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WITOLD KULA TEORIA ECONÓMICA DO SISTEMA FEUDAL E D I T O R I A L P R E S E N Ç A * L I V R A R I A M A R T I N S F O N T E S PORTUGAL. BRASIL, Título original TEORIA EKONOMICZNA USTROJU FEUDALNEGO PROBA MODELU (g) Copyright by Pánatwowe Wydawnictwo Naukowe, Varsóvia, 1962 Tradução de MARIA DO CARMO CARY Reservados todos os direitos para a língua portuguesa ã EDITORIAL PRESENÇA, LDA. Rua Auguslo Gil, 35-A — LISBOA Capítulo I A QUE PERGUNTAS DEVE RESPONDER UMA TEORIA ECONÓMICA DO FEUDALISMO? Diz Engels, no Anti-Duhring, que «quem tentasse redu- zir a Economia Política da Terra do Fogo às mesmas leis que regem hoje a economia da Inglaterra nada conseguiria pôr a claro a não ser uns tantos lugares comuns da mais vulgar trivialidade» *. Pode perguntar-se se esta afirmação não contradiz os fundamentos do legado científico de Marx e Engels. Há efectivamente na teoria por eles elaborada muitas teses que, por um lado, tanto se referem à economia da Terra do Fogo como à da Inglaterra dos meados do século XIX, e que, por outro lado, não são nem nunca foram lugares comuns para os seus criadores ou para o mundo da ciência da sua época. Pertence a esta categoria a tese de que as relações económicas dependem das forças produtivas e que as alterações dessas forças revolucionam aquelas relações, a teoria da mutabilidade e da sucessão ordenada das estru- turas socioeconómicas, a ideia de que essa sucessão é acom- panhada por uma produtividade crescente do trabalho, e muitas outras ainda. Para que a frase de Engels, atrás citada, fosse congruente com a essência do legado dos cria- dores do socialismo científico, teríamos de aceitar que todas essas teses de aplicação universal pertenceriam não à economia política, mas sim à área correspondente da filo- sofia (o materialismo histórico). Nesse caso, na economia política propriamente dita, caberiam apenas teses válidas no máximo para a área de uma única formação socioeconó- mica. O que implicaria uma concepção partieular dos limites da filosofia e uma concepção particular das dependências 7 e das relações entre as diferentes disciplinas especializadas (neste caso, a economia política) e a filosofia. Seja como for que solucionemos,esta dificuldade, é evi- dente — é mesmo um lugar-comum — que das muitas teses que se podem formular sobre a actividade económica huma- na, não poucas têm graus de aplicação cronológica e geográ- fica diferentes, e que quanto mais vasto é o campo de aplica- ção dessas teses, mais restrito é o seu conteúdo. Embora, se- gundo parece, os criadores da economia clássica não tenham relevado esta verdade, os economistas ocidentais dos nossos dias conseguiram compreendê-la não só através das suas in- vestigações sobre a economia dos países socialistas, como também na economia contemporânea dos países subdesenvol- vidos, semifeudais ou dos povos primitivos. A nota específica do marxismo no que se refere a esta matéria pode resumir-se em duas afirmações: 1) existem relativamente poucas teses gerais de aplicação universal, sendo muito mais numerosas as teses de aplicação limitada no tempo e no espaço (prin- cípio que deriva da concepção da mutabilidade absoluta dos fenómenos sociais em todas as suas formas, incluindo os fenómenos da vida económica) e 2) a limitação no espaço e no tempo da maior parte das teses económicas é definida pelos limites dos próprios sistemas socioeconómicos (dado o carácter integrante destes últimos na vida social). Na sua forma extrema, a tese de que as leis económicas mudam em simultâneo com a mudança das estruturas socio- económicas desempenhou, como se sabe, determinada e importante função ideológica no período estalinista. Esta concepção iria impedir completamente a utilização de leis económicas universais (mesmo as de aplicação mais ampla, inclusive as marxistas) na análise da sociedade soviética. Por isso è que, em nossa opinião, é de grande transcendência cientifica e social afirmar que há no marxismo (ao contrário do que nos diz a Frase de Engels, atrás citada) toda uma série de teses de importância fundamental e nada triviais, que são de aplicação universal à actividade económica huma- na, ainda que convencionalmente as circunscrevamos ao campo da economia política ou ao da filosofia. Seria suma- mente útil para a ciência que se pudesse «codificar» *, em certa medida, o alcance dessas teses, seleccionando as que resistiram à prova das investigações científicas pós-marxia- nas e especialmente à prova da experiência histórica pós- -marxiana; dando-lhes também, para evitar os perigos do dogmatismo, a forma de indicações metodológicas, roais do que de leis. 8 Apesar de tudo o que acabámos de dizer, pareee-nos certa, no momento, a tese marxista de que a maior parte das leis económicas e justamente as de conteúdo mais rico, tem um alcance espacial e temporal limitado, geralmente circunscrito a um determinado sistema socioeconómico. Neste sentido Marx criou a sua teoria do sistema capitalista, enquanto Engels tentou criar uma teoria económica do sistema da comunidade primitiva à altura da ciência da sua época. No que se refere à formação de uma teoria económica do sistema socialista, ela foi impedida por fenó- menos bem conhecidos que travaram o desenvolvimento do pensamento científico marxista, obrigando-o a enveredar pela via empírica e pragmática e impondo-lhe o método das aproximações sucessivas, que esperavam em vão por uma síntese teórica. Só hoje é possível vislumbrar uma vira- gem neste campo. Por outro lado, a teoria do sistema feudal foi a que, até agora, menos atraiu a atenção dos investigadores mar- xistas3. O problema é, no entanto, importante, tanto do ponto de visita teórico, como do ponto de vista prático. E importante do ponto ae vista teórico, em virtude da uni- versalidade &ui generis do feudalismo (no sentido mar- xista do termo). Com efeito, todas as sociedades que ultra- passaram já a etapa da comunidade primitiva passam por uma qualquer forma de feudalismo, enquanto a falta de universalidade do regime esclavagista é uma verdade comummente admitida pela ciência marxista, depois do triun- fo alcançado por B. D. Grekov na sua pugna homérica com Pokrovski. O capitalismo surgiu de uma maneira «espontâ- nea», ou seja, sem que se tenha feito sentir a influência de algum capitalismo preexistente uma única vez na his- tória da humanidade. O mesmo se pode dizer do socialismo. Conhecemos, porém, no mundo diferentes feudalismos, sur- gidos em sociedades e épocas diferentes, independentes uns dos outros4. A teoria do sistema feudal é também importante do ponto de vista prático, devido às suas numerosas e fortes sobrevivêncías em muitas nações; sobrevivências que pesam ainda hoje na economia e no conjunto d"a vida social da maioria dos países a que se costuma chamar subdesenvol- vidos e cujos esforços no sentido de avançar pelo caminho do progresso económico transformam, perante os nossos olhos, a face do mundo. Daí o interesse despertado pelo funcionamento de economias deste tipo tanto entre os inves- tigadores dos países do Terceiro Mundo fa índia), como 9 entre os dos países avançados (E. U- A., Inglaterra, França, Alemanha, e tc , e URSS). A elaboração de uma teoria económica do sistema feu- dal tem grande importância para a investigação histórica. Por um lado, o historiador do feudalismo — se a reflexão metodológica lhe não é totafmente alheia — sente como é inadequada a teoria económica do capitalismo ao abordar o objecto da sua investigação5; por outro lado, a seu conhe- cimento dos feudalismos antigos (menos acessíveis embora à investigação, devido às muitas lacunas das fontes, mas que têjn a vantagem de serem «puros», independentes das influências do capitalismo, do imperialismo e do socialismo)permite-lhe dar uma contribuição insubstituível para esta tarefa r\ Tem-se observado ultimamente, no Ocidente, uma recru- descência de interesse pela investigação comparada do feudalismo. A obra precursora neste aspecto é, sem dúvida, «La société féodale» 7 de Marc Bloch, e a «última palavra» da ciência nesta matéria é — pelo menos até este momento — a obra colectiva dirigida por R. Coulborn8. Na União Soviética, o interesse teórico pelo feudalismo aumentou muito a partir do momento em que Estaline publi- cou os seus «Problemas económicos do socialismo na URSS». Como é sabido, Estaline formulou nessa obra aquilo a que chamou «leis fundamentais» do sistema capitalista e socia- lista. O que implicava que, entre as muitas leis que é possí- vel descobrir e que regem o funcionamento da economia de cada um dos sistemas, uma e só uma tem «carácter funda- mental». Não se sabe ao certo o que é que Estaline entendia por «carácter fundamental». Tratar^se-ia de um elemento de definição do sistema («chamamos capitalismo ou socia- lismo a um sistema regido por esta ou por aquela lei») ? Ou talvez esse «carácter fundamental» assentasse na superio- ridade desta ou daquela lei relativamente a outras «não fundamentais», que derivariam em certa medida dessa lei «fundamental» ? 