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RESPONSABILIDADE SOCIOAMBIENTAL Hans Jonas O princípio responsabilidade

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V ice-R eitor para Assuntos Adm inistrativos 
Prof. Luiz Carlos Scavarda do C arm o
V ice-R eitor para Assuntos Com unitários 
Prof. A ugusto Sam paio
V ice-R eitor para Assuntos de D esenvolvim ento 
Pe. Francisco Ivern, S.J.
Decanos
Prof.a M aria Clara Lucchetti B ingem er (C T C H ) 
Prof.a G isele C ittadino (C C S)
Prof. Reinaldo C alixto de C am pos (C T C )
Prof. Francisco de Paula A m arante N eto (C C B M )
Hans Jonas
O PRINCÍPIO 
RESPONSABILIDADE
3
Ensaio de uma ética 
para a civilização tecnológica
T R A D U Ç Ã O D O O R I G I N A L A L E M Ã O
Marijane Lisboa 
Luiz Barros Montez
A
C O n T R D P O ÍlT O
Toda ética até hoje — seja como injunção direta para fazer ou não fazer 
certas coisas ou como determinação dos princípios de tais injunções, ou 
ainda como demonstração de uma razão de se dever obedecer a tais prin­
cípios — compartilhou tacitamente os seguintes pressupostos inter-rela- 
cionados: (1) a condição humana, conferida pela natureza do homem e 
pela natureza das coisas, encontra-se fixada de uma vez por todas em seus 
traços fundamentais; (2) com base nesses fundamentos, pode-se determi­
nar sem dificuldade e de forma clara aquilo que é bom para o homem; 
(3) o alcance da ação humana e, portanto, da responsabilidade humana 
é definida de forma rigorosa. A argumentação que se segue pretende de­
monstrar que esses pressupostos perderam a validade e refletir sobre o que 
isso significa para a nossa situação moral. Mais especificamente, creio 
que certas transformações em nossas capacidades acarretaram uma m u­
dança na natureza do agir humano. E, já que a ética tem a ver com o agir, 
a conseqüência lógica disso é que a natureza modificada do agir humano 
também impõe uma modificação na ética. E isso não somente no sentido 
de que os novos objetos do agir ampliaram materialmente o domínio dos 
casos aos quais se devem aplicar as regras de conduta em vigor, mas em 
um sentido muito mais radical, pois a natureza qualitativamente nova de 
muitas das nossas ações descortinou uma dimensão inteiramente nova 
de significado ético, não prevista nas perspectivas e nos cânones da ética 
tradicional.
As novas faculdades que tenho em mente são, evidentemente, as da téc­
nica moderna. Portanto, minha primeira questão é a respeito do modo 
como essa técnica afeta a natureza do nosso agir, até que ponto ela torna 
o agir sob seu domínio algo diferente do que existiu ao longo dos tempos. 
Durante esses períodos, é claro, o homem nunca esteve desprovido de téc­
nica. Minha questão visa à diferença humana entre a técnica moderna e a 
dos tempos anteriores.
29
I. O EXEMPLO DA ANTIGÜIDADE
Comecemos com uma antiga voz discursando sobre o poder e o fazer 
humanos, uma voz que, em um sentido arquetípico, já faz soar, por assim 
dizer, uma nota tecnológica — o famoso canto do coral da Antígona, de 
Sófocles.
Numerosas são as maravilhas da natureza, mas de todas a maior é o ho­
mem! Singrando os mares espumosos, impelido pelos ventos do sul, ele 
avança e arrosta as vagas imensas que rugem ao redor!
E Gea, a suprema divindade, que a todas mais supera, na sua eternidade, 
ele a corta com suas charruas, que, de ano em ano, vão e vêm, fertilizando o 
solo, graças à força das alimárias!
Os bandos de pássaros ligeiros; as hordas de animais selvagens e peixes 
que habitam as águas do mar, a todos eles o homem engenhoso captura e 
prende nas malhas de suas redes.
Com seu engenho ele amansa, igualmente, o animal agreste que corre li­
vre pelos montes, bem como o dócil cavalo, em cuja nuca ele assentará o 
jugo, e o infatigável touro das montanhas.
E a língua, e o pensamento alado, e os sentimentos de onde emergem as 
cidades, tudo isso ele ensinou a si mesmo! E também a abrigar-se das in­
tempéries e dos rigores da natureza! Fecundo em recursos, previne-se sem­
pre contra os imprevistos Só contra a morte ele é impotente, embora já te­
nha sido capaz de descobrir remédio para muitas doenças, contra as quais 
nada se podia fazer outrora.
Dotado de inteligência e de talentos extraordinários, ora caminha em di­
reção ao bem, ora ao mal... Quando honra as leis da terra e a justiça divina 
ao qual jurou respeitar, ele pode alçar-se bem alto em sua cidade, mas ex­
cluído de sua cidade será ele, caso se deixe desencaminhar pelo Mal.*
1. Homem e natureza
Essa angustiosa homenagem ao opressivo poder humano narra a sua 
irrupção violenta e violentadora na ordem cósmica, a invasão atrevida dos 
diferentes domínios da natureza por meio de sua incansável esperteza; ao 
mesmo tempo, narra o fato de que, com a faculdade auto-adquirida do 
discurso, da reflexão e da sensibilidade social, ele constrói uma casa para
* Sófocles, Antígona. Trad. J. B. M ello e Souza. R io de Janeiro: Tecnoprint, s.d. [N.T.]
31
HANS JONAS • O PRINCIPIO RESPONSABILIDADE
sua própria existência humana — ou seja, o artefato da cidade. A viola­
ção da natureza e a civilização do homem caminham de mãos dadas. Am ­
bas enfrentam os elementos. Uma, na medida em que ele se aventura na 
natureza e subjuga as suas criaturas; a outra, na medida em que erige no 
refúgio da cidade e de suas leis um enclave contra aquelas. O homem é o 
criador de sua vida como vida humana. Amolda as circunstâncias confor­
me sua vontade e necessidade, e nunca se encontra desorientado, a não 
ser diante da morte.
Pode-se ouvir, contudo, um tom reservado e mesmo amedrontado nes­
se canto de louvor ao milagre do homem, e ninguém pode considerá-lo 
uma fanfarronice impertinente. O que ali não está dito, mas que estava 
implícito para aquela época, é a consciência de que, a despeito de toda 
grandeza ilimitada de sua engenhosidade, o homem, confrontado com os 
elementos, continua pequeno: é justamente isso que torna as suas incur­
sões naqueles elementos tão audaciosas e lhe permite tolerar a sua petu­
lância. Todas as liberdades que ele se permite com os habitantes da terra, 
do mar e do ar deixam inalterada a natureza abrangente desses domínios 
e não prejudicam suas forças geradoras. Elas não sofrem dano real quan­
do, das suas grandes extensões, ele recorta o seu pequeno reino. Elas per­
duram, enquanto os empreendimentos humanos percorrem efêmeros tra­
jetos. Ainda que ele atormente ano após ano a terra com o arado, ela é 
perene e incansável; ele pode e deve fiar-se na paciência perseverante da 
terra e deve ajustar-se ao seu ciclo. Igualmente perene é o mar. Nenhum 
saque das suas criaturas vivas pode esgotar-lhe a fertilidade, os navios que 
o cruzam não o danificam, e o lançamento de rejeitos não é capaz de con­
taminar suas profundezas. E, não importa para quantas doenças o homem 
ache cura, a mortalidade não se dobra à sua astúcia.
Tudo isso é válido, pois antes de nossos tempos as interferências do 
homem na natureza, tal como ele próprio as via, eram essencialmente su­
perficiais e impotentes para prejudicar um equilíbrio firmemente assen­
tado. (O retrospecto descobre que a verdade nem sempre foi tão ino­
fensiva.) Também não se pode encontrar no coral de Antígona nem em 
qualquer outra parte uma alusão a que isso fosse então apenas um come­
ço, de que coisas ainda maiores viessem a ocorrer em matéria de arte e 
poder — e que se concebesse o homem percorrendo uma trajetória de 
conquistas infinitas. Aquele era o ponto máximo que ele havia alcançado 
na domesticação da necessidade, isso era tudo que ele havia aprendido a
CAPÍTULO I • A NATUREZA M O D IF IC A D A DO AGIR H U M A N O
extorquir-lhe com sua astúcia para humanizar sua vida; ao refletir sobre 
isso, assustava-se diante do próprio atrevimento.
2. A obra humana da "cidade"O espaço que havia criado para si foi preenchido com a cidade dos ho­
mens — destinada a cercar-se e não a expandir-se — , e por meio disso 
criou-se um novo equilíbrio dentro do equilíbrio maior do todo. Qual­
quer que seja o bem ou o mal, ao qual o homem se veja impelido em vir­
tude de sua arte engenhosa, eles ocorrem no interior do enclave humano, 
sem tocar a natureza das coisas. ,
A invulnerabilidade do todo, cujas profundezas permanecem imper- 
turbadas pela impertinência humana, ou seja, a imutabilidade essencial da 
natureza como ordem cósmica foi de fato o pano de fundo para todos os 
empreendimentos do homem mortal, incluindo suas ingerências naquela 
própria ordem. Sua vida desenvolveu-se entre o que permanecia e o que 
mudava: o que permanecia era a natureza, o que mudava eram suas pró­
prias obras. A maior dessas obras era a cidade, à qual ele podia emprestar 
um certo grau de permanência por meios que inventava e aos quais se dis­
punha a obedecer. Mas essa permanência, artificialmente produzida, não 
oferecia nenhuma garantia de longo prazo. Na condição de um artefato 
vulnerável, a construção cultural pode esgotar-se ou desencaminhar-se. 
