinou à humanidade a agricultura, fora muito bem recebida em Elêusis pelos pais de Triptolemo. Em retribuição, ofereceu a Triptolemo urna carruagem com dragões alados, para que pudesse viajar pelo mundo semeando grãos de trigo. 8 ' Legendário sacerdote troiano que alertou os troianos quanto ao cavalo de Troia. Irado pelo fato de os troianos não haverem considerado seu alerta, atirou seu cajado contra o cavalo. Minerva, que apoiava os gregos, enviou serpentes do mar que estrangularam Laocoonte e seus dois filhos . Foi essa a cena retratada na famosa estátua de Laocoonte, do período helenlstico, recuperada pelo romano Felice de Fredi em 14 de janeiro de 1506. Tal estátua era alvo de grande atenção no período em que Voltaire colaborava com a Enciclopédia: sobre ela escreveram Winckelmann e Goethe, e a ela Gotthold Lessing dedicouo fundamental ensaio Laocoonte {1766). 86 Exlrnio tocador de lira da ilha de Lesbos, após haver seduzido um golfinho com a beleza de sua música, teria sido transportado por ele. 87 Rainha !!dia, filha de Iardanus, um deus-rio, que comprou Hércules ao deus Mercúrio e o manteve corno escravo por três anos. Com Hércules teve um filho, Larnos. 88 Denominadas lupercalia, do latim lupus (lobo) e hircus (animal impuro), festejavam-se na Roma antiga no dia 15 de fevereiro (ante diem )01 Kalendas Martias). 89 Segundo o calendário romano, nome dado ao 15° dia dos meses de 31 dias , ou ao 13° dia dos outros meses. Os idos correspondiam ao período de lua cheia e contavam com oito dias. Conforme o cálculo detalhadarnente explicado por Diderot em sua Enciclopédia, o dia 5 dos idos ,,.,,_.,..c:_., .. .. .de· rnaia· eorrespotmefitl"'!'i-l<d!r"<m~io. "''' ''' '"'"""""·'""'"'' " ~ · "' '""- ,,.,,_..,~ .--~"' ""~'···''-"" ""''" ·"-"'"""'-' -'"''<Y'"'" "' ···- · 90 Júpiter, Netuno e Mercúrio ejacularam ou urinaram sobre a pele do boi, conforme o mito. . -~ '" ·-·•;;..:.._-.;. ::...•,::~, . VOLT AI RE " ., . 59 Quase todas as festas romanas, sírias, gregas, egípcias fundavam-se sobre semélhantes contos, assim como os templos e as estátuas dos anti- . .. ...._ . --~ . gos heróis . Eram monumentos que a credulidade consagrava ao erro. Uma medalha, mesmo contemporânea, por vezes não é uma pro- va. O quanto a lisonja não Jez com que fossem cunhadas medalhas sobre batalhas muito indecisas, qualificadas como vitórias, e sobre em- preendimentos frustrados, que foram concluídos apenas na lenda. Por último, dura~te a guerra de 1740 dos ingleses contra o rei da Espanha, não se cunhóil uma medalha que atestava a tomada de Cartagena pelo almirante Vernon, enquanto na verdade esse almirante desistiu do cer- co?91 As medalhas apenas são testemunhos irrepreensíveis quando o acontecimento é atestado por autores contemporâneos; neste caso essas provas se sustentam uma à outra, constatando a verdade. Deve a história i"nserir discursos e fazer retratos? Se, em uma ocasião importante, um general de exército, um homem de Estado falou de uma maneira singular e forte que caracteriza seu gênio e aquele de seu século, é preciso sem dúvida reportar seu discurso palavra por palavra; tais discursos são, talvez, a parte mais útil da história. Mas por que fazer um homem dizer o que ele não disse? Seria quase o mesmo lhe atribuir o que não fez, é uma ficção imitada de Homero. Mas o que é ficção em um poema torna-se a rigor mentira em um historiador. Diversos antigos adotaram esse método; isso prova apenas que diversos antigos quiseram exibir sua eloquência à custa da verdade. Os retratos mostram ainda, com frequência , mais desejo de brilhar do que de inst,nür: contemporâneos estão no direito de fazer o retrato dos homens de Estado com os quais negociaram, generais sob os quais fizeram a guerra. Mas é de se temer que o pincel seja guiado apenas pela paixão! Parece que os retratos que se encontra em Clarendon92 são 91 Edward Vemon (1684-1757): oficial naval inglês, liderou o ataque a urna possessão espanho- la, Cartagena, em 1741 , mas a operação foi um desastre. Houve forte resistência no porto de Cartagena, os ingleses sofreram com doenças e mau tempo, e foram obrigados a se retirar para a Jamaica. 