9 Seja como for, os historiadores soviéticos (e também os de outros países socialistas) reagiram e puse- ram-se à procura de uma «lei fundamental do feudalismo». A revista «Voprosi Istorii» abriu as suas páginas a uma polémica prolixa sobre este tema e, como acontece fre- quentemente na ciência, apesar do ponto de partida e dos objectivos serem falsos, acabaram por aparecer, no decurso desse debate, observações e generalizações interessantes e acertadas1". O pressuposto em que se baseava a viagem de 10 Colombo era falso, mas a América que descobriu era ver- dadeira ", Se quisermos raciocinar sobre a teoria económica feudal, teremos de esclarecer primeiro a que perguntas deve res- ponder uma teoria desta natureza, qual deve ser o seu âmbito efectivo, a que perguntas deve responder qualquer teoria económica de qualquer sistema; e, finalmente, é preciso ver se o carácter específico de cada sistema implica que a sua teoria deva responder a certas perguntas também espe- cificas, inaplicáveis na análise de outros sistemas. De tudo o que anteriormente se disse pode depreender - -se que não é necessário incorporar na teoria económica de um determinado sistema teses relativas à teoria geral da economia (ou teses do materialismo histórico sobre a acti- vidade económica humana). Incluímos também nesta cate- goria a própria definição de sistema (neste caso, o feuda- lismo) , Dizer, por exemplo, que o feudalismo é um sistema assente na grande propriedade rural e em relações de depen- dência pessoal entre o produtor directo e o proprietário latifundista significa dar uma definição de feudalismo, mas esta definição pertence à teoria das formações socio- económicas, ou seja, a um aspecto da ciência geral da acti- vidade'humana. Além disso, a formulação de proposições deste tipo sob a forma de leis científicas («sempre que encon- tramos o feudalismo, verificamos a existência da grande propriedade rural... etc») eonduzir-nos-ia a tautologias evidentes. Ponhamos portanto de lado todas as afirmações relati- vas a toda a actividade económica ou a formações antagó- nicas, numa palavra, todas aquelas teses cuja aplicação excederia os limites da época feudal, e procuremos formular os problemas essenciais que a teoria económica de qualquer sistema, e portanto também a do sistema feudal, deveria, em nossa opinião, abordar12. A nosso ver, a teoria económica de um determinado sistema deveria explicar: 1) as leis que regem o volume do excedente econó- mico15 e as modalidades da sua apropriação (por exemplo, as leis que regem o emprego de métodos extensivos ou inten- sivos de produção, as que regem o grau de utilização das forças e meios de produção, a teoria do rendimento feudal); 2) as leis que regem a distribuição das forças e meios de produção, e sobretudo a do referido excedente (tncluem-se aqui as regras que regem toda a actividade de investimento, 11 desde o estabelecimento de colonos até aos investimentos feitos na indústria, o problema da utilização produtiva ou improdutiva do referido excedente, etc.); 3) as leis que regem a adaptação da economia às con- dições sociais em mutação, ou seja, a dinâmica a curto prazo (adaptação da produção ao incremento ou à diminuição da população, a passagem do estado de guerra ao estado de paz, etc.); 4) as leis da dinâmica a longo prazo, de modo parti- cular os factores internos de desintegração do sistema em questão e da sua transformação noutro sistema. Nenhuma teoria estará completa se não contiver este elemento. E digno de admiração o facto de Marx ter sabido incluir esta problemática na sua teoria do capitalismo, apesar de esta ter amadurecido no período da primeira juventude do sistema capitalista. Forniulando de outra maneira estas mesmas ideias, poderíamos dizer que a finalidade da teoria económica de qualquer sistema consiste em formular as leis que regem o volume do excedente económico e a sua utilização (ponto 1 e 2), tendo em conta que ambas as questões têm de ser eluci- dadas na sua dupla dimensão: a curto e a longo prazo (pontos 3 e 4). Fica ainda por examinar um outro ponto, que consisti- ria na análise do funcionamento dos fenómenos de mercado (interno e internacional) e do seu papel no conjunto da vida económica da época feudal. Este problema deveria ser abordado com outro critério. Os aspectos nele abrangidos estão mais ou menos relacionados (o que depende princi- palmente da fase do sistema feudal que analisarmos) com as questões incluídas nos nossos quatro pontos. A conve- niência de separar esta problemática deve-se ao facto de ela dar origem a muitos mal-entendidos na investi- gação: muitas vezes não se percebe que os fenómenos de mercado na economia pré-capitalista se regem por leis por vezes completamente distintas, e sobretudo que é totalmente diferente a sua influência sobre o outro sector da economia, ou seja, o sector não mercantil, e portanto também sobre a totalidade da vida económica. Ficam então por determinar: o) o funcionamento dos fenómenos do mercado num meio não mercantil e não capitalista; _b) o mecanismo da influência do sector mercantil sobre o não mercantil e vice-versa; 12 c) a periodização destes fenómenos de acordo com a fase de desenvolvimento do sistema feudal, e especialmente em relação com os factores da sua desintegração, presentes nos mesmos fenómenos. Decidimos no entanto não abordar este tema, já que de outro modo o estudo de qualquer dos quatro grupos de pro- blemas atrás mencionados se tornaria irrealizável. Este pro- blema poderia também ser posto de outra maneira. O sis- tema feudal é um sistema em que predominam pequenas unidades de produção e uma economia natural. Pois bem, imaginemos um caso extremo: uma pequena exploração camponesa com uma economia totalmente natural que realizasse, quando muito, a reprodução simples e sem outros encargos além das prestações pessoais de trabalho ias cor- veias"). As possibilidades de análise teórica do fenómeno (en- tre outras razões por falta de fontes) seriam sumamente limitadas. O facto é que na prática, à escala social, um caso desses raramente se verifica. Só fenómenos como os esforços para aumentar o rendimento social, a luta pela sua distribui- ção, os processos de adaptação a curto e a longo prazo, possi- bilitam a análise teórica. E todos eles se processam não sem relação com os fenómenos de mercado. Os objectivos que acabamos de enumerar, que a nosso ver são aqueles que toda a teoria de qualquer sistema social se deveriapropor, indicam claramente que antes de mais nada nos interessam os problemas da produção, o seu volume e utilização, a produção para Q consumo imediato e para o consumo futuro (os investimentos) e as alterações que, a curto e a longo prazo, afectam estes fenómenos. A dificul- dade está em que a produção que se efectua numa explora- ção fechada e isolada do mundo dificilmente pode ser investi- gada. De uma maneira geral, só o contacto entre os sujeitos económicos, as relações inter-humanas, que são essencial- mente relações de troca, possibilitam a análise científica, porque só elas criam fontes históricas e, o que é mais impor- tante, porque só elas permitem comparar os efeitos da acti- vidade e do comportamento económico dos diferentes grupos sociais. Ê por isso que a análise dos fenómenos do mercado ocupará um lugar importante no nosso trabalho, mas o seu propósito será sempre penetrar nessa zona oculta da vida económica de que a fontes quase não falam, mas que é a mais importante e decisiva: a produção. 13 I I Capítulo II A CONSTRUÇÃO DO MODELO A elaboração de uma teoria requer a construção prévia de um modelo'. Esta questão gera muitos mal-entendidos nas ciências humanas em geral, e na história económica em particular. A grande maioria dos historiadores não sente qualquer necessidade de construir um modelo, e quando um deles o constrói, os colegas indignam-se. O mito da história como ciência do concreto, como ciência do acontecimento único, o mito da história descritiva e narrativa, a que só interessa o individual, tem conduzido ao alheamento e até à hosti- lidade para com a construção de modelos. Não vale a pena citar exemplos. Até na-s investigações sobre a história dos preços houve autores que consideravam como uma fonte histórica utilizável a notícia de que em tal dia fulano tinha comprado uma quantidade X de arrobas de centeio a este ou àquele preço, enquanto o registo oficial dos preços dos cereais (H. Hauser) ou não era considerado como tal, ou pelo menos não interessava ao historiador. A concepção ideo- gráfica da história não implica apenas um método de inter- pretação dos dados; é uma atitude que determina todos os elementos e etapas do trabalho do historiador, a começar pela crítica das fontes e pela selecção dos factos. A ciência marxista, que em princípio é contrária à história ideográfica, na prática identificou-se mais de uma vez com essa atitude na investigação de épocas passadas. Concebida dogmatica- mente, a tese correcta de que «a verdade deve ser concreta» impediu muitas vezes a procura de novas leis. Por outro lado, encontramos também na história da ciência uma atitude que peca por um extremismo de sentido 15 contrário. No Congresso de Heidelberga de 1903, Sombart, irritado com as críticas mesquinhas à primeira parte (que tratava da Idade Média) do seu Der moãerne Kwpitalis- tnus, exclamou: «Para tornar compreensível a vida econó- mica contemporânea, criei uma construção chamada «Idade Média». 