A despeito de toda liberdade concedida à autodeterminação, nem mesmo 
no interior do ambiente artificial o seu arbítrio poderá revogar algum dia 
as condições básicas da existência humana. Sim, a inconstância do fado 
humano assegura a constância da condição humana. O acaso, a sorte e a 
estupidez, os grandes niveladores nos assuntos dos homens, atuam como 
uma espécie de entropia e permitem que todos os projetos desemboquem 
por fim na norma eterna. Estados erguem-se e caem, dominações vêm e 
vão, famílias prosperam e degeneram — nenhuma mudança é para durar. 
No final, na compensação recíproca de todos os desvios passageiros, a 
condição do homem permanece como sempre foi. Assim, mesmo aqui, em 
seu próprio artefato, no mundo social, o controle do homem é pequeno, 
e sua natureza permanente acaba por se impor.
Ainda assim, essa cidadela de sua própria criação, claramente distinta 
do resto das coisas e confiada aos seus cuidados, forma o domínio com­
pleto e único da responsabilidade humana. A natureza não era objeto da
HANS JONAS • O PRINCfPIO RESPONSABIL IDADE
responsabilidade humana — ela cuidava de si mesma e, com a persuasão 
e a insistência necessárias, também tomava conta do homem: diante dela 
eram úteis a inteligência e a inventividade, não a ética. Mas na “cidade”, 
ou seja, no artefato social onde homens lidam com homens, a inteligên­
cia deve casar-se com a moralidade, pois essa é a alma de sua existência. 
É nesse quadro intra-humano que habita toda ética tradicional, adaptada 
às dimensões do agir humano assim condicionado.
II. CARACTERÍSTICAS DA ÉTICA 
ATÉ O MOMENTO PRESENTE
Tomemos do passado aquelas características do agir humano significativas 
para uma comparação com o estado atual de coisas.
í. Todo o trato com o mundo extra-humano, isto é, todo o domínio da 
techne (habilidade) era — à exceção da medicina — eticamente neutro, 
considerando-se tanto o objeto quanto o sujeito de tal agir: do ponto de 
vista do objeto, porque a arte só afetava superficialmente a natureza das 
coisas, que se preservava como tal, de modo que não se colocava em ab­
soluto a questão de um dano duradouro à integridade do objeto e à or­
dem natural em seu conjunto; do ponto de vista do sujeito, porque a 
techne, como atividade, compreendia-se a si mesma como um tributo de­
terminado pela necessidade e não como um progresso que se autojusti- 
fica como fim precípuo da humanidade, em cuja perseguição engajam-se 
o máximo esforço e a participação humanos. A verdadeira vocação do 
homem encontrava-se alhures. Em suma, a atuação sobre objetos não hu­
manos não formava um domínio eticamente significativo.
2. A significação ética dizia respeito ao relacionamento direto de homem 
com homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo; toda ética tra­
dicional é antropocêntrica.
3. Para efeito da ação nessa esfera, a entidade “ homem” e sua condição 
fundamental era considerada como constante quanto à sua essência, não 
sendo ela própria objeto da techne (arte) reconfiguradora.
4. O bem e o mal, com o qual o agir tinha de se preocupar, evidenciavam- 
se na ação, seja na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não re­
queriam um planejamento de longo prazo. Essa proximidade de objeti­
vos era válida tanto para o tempo quanto para o espaço. O alcance efetivo 
da ação era pequeno, o intervalo de tempo para previsão, definição de ob­
jetivo e imputabilidade era curto, e limitado o controle sobre as circuns­
tâncias. O comportamento correto possuía seus critérios imediatos e sua 
consecução quase imediata. O longo trajeto das conseqüências ficava ao 
critério do acaso, do destino ou da providência. Por conseguinte, a ética
tinha a ver com o aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos ho­
mens, com as situações recorrentes e típicas da vida privada e pública. O 
homem bom era o que se defrontava virtuosa e sabiamente com essas oca­
siões, que cultivava em si a capacidade para tal, e que no mais conforma­
va-se com o desconhecido.
5. Todos os mandamentos e máximas da ética tradicional, fossem quais 
fossem suas diferenças de conteúdo, demonstram esse confmamento ao 
círculo imediato da ação. “Ama o teu próximo como a ti mesmo” ; “ Faze 
aos outros o que gostarias que eles fizessem a ti” ; “ Instrui teu filho no ca­
minho da verdade” ; “Almeja a excelência por meio do desenvolvimento e 
da realização das melhores possibilidades da tua existência como homem” ; 
“ Submete o teu bem pessoal ao bem comum” ; “ Nunca trate os teus seme­
lhantes como simples meios, mas sempre como fins em si mesmos” ; e as­
sim por diante. Em todas essas máximas, aquele que age e o “outro” de 
seu agir são partícipes de um presente comum. Os que vivem agora e os 
que de alguma forma têm trânsito comigo são os que têm alguma reivin­
dicação sobre minha conduta, na medida em que esta os afete pelo fazer 
ou pelo omitir. O universo moral consiste nos contemporâneos, e o seu 
horizonte futuro limita-se à extensão previsível do tempo de suas vidas. 
Com o horizonte espacial do lugar ocorre algo semelhante, no qual o que 
age e o outro se encontram como vizinhos, amigos ou inimigos, como su­
perior hierárquico e subalterno, como o mais forte e o mais fraco, e em 
todos os outros papéis nos quais os homens têm a ver uns com os outros. 
Toda moralidade situava-se dentro dessa esfera da ação. Segue-se daí que 
o saber exigido ao lado da vontade moral, para afiançar a moralidade da 
ação, corresponde a esta delimitação: não é o conhecimento do cientista 
ou do especialista, mas o saber de um tipo que se encontra ao alcance de 
todos os homens de boa vontade. Kant chegou a dizer que “em matéria 
de moral a razão humana pode facilmente atingir um alto grau de exati­
dão e perfeição mesmo entre as mentes mais simples”.1 Que “ não é neces­
sária uma ciência ou filosofia para se saber o que deve ser feito, para se 
ser honesto e bom, e mesmo sábio e virtuoso. [...] [A inteligência comum 
pode] ambicionar alcançar o bem tão bem quanto qualquer filósofo pre­
tenda para si.” 2 “ Para saber o que [...] devo fazer para que minha vontade
1 Fundam entação da m etafísica dos costumes, Prefácio.
2 Ibidem , Prim eira parte.
seja moral, para tanto não preciso de nenhuma perspicácia de longo al­
cance. Inexperiente na compreensão do percurso do mundo, incapaz de 
preparar-me para os incidentes sucessivos do mesmo, ainda assim posso 
saber como devo agir em conformidade com a lei moral.” 3
Nenhum outro teórico da ética foi tão longe na diminuição do lado 
cognitivo do agir moral. Mas, mesmo quando este ganha um significado 
muito maior, como em Aristóteles, para quem o conhecimento da situa­
ção e daquilo que lhe convinha estabelece exigênciasconsideráveis à ex­
periência e ao juízo, tal saber nada tem a ver com a ciência teórica. Ele 
evidentemente implicava um conceito universal do bem humano como 
tal, baseado em determinadas constantes da natureza e da situação hu­
mana, e esse conceito universal do bem poderia ou não ser desenvolvi­
do numa teoria própria. Mas a sua transposição para a prática exige um 
conhecimento do aqui e agora, e este é inteiramente não-teórico. Esse co­
nhecimento próprio da virtude (o de saber onde, quando, a quem e como 
se deve fazer o quê) prende-se às circunstâncias imediatas, em cujo con­
texto definido a ação segue o seu curso como ação do ator individual, nele 
encontrando igualmente o seu fim. Se uma ação é “ boa” ou “ m á”, tal é 
inteiramente decidido no interior desse contexto de curto prazo. Sua au­
toria nunca é posta em questão, e sua qualidade moral é imediatamente 
inerente a ela. Ninguém é julgado responsável pelos efeitos involuntários 
posteriores de um ato bem-intencionado, bem-refletido e bem-executado. 
O braço curto do poder humano não exigiu qualquer braço comprido do 
saber, passível de predição; a pequenez de um foi tão pouco culpada quan­
to a do outro. Precisamente porque o bem humano, concebido em sua ge­
neralidade, é o mesmo para todas as épocas, sua realização ou violação 
ocorre a qualquer momento, e seu lugar completo é sempre o presente.
3 Ibidem .
III. NOVAS DIMENSÕES DA RESPONSABILIDADE
Tudo isso se modificou decisivamente. A técnica moderna introduziu 
ações de uma tal ordem inédita de grandeza, com tais novos objetos e con­
seqüências que a moldura da ética antiga não consegue mais enquadrá-las. 
O coro da Antígona sobre o “ Ungeheuré”, o fantástico poder do homem, 
soaria bem diferente hoje, assumindo a palavra “ fantástico” um outro sen­
tido; e não mais bastaria a advertência aos indivíduos para que respeitas­
sem as leis. Também já há muito não estão mais aqui os deuses, cujos di­
reitos reconhecidos poderiam contrapor-se às! fantásticas ações humanas. 
