Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Introdução aos Fundamentos do Direito Penal 1 Direito Penal e Dogmática Jurídico-Penal: definição e características Estabelecer uma definição de Direito Penal e de Dogmática Jurídico-Penal implica em exercer um esforço analítico de considerável envergadura, em função da complexidade da temática envolvida e dos infinitos problemas que envolvem a incidência do poder punitivo desde uma política orientada para a máxima redução de danos em relação aos direitos fundamentais do cidadão. Trata- se de um empreendimento que envolve recurso à enorme pluralidade de fontes e que não pode ser tratado desde uma leitura jurídica que considere somente a produção científica nacional. Nesse sentido, procurou-se fazer jus ao tema através da constante referência a autores de inegável renome no que se refere aos problemas considerados, objetivando traçar um panorama rico – ainda que não suficientemente crítico – das questões envolvidas. Como se trata apenas de uma introdução, grande parte das questões são tratadas de forma superficial, deixando em aberto pontos que merecem um estudo mais minucioso em análises que atentem de forma direta a tais problemas. O que se propõe aqui é tão somente uma análise panorâmica que, ao menos, estabeleça de forma satisfatória o sentido que deve pautar a intervenção jurídico- penal em um Estado Democrático de Direito. 1.1 Conceito e características do Direito Penal O Direito Penal é um ramo do Direito e, logo, o seu conceito deve reportar-se, de alguma forma, ao conceito de Direito em geral. O problema posto por essa questão se encontra no fato de que está longe de haver uma concepção consensual e inequívoca do conceito de Direito, diante da pluralidade de interpretações através das quais o fenômeno jurídico pode ser entendido. Neste sentido, qualquer conceito sempre implica em uma redução da complexidade inerente ao fenômeno jurídico-normativo. Reconhecida esta insuficiência, pode ser dito que o Direito regula (ou procura regular) o convívio social e funciona como elemento de harmonização das relações sociais, oferecendo mecanismos de resolução de conflitos, por meio de sua dúplice natureza de poder que protege e, simultaneamente obriga, através de um conjunto de normas que integram o ordenamento jurídico. Trata-se de uma definição que evidentemente não esgota o fenômeno jurídico, mas que, ao menos, abrange parcela significativa de suas características. O ordenamento jurídico pode ser definido como um conjunto ou sistema de normas jurídicas vigentes em um país, em um determinado momento histórico. É por definição um sistema que não existe como um fim mesmo, mas como meio para a realização de valores essenciais ao homem e à sociedade. Trata-se de um sistema normativo dinâmico, composto de um corpo ou grupo de elementos relacionados entre si, que fazem parte e interagem no contexto de um todo ordenado hierarquicamente. Por outro lado, a atribuição de um caráter sistêmico não impede que cada setor ou ramo do Direito tenha as suas peculiaridades. Em âmbito jurídico-penal, o problema conceitual é simplificado em função das características do Direito Penal, uma vez que este ramo do Direito – mais do que qualquer outro e por força da legalidade – se restringe ao chamado direito positivo, ou seja, às normas, que são a única fonte primária do Direito Penal. Essa característica absolutamente deixa de lado qualquer possível referência ao chamado Direito Natural, delimitando e restringindo o Direito Penal a um espaço específico dentro do ordenamento jurídico: somente a lei é norma jurídica suscetível de ter caráter penal. Ou seja, só há crime e sanção penal – pena ou medida de segurança – a partir da existência de uma lei prévia que defina o que é crime e qual a sanção aplicável, expressão máxima do princípio nullun crimen, nulla poene sine lege. O Direito Penal é formado por um conjunto de regras e princípios que integram um campo específico do ordenamento jurídico, dedicado à tutela dos bens jurídicos mais relevantes de uma sociedade. É a partir desses pressupostos que se pode chegar a uma definição propriamente dita do que consiste o Direito Penal. O Direito Penal é um meio de controle social formalizado, que representa a espécie mais aguda de intervenção estatal. É formado por um conjunto de normas jurídicas (princípios e regras) que definem as infrações de natureza penal e suas conseqüências jurídicas correspondentes – penas ou medidas de segurança. É considerado um meio de controle social formal precisamente por ter sido estabelecido com esta finalidade: o controle, que visa a tutela de bens jurídicos. O princípio de exclusiva proteção de bens jurídicos enfatiza justamente o caráter instrumental da tutela jurídico-penal, vedando ao direito penal interferência no âmbito da moral, da