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FORMAÇÃO E TRABALHO EM ODONTOLOGIA

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FORMAÇÃO E TRABALHO EM ODONTOLOGIA: AMPLIAR A CLÍNICA PARA 
CONSTRUIR UMA NOVA CULTURA DE CUIDADO EM SAÚDE BUCAL* 
Elizabethe Cristina Fagundes de Souza 1 
Formação e trabalho serão aqui abordados numa relação imbricada, com efeitos simultâneos, 
mesmo que nem sempre sejam visíveis. Neste sentido, faz-se importante registrar a agenda 
política positiva que, conjunturalmente, coloca-se nesta relação, para que neste momento de 
realização da III Conferência Nacional de Saúde Bucal possamos refletir e propor intervenções. 
Alguns registros podem ser feitos: a referida Conferência; as Diretrizes da Política Nacional de 
Saúde Bucal, que tem o Brasil Sorridente como programa de incentivo à implementação de 
ações de saúde bucal nos estados e municípios; a Política Nacional de Educação Permanente e 
Gestão do Trabalho, que afirma o cumprimento da Lei Orgânica de Saúde quanto ao 
reordenamento da formação em saúde a partir do eixo norteador do modelo de práticas do SUS 
(equidade; integralidade; participação popular; intersetorialidade; hierarquização; regionalização; 
conceito ampliado de saúde) e vem ao encontro das orientações propostas pelas Diretrizes 
Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação da Área da Saúde, do Conselho Nacional de 
Educação, de 2001. Muitas universidades já vêm buscando implementar suas reformas 
curriculares tomando por base tais diretrizes. As iniciativas mais recentes do Ministério da Saúde 
buscam acelerar tais processos por meio do estímulo à discussão de mudanças nas graduações de 
saúde e da implantação do Serviço Civil. Minha intenção em destacar tais iniciativas é para que a 
nossa reflexão contribua em nossas intervenções nos processos em curso, para que sejamos 
sujeitos políticos produtores da história do nosso tempo. Os desafios são muitos, mas é preciso 
fazer apostas para realizá-los: temos que considerar os processos em desenvolvimento e a 
experiência acumulada, e, sobretudo, ousarmos construir novos processos e novas práticas de 
formação e de trabalho em saúde. 
Compreendendo Formação e Trabalho nesta relação imbricada e neste contexto histórico, 
interrogamo-nos: qual modelo de práticas é predominante na formação e no trabalho em saúde? 
Ainda persiste o modelo médico centrado na doença, no tecnicismo e numa visão restrita do 
corpo anátomo-clínico. Um corpo fragmentado em órgãos, esquadrinhado por saberes 
 
* Este texto é parte da exposição realizada pela autora por ocasião da III Conferência Estadual de Saúde Bucal do 
Rio Grande do Norte, no painel temático Formação e Trabalho em Saúde Bucal, em Natal/RN, no dia 28 de maio de 
2004. 
1 Doutora em Saúde Coletiva pela FCM/UNICAMP. Docente Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em 
Odontologia Preventiva e Social do Depto. de Odontologia e do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da 
Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN. 
disciplinares. Um corpo cuja produção sócio-cultural é ignorada e sua clínica é de caráter 
simplificador dos processos sobre os quais se propõe atuar, realizando-se de forma prescritiva e 
baseada na produção de procedimentos, com valorização acima do necessário – motivo de atos 
iatrogênicos freqüentes. Nesta Clínica, outros saberes-fazeres são desconsiderados e sua base de 
sustentação é o patrimônio de conhecimento existente no profissional. Estas análises, tão já bem 
discorridas por colegas da Saúde Coletiva brasileira, precisam ser resgatadas em nossas reflexões 
para ousarmos pensar e construir o novo. Que novo é este? Um modelo de atenção integral em 
saúde requer mudanças também nos processos de trabalho: mudanças de saberes e práticas que, 
por sua vez, exigem novos padrões cognitivos e culturais. Novos padrões que rejuntem saberes e 
práticas, tradicionalmente compreendidas e organizadas de forma dicotômica e polar como, por 
exemplo, Clínica versus Saúde Coletiva. Para sairmos desta relação dicotômica, faz-se 
necessário tomar a clínica em sua dimensão ampliada, qualificando a escuta sobre os 
padecimentos do paciente e ir além do diagnóstico de sinais e sintomas, auscultando as 
subjetividades produzidas na condição do adoecimento. Estas subjetividades são também modos 
de lidar com as condições objetivas de vida. Subjetividades que são a produção da história de 
cada um, que também é a história de sua família, de sua classe, de sua cultura. Os usuários, que 
trazem suas queixas para os serviços de saúde, precisam serem compreendidos como sujeitos que 
também se produzem no adoecimento. 