32-me absolutamente indiferente a maneira como as coisas se apresentavam realmente nessa época. Querer inva- lidar as minhas teorias com objecções extraídas de traba- lhos históricos é absurdo» 2. Não tomemos estas palavras à letra, como expressão da atitude metodológica de Sombart, mas antes como uma exclamação lançada no fervor da dis- cussão; constituem, no entanto, uma expressão da atitude que referimos. Para que a teoria a construir possa ser mais do que um jogo intelectual, o sistema de premissas deve corresponder a relações realmente existentes nas sociedades que são o objecto do nosso interesse. A teoria construída só será válida por referência a sociedades (conhecidas ou a deseo- fcrír no futuro') nas quais apareçam efectivamente os ele- mentos que introduzimos no nosso modelo. Quanto maior for a quantidade de elementos incorporados no modelo, tanlo mais rica poderá ser a teoria construída, mas tanto menor será também o número de sociedades por ela abrangidas. Para os objectivos que pretendemos atingir, devemos considerar aqui as possibilidades de construção de modelos deste tipo a partir da observação de sociedades nré-capita- Ustas do passado, e da investigação das sociedades pré- -industriais atrasadas de hoje, cuja economia apresenta um baixo grau de comercialização. Nas investigações sobre os países atrasados de hoje, o modelo mais generalizado e de maior utilidade (se bem que não esteja formalizado) é o de Lewiss. Este modelo assenta na delimitação de dois sectores: capitalist e de subsistance, segundo a terminologia do autor, que correspondem aos conceitos correntes de «sector comer- cializado» e «sector natural» 4. No modelo de Lewis, todos os factores do sector comercializado são mais elevados: o capital, o rendimento per capita, a taxa de poupança e a taxa de crescimento. O sector «natural» é totalmente estático. Há uma série de instituições que têm por função manter este estado de desequilíbrio económico entre os dois secto- res. No sector comercializado, nor exemplo, há instrumentos institucionalizados que mantêm os salários a um nível superior ao que resulta da oferta de mão-de-obra. O único contacto entre os dois sectores é praticamente a oferta 16 de trabalho do sector «natural» ao capitalista, oferta excep- cionalmente elástica: pode recorrer-se, em qualquer momento, a massas suplementares de operários, que se podem des- pedir, quando necessário, com a mesma facilidade, mandan- do-os de volta para o sector «natural». Todo o processo de crescimento deste modelo dá-se no sector comercializado, e o sector «natural» vai-se reduzindo simultaneamente até ser absorvido por aquele. A utilidade do modelo de Lewis para a investigação dos países atrasados dos nossos dias é notável, mas em certos aspectos limitada. O aspecto que desperta maiores objecções é a nítida disjunção entre os dois sectores e a sua extrema contraposição5. Em primeiro lugar, a divisão em sectores do modelo de Lewis coincide com a divisão por tipo de empresa, sendo pois incluída no sector comercializado toda a indústria e a grande propriedade rural. Se adoptarmos como critério de classificação a importância que têm na gestão da empresa os seus vínculos com o mercado, a classificação de Lewis será correcta. E„ no entanto, evidente que uma empresa industrial, e com mais razão ainda uma grande propriedade rural, actuam e calculam de maneiras diferentes no meio típico de um país atrasado. A divisão em dois sectores, a que Lewis atribui muito justamente uma importância primordial, não corresponde a uma divisão das empresas, uma vez que, na maioria dos casos, a linha divisória passa peio meio de cada uma delas. E tanto assim que muitas vezes podemos pôr razoavelmente em dúvida se uma grande propriedade rural pertence ao sector capitalista ou não. O carácter específico do cálculo económico da empresa numa realidade «bissecto- rial» é aqui o problema mais importante e, sem o compreendermos a fundo, não podemos apresentar uma explicação dos obstáculos fundamentais que travam o cres- cimento económico autónomo da maioria dos países subde- senvolvidos fe particularmente daqueles que incluímos no grupo dos países pós-feudais). Lewis tem evidentemente razão quando insiste nas possi- bilidades ilimitadas da oferta de mão-de-obra. Formula no entanto este postulado de um modo demasiado abstracto. O excesso notório de população do agro que produz essa oferta de mão-de-obra, teoricamente ilimitada, é geralmente acompanhado por manifestações de extrema imobilidade da referida oferta. Para que essa oferta de mão-de-obra, teoricamente ilimitada, seja efectiva, é necessário que a sociedade camponesa tradicional se encontre num estádio 17 relativamente avançado de desintegração. Existiam efecti- vamentepossibilidades ilimitadas de oferta de mão-de-obra, por exemplo, na Polónia, antes da última guerra, mas não as há, pelo contrário, no México de hoje °. Além disso, nem sempre é certo que essa oferta de mão-de-obra coincida com factores institucionais que mantenham oa salários do sector comercializado acima do nível determinado, pela oferta. Onde essa oferta ilimitada existe efectivamente e não apenas em teoria, como, por exemplo, na Polónia de antes da guerra, os salários tendem a baixar, embora se mantenham sempre acima dos rendimentos médios da pequena exploração agrí- cola. Por outro lado, os salários mantêm-se a alto nível nos países onde factores institucionais e económicos obstam à transformação da oferta potencial em oferta efectiva. De resto, quando se constrói um modelo, é difícil abstrair de um fenómeno tão significativo e tão difundido na econo- mia dos países subdesenvolvidos como é a enorme ampli- tude do espectro salarial, que chega ao ponto de se poder falar de dois mercados de trabalho. Esta afirmação refere-se sobretudo ao trabalho qualificado (geralmente muito caro nesses países) e ao trabalho não qualificado (geralmente muito barato). Em muitos países, essa divisão é reforçada por diferenças étnicas e privilégios institucionais concedidos a trabalhadores imigrantes «brancos» em relação aos «indí- genas». E possível observar certos aspectos desse fenómeno na Polónia do século XIX e dos começos do século XX, por exemplo, na região de Lodz ou na Alta Silésia, nas condi- ções respectivas do trabalhador alemão e polaco. Nalguns países subdesenvolvidos dos nossos tempos é essa uma das manifestações de «economia dualista» T. Finalmente, levanta também objecções o postulado de que o sector «natural» é totalmente estável8. Se assim fosse, a perspectiva do desenvolvimento económico desses países seria mais triste do que o é na realidade,, JJáo é" certo que a pequena exploração agrícola nunca tenha possi- bilidades de reprodução alargada, de investimento e dfi. aumento da produtividade do trabalho. Na Birmânia, o State Agricultural Marketing Bòcurâ, ao garantir aos agricultores a venda de qualquer quantidade de arroz a preço fixo (infe- rior, embora, ao preço mundial), deu origem a um aumento da produção da ordem dos 10% no decurso de 4 anos9 . É sabido que toda a reforma agrária liberta grandes, possi- bilidades de crescimento. E também não se pode introduzir no modelo o fluxo da mão-de-obra do sector «natural» para o comercializado, negando ao mesmo tempo a possibilidade 18 de desenvolvimento das pequenas explorações agrícolas; justamente quando estas se libertam do lastro dos «braços supérfluos», elevam o grau de comercialização e acumulação, começam a ter possibilidades de investir e, por conseguinte, de aumentar a produtividade do trabalho e da terra; passam a constituir um mercado de venda para a indústria, ou seja, para o sector comercializado, etc. Por último, Lewis considera como um fenómeno positivo toda a transferência do sector «natural» para o comerciali- zado, uma vez que a produtividade marginal do trabalho no primeiro — devido ao excesso de população — é igual a zero. Dado que esta premissa é impugnável no caso de alguns países subdesenvolvidos, também a conclusão nem sempre será válida. Não se pode afastar «a limine» a existência de factores de crescimento no sector minifundista de um país subde- senvolvido. Esses factores são muitas vezes insignificantes e actuam lentamente, é geralmente muito difícil fazer um registo estatístico dos mesmos mas, quando actuam em escala maciça, desempenham frequentemente um papel importante na vida económica do país. A história económica, e especialmente a história econó- mica marxista, compreendeu há muito o papel da capitaliza- ção, da comercialização e da intensificação da agricultura no período de emergência da sociedade industrial. Sabe- mos alguma coisa quanto a este ponto tanto a respeito da Inglaterra, como da Europa Central ou da Rússia. O histo- riador da economia dá-se perfeitamente conta das dificul- dades ingentes que o estudo dessa problemática encerra. IS por isso que a colaboração entre o investigador da econo- mia dos países subdesenvolvidos e o historiador da economia pode ser mutuamente proveitosa. Retenhamos então, do modelo de Lewis, sobretudo a divisão em dois sectores, coneebendo-a de uma forma um pouco diferente. A nosso ver, essa divisão é o ponto de partida da análise económica de qualquer sociedade pré- -industrial. Retenhamos também da crítica que fizemos a Lewis a distinção entre os países em que a desintegração da sociedade rural tradicional está avançada, em que a oferta efectiva de mão-de-obra é praticamente ilimitada e o seu preço é baixo, e os países em que, apesar de haver um excesso de população na agricultura, se observa uma mobilidade muito fraca da mão-de-obra e os salários são muito mais elevados. 