religião, da ética, enfim, de tudo que diga respeito às convicções íntimas dos cidadãos. É um controle social voltado para a tutela de bens juridicamente tutelados e não se constitui em mecanismo para propor mudanças na ordem social ou constituir uma ética em qualquer sentido. O controle social é exercido pelo conjunto de instituições, estratégias e sanções sociais que objetivam manter os indivíduos dentro de determinados modelos e normas de comportamento comunitário. Segundo Hassemer, a expressão controle social designa um conjunto de três elementos que podem ser sinteticamente definidos como a) viver de acordo com normas sociais; b) aplicar sanções aos desvios em relação a estas normas e c) respeitar, para tanto, determinadas normas procedimentais. Por outro lado, as mesmas normas jurídico-penais que estipulam sanções em caso de violação de seus preceitos (mandamentos e proibições) conformam um sistema que estabelece garantias ao cidadão diante do poder punitivo, pois exigem uma série de condições para o seu exercício. O que significa que o Direito Penal – enquanto instrumento de controle social normativo – também tem uma função de proteção e garantia, que lhe é inerente e necessária, uma vez que a partir da intervenção jurídico-penal é possível retirar direitos da pessoa humana que lhe são constitucionalmente assegurados, sendo por isso a sua utilização reservada somente às lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes, o que caracteriza a idéia de fragmentariedade da tutela jurídico penal, por exigência do princípio da intervenção mínima ou ultima ratio. Portanto, sua utilização é reservada aos bens jurídico-penais absolutamente essenciais ao convívio social e que são considerados merecedores da tutela penal. Tudo isso conduz a um meio de controle com alto grau de formalização, com regras e princípios muito bem definidos. Neste sentido, o sistema penal é um sistema garantista de controle formalizado. Apresenta vantagens que os sistemas de controle informais não dispõem, possibilitando que através da resposta penal sejam afastadas reações incontroladas e espontâneas como a vingança privada. Garcia-Pablos considera que o Direito Penal, por suas características, é um instrumento mais racional, previsível, limitado e seguro do que outros controles sociais. O próprio critério de proteção a bens jurídicos enquanto garantia será reforçado pelos critérios dos princípios da ofensividade – exigência de lesão ou perigo de lesão concreta ao bem jurídico – e insignificância – desconsideração de ataques insignificantes aos bens juridicamente tutelados. Toda norma penal que institui um crime protege (ou deveria proteger) algum bem fundamental, que através de sua proteção é elevado à condição de bem jurídico. Trata-se de uma proteção de ordem subsidiária, pois o emprego da intervenção jurídico-penal somente é justificado quando o Direito Civil ou outros ramos do Direito Público se mostram insuficientes à tutelaeficaz do bem em questão. A idéia de subsidiariedade – assim como a idéia de fragmentariedade – é extraída do princípio da intervenção mínima. Existe certo consenso no que se refere à conceituação do Direito Penal na doutrina contemporânea. Para Bitencourt, o Direito Penal “apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de segurança”. Brandão constrói uma definição normativa de Direito Penal, com base em três institutos: Crime, Pena e Medida de Segurança. Assim, o autor afirma que “o Direito Penal é um conjunto de normas que determinam que ações são consideradas como crimes e lhes imputa a pena – esta como conseqüência do crime –, ou a medida de segurança”. Considerando-se que ao Direito Penal está reservada a mais grave sanção do ordenamento jurídico – a pena – e que esta é conseqüência jurídica do crime, fica assinalada a especificidade da intervenção jurídico-penal, que caracteriza esse ramo do Direito. A pretensão preventiva também distingue o Direito Penal dos demais ramos do ordenamento jurídico, uma vez que objetiva evitar a prática de crimes através de uma prevenção geral genérica, dirigida a todos, que em caso de falha, impõe através do devido processo legal a sanção cominada, sendo esse o seu sentido de prevenção especial, expressão máxima do caráter coercitivo do poder exercido. Com efeito, daí decorre a noção de que a norma penal consiste em um imperativo, onde se atribui à pena a função de motivar contra o delito, ou seja, uma função de prevenção de delitos e de proteção de bens jurídicos. O Direito Penal – como todo texto – é datado. Logo, é um objeto cultural que pertence a um recorte histórico e geográfico específico. Isso significa que é a expressão de um tempo, de determinadas circunstâncias sociais, culturais, políticas, econômicas, enfim. O processo de elaboração legislativa em âmbito penal não escapa a esta regra. São