Decerto que as antigas prescrições da ética “do próximo” — as prescrições 
da justiça, da misericórdia, da honradez etc. — ainda são válidas, em sua 
imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, quotidiana, da intera­
ção humana. Mas essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domí­
nio do fazer coletivo, no qual ator, ação e efeito não são mais os mesmos 
da esfera próxima. Isso impõe à ética, pela enormidade de suas forças, 
uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade.
1. A vulnerabilidade da natureza
Tome-se, por exemplo, como primeira grande alteração ao quadro her­
dado, a crítica vulnerabilidade da natureza provocada pela intervenção 
técnica do homem — uma vulnerabilidade que jamais fora pressentida 
antes de que ela se desse a conhecer pelos danos já produzidos. Essa des­
coberta, cujo choque levou ao conceito e ao surgimento da ciência do 
meio ambiente (ecologia), modifica inteiramente a representação que te­
mos de nós mesmos como fator causal no complexo sistema das coisas. 
Por meio de seus efeitos, ela nos revela que a natureza da ação humana 
foi modificada de facto, e que um objeto de ordem inteiramente nova, 
nada menos do que a biosfera inteira do planeta, acresceu-se àquilo pelo 
qual temos de ser responsáveis, pois sobre ela detemos poder. Um objeto 
de uma magnitude tão impressionante, diante da qual todos os antigos 
objetos da ação humana parecem minúsculos! A natureza como uma res­
ponsabilidade humana é seguramente um novum sobre o qual uma nova 
teoria ética deve ser pensada. Que tipo de deveres ela exigirá? Haverá algo 
mais do que o interesse utilitário? É simplesmente a prudência que reco-
HANS JO NAS • O PRINCIPIO RESPONSABILIDADE
menda que não se mate a galinha dos ovos de ouro, ou que não se serre o 
galho sobre o qual se está sentado? Mas “este” que aqui se senta e que tal­
vez caia no precipício — quem é? E qual é o meu interesse no seu sentar 
ou cair?
Enquanto for o destino do homem, dependente da situação da nature­
za, a principal razão que torna o interesse na manutenção da natureza um 
interesse moral, ainda se mantém a orientação antropocêntrica de toda 
ética clássica. Mesmo assim, a diferença é grande. Desaparecem as delimi­
tações de proximidade e simultaneidade, rompidas pelo crescimento es­
pacial e o prolongamento temporal das seqüências de causa e efeito, pos­
tas em movimento pela práxis técnica mesmo quando empreendidas para 
fins próximos. Sua irreversibilidade, em conjunção com sua magnitude 
condensada, introduz outro fator, de novo tipo, na equação moral. Acres­
ça-se a isso o seu caráter cumulativo: seus efeitos vão se somando, de 
modo que a situação para um agir e um existir posteriores não será mais 
a mesma da situação vivida pelo primeiro ator, mas sim crescentemente 
distinta e cada vez mais um resultado daquilo que já foi feito. Toda ética 
tradicional contava somente com um comportamento não cumulativo.4
A situação básica entre pessoas, na qual a virtude tem de ser compro­
vada e o vício desmascarado, permanece sempre a mesma. Com ela, todo 
ato recomeça do zero. As ocasiões recorrentes, que, conforme a sua classe, 
dispõem as suas alternativas de ação — coragem ou covardia, ponderação 
ou excesso, verdade ou mentira etc. — , restabelecem a cada vez as con­
dições originárias. Estas são insuperáveis. Mas a autopropagação cumula­
tiva da mudança tecnológica do mundo ultrapassa incessantemente as 
condições de cada um de seus atos contribuintes e transcorre em meio a 
situações sem precedentes, diante das quais os ensinamentos da experiên­
cia são impotentes. E a acumulação como tal, não contente em modificar 
o seu início até a desfiguração, pode até mesmo destruir a condição fun­
damental de toda a seqüência, o pressuposto de si mesma. Tudo isso de­
veria estar compreendido na vontade do ato singular, caso este deva ser 
moralmente responsável.
4 Excetuando-se a autoform ação e a educação. Praticar a virtude, por exem plo, é tam bém 
um exercício na virtude: fortalece as forças m orais e transform a a sua prática em hábito; de 
form a análoga o vício. M as a essência fundam ental, nua e crua, pode sem pre irrom per: o 
m ais virtuoso de todos pode ser arrastado na destrutiva tem pestade da paixão, e o m ais d e­
pravado pode vivenciar o inverso. A inda é possível algo assim nas m udanças cum ulativas 
nas condições de existência sedim entadas pela tecnologia ao longo de seu cam inho?
40
Sob tais circunstâncias, o saber torna-se um dever prioritário, mais além 
de tudo o que anteriormente lhe era exigido, e o saber deve ter a mesma 
magnitude da dimensão causal do nosso agir. Mas o fato de que ele real­
mente não possa ter a mesma magnitude, isto é, de que o saber previden­
te permaneça atrás do saber técnico que confere poder ao nosso agir, ga­
nha, ele próprio, significado ético. O hiato entre a força da previsão e o 
poder do agir produz um novo problema ético. Reconhecer a ignorância 
torna-se, então, o outro lado da obrigação do saber, e com isso torna-se 
uma parte da ética que deve instruir o autocontrole, cada vez mais neces­
sário, sobre o nosso excessivo poder. Nenhuma ética anterior vira-se obri­
gada a considerar a condição global da vida humana e o futuro distante, 
inclusive a existência da espécie. O fato de que hoje eles estejam em jogo 
exige, numa palavra, uma nova concepção de direitos e deveres, para a 
qual nenhuma ética e metafísica antiga pode sequer oferecer os princípios, 
quanto mais uma doutrina acabada.
3. Um direito moral próprio da natureza?
E se o novo modo do agir humano significasse que devêssemos levar em 
consideração mais do que somente o interesse “do homem”, pois nossa 
obrigação se estenderia para mais além, e que a limitação antropocêntrica 
de toda ética antiga não seria mais válida? Ao menos deixou de ser absur­
do indagar sea condição da natureza extra-humana, a biosfera no todo e 
em suas partes, hoje subjugadas ao nosso poder, exatamente por isso não 
se tornaram um bem a nós confiados, capaz de nos impor algo como uma 
exigência moral — não somente por nossa própria causa, mas também 
em causa própria e por seu próprio direito. Se assim for, isso requereria 
alterações substanciais nos fundamentos da ética. Isso significaria procu­
rar não só o bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas, 
isto é, ampliar o reconhecimento de “ fins em si” para além da esfera do 
humano e incluir o cuidado com estes no conceito de bem humano. Ne­
nhuma ética anterior (além da religião) nos preparou para um tal papel 
de fiel depositário — e a visão científica de natureza, menos ainda. Esta 
última recusa-nos até mesmo, peremptoriamente, qualquer direito teórico 
de pensar a natureza como algo que devamos respeitar — uma vez que 
ela a reduziu à indiferença da necessidade e do acaso, despindo-a de toda
2 . 0 novo papel do saber na m oral
41
H A N b J U N A b • U K K I I M U K I U K b b K U I N i M D I L I U « L / c
dignidade de fins. Entretanto, um apelo mudo pela preservação de sua 
integridade parece escapar da plenitude ameaçada do mundo vital. Deve­
mos ouvi-lo, reconhecer sua exigência como obrigatória — porque san­
cionada pela natureza das coisas — , ou então devemos ver nele, pura e 
simplesmente, um sentimento nosso, com o qual devemos transigir quan­
do quisermos ou na medida em que pudermos nos dar ao luxo de fazê- 
lo? A primeira alternativa, se tomada a sério em suas implicações teóri­
cas, nos impeliria a estender a reflexão sobre as alterações mencionadas e 
avançar além da doutrina do agir, ou seja, da ética, até a doutrina do exis­
tir, ou seja, da metafísica, na qual afinal toda ética deve estar fundada. 
Mais não pretendo tratar aqui desse objeto especulativo, a não ser dizen­
do que deveríamos nos manter abertos para a idéia de que as ciências na­
turais não pronunciam toda a verdade sobre a natureza.