19 Podemos citar como exemplo da construção de um modelo deste tipo, feito, neste caso, por um historiador e com finalidades de investigação histórica, a tentativa de F. Mauro ,0. O autor constrói o modelo para elaborar uma teoria do funcionamento da economia da Europa Ocidental, e parti- cularmente da Franqa, nos séculos XVI-XVTIT, que, segundo ele, constituem o período do capitalismo mercantil, ou seja, o período no qual a direcção e os lucros da produção estão nas mãos dos comerciantes e no qual — embora, como ê natural, nem toda a vida económica se reduza a isso — o capital mercantil é o «sector motriz» em torno do qual gravita a totalidade da vida económica do país. Os trabalhos de Labrousse e dos seus sucessores são, pa- ra Mauro, a base sobre a qual constrói uma teoria da dinâmica económica do capitalismo mercantil à escala macroeconómica. Deve-se-lhe seguir uma outra fase, de investigação micro- económica; estudos sobre a contabilidade das empresas, a relação preços-custos, o cálculo dos investimentos, a distri- buição dos rendimentos, etc. Dada a sua aversão às generalizações teóricas, tão difun- dida entre os historiadores, Mauro julga necessário demons- trar a justeza dos seus postulados, afirmando que o estabe- lecimento de correlações eonstantes permitirá ao historiador compreender os casos em que não há documentação histó- rica, ligar os elementos conhecidos num todo coerente e, principalmente, estabelecer comparações com as leis que actuam no período seguinte (a que dá o nome de capitalismo industrial) e compreendê-las, portanto, melhor, uma vez que «para compreender a economia do presente é preciso compreender a economia do passado. Mauro divide as leis económicas em: 1) leis universalmente válidas, que se aproximam mui- to das leis da lógica; 2) leis que se manifestam universalmente num dado sistema socioeconómico, v. gr. o mecanismo do lucro como elemento inerente ao sistema capitalista; , 3) mecanismos próprios daquilo a que chamamos uma estrutura definida, como por exemplo o «capitalismo mer- cantil» no sentido atrás referido, ou seja, um sistema de relações que se manifesta em mais de um país, mas dentro de limites temporais e espaciais muito mais restritos do que os dos grandes sistemas socioeconómicos " . 29 Segundo Mauro, o método de análise adequado inclui três etapas: 1) macroanálíse estática; 2) microanálise; 3) macroanálíse dinâmica 12. Daqui poderia deduzir-se que o elemento impulsionador da economia social reside, segundo ele, na actividade de entidades economicamente operantes («empresas»). Mas não é assim, porque no seu esquema a microanálise sucede à macroanálíse estática, de maneira que é esta última que deve proporcionar o «sistema social de referência» apto a explicar a actividade das empresas. Mauro constrói o modelo propriamente dito a partir dos seguintes elementos:1} predomínio quantitativo da agricultura na economia do pais; 2) tendência ,para o esgotamento dessa agricultura; 3) elevado grau de comercia- lização, que proporciona aos comerciantes enormes possibi- lidades de acção; 4) influência da actividade comercial sobre a variação incessante dos factores do cálculo económico das empresas agrícolas e industriais, que dependem grande- mente da comercialização, devido ao significado desta; 5) penetração gradual do capital mercantil na produção. Para os nossos objectivos, este modelo pode servir apenas como «modelo de contraste». Dada a falfa, de experiência neste sentido na ciência actual, resolvemos encarar a nossa tarefa de uma forma relativamente limitada, construindo um esque- ma de funcionamento da economia a partir do exemplo con- creto das relações económicas que prevaleciam na Polónia nos séculos XVI-XVIII, ou seja- na época em que predo- minava o sistema do domínio sennorial assente na servi- dão. Este esquema será aplicável, ao menos parcialmente, na análise de outraa entidades históricas? Não está provado que o não seja (por exemplo, para o caso da Hungria ou da Rússia), mas deixemos esta questão para uma investi- gação ulterior. Do conjunto das relações que prevaleciam na Polónia dessa época, incorporaremos no modelo, sob uma forma sim- plificada, os seguintes elementos: 1) o predomínio avassa- lador da agricultura na economia; 2) o facto de a terra não ser uma mercadoria, principalmente devido ao mono- pólio da propriedade rústica exercido pela nobreza, mas também porque a taxa de juro dos empréstimos em nume- rário supera a rentabilidade da exploração agrícola; 3) distribuição da totalidade das forcas produtivas na agricul- tura entre a aldeia e a reserva senhorial; 4) barreiras ins- titucionais eficientes contra a mobilidade social e geográ- fica, especialmente dos camponeses (servidão da gleba); 21 5) a maior parte das prestações do campesinato assume a forma de trabalho; 6) produção artesanal e industrial integrada quer na grande propriedade rural, quer em orga- nizações gremiais; 7) ausência de restrições jurídicas que limitem a opção económica da nobreza; 8) forte propensão da nobreza para o consumo de luxo, determinada por factores inerentes ao regime social; 9) existência de países econo- micamente mais desenvolvidos num raio acessível à comuni- cação; 10) ausência de intervenção do Estado na vida econó- mica (nem sequer por intermédio de taxas proteccionistas ou medidas semelhantes). A selecção e conveniência destes postulados, e sobre- tudo a sua formulação categórica, poderiam discutir-se inter- minavelmente. Ê certo que houve na Polónia aldeias perten- centes à burguesia, mas não só eram muito pouco numerosas, como ainda não é certo que o proprietário burguês as admi- nistrasse de forma diferente do nobre. Por outro lado sabe- mos com toda a certeza que os elementos de cálculo que tanto o burguês como o nobre tinham de ter em conta eram os mesmos (flutuação das colheitas, nível e flutuação dos preços, custos de transporte, e t c ) . E certo que havia na Polónia uma classe, a que se chamava a pequena nobreza, que não possuía servos, mas esse fenómeno, sendo embora numericamente significativo, só aparecia em regiões bem delimitadas e duvido que a sua introdução no modelo pudesse alterar alguma coisa, fi certo que houve na Polónia campo- neses isentos de prestações, mas ninguém poderá afirmar que foi um fenómeno típico. Também é certo que havia nas cidades artesãos não integrados nas corporações, mas é natu- ral (se bem que a história da actividade artesanal na Polónia esteja pouco desenvolvida) que eles estivessem, por um lado, frequentemente sujeitos a uma dependência pessoal, e que, por outro, tal como o owíswíer face ao trus% não atentassem, até no seu próprio interesse, contra o monopólio das corpora- ções, aproveitando-se dele para venderem os seus produtos a um preço inferior — se bem que não muito inferior — ao estabelecido por aquelas. Poderiam multiplicar-se as objec- ções, mas deixemos ao críticos o ónus -proba-ndi. Estes postulados poderiam também ser discutidos do ponto de vista da sua limitação geográfica e cronológica. Não se aplicam com toda a certeza aos territórios periféri- cos (Pomerânia, Ucrânia) nem a períodos extremos (pri- meira metade do século XVI e, possivelmente, segunda me- tade do XVTEI). O medo da crítica poderia induzir-nos a redu- 22 zir os limites no tempo e no espaço. Mas onde situá-los então? Será talvez preferível não o fazermos, e declararmos simplesmente que nos propomos abordar os aspectos domi- nantes da história económica da Polónia na Idade Moderna. A lista de elementos do nosso modelo poderia ser tam- bém muito mais extensa. Mas nessa altura seria necessário investigar se a incorporação dos elementos omitidos altera- ria os resultados da nossa análise, apontando para um fun- cionamento diferente do modelo. E ao pormos o problema dessa maneira, estou certo de que verificaríamos que os ele- mentos enumerados eram suficientes. Como se processa, neste quadro, a vida económica e quais as suas regularidades? Ê o que nos propomos mos- trar no nosso trabalho. E se o nosso raciocínio tiver de assen- tar, em mais de um caso, em bases empíricas relativamente fracas, isso deve-se ao facto de que o abundante material científico relativo à história económica da Polónia nos sécu- los XVI-XVHI não foi compilado do ponto de vista dos numerosos problemas que nos interessam. No caso de inves- tigações ulteriores invalidarem alguma das nossas hipóteses, será para nós motivo de satisfação o termos contribuído para esclarecer «como ê que as coisas se passaram na realidade». «O gosto do manjar conhece-se ao comer». O mesmo acontece na construção de um modelo. Permitam-me pois que cozinhe o manjar... e o leitor que aprecie o sabor, e que diga se a minha tentativa foi ou não fecunda. 23 Capítulo IN DINÂMICA DE CURTO PRAZO O cálculo económico da empresa feudal Afirmações como: «Cada época tem as suas próprias leis económicas» ou «Para investigar uma realidade diferente são necessários instrumentos de investigação também dife- rentes» são frequentemente repetidas, sem que se faça uma reflexão crítica sobre o seu conteúdo exacto. Estas afirma- ções são no entanto correctas, e o facto de nem sempre se lhes dar a devida atenção tem originado muitos erros. Surgem grandes dificuldades, de que às vezes não nos damos conta, sobretudo na análise do funcionamento econó- mico da empresa feudal1. A análise da empresa devia, em princípio, proporcionar-nos respostas para as seguintes duas perguntas: 1) Quais são os resultados objectivos da actividade da empresa, ou seja, os produtos por ela elaborados repre- sentam um valop-maior do que a soma dos bens utilizados na sua produção? 2) Quais os motivos e a orientação da actividade do sujeito económico observado (e portanto, muito provavel- mente, também da dos sujeitos análogos) ? Neste sentido, a análise de empresa é um método que pode e deve ser aplicado a qualquer sistema económico a investigar. Por outro lado, não se pode — como o veremos mais adiante — aplicar, na análise da empresa feudal, métodos elaborados para a análise da empresa capitalista. 25 Os métodos de análise da empresa capitalista foram frequentemente utilizados na análise de empresas não capi~ talistas, tanto na Polónia como noutros países, e tanto em relação a material histórico como a países contemporâneos economicamente atrasados. O resultado, porém, foi sempre uma reãuatio aã ábsurdvm. Para explicarmos este ponto, passamos a apresentar os dados do balanço económico de uma propriedade senhorial média do sul da Polónia, que compreendia três unidades de exploração, nos anos de 1786-1798 (em zlotys: 1 zloty =30 grosz) \ Receitas em dinheiro 13 826,20 7 388,27 6 580,03 Despesas em dinheiro 3988,14 3 354,22 4373,06 Lucro em dinheiro 9 838,06 4034,05 2606,27 Prestações pessoais (corveias) ,.. 