92 Edward Hyde, conde de Clarendon (1609-1674): historiador e homem de Estado inglês, a partir de r667;'ailô êrn que' carem tlesgraça j-unto ao rei da Inglaterra e· em-que é'obngaao"a exilar-se na França, dedicou-se à escrita de History of the rebellion and civil wars in England, obra ~J· _:-....... : -~ .'!.. .• I· l I I ., i I i f 60 l1Ç0ES DE HISTÓRIA feitos com mais imparcialidade, gravidade e sabedoria do que aqueles que se leem com prazer no cardeal de Retz. Mas desejar tomar os antigos, esforçar-se em desenvolver suas al- mas, olhar os acontecimentos como caracteres através dos quais se pode ler seguramente no fundo dos corações é uma empreitada bem delica- da; é em muitos uma puerilidade. Da máxima de Cícero concernente à história; que o historiador não ouse dizer uma falsidade, nem esconder uma verdade. A primeira parte des- se preceito é incontestável; é preciso examinar a outra. Se uma verdade pode ser de alguma utilidade ao Estado, seu silêncio é condenável. Mas suponha eu que você escreve a história de um príncipe que lhe confiou um segredo: você deve revelá-lo? Você deve dizer à posteridade o que você seria culpado de dizer em segredo a um único homem? O dever de um historiador poderia se sobrepor a um dever maior? Supondo ainda que você tenha sido testemunha de uma fraqueza que de modo algum influenciou nos negócios públicos: você deve reve- lar essa fraqueza? Nesse caso, a história seria uma sátira. É preciso confessar que a maior parte dos escritores de anedotas é mais indiscreta do que útil. Mas o que dizer desses compiladores in- solentes, que entendem como mérito maldizer, imp!"imem e vendem escândalos, como Lecausto vendia venenos? Da história satírica. Se Plutarco repreendeu Heródoto por não haver destacado o suficiente a glória de algumas cidades gregas e por haver omitido vários fatos conhecidos dignos de memória, são mais re- preensíveis hoje em dia aqueles que, sem possuir nenhum dos méritos de Heródoto, imputam aos príncipes, às nações, ações odiosas, sem a mais vaga aparência de prova. A guerra de 1741 foi escrita na Inglaterra. Encontramos, nessa história, que na batalha de Fontenoy "os franceses atiraram nos ingleses com balas envenenadas e com pedaços de vidro venenosos, e que o duque de Cumberland enviou ao rei da França uma garrafa cheia desses pretensos venenos encontrados nos corpos dos in- gleses feridos". O mesmo autor acrescenta que, devido ao fato de os l t _ ... de refon!n<'• ~bre o<<m• Vol~iJ< d<'l<'~'" po""'i~ n•»ndo juJ,.w "' h>gl<~ " 'P<rin= • . ... - ,, aos franceses, como neste caso em que compara um historiador ingl~s (Clarendon) a um his- ' toriador francês (Retz) ~ VOLTAIRE 61 -------------------------------------------------------- franceses terem perdido 40 mil homens nessa batalha, o parlamento de Paris editou um decreto por meio do qua:l-e:;tava proibidofalar,no,. assunto sob pena de castigos corporais. Memórias fraudulentas, impressas há pouco, estão repletas de se- melhantes absurdos insolentes. Ali encontramos que no cerco de Lille os aliados jogavam bilhetes n; cidade concebidos nesses termos: "fran- ceses, consolem-se, a Maintenon93 não será sua rainha". Quase cada página está repleta de imposturas e de termos ofen- sivos contra a-' família real e contra as principais famílias do reino, sem alegar a mais vaga verossimilhança que pudesse conferir um mínimo colorido a essas mentiras. Isso não é de modo algum escrever a história, é escrever ao acaso calúnias. Imprimiu-se na Holanda, sob o nome de história, uma infinidade de libelos cujo estilo é tão grosseiro quanto o das injúrias, e cujos fatos são tão falsos corno mal escritos. É, diz-se, um mau fruto da excelente árvore da liberdade. Mas se os infelizes autores dessas inépcias tiveram a liberdade de enganar os leitores, é preciso usar aqui a liberdade de desenganá-los. Do método, da maneira de escrever a história, e do estilo. Tanto se dis- se sobre esse tei~a. que é preciso aqui dizer muito pouco. Sabe-se bem que o método e o estilo de Tito Lívio, sua gravidade, sua eloquência sábia, convêm à majestade da república romana; que Tácito é mais ade- quado para pintar os tiranos; Políbio , para dar lições de guerra; Denis de Halicarnasso,94 para desenvolver as antiguidades. Mas, ao nos modelarmos em geral por esses grandes mestres, te- mos hoje um fardo mais pesado do que o deles a sustentar.
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