IV. TECNOLOGIA COMO "VOCAÇÃO" DA HUMANIDADE
1. Homo faber acima do homo sapiens
Se retornarmos às ponderações estritamente inter-humanas, há ainda um 
outro aspecto ético no fato de que a techne, como esforço humano, tenha 
ultrapassado os objetivos pragmaticamente delimitados dos tempos anti­
gos. Àquela época, como vimos, a técnica era um tributo cobrado pela 
necessidade, e não o caminho para um fim escolhido pela humanidade — 
um meio com um grau finito de adequação a ‘fins próximos, claramente 
definidos. Hoje, na forma da moderna »técnica, a techne transformou-se 
em um infinito impulso da espécie para adiante, seu empreendimento 
mais significativo. Somos tentados a crer que a vocação dos homens se 
encontra no contínuo progresso desse empreendimento, superando-se 
sempre a si mesmo, rumo a feitos cada vez maiores. A conquista de um 
domínio total sobre as coisas e sobre o próprio homem surgiria como a 
realização do seu destino. Assim, o triunfo do homo faber sobre o seu ob­
jeto externo significa, ao mesmo tempo, o seu triunfo na constituição in­
terna do homo sapiens, do qual ele outrora costumava ser uma parte ser­
vil. Em outras palavras, mesmo desconsiderando suas obras objetivas, a 
tecnologia assume um significado ético por causa do lugar central que ela 
agora ocupa subjetivamente nos fins da vida humana. Sua criação cumu­
lativa, isto é, o meio ambiente artificial em expansão, reforça, por um con­
tínuo efeito retroativo, os poderes especiais por ela produzidos: aquilo que 
já foi feito exige o emprego inventivo incessante daqueles mesmos pode­
res para manter-se e desenvolver-se, recompensando-o com um sucesso 
ainda maior — o que contribui para o aumento de suas ambições. Esse 
feedback positivo de necessidade funcional e recompensa — em cuja di­
nâmica o orgulho pelo desempenho não deve ser esquecido — alimenta a 
superioridade crescente de um dos lados da natureza humana sobre to­
dos os outros, e inevitavelmente às custas deles. Não há nada melhor que 
o sucesso, e nada nos aprisiona mais que o sucesso. O que quer que per­
tença à plenitude do homem fica eclipsado em prestígio pela extensão de 
seu poder, de modo que essa expansão, na medida em que vincula mais e 
mais as forças humanas à sua empresa, é acompanhada de uma contração 
do conceito do homem sobre si próprio e de seu Ser. Na imagem que ele
43
HANS JO NAS • O PRINCÍPIO RESPONSABIL IDADE
conserva de si mesmo — na representação programática que determina o 
seu Ser atual tão bem quanto o reflete — o homem atual é cada vez mais 
o produtor daquilo que ele produziu e o feitor daquilo que ele pode fazer; 
mais ainda, é o preparador daquilo que ele, em seguida, estará em condi­
ção de fazer. Mas quem é “ele” ? Nem vocês nem eu: importam aqui o ator 
coletivo e o ato coletivo, não o ator individual e o ato individual; e o hori­
zonte relevante da responsabilidade é fornecido muito mais pelo futuro 
indeterminado do que pelo espaço contemporâneo da ação. Isso exige im­
perativos de outro tipo. Se a esfera do produzir invadiu o espaço do agir 
essencial, então a moralidade deve invadir a esfera do produzir, da qual 
ela se mantinha afastada anteriormente, e deve fazê-lo fta forma de políti­
ca pública. Nunca antes a política pública teve de lidar com questões de 
tal abrangência e que demandassem projeções temporais tão longas. De 
fato, a natureza modificada do agir humano altera a natureza fundamen­
tal da política.
2. A cidade universal como segunda natureza 
e o dever ser do homem no mundo
Pois a fronteira entre “ Estado” (pólis) e “natureza” foi suprimida: a “cida­
de dos homens”, outrora um enclave no mundo não-humano, espalha-se 
sobre a totalidade da natureza terrestre e usurpa o seu lugar. A diferença 
entre o artificial e o natural desapareceu, o natural foi tragado pela esfera 
do artificial; simultaneamente, o artefato total, as obras do homem que se 
transformaram no mundo, agindo sobre ele e por meio dele, criaram um 
novo tipo de “natureza”, isto é, uma necessidade dinâmica própria com a 
qual a liberdade humana defronta-se em um sentido inteiramente novo.
Outrora se podia dizer fiat iustitia, pereat mundus — “que se faça jus­
tiça, mesmo que o mundo pereça ” — , onde “ mundo” significava eviden­
temente o enclave renovável na totalidade imperecível; essa frase não pode 
mais ser empregada sequer retoricamente, quando o perecer da totalida­
de se tornou uma possibilidade real por causa dos feitos humanos, justos 
ou injustos. Questões que nunca foram antes objeto de legislação ingres­
sam no circuito das leis que a “cidade” global tem de formular, para que 
possa existir um mundo para as próximas gerações de homens.
Aceita-se facilmente, como axioma universal ou como um convincen­
te desejo da fantasia especulativa, a idéia de que tal mundo adequado à 
habitação humana deva continuar a existir no futuro, habitado por uma
44
CA P IT U LO I • A N A IU K tZ A m u u i n l m u m u u m u ik i-iu iv im in u
humanidade digna desse nome (idéia tão convincente e tão incomprová- 
vel como a assertiva de que a existência de um mundo é sempre melhor 
do que a existência de nenhum); mas, como proposição moral, isto é, 
como uma obrigação prática perante a posteridade de um futuro distan­
te, e como princípio de decisão na ação presente, a assertiva é muito dis­
tinta dos imperativos da antiga ética da simultaneidade; e ela somente in­
gressou na cena moral com os nossos novos poderes e o novo alcance da 
nossa capacidade de previsão.
A presença do homem no mundo era um dado primário e indiscutível 
de onde partia toda idéia de dever referente à conduta humana: agora, ela 
própria tornou-se um objeto de dever — isto é, o dever de proteger a pre­
missa básica de todo o dever, ou seja, precisamente a presença de meros 
candidatos a um universo moralno múndo físico do futuro; isso signifi­
ca, entre outras coisas, conservar este mundo físico de modo que as con­
dições para uma tal presença permaneçam intactas; e isso significa prote­
ger a sua vulnerabilidade diante de uma ameaça dessas condições. Um 
exemplo poderá ilustrar a diferença que isso traz para a ética.
V. VELHOS E NOVOS IMPERATIVOS
í. O imperativo categórico de Kant dizia: “Aja de modo que tu também 
possas querer que tua máxima se torne lei geral.” Aqui, o “que tu possas” 
invocado é aquele da razão e de sua concordância consigo mesma: a par­
tir da suposição da existência de uma sociedade de atores humanos (seres 
racionais em ação), a ação deve existir de modo que possa ser concebida, 
sem contradição, como exercício geral da comunidade. Chame-se atenção 
aqui para o fato de que a reflexão básica da moral não é propriamente 
moral, mas lógica: o “poder” ou “ não poder” querer expressa autocompa- 
tibilidade ou incompatibilidade, e não aprovação moral ou desaprovação. 
Mas não existe nenhuma contradição em si na idéia de que a humanida­
de cesse de existir, e dessa forma também nenhuma contradição em si na 
idéia de que a felicidade das gerações presentes e seguintes possa ser paga 
com a infelicidade ou mesmo com a não-existência de gerações pósteras
— tampouco, afinal, como a idéia contrária, de que a existência e a felici­
dade das gerações futuras seja paga com a infelicidade e mesmo com a eli­
minação parcial da presente. O sacrifício do futuro em prol do presente 
não é logicamente mais refutável do que o sacrifício do presente a favor 
do futuro. A diferença está apenas em que, em um caso, a série segue 
adiante e, no outro, não. Mas que ela deva seguir adiante, independente­
mente da distribuição de felicidade e infelicidade, e até com o predomínio 
da infelicidade sobre a felicidade, e mesmo com o da imoralidade sobre 
a moralidade,5 tal não se pode deduzir da regra da coerência no interior 
da série, por maior ou menor que seja a sua extensão. Trata-se de um 
mandamento de um tipo inteiramente diferente, externo e prévio àquela 
série, e cujo fundamento último só pode ser metafísico.
2. Um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para 
o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: “Aja de 
modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência 
de uma autêntica vida humana sobre a Terra” ; ou, expresso negativamen­
te: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a
5 Nesse ponto, o D eus bíblico m udou seu ponto de vista para um abrangente “ sim ” após o 
dilúvio.
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possibilidade futura de uma tal vida” ; ou, simplesmente: “ Não ponha em 
perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da huma­
nidade sobre a Terra” ; ou, em um uso novamente positivo: “ Inclua na tua 
escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do 
teu querer.”
3. É fácil perceber que a infração desse tipo de imperativo não conduz a 
nenhuma contradição. Eu posso querer o bem presente ao preço do sacri­
fício do bem futuro. Eu posso querer, assim como o meu próprio fim, 
também 0 fim da humanidade. Sem cair em contradição, posso preferir, 
no meu caso pessoal, bem como no da humanidade, uma breve queima 
de fogos de artifício que permita a mais completa auto,-realização, à m o­
notonia de uma continuação interminável na mediocridade.
Mas o novo imperativo diz que podemos arriscar a nossa própria vida, 
mas não a da humanidade; que Aquiles tinha, sim, o direito de escolher 
para si uma vida breve, cheia de atos gloriosos, em vez de uma vida longa 
em uma segurança sem glórias (sob o pressuposto tácito de que haveria 
uma posteridade que saberia contar os seus feitos); mas que nós não te­
mos o direito de escolher a não-existência de futuras gerações em função 
da existência da atual, ou mesmo de as colocar em risco. Não é fácil justifi­
car teoricamente — e talvez, sem religião, seja mesmo impossível — por 
que não temos esse direito; por que, ao contrário, temos um dever diante 
daquele que ainda não é nada e que não precisa existir como tal e que, seja 
como for, na condição de não-existente, não reivindica existência. De iní­
cio, o nosso imperativo se apresenta sem justificativa, como um axioma.