12 703,10 7 223,18 4180,24 Outras prestações dos camponeses 3 533,04 1290,24 330,15 Soma das prestações dos campo- neses 16236,14 8514,12 4511,09 Valor da propriedade -. 160000,— 61000,— Lucro em dinheiro em % do valor 6,2% 4,3% Taxa de monetarização • 24 % 32% 51 % 1 zloty gasto anualmente produz um lucro anual de 2,5 zl. 1,2 z.I 0,6 zl. Gastos do senhor em dinheiro ... 3 988,14 3 354,22 4 373,06 Contribuição das prestações pes- soais 12703,10 7223,18 4180.24 Soma dos custos de produção (mínimo) 16691,24 10578,10 8 554 — Receitas do senhor em dinheiro 13 826,20 7 388,27 6980,03 Perdas 2065,04 3189,13 1573,27 Como vemos, esta empresa é rentável, e em alto grau, seja qual for o ponto de vista que presida à elaboração do cálculo. As duas reservas senhoriais, cujo preço de compra conhecemos, rendem anualmente mais de 5%, e se acrescen- tarmos a esse rendimento as prestações dos camponeses em espécie e em dinheiro, mais de 7%. Cada zloty gasto no decurso do ano rende quase 1,5 zloty, ou seja' 50% dos gastos correntes em dinheiro. O capital circulante é relati- vamente reduzido (11.716 zlotys 12 grosz por ano, enquanto duas das três propriedades custaram 221.000 zlotys!) * Relagao percentual entre os gastos em dinheiro e a soma dos gastos em dinheiro+valor das prestações pessoais. 26 mas produz anualmente um lucro líquido de 16.479 zl. 8 gr. Acrescente-se ainda que os gastos em dinheiro no consumo pessoal da família do proprietário são reduzidíssimos, uma vez que ascendem apenas a 1.948 zl. 2 gr. por ano3. A situação apresenta-se, porém, de uma maneira com- pletamente diferente quando a considerarmos do ponto de vista do camponês. Os encargos anuais do camponês equi- valem a quase o dobro do lucro anual líquido do senhor. Os camponeses perdem portanto muito mais do que aquilo que o senhor ganha! O que acontece então ao resto? Calculando o custo social de produção daquelas três propriedades segundo regras capitalistas, teríamos de incluir pelo menos os gastos do senhor destinados à produção e o valor do trabalho com que os camponeses contribuem. O total ascende a 35.824 zl. 4 gr., enquanto as receitas totais em dinheiro só representam 28.195 zl. e 20 gr. E certo que a propriedade dava também um lucro não monetário, sobretudo na forma de consumo próprio do senhor e da família, mas, por outro lado, não incluímos nos custos diver- sos investimentos não monetários realizados tanto pelo senhor como — sobretudo — pelos camponeses. Do ponto de vista do senhor, a propriedade é muito rentável, já que deixa mais de 16.479 zl. 8 gr. de lucro líquido (dizemos «mais de», porque não podemos determinar a ordem de grandeza dos lucros monetários). Mas se incluirmos o custo do trabalho dos camponeses utilizado na produção, o balanço acusará uma perda anual de 7.618 zl. 14 gr., que na realidade é ainda maior, mas não estamos em condições de de- terminar o valor dos investimentos não monetários (por exem- plo, a conservação dos utensílios de trabalho e do gado nas explorações camponesas). E finalmente, se incluirmos o valor das outras prestações dos camponeses (além do trabalho), a perda anual atingirá os 12.782 zl. 27 gr. Apesar disso esta «empresa» funciona durante anos e não abre falência, nem coisa que se pareça. O seu proprietário leva uma vida luxuosa e não limita os seus gastos monetários. Tem a arca cheia de dinheiro (nela entram anualmente 16.478 zl. 8 gr. de lucro líquido em dinheiro, enquanto os seus gastos em dinheiro para fins de consumo atingem apenas os 1.948 zl. 2 gr.). Nada indica também que a propriedade se vá desvalorizando *. Pode naturalmente admitir-se que se Verifica uma pauperização das explorações camponesas — as fontes nada nos dizem sobre isto —, mas são certamente mais frequentes os casos em que ela se não verifica. O senhor pode vender a sua propriedade em qualquer momento, e o 27 preço que receberá por ela dependerá unicamente do jogo da oferta e da procura de propriedades rurais nesse momento. Ao procurarmos índices adequados ao carácter especí- fico da empresa analisada, aplicámos, como se pode ver, alguns coeficientes «inusitados»: 1) Calculámos a relação entre os gastos monetários com fins produtivos e o lucro monetário líquido, ou seja, calculámos o lucro anual líquido produzido por um zloty gasto com fins produtivos; 2) Calculámos aquilo a que chamámos «taxa de mone- tarização da produção», ou seja, o índice que nos mostra a im- portância dos gastos produtivos em dinheiro dentro do conjunto dos gastos produtivos, e, como nos era impossível calculá-lo com uma exactidão absoluta, considerámos como aproximação verosímil a relação entre os gastos monetários e a soma destes mais o valor das prestações pessoais. O primeiro destes índices é relativamente verídico, uma vez que a contabilidade dos nobres — despreocupada em matéria de investimentos não monetários — regista escrupu- losamente as receitas e despesas monetárias. O segundo destes índices é com toda a certeza exagerado, uma vez que conhecemos com bastante exactidão os gastos monetários, enquanto os gastos produtivos globais eram certamente maiores do que a soma dos gastos em dinheiro e do valor do trabalho prestado pelos camponeses. Dado que havia, porém, em todas as propriedades gastos não monetários para além do trabalho, este coeficiente mantém o seu valor informativo. Convém insistir no facto de que os dados apresentados sugerem que existe uma relação inversa não só entre o grau de monetarização do processo de produção e a rentabilidade monetária (o que não é de estranhar, uma vez que tal se depreende do próprio pressuposto), como também entre o grau de monetarização e a rentabilidade em geral. O coefi- ciente de monetarização da produção é de 51% em Moczerady, mas apenas de 24% em Izdebki, porém um zloty investido na produção rende em Izdebki 2,5 zl. de lucro líquido, enquanto em Moczerady rende apenas 0,6 zl., e o rendi- mento produzido pelo capital investido na compra da propriedade equivale a 6,2% em Izdebki, enquanto em Moczerady é só de 4,3%. Esta importante questão exige, evidentemente, uma verificação assente em material mais amplo \ 28 Voltemos porém ao problema da rentabilidade da em- prega. No exemplo citado, a empresa mostrou-se altamente rentável quando considerámos apenas o aspecto monetário, e claramente deficitária quando incluímos no cálculo uma avaliação dos custos não monetários. Pode considerar-se este um resultado típico*. Ao analisarmos uma empresa feudal, obtemos quase sempre resultados semelhantes. Este problema, que aparentemente tem a ver com a técnica de investigação, é, na realidade, muito mais vasto e toca em questões teóricas fundamentais. Por um lado diz respeito a todo o tipo de empresas cuja actividade não assenta no trabalho assalariado7. Por outro lado, toca numa questão de carácter essencial: o cálculo económico e a racionalidade das decisões económicas em sistemas que não assentem no livre jogo dos fenómenos de mercado. Teremos ocasião de, mais adiante, voltar a todas essas questões. A dificuldade referida não respeita porém apenas ao aspecto do trabalho obrigatório; pode aplicar-se a todos os elementos da produção não adquiridos no mercado. Tomemos o exemplo da madeira. Em 1785 um tal Tor- zewski publicou, em Berdyczow, um manual polaco de fabri- co de vidro8. Esse manual, redigido sob a forma de diálogo, começa com uma cena em que o Alcaide (símbolo do pro- prietário fundiário abastado) elogia, perante o senhor Wia- domski (porta-voz do autor), o modo de administração queintroduziu nas suas propriedades. Menciona como a maior vantagem do sistema aplicado, a auto-suficiência das suas propriedades (não precisa de comprar quase nada). Dirige-se a Wiadomski pedindo-lhe conselho numa única questão: como aproveitar os muitos bosques que possui, onde as árvores crescem sem qualquer proveito e a madeira se des- perdiça? Wiadomski apresenta-Ihe então o projecto de cons- trução de uma fábrica de vidros em cujos fornos poderia apro- veitar a madeira como combustível. E interessante o facto de Wiadomski justificar o seu projecto com o argumento de que existe um mercado local para artigos de vidros; por outro lado, a maneira como o Alcaide formula o problema indica que, nesse período, não havia, nessa região, possibilidade de vender madeira em bruto. Para o Alcaide, essa madeira é de momento inútil e, portanto, desprovida de valor. Aceita com grande alegria o projecto de a queimar numa fábrica de vidros. Que lição podemos tirar deste breve diálogo, certamente realista? A situação descrita nesta cena indica que a decisão 29 económica de utilizar a madeira como combustível numa fábrica não é uma opção económica, uma vez que o Alcaide não tem, ou, pelo menos, não vislumbra nenhuma outra possibilidade. A maneira de formular esta tese é evidente- mente um tanto ou quanto paradoxal. A construção da fábrica de vidros pelo Alcaide é, ao fim e ao cabo, uma opção económica. O que este diálogo inegavelmente demonstra, é que se pretendêssemos fazer o balanço da fábrica de vidros atribuindo à madeira nela queimada o preço que o Alcaide ou o seu vizinho teriam de pagar para a comprar, obtería- mos resultados exorbitantes. O proprietário de um bosque situado nas margens de um rio navegável, antes de construir, por exemplo, uma fábrica de vidros, tem de calcular se ganha mais transportando a madeira a flutuar até ao porto ou vendendo o vidro obtido mediante a combustão dessa mesma madeira (tendo em conta a diferença de outros custos