É na ampliação da clínica que percebo a possibilidade de ocupar o espaço vazio que fica sem 
intervenção quando separamos e polarizamos Clínica e Saúde Coletiva. Proponho ousarmos 
construir uma nova prática em saúde na qual Clínica Ampliada e Promoção da Saúde se 
articulem numa ação dialógica, de conflito e de complementaridade, para que possamos construir 
o diálogo permanente entre ensino – gestão - atenção/cuidado/cura – controle social. Nesta 
construção, necessariamente, estaremos todos implicados na produção de novos sujeitos. Desta 
forma, a atenção integral também exige mudanças nos processos de trabalho: novas práticas e 
nova cultura de produção de saúde que defina linhas de cuidado e de cura centrados no usuário; 
um novo modelo produtor de cuidado-atenção-cura, e profissionais com competência técnica, 
posturas política, ética e estética. 
Quando trazemos tais reflexões para a Odontologia, identificamos na formação e nos processos 
de trabalhos hegemônicos um modelo dentista-centrado, uma clínica baseada na técnica 
cirúrgica- mutiladora e em procedimentos reparadores do dente – seu principal foco de atenção e 
de intervenção – e a tendência de ignorar as demais doenças bucais de relevância 
epidemiológica. Uma clínica que toma a boca também como órgão fragmentado e destituído de 
corpo. Uma boca que podemos denominar de des-humanizada, porque dela foram 
desconsiderados seus aspectos civilizacionais e psíquicos. O efeito dessa prática pode ser 
visualizado na naturalização da perda dentária que a Odontologia também ajudou a 
institucionalizar e essa boca des-humanizada também foi destituída de sua dentadura, cujo dente 
foi colocado fora do corpo. 
A violência da naturalização da perda dentária pode ser retratada na figura do banguela, símbolo 
da exclusão social dos muitos brasileiros que ao expor suas perdas dentárias estão, também, 
expondo suas perdas culturais, sociais, econômicas, afetivas, políticas, entre outras – que na 
verdade representam, como já anotei em outro lugar, as oportunidades perdidas de abocanharem 
a vida e o mundo! A cultura da naturalização da perda dentária, predominante na sociedade e no 
modelo odontológico hegemônico, promove também a cultura do protesismo e iguala saúde 
bucal a tratamento dentário , reforçando a odontotécnica exclusiva como tão bem a denominou 
Botazzo (2000) . Esta odontotécnica, sem dúvida, tem produzido tecnologias importantes e que 
devem ser reconhecidas e utilizadas, mas também tem reforçado, no seu exclusivismo, a 
naturalização da perda dentária, a cultura do protesismo, e o consumo acrítico e iatrogênico de 
inovações tecnológicas, tanto de caráter preventivo, como curativo e reabilitador. 
O dente, fora do corpo, aparece autômato e autônomo como o objeto em evidência dessa 
odontotécnica exclusiva, expressando-se: a) na terceira dentição que inventamos – a prótese, tão 
necessária e fundamental para restituir a dignidade perdida do desdentado. b) Nas práticas 
educativas, quando tomamos macro-modelos de dentes para ensinar a higiene corporal (é 
importante destacar a foto do lançamento do Brasil Sorridente na qual o presidente Lula, sentado 
numa cadeira odontológica, recebia orientação de escovaçãodental por uma profissional, com 
escova e macro-modelo da dentadura humana). Estranha maneira, e tão corriqueira em nosso dia -
a-dia odontológico, de ensinar a higiene corporal por meio de algo fora do corpo... Alguém 
lembra de ter aprendido a tomar banho, lavar as mãos, lavar os pés, pentear os cabelos a partir de 
um macro-modelo de parte do corpo humano? Creio que já é tempo de nos interrogarmos a este 
respeito. c) No conteúdo e nas atividades de educação em saúde, para adultos e criancinhas, os 
dentes ganham vida e autonomia em sua saúde e doença - dentes que se escovam, que falam de 
sua dieta (Ops! A dieta é dos dentes?), que falam da “própria microbiota”. E assim vamos 
esquecendo e fazendo esquecer que dentes pertencem ao corpo. Um corpo que não é apenas um 
conjunto de órgãos, mas que é atravessado e constituído também por fluxos, forças que se 
produzem e o produzem, consciente e inconscientemente. Corpo que é o meio material e 
simbólico de inserção sócio-cultural dos indivíduos, que é a forma de darmos materialidade à 
existência e à não-existência de nossas vidas; corpo que é produção sócio-histórica dos sujeitos 
no mundo. 