4. Além disso, é evidente que o nosso imperativo volta-se muito mais à 
política pública do que à conduta privada, não sendo esta última a dimen­
são causal na qual podemos aplicá-lo. O imperativo categórico de Kant 
era voltado para o indivíduo, e seu critério era momentâneo. Ele exortava 
cada um de nós a ponderar sobre o que aconteceria se a máxima de sua 
ação atual fosse transformada em um princípio da legislação geral: a coe­
rência ou incoerência de uma tal generalização hipotética transforma-se 
na prova da minha escolha privada. Mas em nenhuma parte dessa refle­
xão racional se admitia qualquer probabilidade de que minha escolha pri­
vada fosse de fato lei geral, ou que pudesse de alguma maneira contribuir 
para tal generalização. De fato, não estamos considerando em absoluto 
conseqüências reais. O princípio não é aquele da responsabilidade objeti-
va, e sim o da constituição subjetiva de minha autodeterminação. O novo 
imperativo clama por outra coerência: não a do ato consigo mesmo, mas 
a dos seus efeitos finais para a continuidade da atividade humana no fu­
turo. E a “universalização” que ele visualiza não é hipotética, isto é, a trans­
ferência meramente lógica do “eu” individual para um “ todos” imaginá­
rio, sem conexão causal com ele (“ se cada um fizesse assim” ): ao contrário, 
as ações subordinadas ao novo imperativo, ou seja, as ações do todo cole­
tivo, assumem a característica de universalidade na medida real de sua efi­
cácia. Elas “ totalizam” a si próprias na progressão de seu impulso, desem­
bocando forçosamente na configuração universal do estado das coisas. 
Isso acresce ao cálculo moral o horizonte temporal que falta na operação 
lógica e instantânea do imperativo kantiano: se este último se estende so­
bre uma ordem sempre atual de compatibilidade abstrata, nosso impera­
tivo se estende em direção a um previàível futuro concreto, que constitui 
a dimensão inacabada de nossa responsabilidade.
4 9
VI. ANTIGAS FORMAS DA "ÉTICA DO FUTURO"
A esta altura pode-se argumentar que, com Kant, escolhemos um exem­
plo extremo da ética da convicção e de que é possível refutar nossa afir­
mação de que toda a ética anterior se orientava pelo presente, como uma 
ética do simultâneo, usando diferentes formas éticas no passado. Podemos 
considerar os três exemplos seguintes: a condução da vida terrena, a pon­
to de sacrificar sua felicidade, em vista da salvação eterna da alma; a preo­
cupação previdente do legislador e do estadista com o futuro bem co­
mum; e a política da utopia, com a disposição de utilizar os que agora 
vivem como simples meio para um fim que se encontra além deles ou 
eliminá-los como obstáculos a esse fim — da qual o marxismo revolucio­
nário é o exemplo proeminente.
1. Ética da consumação no mais-além
Nesses três casos, o primeiro e o terceiro têm em comum a postulação do 
futuro como o lugar do valor absoluto, acima do presente, reduzindo este 
último a uma mera preparação para aquele. Uma importante diferença é 
que, no caso religioso, não se poderia atribuir ao agir do presente a cria­
ção de um estado futuro; aquele agir só seria capaz de qualificar o indiví­
duo aos olhos de Deus, a quem a fé deve confiar a consumação do futuro. 
A qualificação consiste em uma vida que agrade a Deus. Pode-se supor 
que ela seja, por si mesma, a melhor vida, a mais digna de ser vivida; por­
tanto, não precisa ser escolhida tendo em vista uma eventual felicidade 
eterna. Fosse essa a motivação principal da escolha, o estilo de vida per­
deria algo de seu valor e até mesmo de sua qualificação; ele é tanto me­lhor quanto menos intencional for. Mas quando se pergunta em que con­
siste tal qualificação, nos deparamos com normas de conduta semelhantes 
às prescrições de justiça, amor ao próximo, sinceridade etc., que seriam 
ou poderiam ser prescritas por uma ética imanente em estilo clássico. Por­
tanto, na versão “ moderada” da crença na salvação da alma — como, por 
exemplo, a dos judeus — , estamos mais uma vez às voltas com uma ética 
da simultaneidade e da imediaticidade; e o que pode ser uma ética em um 
caso particular não depende de seu fim transcendente — cujo conteúdo,
51
além do mais, é impossível de se imaginar — , mas de como se determina 
o conteúdo da vida que agrade a Deus, considerada condição para tal fim.
Pode ocorrer, contudo, que o conteúdo daquela condição seja determi­
nado de tal modo — e isso acontece nas formas “extremas” da crença na 
salvação da alma — que a sua realização não possa ser vista como um va­
lor em si mesmo, mas exclusivamente como um lance em uma aposta, 
cuja perda — ou seja, não alcançar o ganho eterno — poria tudo a per­
der. Pois nesse caso de uma sinistra aposta metafísica, tal como postulado 
por Pascal, o lance é a vida terrena inteira, com todas as suas possibilida­
des de felicidade e realização, cuja renúncia se torna condição para a sal­
vação eterna. A esse caso pertence toda forma de ascetismo radical, que 
mortifica os sentidos e rejeita a vida, cujos praticantes teriam perdido 
tudo em caso de insucesso de suas expectativas. Esse cálculo difere do cál­
culo habitual, mundano e hedonista, com seus riscos e suas renúncias bem 
ponderadas, suas procrastinações periódicas, somente em virtude da to­
talidade de seu qüiproquó e da desproporção da probabilidade diante da 
aposta. Mas precisamente essa desproporção desloca todo o empreendi­
mento do domínio da ética. Entre o finito e o infinito, o temporal e o eter­
no não há comensurabilidade, e por isso também nenhuma correlação 
significativa (ou seja, não há sentido qualitativo nem quantitativo que tor­
ne um dos termos preferível ao outro); quanto ao valor da finalidade, cujo 
julgamento consciente deveria constituir uma parte essencial da decisão 
ética, não existe mais do que a afirmação vazia de que ele é justamente o 
valor absoluto. Falta também o elo causal, necessário ao pensamento éti­
co, entre a ação e o resultado (esperado), já que este não é entendido como 
resultado da renúncia do mundo do aqui-e-agora, mas apenas prometido 
como compensação em outro lugar.
Quando se pergunta, portanto, por que a renúncia radical deste mun­
do é tão meritória a ponto de poder pretender aquela compensação ou 
recompensa, uma resposta seria a de que a carne é pecadora, o prazer é 
mau e o mundo, impuro. Neste caso, assim como no caso ligeiramente di­
ferente, em que a individuação como tal seja considerada má, o ascetismo 
apresenta um agir instrumental autêntico e um caminho para aquela rea­
lização interior almejada pela ação pessoal. Ele é o caminho da impureza 
para a pureza, do pecado para a salvação, da servidão para a liberdade, do 
egoísmo para a renúncia de si; sob tais condições metafísicas, o ascetismo 
é a melhor forma de se viver. Com isso, no entanto, retornaríamos à ética 
da imediaticidade e da simultaneidade, à ética da autoperfeição, mesmo
se egoísta e individualista, na qual, em momentos de iluminação espiri­
tual resultantes de seus esforços, é possível até mesmo gozar da recom­
pensa eterna na vivência mística do absoluto.
In summa, na medida em que esse conjunto de orientações para um 
fim transcendente pertence à ética — como é particularmente o caso da 
forma “moderada” de uma vida voltada para o agrado divino como con­
dição para a recompensa eterna, mencionada em primeiro lugar — , po­
demos dizer que ele também confirma a nossa tese de que todas as éticas 
precedentes se orientavam em função do presente.
2. A responsabilidade do estadista com o futuro
Mas o que dizer dos casos de éticas que falam de um futuro imanente, 
as únicas que pertencem realmente a uina ética racional? Havíamos men­
cionado, em segundo lugar, a preocupação previdente do legislador e do 
estadista com o bem futuro da comunidade. A teoria antiga nada nos diz 
sobre o aspecto temporal que aqui nos interessa, mas esse silêncio é reve­
lador. Além da filosofia, podemos aprender algo nos louvores aos grandes 
legisladores como Sólon e Licurgo, ou na censura a um estadista como 
Péricles. Sem dúvida, louva-se o legislador também pela durabilidáde de 
sua criação, mas não por planejar previamente algo que só deve tornar-se 
realidade para os pósteros, sendo inalcançável para os contemporâneos. 
Seu esforço consiste em criar uma estrutura política viável, e a prova da 
viabilidade está na duração, a mais inalterada possível, do que foi criado. 
O melhor Estado, assim se imaginava, é também o melhor para o futuro, 
pois o seu equilíbrio interno atual garante o futuro; evidentemente, ele 
será também o melhor Estado no futuro, pois os critérios de uma boa 
ordem (entre os quais o da durabilidade) não se modificam, já que a na­
tureza humana não se modifica. As imperfeições dessa natureza devem 
estar incluídas na concepção de uma ordem política viável, feita pelo le­
gislador sábio. Por isso, o legislador não propõe o Estado perfeito em ter­
mos ideais, mas o melhor em termos reais, isto é, o melhor Estado possí­
vel, tão possível e tão ameaçado hoje quanto o será no futuro. Tal perigo, 
que ameaça toda ordem com a desordem das paixões humanas, torna ne­
cessário que o estadista, no exercício do governo, exercite uma sabedoria 
estável, para além da sabedoria única e fundadora do legislador. Mas a 
censura de Sócrates à política de Péricles não se dá porque seus empreen­
dimentos grandiosos falhassem mais tarde, após a sua morte, mas porque
ele, por meio de projetos grandiosos (junto com seus sucessos iniciais), já 
em sua época havia seduzido os atenienses e arruinado as virtudes civis. 