rela- cionados com ambas as operações). Mas o Alcaide do manual de Torzewski não raciocinava nestes termos. Que instru- mentos de cálculo devemos pois aplicar às suas decisões económicas? A plena possibilidade de escolha só existe num mer- cado «perfeito». Mas o mercado «perfeito» é uma abstrac- ção teórica da qual se afasta em diferentes pontos, inclusive a própria realidade capitalista liberal. Aplicar essa abstrac- ção ao estudo da economia feudal é um anacronismo crasso. Mas numa economia pré-capitalista as pessoas também fazem cálculos, ainda que à sua maneira. Sombart não tinha razão ao considerar a contabilidade como uma invenção «do espírito capitalista». Talvez que em épocas pré-capita- listaa se tenham mais frequentemente em conta motivos extraeconõmicos, mas não é certo também que esses motivos sejam de todo dispiciendos no capitalismo. Como investi- gar, então, o cálculo económico pré-capitalista e as leis da actividade económica que lhe são próprias? Com base no estado actual da ciência, podemos formular a suposição de que, se fizéssemos o balanço de uma «empre- sa» feudal (latifúndio, grandes propriedades, reserva senho- rial ou manufactura) utilizando os métodos da contabilidade capitalista, ou seja, atribuindo um preço a todos os elementos que entram na produção e adquiridos no mercado10 (terre- no, edifícios, matérias-primas, e t c ) , teríamos de concluir, quase sempre, que essa empresa funcionava com perdas. Se, pelo contrário, fizéssemos esse cálculo sem ter em conta esses elementos, o balanço revelaria geralmente lucros enormes. 30 Daqui poder-se-ia inferir que a diferença entre estas duas grandezas poderia ser a medida do desperdício social. Afirmar tal coisa seria certamente uma simplificação ex- cessiva. O problema é mais complexo. Antes de mais, temos de reconhecer que o primeiro desses resultados é completamente absurdo: todas ou quase todas as «empresas» de um país não podem funcionar durante muito tempo quase constantemente com défice, quando, por outro lado, se não observam indícios de uma decadência económica catastrófica do país. Mas o segundo resultado, no qual todas ou quase todas as empresas apresen- tam constantemente enormes lucros, sem que se observem simultaneamente indícios de um grande progresso da econo- mia nacional, é igualmente inverosímil. No primeiro caso, aplicando o método capitalista de con- tabilidade, obtemos custos manifestamente exagerados. Na economia capitalista é lícito (com certas reservas, por exem- plo, em relação à economia minifundista) calcular a preço de mercado os elementos não comprados que entram na produção, uma vez que a fórmula: «se tivessem passado pelo mercado, o preço de mercado não teria variado» não se afasta muito da realidade. Ou seja, temos razões para supor que o proprietário dos ditos elementos (matéria-prima ou mão-de-ohra), em vez de os utilizar na produção, poderia vendê-los no mercado ao preço corrente. Este raciocínio aplicado ao feudalismo é absurdo. Como vimos para o exem- plo da madeira numa região sem vias de navegação, frequen- temente não havia qualquer possibilidade de vender deter- minada matéria-prima no mercado, e essa matéria-prima não podia portanto ser efectivamente considerada como uma «mercadoria». Suponhamos, por outro lado, que toda a mão- -de-obra da Polónia do século XV111 passava pelo mercado; o seu preço situar-se-ia então muito abaixo dos preços efecti- vamente pagos na época à parte reduzida dâ massa dos trabalhadores que trabalhavam a troco de um salário. No segundo caso — ou seja, excluindo do cálculo de custos os elementos não adquiridos no mercado — os custos ficariam reduzidos ao mínimo, tendendo para o zero em casos extremos. Na manufactura de panos dos Radziwill em Nieswiez — caso investigado por mim — o único gasto mone- tário relacionado com a sua fundação foi praticamente a compra de corantes em Koenigsberg. Não há dúvida de que este cálculo também deforma a realidade. A deformação será mais evidente se recordarmos um fenómeno muito conhecido 31 na história do latifúndio polaco, a «degradação» da proprie- dade, tantas vezes motivo de acusações aos admi- nistradores e aos rendeiros. Traduzida em linguagem económica, a «degradação» significa a diminuição da capa- cidade produtiva que essa propriedade representa potencial- mente. Como se sabe, os processos por «degradação» eram extremamente confusos e era muito difícil provar ou refutar a acusação. O que não é de estranhar. A contabilidade de então tinha regras elaboradas e uniformes apenas no que se referia ao aspecto monetário das receitas e das despesas, mas em geral não tomava em conta o valor da propriedade ou as mudanças que podiam dar-se nela11. O facto não cons- titui uma mera expressão da falta de «sentido de cálculo» ou de conhecimentos económico-matemáticos. A avaliação de todos os bens (móveis ou imóveis) que constituíam a proprie- dade a preços de mercado correntes teria sido uma operação injustificada, inclusive teoricamente, nas condições econó- micas da época ia. E ainda que se procedesse a uma avalia- ção desse tipo, seria impossível reduzir a um denominador comum as alterações do potencial produtivo da propriedade em determinado período económico: edifícios e utensílios, número de cabeças de gado, superfície dos bosques, etc. Por todas estas razões era objectivamente insolúvel a ques- tão de saber se a «degradação» se tinha verificado efectiva- mente e, no caso afirmativo, a determinação das suas dimen- sões (o que conferia à nobreza polaca, conhecida pelo seu gosto pelos processos judiciais, possibilidades verdadeira- mente fantásticas). Na economia de dois sectores (monetário e natural), o sector natural é, em princípio, primordial para o camponês e o monetário, para o nobre. Tudo o que possa aumen-tar as receitas em dinheiro é visto com agrado pelo nobre. Não se pode, no entanto, saber com exactidão, no sis- tema vigente, se esse acréscimo foi conseguido a expensas do património da propriedade. Daí a contradição entre a ânsia de aumentar as receitas em dinheiro e o desejo de evitar a «degradação». De qualquer maneira, se abstraíssemos dos elementos não adquiridos e utilizados na produção, poderíamos consi- derar rentável uma manufactura cujo funcionamento redu- zisse consideravelmente noutros aspectos o potencial pro- dutivo da propriedade. Tyzenhaus, administrador dos bens da coroa na Lituânia nos anos 1768-1780, construiu manufac- turas que aumentaram muitíssimo as receitas do rei, mas 32 também é verdade que esses domínios sofreram uma grande «degradação» durante esse período13. O problema complica-se mais em virtude de um elemento adicional de difícil avaliação. Suponhamos o caso de uma manufactura (como a fábrica de vidro do exemplo anterior) que devasta os bosques de uma determinada propriedade. A avaliação económica deste fenómeno está dependente do facto de haver ou não, nesse lugar e nessa época, outras possibilidades de aproveitamento da madeira,, por exemplo, enviando-a por flutuação até uma cidade portuária, o que, como sabemos, nem sempre era possível. No caso de não haver essa possibilidade, a «queima» dos bosques nos fornos de uma fundição de ferro ou de uma fábrica de vidros cons- tituiria a única forma economicamente correcta e, de qual- quer maneira, rentável de utilizar essa madeira. Raciocinando em termos simples de oferta e procura à escala da economia nacional, é perfeitamente possível uma situação em que a oferta seja superior à procura no conjunto da economia, enquanto no sector comercializado se verifica o contrário: a procura é superior à oferta. Traduzindo esta situação em linguagem gráfica: Oferta Procura A zona riscada representa a oferta e a procura na mercado. Era assim que sem dúvida se apresentava nos fins do século XVIII o problema do factor mais importante da produção, a saber, a mão-de-obra. Por outro lado, temos conhecimento de numerosos exemplos de desperdício de mão-de-obra camponesa na economia latifundista, e, por outro lado, os preços da mão-de-obra livre atingem, no mer- cado, um nível relativamente alto14. Atendendo a que a avassaladora maioria dos braços existentes no país estão manietados pela servidão, aparece no mercado de trabalho uma parte proporcionalmente insignificante de mão-de-obra; comparada com ela, a reduzida procura de trabalho assala- riado é relativamente considerável. Se avaliarmos então aos preços elevados do mercado toda a mão-de-obra empregada na reserva, chegaremos forçosamente à conclusão de que esta era deficitária e de que não poderia subsistir sem a 33 servidão. Aparentemente davam-se situações análogas rela- tivamente a muitos outros factores económicos. A avaliação monetária — a preços de mercado — dos elementos que entram no processo de produção sem passa- rem pelo mercado, ou dos frutos da produção que não são oferecidos no mercado, assenta em vários pressupostos que pecam inegavelmente por falta de realismo: 1) Pressupõe-se a existência de um preço de mercado relativamente uniforme para cada um destes elementos, e em primeiro lugar para a mão-de-ohra; 2) Pressupõe-se que todos os elementos e todas as cate- gorias da mão-de-obra possuem um valor económico e um preço que permite medir esse valor; 3) Pressupõe-se que o «empresário», organizador da actividade económica e proprietário dos meios de produção, tem sempre a possibilidade de escolher entre vender um dado artigo no mercado a preço corrente e utilizar esse artigo no processo de produção. Além disso pressupõe-se ainda que só tomará a decisão definitiva quando tiver razões fundadas para esperar um lucro maior da produção. Por outras palavras, reconstituir o cálculo económico de uma