Penso que, se quisermos enfrentar os desafios para alcançarmos uma visão de saúde bucal 
integral na formação e no trabalho odontológicos, será preciso resgatar a humanidade da boca, 
devolvendo-a ao corpo, e também dentando-a. Compreendendo-a mais e menos que um órgão 
anátomo-fisiológico: como território corporal com significados e sentidos, como o lugar em que 
se realiza a bucalidade e se avizinha a facialidade. Dois conceitos que precisam ser valorizados 
na Saúde Bucal, pois, de qualquer modo, ao colocarmos a mão na boca das pessoas estamos 
produzindo efeitos nessas dimensões corporais: a bucalidade, conceito proposto por Botazzo 
(2000) para designar as propriedades daquilo que é bucal – manducação (do verbo comer, 
mastigar), erotismo e linguagem; e facialidade, conceito que fui buscar da mitologia grega, para 
designar aquilo que se refere à face, lugar de apresentação ao Outro e de produção de alteridade. 
Quantas doenças bucais causam em nós - dentistas ou não - estranha sensação da dificuldade de 
lidar com o diferente? Seria apenas por uma visão odontocêntrica o efeito da pouca atenção dada 
pelos profissionais a doenças bucais como o câncer bucal, fendas e fissuras labiais, assimetrias e 
deformidades faciais? 
A integralidade na Atenção à Saúde Bucal só será alcançada se, em nossas práticas e em nossa 
formação, buscarmos devolver à boca suas dimensões cultural e psíquica para que passamos a 
olhá-la não apenas como máquina de mastigar, mas também como máquina de desejo, como 
lugar onde também se afirmam sujeitos desejantes e produtores do mundo. E desta maneira, 
compreendermos e fazermos compreender que a perda dentária não é natural, mas que é 
produção sócio-cultural e histórica e tem influências importantes nas subjetividades de quem as 
sofre. 
Tais desafios teóricos-conceituais precisam ser enfrentados por nós para alcançarmos a 
integralidade e a humanização das práticas de saúde bucal. E isto exigirá também postura 
política, ética e estética. Política, porque engendraremos forças e interesses diversos; ética, 
porque tratamos da vida; e estética, porque precisaremos considerar a criação, a sensibilidade e a 
beleza que são próprias do ato humano. Acredito que re-humanizar a Odontologia na perspectiva 
de produzir práticas de saúde bucal integrais e centradas no usuário exigirá a própria re-
humanização da boca e a desnaturalização da perda dentária. É preciso reconhecer e colocar em 
análise os efeitos da prática odontológica no corpo dos sujeitos e tirar desta odontotécnica o seu 
valor útil – o de restituir a dignidade perdida por meio do tratamento dentário reparador – mas 
nele não se restringir: ampliar-se na busca de práticas de saúde bucal de cuidado e que tomem a 
boca como lugar de afirmação da Vida. 
Certamente, alguns poderão interrogar se dessa forma faremos mais ou menos odontologia. Eu 
responderia que o mais importante e fundamental é que sejamos produtores de saberes e práticas 
de Saúde Bucal em favor da vida. E para isto precisaremos também fazer uma aposta ética e 
política. 
 
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 
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PASSOS, Eduardo & BENEVIDES de BARROS, Regina (2000) A construção do plano da clínica e o conceito de 
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VERNANT, Jean-Pierre (1991) A morte nos olhos. Figuração do outro na Grécia Antiga. Ártemis e Gorgó. 2. ed. 
Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor.

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