A infelicidade de Atenas não era atribuída a uma falha qualquer daquela 
política, mas ao caráter nefasto da sua origem. Ela não teria se tornado 
melhor mesmo na hipótese retrospectiva de que tivesse “ sucesso”. O bem 
de então ainda hoje seria o bem e, com toda probabilidade, teria durado 
até hoje.
A previsão do estadista consiste na sabedoria e na moderação que ele 
devota ao presente: esse presente não está aí com vista a um futuro de 
outra espécie, mas, na hipótese mais favorável, a um futuro que se man­
tém igual a ele e precisa justificar-se a si mesmo hoje, tanto quanto na­
quele futuro. A duração é um efeito secundário do bem atual, válido para 
sempre. A ação política possui um intervalo de tempo de ação e de res­
ponsabilidade maior do que aquele da ação privada, mas, na concepção 
pré-moderna, a sua ética não é nada mais do que uma ética do presente, 
embora aplicada a uma forma de vida de duração mais longa.
3. A utopia moderna
a. Essa situação somente se modifica quando consideramos o terceiro 
exemplo, aquele que chamei de política da utopia, um fenômeno inteira­
mente moderno e que pressupõe uma escatologia dinâmica da história, 
desconhecida no passado. As escatologias religiosas do período antigo ain­
da não representam esse caso, embora o preparem. O messianismo, por 
exemplo, não impõe uma política messiânica; deixa a vinda do Messias a 
critério de Deus. Considera o comportamento humano somente na me­
dida em que este possa se tornar digno desse acontecimento por meio da 
obediência às normas que lhe foram impostas, mesmo sem tal perspecti­
va. Aqui é pertinente na escala coletiva o que foi dito antes na escala indi­
vidual sobre a expectativa do além-mundo: o aqui-e-agora é de fato so­
brepujado pela expectativa do fim, mas não é incumbido de sua realização 
ativa. Ele se põe tanto melhor a serviço desta quanto mais fiel permane­
cer à sua própria lei, ditadapor Deus, cuja realização depende inteiramen­
te dela mesma.
b. Certamente, também houve aqui uma forma extrema, na qual aqueles 
que queriam “apressar o fim” tomaram sua realização nas próprias mãos, 
pretendendo iniciar o reino messiânico ou milenar — para o qual acha­
vam que o tempo havia chegado — com um último golpe de ação terrena. 
No início dos tempos modernos, vários movimentos milenaristas chegam 
perto da política utópica, especialmente quando não se contentam em 
anunciar e preparar o caminho, mas começam a dar positivamente os pri­
meiros passos no estabelecimento do reino de Deus, cujo conteúdo eles já 
podem propor. Na medida em que nessa concepção sejam importantes as 
idéias de justiça e de igualdade social, aí já se encontra também presente a 
motivação característica da moderna ética utópica. Mas não ainda o abis­
mo escancarado entre o agora e o mais tarde, entre meio e fim, ação e ob­
jetivo, estendendo-se sobre gerações, que é a característica distintiva da 
escatologia secular, isto é, do moderno utopismo. Continua sendo uma 
ética do presente, não do futuro. O homem verdadeiro ali se encontra, e 
na pequena “comunidade dos santos” já se encontra também o reino divi­
no a partir do momento em que eles começam a realizá-lo em seu seio, 
conforme crêem que possa e deva ser feito. O enfrentamento das forças 
mundanas que se opõem à sua expansão ocorre na expectativa de um m i­
lagre de Jericó, e não como um processo realizado com a mediação da 
causalidade histórica. Ainda estava por ser dado o último passo em dire­
ção a uma ética da história que fosse imanente ao mundo e utópica.
c. Somente com o progresso moderno, como fato e idéia, surge a possibi­
lidade de se considerar que todo o passado é uma etapa preparatória para 
o presente e de que todo o presente é uma etapa preparatória para o futu­
ro. Quando essa representação (que, sendo ilimitada, não privilegia ne­
nhum estado como definitivo, deixando a cada um a imediaticidade do 
presente) liga-se a uma escatologia secularizada que atribui ao absoluto, 
definido em termos seculares, um lugar demarcado no tempo — a isso se 
acrescentando a concepção de uma dinâmica teleológica que conduz ao 
estado definitivo — , então estão dados os pressupostos teóricos para a po­
lítica utópica. “ Edificar já o reino dos céus sobre a Terra” (Heine) pressu­
põe uma representação do que consistiria um tal reino dos céus terreno 
(ou é isso o que se poderia esperar, mas aqui a teoria se apresenta nota­
velmente lacunar). Em todo caso, mesmo na ausência de tal representa­
ção, pressupõe uma concepção sobre o acontecimento humano que faz a 
radical mediação com tudo o que precede aquele reino dos céus, ou seja, 
que condena todo o passado como provisório, despido de valor próprio 
ou, no melhor dos casos, transforma-o em veículo para alcançar o fim
prometido que se aproxima, em meio pára atingir o único objetivo futuro 
que realmente vale a pena perseguir.
Aqui, de fato, há uma ruptura com o passado. Aquilo que dissemos — 
de que a ética passada se orientava para a situação presente e pressupu­
nha uma estabilidade da natureza humana — não se aplica mais à doutri­
na que apresenta da forma mais límpida essa ruptura, a filosofia da histó­
ria marxista e sua respectiva ética da ação. O agir ocorre em função de 
um futuro que não será usufruído nem por seus atores, nem por suas ví­
timas ou contemporâneos. A obrigação para com o presente provém de 
lá, e não do bem-estar ou do mal-estar de seu mundo contemporâneo; e 
as normas do agir são tão provisórias e mesmo tão “ inautênticas” quanto 
a situação que ele pretende superar. A ética da escatologia revolucionária 
vê a si mesma como uma ética de transição, enquanto a ética autêntica, 
ainda essencialmente desconhecida, só poderá vigorar depois que aquela 
tiver criado as condições para tanto e, com isso, abolido a si própria.
Portanto, já existe o caso de uma ética do futuro, o marxismo, com­
portando uma distância da previsão, uma extensão temporal da respon­
sabilidade assumida, uma ampliação do objeto (toda a futura humani­
dade) e uma preocupação profunda (toda a essência futura do homem). 
E, acrescentemos agora, que considera seriamente os poderes da técnica
— nada ficando a dever à ética que queremos defender aqui. Por isso, 
é importante determinar a relação entre essas duas éticas, que têm tantas 
respostas comuns, quando comparadas à ética pré-moderna, e que, no 
entanto, no que diz respeito à situação moderna sem precedentes e espe­
cialmente no que diz respeito à tecnologia, são tão distintas entre si. Mas 
essa comparação deve esperar até que tenhamos refletido um pouco mais 
sobre os problemas e as tarefas com os quais tem a ver a ética que aqui 
temos em vista e que lhe são impostos pelo colossal progresso da técnica. 
Pois os poderes da técnica sobre o destino humano ultrapassaram o poder 
do próprio comunismo, que, como todos, pensava apenas servir-se deles. 
Por ora basta indicar que enquanto ambas as “ éticas” têm a ver com as 
possibilidades utópicas dessa tecnologia, a que aqui se busca não é escato- 
lógica e é antiutópica, em um sentido que ainda precisa ser determinado.
VII. O HOMEM COMO OBJETO DA TÉCNICA
Nossa comparação se deu com as formas históricas da ética da simulta­
neidade e da imediaticidade, para as quais a ética kantiana serviu de exem­
plo. O que está em questão não é a validade delas no próprio domínio, 
mas a suficiência delas para as novas dimensões do agir humano, que lhes 
transcendem. Nossa tese é de que os novos tipos e limites do agir exigem 
uma ética de previsão e responsabilidade compatível com esses limites, 
que seja tão nova quanto as situações com a s :quais ela tem de lidar. V i­
mos que estas são as situações que emergem das obras do homo faber na 
era da técnica. Mas ainda não mencionamos a classe potencialmente mais 
funesta dessas obras de nova espécie. Situamos a techne apenas em sua 
aplicação no domínio não-humano. Mas o próprio homem passou a fi­
gurar entre os objetos da técnica. O homo faber aplica sua arte sobre si 
mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confecciona- 
dor de todo o resto. Essa culminação de seus poderes, que pode muito 
bem significar a subjugação do homem, esse mais recente emprego da arte 
sobre a natureza desafia o último esforço do pensamento ético, que antes 
nunca precisou visualizar alternativas de escolha para o que se considera­
va serem as características definitivas da constituição humana.
1. Prolongamento da vida
Tome-se como exemplo o mais fundamental desses fatos, a mortalidade 
do homem. Quem alguma vez precisou se decidir sobre qual seria a sua 
duração desejável e opcional? Com relação à sua fronteira mais elevada, 
dos “ setenta anos, e, quando muito, oitenta”, não havia escolha. Sua irre- 
versibilidade foi objeto de queixa, de resignação ou de ilusões ociosas, para 
não dizer tolas, sobre exceções possíveis — estranhamente, quase nunca 
de anuência. A fantasia intelectual de um G. B. Shaw e de um Jonathan 
Swift especulou sobre o privilégio de não ter de morrer ou sobre a mal­
dição do não-poder-morrer (neste último tema, Swift foi o mais pers­
picaz dos dois). Mito e lenda brincaram com tais temas sob o inconteste 
pano de fundo do imutável, fazendo com que o mais sério dos homens 
repetisse o salmo “ensina-nos a contar os nossos dias para que ganhe­
mos um coração sábio”. Nada disso estava no domínio do fazer e da deci­
são efetiva. A questão era apenas a de cómo se comportar diante do que 
era dado.