empresa significa, de certa maneira, verificar a racio- nalidade das decisões do empresário. O cálculo dos custos tem por objectivo reconstituir a soma das perdas sofridas na produção. Nesse cálculo o valor monetário da madeira utilizada na produção, mas não comprada, só pode ser consi- derado como uma perda se essa madeira pudesse ter sido vendida por um dado preço. Mas realmente teria sido possível fazê-lo? Incluir nos custos o valor das prestações pessoais só teria sentido se, ao renunciar à produção, fosse possível vender essas prestações a um determinado preço. Mas seria possível fazê-lo? Quem seguiu outro processo de investigação, poderá apresentar a seguinte objecção. Poderá dizer concretamente que, ao incluir-se, no cálculo dos custos, o valor estimado dos artigos não provenientes do mercado, procura-se não tanto reconstituir o cálculo dos lucros e das perdas do empresário, quanto reconstituir os lucros e perdas sociais. Mas esta objecção também é susceptível de refutação. Qual- quer utilização produtiva de uma madeira que se não pode vender é rentável do ponto de vista social, uma vez que aumenta o rendimento nacional, ainda que em ínfimo grau. O único limite perceptível neste ponto será a deterioração da 34 propriedade e da sua capacidade produtiva futura. O con- ceito de «degradação doa bens» desempenhava, e com toda a razão, uma função importante no raciocínio económico da nobreza polaca15. Tem muito interesse neste particular a análise do sis- tema de contabilidade das reservas senhoriais. Gostomski, cuja importância nunca é demais assinalar, dá os seus con- selhos ao proprietário da reserva também nesta matéria'". Ele — segundo o diz Gostomski no ano de 1588 — devia abrir uma conta separada para cada um dos elementos mate- riais e monetários que constituíam a produção e o consumo da reserva: para o centeio e as cenouras, as maçãs e o car- vão, os pregos e os aros de barril, os direitos de peagem e as multas cobradas aos camponeses, etc. No total, 156 contas de valores materiais, todas separadas e, o que é mais, irredutíveis a um denominador comum! Se todas essas contas derem lucro, a conclusão será irrefutável: a propriedade dá lucro. E quem tiver dúvidas quanto a esta interpretação da contabilidade recomendada por Gostomski, encontrará no seu livro um enunciado que a confirma exp*ressis verbis: «O encarregado... deve zelar não só por que não haja qualquer falta, mas sobretudo tem de se preocupar por que haja cres- cimento em- cada. coisa»". Mas como apreciar a activi- dade da reserva quando aumentam as quantidades de trigo armazenadas no celeiro, e diminui simultaneamente a quan- tidade de maçãs na dispensa? A primeira impressão que se colhe da leitura de Gos- tomski ou de qualquer das numerosas «instruções» da época, redigidas pelos grandes proprietários para uso dos admi- nistradores dos seus bens, ê a de que todos eles defendem uma economia multifacetada, ou seja, a policultura. E uma impressão superficial. Na realidade trata-se de uma policultura ao serviço da monocultura. A maioria dos arti- gos a produzir não são para vender, mas sim para não ter de os comprar'% ou seja, para aproveitar melhor o dinheiro obtido pelos únicos produtos que interessam verdadeira- mente: os produtos exportáveis. Tudo tem de estar subordi- nado à monocultura do centeio e do trigo, e o dinheiro obtido por esse centeio e esse trigo será gasto exclusivamente na compra de artigos que não podem ser produzidos na reserva sem dispêndio monetário. Neste sentido será rentável a produção de qualquer coisa, desde que essa produção se faça com o que se tem e sem exigir gastos de dinheiro19. Até agora referimo-nos principalmente à análise econó- mica da reserva. Infelizmente, a falta de fontes impede que 35 procedamos a uma análise semelhante da exploração feudal camponesa, mastudo indica que o resultado seria análogo. Indicam-no-lo antes de mais nada os resultados de investi- gações levadas a cabo em países economicamente atrasados dos nossos dias, principalmente na Índia, onde este ponto tem sido objecto de um amplo debate (que lembra, em mais do que um aspecto, os debates económicos na Polónia de antes da guerra). A análise teórica da exploração camponesa pré- ou semi-capitalista como tipo de «empresa» reveste-se actualmente de grande significado. A grande actualidade científica deste problema resulta do facto de se relacionar com um problema candente no mundo dos nossos dias, em que a maioria da população vive em países subdesenvolvidos, e a maioria da população destes vive precisamente em peque- nas explorações camponesas de tipo familiar, pouco vincu- ladas ao mercado, que trabalham principalmente para satis- fazer as suas próprias necessidades de consumo20. A explo- ração camponesa autárquica (se nos autorizam este termo convencional) é sem qualquer sombra de dúvida a forma mais difundida de organização da actividade produtiva no mundo. Poder-se-â chamar-lhe «empresa»? Poder-se-á utili- zar na investigação os critérios da análise da actividade económica da empresa31? E se não for possível utilizá-los, em que plano deveremos então analisá-la? A ciência actual está longe de ter encontrado respostas para estas perguntas fundamentais. Os métodos tradicionais de análise da empresa foram aplicados vezes sem conta a este tipo de exploração. Conhe- cemos já, em termos gerais,, oa resultados que deles pode- mos esperar. Limítemo-nos a citar um exemplo muito elo- quente: um estudo de 600 explorações, levado a cabo em 1937-1938 em 21 aldeias hindus," demonstrou que essas explorações produziam, em média, 88 rupias de lucro anual, a preços de mercado e sem ter em conta o custo da mão- -de-obra familiar e a amortização do capital. Incluindo, pelo contrário, o custo da mlo-de-obra segundo os salários pagos, nesse lugar e nessa época, aos jornaleiros e acrescen- tando uma percentagem de 3% de amortização do capital, as referidas explorações eram altamente deficitárias (90 rupias de défice anual). Lembremos que o Instituto de Pulawy, nas suas inves- tigações sobre o minifúndio camponês, efectuadas no ano de 193223, obteve resultados análogos para o campo polaco, 36 reduzido ao primitivismo económico numa época de crise mundial. Lembremos também que obtivemos praticamente o mesmo resultado (rentabilidade quando se exclui dos custos o valor estimado do trabalho não adquirido, e défice no caso contrário) ao analisarmos uma reserva tipica assente na servidão e muitas manufacturas feudais. Como se pode ver, o problema é de grande importância. A ciência tradicional não encontraria dificuldades de maior neste ponto. Responderia que o camponês médio não contabiliza o custo do trabalho da sua família nem a amor- tização do capital, por ignorar esses conceitos e por não saber fazer cálculos correctos. Responderia ainda que o cálculo correcto deve tomar em conta estes dois factores, que a única maneira de os avaliar consiste em aplicar os preços de mercado do lugar e da época em questão, e que essas explorações são na realidade deficitárias, embora os seus proprietários o não saibam. A conclusão de que metade da humanidade está empe- nhada numa actividade produtiva deficitária constitui uma espécie de reductio aã absurãmn. Seria igualmente absurdo afirmar que todas as reservas senhoriais e todas as par- celas dos camponeses servos da gleba na Polónia foram per- manentemente deficitárias ao longo dos quatro séculos da sua existência. Por outro lado, este método não resiste à crítica nem sequer do ponto de vista da ciência tradicional. Se para iniciar uma actividade produtiva são necessários, por hipó- tese, A quilos de matéria-prima e B dias de trabalho, e o empresário dispõe de A kg de matéria-prima e de B mais X dias de trabalho, e ao mesmo tempo não há nenhuma outra maneira de aproveitar a mão-de-obra excedente, o valor de toda a força de trabalho incorporada na produção deve ser contabilizado como equivalente a zero. Neste sen- tido poderíamos dizer que o camponês-proprietário faz um uso correcto da teoria marginalista 2í. Porém, é evidente que em certas condições, é perfeita- mente justificável fazer o balanço económico da exploração camponesa seguindo rigorosamente os métodos capitalistas (avaliando o trabalho familiar a preços de mercado, incluindo a amortização do capital, etc). Para o historiador da economia a questão fundamen- tal é responder à seguinte pergunta: que métodos aplicar em determinadas condições sociais (em relação ao nivel de desenvolvimento socioeconómico) ? Trata-se, como é óbvio, 37 de um tema vastíssimo; aqui não podemos ir além duma sugestão. Em nossa opinião, poder-se-ia adoptar como critério a forma de que se revestem os encargos exteriores da explo- ração. Referimo-nos às prestações pagas ao Estado (impos- tos) e ao latifundiário (renda feudal e, por vezes, renda capitalista). Podem incluir-se ainda, na mesma categoria, as formas de crédito. Quando os impostos, as prestações ao senhor e os empréstimos forem pagos em espécie (em trabalho ou em produtos), não terá sentido um balanço da exploração camponesa feito em obediência a normas capita- listas e dará quase sempre resultados semelhantes aos que atrás descrevemos (défice quando se inclui o custo do traba- lho não assalariado e a amortização; rentabilidade no caso de não serem incluídos). Nesta situação verifica-se: 1) que o produtor calcula em unidades naturais; 2) que os preços de mercado não são válidos nem para os factores de produção (cujo valor geral- mente exageram), nem para os produtos; 3) que o produtor não reage, em princípio, aos estí- mulos do mercado (aumentos e baixas de preços). Sempre que o regime socioeconómico impõe o paga- mento em dinheiro dos impostos estatais, das prestações ao senhor (proprietário da terra) e do crédito, a situação sofre uma alteração radical. Aparece então um fenómeno a que poderíamos chamar «comercialização forçada». O camponês precisa de vender a fim de obter o dinheiro necessá- rio para satisfazer todas essas obrigações, pois, caso contrá- rio, arriscasse a perder a sua terra. A sua reacção aos estímulos do mercado é contrária às hipóteses da ciência económica burguesa. Quando os preços aumentam vende menos; e quando os preços descem, tem justamente de vender mais. Os encargos que tem de suportar são geralmente rígidos, pelo que as quantidades que vende (frequente- mente a expensas do seu próprio consumo) e o nível do£ preços são grandezas inversamente proporcionais. Em mais de um caso, o alto nível dos preços ocasiona um regresso parcial dessas explorações à economia natural e vice-ver- sa 2S. iNo comportamento económico do camponês, b sector natural prevalece sobre o monetário, e os preços de mercado são inadequados para reconstruir as suas modalidades de cálculo ou avaliar os resultados da sua actividade produtiva. 