Hoje, porém, certos progressos na biologia celular nos acenam com a 
perspectiva de atuar sobre os processos bioquímicos de envelhecimento, 
ampliando a duração da vida humana, talvez indefinidamente. A morte 
não parece mais ser uma necessidade pertinente à natureza do vivente, 
mas uma falha orgânica evitável; suscetível,pelo menos, de ser em prin­
cípio tratável e adiável por longo tempo. Um desejo eterno da humani­
dade parece aproximar-se de sua realização. Pela primeira vez temos de 
nos pôr seriamente a questão: “Quão desejável é isto? Quão desejável para 
o indivíduo e para a espécie?” Tais questões tangenciam nada menos do 
que todo o sentido de nossa finitude, a postura diante da morte e o sig­
nificado biológico geral do equilíbrio entre morte e procriação. Antes de 
tais questões últimas colocam-se as questões mais práticas de saber quem 
deve se beneficiar com a hipotética bênção: pessoas de valor e mérito es­
pecial? De eminência e importância social? Aqueles que podem pagar por 
isso? Todos? A última opinião pareceria a única justa. Mas a conta seria 
paga na extremidade oposta, na fonte. Pois está claro que, na escala de­
mográfica, o preço por uma idade dilatada é um retardamento propor­
cional da reposição, isto é, um ingresso menor de vida nova. O resulta­
do seria uma proporção decrescente de juventude em uma população 
crescentemente idosa. Isso será bom ou ruim para a condição geral do ho­
mem? Com isso ganharia ou perderia a espécie? Em que medida seria jus­
to barrar o lugar da juventude, ocupando-o? Ter de morrer liga-se ao ter 
nascido: mortalidade é apenas o outro lado da fonte duradoura da natali­
dade (Gebiirtlichkeit, para utilizar uma expressão cunhada por Hannah 
Arendt). As coisas sempre foram assim; mas agora o seu sentido deve ser 
repensado no domínio da decisão.
Para se tomar o extremo: se abolirmos a morte, temos de abolir tam­
bém a procriação, pois a última é a resposta da vida à primeira. Então 
teríamos um mundo de velhice sem juventude e de indivíduos já conheci­
dos, sem a surpresa daqueles que nunca existiram. Mas talvez seja exata­
mente esta a sabedoria na severa disposição de nossa mortalidade: a de 
que ela nos oferece a promessa, continuamente renovada, da novidade, da 
imediaticidade e do ardor da juventude, e ao mesmo tempo uma perma­
nente oferta de alteridade como tal. Não há substituto para tanto numa 
acumulação maior de experiência prolongada: ela nunca poderá recon­
quistar a prerrogativa única de se ver o mundo pela primeira vez e com
olhos novos, nem reviver o espanto (para Platão, o princípio da filosofia) 
ou a curiosidade da criança, que raramente se transmuda em ânsia de sa­
ber no adulto, até que ela ali se paralise. Esse eterno recomeçar, que só se 
pode obter ao preço do eterno terminar, pode muito bem ser a esperança 
da humanidade, que a protege de mergulhar no tédio e na rotina, sendo a 
sua chance de preservar a espontaneidade da vida.
Também se deveria considerar o papel do memento mori na vida de 
cada indivíduo. Como ele seria afetado pelo fato de que o momento dessa 
morte possa se prolongar indefinidamente? Talvez todos nós necessitemos 
de um limite inelutável de nossa expectativa de vida para nos incitar a 
contar os nossos dias e fazer com que eles contem para nós.
Desse modo, seria possível que aquilo que pretendia ser um presente 
filantrópico da ciência ao homem, a realização de um sonho acalentado 
desde tempos imemoriais — escapar à fnaldição da mortalidade — , trans­
forme-se em um malefício para ele. Aqui não pretendo especular sobre o 
futuro ou emitir juízos de valor, embora a minha opinião a respeito seja 
evidente. Minha tese é, simplesmente, de que a mera perspectiva desse 
presente já levanta questões que nunca foram postas antes no âmbito da 
escolha prática, e de que nenhum princípio ético passado, que tomava as 
constantes humanas como dadas, está à altura de respondê-las. Contudo, 
essas questões devem ser encaradas, eticamente e conforme princípios, e 
não sob a pressão de interesses.
2. Controle de comportamento
O mesmo ocorre com todas as outras possibilidades quase utópicas que o 
progresso das ciências biomédicas em parte já disponibiliza — traduzido 
em poderio técnico — e em parte acena como possibilidade. Entre elas, 
o controle de comportamento encontra-se consideravelmente mais pró­
ximo do estágio de aplicação prática do que o caso, por enquanto ainda 
hipotético, que acabei de discutir; e as questões éticas que ele levanta são 
menos profundas, mas têm uma relação direta com a concepção moral do 
homem. Também aqui a nova espécie de intervenção ultrapassa as antigas 
categorias éticas. Estas, por exemplo, não nos prepararam para julgarmos 
o controle psíquico por meio de agentes químicos ou pela intervenção di­
reta no cérebro por meio da implantação de eletrodos — intervenções 
que, suponhamos, sejam empreendidas com fins defensáveis e até mesmo 
louváveis. A mistura de possibilidades benfazejas e perigosas é clara, mas
não é fácil traçar os limites. Libertar doentes mentais de sintomas doloro­
sos e perturbadores parece ser algo claramente benfazejo. Mas uma dis­
creta transição leva do alívio do paciente — um objetivo em total conso­
nância com a tradição médica — a aliviar a sociedade da inconveniência 
de comportamentos individuais difíceis entre seus membros. Isso signifi­
ca a transição da aplicação médica para a social e abre um campo indefi­
nível, que contém potencialidades inquietantes. Os renitentes problemas 
da ordem e da anomia na moderna sociedade de massas tornam extrema­
mente sedutora, para os fins de manipulação social, a aplicação desses 
métodos de controle de forma não-medicinal. Aqui se levantam inúmeras 
questões de direitos do homem e dignidade humana; o difícil problema 
da oposição entre assistência com interdição tutelar ou com liberdade de 
movimento urge por respostas concretas. Devemos induzir disposições de 
aprendizagem em crianças na escola por meio da prescrição maciça de 
drogas, e assim contornar o apelo à motivação autônoma? Devemos su­
perar a agressão por meio da pacificação eletrônica de regiões cerebrais? 
Devemos produzir sensações de felicidade ou ao menos de prazer pela es­
timulação independente dos centros de prazer, quer dizer, independentes 
dos objetos da felicidade e do prazer e da sua obtenção na vida e no de­
sempenho pessoal? As opções poderiam se multiplicar. Empresas pode­
riam se interessar por várias dessas técnicas, visando a melhorar o desem­
penho dos seus empregados. Independentemente da questão de coação ou 
adesão, e também independentemente da questão de existirem efeitos co­
laterais indesejados, sempre que contornamos dessa maneira o caminho 
humano para enfrentar os problemas humanos, substituindo-o pelo cur­
to-circuito de um mecanismo impessoal, subtraímos algo da dignidade 
dos indivíduos e damos mais um passo à frente no caminho que nos con­
duz de sujeitos responsáveis a sistemas programados de conduta. A fun­
cionalidade social, seja qual for a sua importância, é apenas um lado da 
coisa. Decisiva é a questão sobre que tipo de indivíduos tornam valiosa a 
existência de uma sociedade como um todo. Ao longo do caminho da 
crescente capacidade de manipulação social em detrimento da autonomia 
individual, em algum lugar se deverá colocar a questão do valor, do valer- 
a-pena de todo empreendimento humano. Sua resposta deve buscar a 
imagem do homem, da qual nos sentimos devedores. Devemos repensá- 
la à luz do que hoje podemos fazer com ela ou fazemos a ela e que nunca 
pudemos fazer anteriormente.
60
3. M anipulação genética
A mesma exigência se impõe em grau ainda mais alto com respeito ao úl­
timo objeto de uma tecnologia aplicada ao homem — o controle gené­
tico dos homens futuros. Esse é um assunto grande demais para ser trata­
do superficialmente nestas considerações iniciais e merecerá um capítulo 
próprio em um trabalho sobre “aplicações”, que virá mais tarde. Aqui nos 
contentaremos simplesmente em indicar esse sonho ambicioso do Homo 
faber, condensado na frase de que o homem quer tomar em suas mãos a 
sua própria evolução, a fim não meramente de conservar a espécie em sua 
integridade,mas de melhorá-la e modificá-la segundo seu próprio proje­
to. Saber se temos o direito de fazê-lo, se somos qualificados para esse pa­
pel criador, tal é a pergunta mais séria que se pode fazer ao homem que 
se encontra subitamente de posse de um poder tão grande diante do des­
tino. Quem serão os criadores de “ imagens”, conforme quais modelos, 
com base em qual saber? Também cabe a pergunta sobre o direito moral 
de fazer experimentos com seres humanos futuros. Essas perguntas e ou­
tras semelhantes, que exigem uma resposta antes que nos deixemos levar 
em uma viagem ao desconhecido, mostram de forma contundente até que 
ponto o nosso poder de agir nos remete para além dos conceitos dé toda 
ética anterior.
61
V III. A DINÂMICA "UTÓPICA" DO PROGRESSO TÉCNICO 
E O EXCESSO DE RESPONSABILIDADE
A característica comum, eticamente importante em todos os exemplos 
apresentados, é o que podemos chamar de traço “ utópico”, ou sua incli­
nação utópica (drift) inerente ao nosso agir sob as condições da técnica 
moderna — quer atuemos sobre a natureza humana ou não-humana, 
quer a “ utopia” a alcançar seja ou não planejada. Graças ao tipo e à mag­
nitude dos seus efeitos de bola-de-neve, o poder tecnológico nos impele 
adiante para objetivos de um tipo que no passado pertenciam ao dom í­
nio das utopias. Dito de outra forma, o poder tecnológico transformou 
aquilo que costumava ser exercícios hipotéticos da razão especulativa em 
esboços concorrentes para projetos exetutáveis. Na escolha entre eles de­
vemos escolher entre extremos de efeitos distantes, em sua maioria desco­
nhecidos. A única coisa que realmente podemos saber sobre eles é o seu 
extremismo propriamente dito: que eles dizem respeito à condição geral 
da natureza em nosso planeta e ao tipo de criaturas que devem ou não 
habitá-lo. A escala inelutavelmente “utópica” da moderna tecnologia leva 
a que se reduza constantemente a saudável distância entre objetivos quo­
tidianos e últimos, entre as ocasiões em que podemos utilizar o bom senso 
ordinário e aquelas que requerem uma sabedoria iluminada. Já que vive­
mos permanentemente à sombra de um utopismo indesejado, automáti­
co, que faz parte do funcionamento do nosso mundo, somos permanen­
temente confrontados com perspectivas finais cuja escolha positiva exige 
a mais alta sabedoria — uma situação definitivamente impossível para o 
homem em geral, pois ele não possui essa sabedoria, e para o homem con­
temporâneo em particular, que até mesmo nega a existência de seu obje­
to, ou seja, a existência de valor absoluto e de verdade objetiva. Quando 
mais necessitamos de sabedoria é quando menos acreditamos nela.
Quando, pois, a natureza nova do nosso agir exige uma nova ética de 
responsabilidade de longo alcance, proporcional à amplitude do nosso po­
der, ela então também exige, em nome daquela responsabilidade, uma 
nova espécie de humildade — uma humildade não como a do passado, 
em decorrência da pequenez, mas em decorrência da excessiva grandeza 
do nosso poder, pois há um excesso do nosso poder de fazer sobre o nos­
so poder de prever e sobre o nosso poder de conceder valor e julgar. Em 
vista do potencial quase escatológico dos nossos processos técnicos, o pró­
63
prio desconhecimento das conseqüências últimas é motivo para uma con­
tenção responsável — a melhor alternativa, à falta da própria sabedoria.
Vale a pena mencionar outro aspecto e justificativa da nova ética da 
responsabilidade requerida pelo futuro distante: a dúvida quanto à capa­
cidade do governo representativo em dar conta das novas exigências, se­
gundo os seus princípios e procedimentos normais. Pois esses princípios 
e procedimentos permitem que sejam ouvidos apenas os interesses atuais, 
que fazem valer a sua importância e exigem ser levados em consideração. 
Autoridades públicas devem-lhes prestar contas, e essa é a maneira pela 
qual surge concretamente o respeito aos direitos (à diferença de seu reco­
nhecimento abstrato). Mas o “ futuro” não está representado em nenhu­
ma instância; ele não é uma força que possa pesar na balança. Aquilo que 
não existe não faz nenhum lobby, e os não-nascidos são impotentes. Com 
isso, os que lhes devem prestar contas não têm por ora nenhuma realida­
de política diante de si no processo de tomada de decisão; quando aque­
les puderem reivindicá-la, nós, os responsáveis, não existiremos mais.
Isso recoloca em toda a sua agudeza a velha questão do poder dos sá­
bios ou da força das idéias no corpo político, quando estas não se ligam a 
interesses egoístas. Que força deve representar o futuro no presente? Essa 
é uma questão para a filosofia política. Sobre ela, tenho minhas próprias 
idéias, provavelmente quiméricas e seguramente impopulares. Mas pode­
mos deixá-las para mais tarde. Pois, antes que essa questão da implemen­
tação se imponha em termos práticos, a nova ética deve achar a sua teo­
ria, na qual se fundamentem deveres e proibições, em suma, um sistema 
do “ tu deves” e “ tu não deves”. Ou seja, antes de se perguntar sobre que 
poderes representariam ou influenciariam o futuro, devemos nos pergun­
tar sobre qual perspectiva ou qual conhecimento valorativo deve repre­
sentar o futuro no presente.
64
IX. O VÁCUO ÉTICO
Aqui me detenho e todos nós nos detemos. Pois exatamente o mesmo 
movimento que nos pôs de posse daquelas forças cujo uso deve ser agora 
regulamentado por normas — o movimento do saber moderno na forma 
das ciências naturais — , em virtude de uma complementaridade forçosa, 
erodiu os fundamentos sobre os quais se poderiam estabelecer normas 
e destruiu a própria idéia de norma como tal. Por sorte, decerto que não 
o sentimento pela norma e mesmo por determinadas normas; mas esse 
sentimento começa a duvidar de si mesmo quando aquele suposto saber 
o contradiz ou quando, no mínimo, lhe recusa qualquer apoio. De mais 
a mais, esse sentimento enfrenta uma situação bastante difícil diante das 
gritantes reivindicações da cobiça e do medo. Atualmente ele ainda tem, 
também, de se envergonhar de si mesmo por ser algo infundado e não 
passível de ser demonstrado diante de um saber superior. Primeiro, esse 
saber “neutralizou” a natureza sob o aspecto do valor; em seguida foi a vez 
do homem. Agora trememos na nudez de um niilismo no qual o maior 
dos poderes se une ao maior dos vazios; a maior das capacidades, ao me­
nor dos saberes sobre para que utilizar tal capacidade. Trata-se de saber 
se, sem restabelecer a categoria do sagrado, destruída de cabo a rabo pelo 
Aufklarung [Iluminismo] científico, é possível ter uma ética que possa 
controlar os poderes extremos que hoje possuímos e que nos vemos obri­
gados a seguir conquistando e exercendo. Diante de ameaças iminentes, 
cujos efeitos ainda podem nos atingir, freqüentemente o medo constitui o 
melhor substituto para a verdadeira virtude e a sabedoria. Mas esse meio 
falha diante de uma perspectiva de longo alcance, o que importa parti­
cularmente nesse caso, pois a pequena magnitude das coisas em seus pri­
mórdios faz com que elas nos pareçam, o mais das vezes, inocentes. Ape­
nas o receio diante da profanação do sagrado independe do cálculo do 
medo e do consolo obtido graças à incerteza sobre as conseqüências dis­
tantes. Mas uma religião inexistente não pode desobrigar a ética de sua 
tarefa; da religião pode-se dizer que ela existe ou não existe como fato que 
influencia a ação humana, mas no caso da ética é preciso dizer que ela tem 
de existir. Ela tem de existir porque os homens agem, e a ética existe para 
ordenar suas ações e regular seu poder de agir. Sua existência é tanto mais 
necessária, portanto, quanto maiores forem os poderes do agir que ela tem
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HANS JO NAS • O PRINCÍPIO RESPONSABIL IDADE
de regular. Assim como deve estar adaptado à sua magnitude, o princípio 
ordenador também deve adaptar-se ao tipo de ação que se deve regular.Por isso, capacidades de ação de um novo tipo exigem novas regras da éti­
ca, e talvez mesmo uma ética de novo tipo. Foi dito “não matarás” porque 
o homem tem o poder de matar, e freqüentemente a ocasião e a inclina­
ção para isso — em suma, porque de fato se mata. É somente sob a pres­
são de hábitos de ação concretos, e de maneira geral do fato de que os ho­
mens agem sem que para tal precisem ser mandados, que a ética entra em 
cena como regulação desse agir, indicando-nos como uma estrela-guia 
aquilo que é o bem ou o permitido. Uma tal pressão provém das novas 
faculdades de ação tecnológicas do homem, cuja utilização está dada pelo 
simples fato da sua existência. Se a natureza dessas capacidades for real­
mente tão nova como aqui supomos, e se realmente as suas conseqüên­
cias potenciais tiverem abolido a neutralidade moral, da qual gozava a an­
tiga interação da técnica com a matéria, então a pressão daquelas novas 
capacidades significa procurar por algo novo na ética que possa guiá-las, 
mas que possa, antes de mais nada, ser suscetível de afirmar teoricamente 
o seu próprio valor diante daquela pressão. Até aqui demonstramos a 
pertinência das pressuposições: o nosso agir coletivo-cumulativo-tecno- 
lógico é de um tipo novo, tanto no que se refere aos objetos quanto à sua 
magnitude. Por seus efeitos, independentemente de quaisquer intenções 
diretas, ele deixou de ser eticamente neutro. Com isso se inicia a tarefa 
propriamente dita, a de buscar uma resposta.
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CAPITULO II
QUESTÕES DE PRINCÍPIO E DE MÉTODO

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