38 Só quando a exploração camponesa começa a reagir positivamente aos estímulos do mercado (maior venda no caso de subida,de preços e vice-versa) é que os métodos de contabilidade capitalista podem passar a ser aplicados a este tipo de «empresa». Por outras palavras, só então a explo- ração se transforma numa empresa propriamente dita. Esta reacção positiva aos estímulos do mercado só aparece quando há possibilidades de opção no aproveitamento dos meios de produção existentes (sobretudo quando o trabalho utilizado na exploração agrícola pode ser vendido no mercado, no caso desta ser pouco rentável, e quando a terra pode repre- sentar um investimento de capital como qualquer outro). Em resumo: aplicar uma contabilidade de tipo capita- lista(ou seja, aquela que avalia a preços de mercado os bens e serviços não adquiridos nem vendidos) a relações econó- micas pré-capitalistas, equivale a proceder anacronicamente. Aplicar à totalidade da produção de um país os preços de mercado — através do qual passa apenas uma ínfima parte dos bens e serviços produzidos — conduz forçosamente ao absurdo. Este método é particularmente perigoso quando aplicado à mão-de-obra, uma vez que o mercado do trabalho no regime feudal é ex ãefinitione extremamente reduzido, realmente marginal. Como a parte fundamental da mão-de- -obra não tem o direito de se oferecer no mercado, é natural que o preço da mão-de-obra seja, regra geral, extraordina- riamente elevado (ainda que possa haver excepções). Se nos basearmos, pois, nesse preço para avaliar as prestações dos camponeses em favor da reserva, ou o trabalho por eles investido nas suas próprias parcelas, não poderemos estra- nhar o exagero dos resultados quando fazemos os respectivos cálculos dos custos. A economia do domínio feudal Apesar de os estudos históricos sobre o agro polaco — tanto antigos, como recentes — poderem apresentar nume- rosos e indiscutíveis êxitos, não é tarefa fácil proceder a uma análise, ainda que aproximada, da economia do domínio feudal e, muito menos, da economia camponesa. No que diz respeito à reserva, esta afirmação pode parecer paradoxal, se se considerar a grande quantidade de monografias e de fontes publicadas (e antes de mais nada os inventários e as instruções) de que se pode dispor. 39 de um tema vastíssimo; aqui não podemos ir além duma sugestão. Em nossa opinião, poder-se-ia adoptar como critério a forma de que se revestem os encargos exteriores da explo- ração. Referimo-nos às prestações pagas ao Estado (impos- tos) e ao latifundiário (renda feudal e, por vezes, renda capitalista). Podem incluir-se ainda, na mesma categoria, as formas de crédito. Quando os impostos, as prestações ao senhor e os empréstimos forem pagos em espécie (em trabalho ou em produtos), não terá sentido um balanço da exploração camponesa feito em obediência a normas capita- listas e dará quase sempre resultados semelhantes aos que atrás descrevemos (défice quando se inclui o custo do traba- lho não assalariado e a amortização; rentabilidade no caso de não serem incluídos). Nesta situação verifica-se: 1) que o produtor calcula em unidades naturais; 2) que os preços de mercado não são válidos nem para os factores de produção (cujo valor geral- mente exageram), nem para os produtos; 3) que o produtor não reage, em princípio, aos estí- mulos do mercado (aumentos e baixas de preços). Sempre que o regime socioeconómico impõe o paga- mento em dinheiro dos impostos estatais, das prestações ao senhor (proprietário da terra) e do crédito, a situação sofre uma alteração radical. Aparece então um fenómeno a que poderíamos chamar «comercialização forçada». O camponês precisa de vender a fim de obter o dinheiro necessá- rio para satisfazer todas essas obrigações, pois, caso contrá- rio, arriscasse a perder a sua terra. A sua reacção aos estímulos do mercado é contrária às hipóteses da ciência económica burguesa. Quando os preços aumentam vende menos; e quando os preços descem, tem justamente de vender mais. Os encargos que tem de suportar são geralmente rígidos, pelo que as quantidades que vende (frequente- mente a expensas do seu próprio consumo) e o nível do£ preços são grandezas inversamente proporcionais. Em mais de um caso, o alto nível dos preços ocasiona um regresso parcial dessas explorações à economia natural e vice-ver- sa 2S. iNo comportamento económico do camponês, b sector natural prevalece sobre o monetário, e os preços de mercado são inadequados para reconstruir as suas modalidades de cálculo ou avaliar os resultados da sua actividade produtiva. 38 Só quando a exploração camponesa começa a reagir positivamente aos estímulos do mercado (maior venda no caso de subida,de preços e vice-versa) é que os métodos de contabilidade capitalista podem passar a ser aplicados a este tipo de «empresa». Por outras palavras, só então a explo- ração se transforma numa empresa propriamente dita. Esta reacção positiva aos estímulos do mercado só aparece quando há possibilidades de opção no aproveitamento dos meios de produção existentes (sobretudo quando o trabalho utilizado na exploração agrícola pode ser vendido no mercado, no caso desta ser pouco rentável, e quando a terra pode repre- sentar um investimento de capital como qualquer outro). Em resumo: aplicar uma contabilidade de tipo capita- lista (ou seja, aquela que avalia a preços de mercado os bens e serviços não adquiridos nem vendidos) a relações econó- micas pré-capitalistas, equivale a proceder anacronicamente. Aplicar à totalidade da produção de um país os preços de mercado — através do qual passa apenas uma ínfima parte dos bens e serviços produzidos — conduz forçosamente ao absurdo. Este método é particularmente perigoso quando aplicado à mão-de-obra, uma vez que o mercado do trabalho no regime feudal é ex ãefinitione extremamente reduzido, realmente marginal. Como a parte fundamental da mão-de- -obra não tem o direito de se oferecer no mercado, é natural que o preço da mão-de-obra seja, regra geral, extraordina- riamente elevado (ainda que possa haver excepções). Se nos basearmos, pois, nesse preço para avaliar as prestações dos camponeses em favor da reserva, ou o trabalho por eles investido nas suas próprias parcelas, não poderemos estra- nhar o exagero dos resultados quando fazemos os respectivos cálculos dos custos. A economia do domínio feudal Apesar de os estudos históricos sobre o agro polaco — tanto antigos, como recentes — poderem apresentar nume- rosos e indiscutíveis êxitos, não é tarefa fácil proceder a uma análise, ainda que aproximada, da economia do domínio feudal e, muito menos, da economia camponesa. No que diz respeito à reserva, esta afirmação pode parecer paradoxal, se se considerar a grande quantidade de monografias e de fontes publicadas (e antes de mais nada os inventários e as instruções) de que se pode dispor. 39 O problema consiste em que essas fontes e os trabalhos nelas baseados apresentam sérios inconvenientes, quando se pretende investigar este aspecto da economia, que é exacta- mente o mais importante numa economia especializada: o seu funcionamento. As antigas investigações sobre a história agrária apoiavam-se principalmente em fontes de tipo normativo, começando pela legislação histórica e acabando nas instru- ções aos administradores das grandes propriedades. Rutkowski, cujos estudos marcaram uma viragem, descon- fiava manifestamente desse tipo de fontes. E tinha toda a razão. Negava-se a tirar conclusões acerca de «como foi» a partir de uma fonte que dizia «como devia ser». Daí que, para Rutkowski, o tipo preferido de fontes fossem os inven- tários (incluindo a categoria especial constituída pelas «actas de inspecção»): descrição positiva do estado de coisas em cada propriedade num dado momento. Dissemos já, noutro trabalho, que Rutkowski não aten- dia suficientemente à presença de elementos normativos nos inventários i. Mas neste momento não é isso que nos interessa. O aspecto que aqui nos interessa principalmente é o carácter por assim dizer «representativo» das infor- mações proporcionadas pelo inventário. Se nalguns casos é possível reunir um certo número de inventários relativos à mesma aldeia e contar por conseguinte com uma série de amostras representativas, entre a multiplicação das amostras e a compreensão da dinâmica das transformações vai uma grande distância s. Ê evidente que a comparação de duas amostras nos informa sobre o rumo das alterações; mas a interpretação causal ou funcional desse rumo só é possível
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