circunstâncias de cunho histórico/valorativo que conduzem à definição abstrata por meio do Direito Penal de uma série de comportamentos que devem ser obedecidos e/ou evitados pelos cidadãos. A proibição legislativa de uma determinada conduta, através da norma penal, importa em uma valoração negativa que conduz à criminalização da mesma. Isso implica em mandamentos e proibições relacionados a determinados bens jurídicos, que definem o injusto penal e as conseqüências para as condutas desviadas, estabelecendo o desvalor de certas ações e resultados. Portanto, o Direito Penal – ou Direito Criminal – define as infrações penais (crimes ou delitos e contravenções) e comina-lhes sanções na hipótese de descumprimento dos preceitos estabelecidos. A denominação Direito Penal é mais comum nos países ocidentais, ainda que o termo Direito Criminal (expressão mais abrangente) ainda seja utilizado pelos anglo-saxões. No entanto, o Direito Penal tem natureza ao menos, parcialmente constitutiva, ainda que a primeira seja predominante. Como refere Zaffaroni, ele será excepcionalmente constitutivo quando proteger bens ou interesses não regulados em outras áreas do direito, como é o caso da omissão de socorro. Todavia, de acordo com Bitencourt, é preciso reconhecer a natureza primária e constitutiva do Direito Penal, pois mesmo quando protege bens já cobertos por outros ramos do ordenamento jurídico, o faz de uma forma que lhe é peculiar, com outra espécie de valoração. De qualquer forma, o fato do Direito Penal também ter natureza constitutiva (primária ou secundária) não deve levar ao equívoco de conceber o mesmo a partir de uma perspectiva isolada dos mandamentos constitucionais, pois uma interpretação hermenêutica exige uma aplicação conjunta do ordenamento jurídico, o que conduz, por sua vez, à exigência de uma dimensão constitucional de aplicação do Direito Penal. Inclusive não se pode esquecer que o Direito Penal é um dos ramos do ordenamento jurídico onde mais se impõe uma leitura constitucional. Costuma-se distinguir entre Direito Penal comum (ou nuclear) e Direito Penal especial. O primeiro corresponde ao Código Penal Brasileiro (de 1940, cuja Parte Geral foi reformada em 1984), que é subdividido em Parte Geral e Parte Especial; o segundo é constituído pela legislação penal extravagante (como a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei dos Crimes Ambientais). A divisão do Código Penal em uma Parte Geral e uma Parte Especial consiste na atribuição à primeira das questões centrais da teoria e aplicação do Direito Penal, enquanto a segunda trata da descrição de delitos concretos. Por este motivo temas como a função e missão do Direito Penal e os fins da pena são tradicionalmente discutidos nos estudos dedicados à Parte Geral. Também merece menção uma série de referências às subdivisões do Direito Penal, como Direito Penal Econômico, Direito Penal Empresarial, Direito Penal do Consumidor, Direito Penal Ambiental e assim por diante, que caracterizam um objeto de estudo mais específico. Todavia, não são áreas autônomas, apesar de algumas especificidades. 2. Relações entre Direito Penal, Criminologia e Política Criminal Em que pese uma certa convergência dessas áreas, em função de uma aproximação que se faz mais do que útil, mas até mesmo necessária diante da complexidade contemporânea, é importante mencionar no que consiste – ainda que de forma sucinta – a especificidade de cada uma delas. A Criminologia é uma ciência interdisciplinar por excelência, que tem como objeto o estudo do crime, da pessoa do infrator e seu tratamento, da vítima e do controle social do comportamento criminoso, buscando apreender a gênese e as principais variáveis da dinâmica do crime e dos mecanismos de prevenção e controle da conduta social desviada. Investiga também os mecanismos de controle policial e da justiça e questiona porque determinadas condutas são definidas como crimes e outras não (processos de criminalização). A Criminologia é uma ciência do ser (estuda o que é; empírica e baseada na análise e investigação da realidade, valendo-se do método causal-explicativo, típico das ciências sociais e adequado ao seu objeto) em oposição ao Direito Penal, que é uma ciência do dever-ser (declara o que deve ser – devido ao seu caráter normativo – o que conduz a um método lógico, abstrato e dedutivo; realiza uma análise interpretativa das fontes do direito e síntese teórica de seus dados). Portanto, enquanto a Criminologia se ocupa do delito como fenômeno antropológico, social e biopsicológico, analisando suas causas e possíveis formas de redução de dano, a Dogmática Jurídico-Penal se ocupa do delito enquanto fenômeno jurídico, regulado e previsto por normas jurídicas que devem ser interpretadas e aplicadas. A primeira se vale de métodos sociológicos, psiquiátricos e antropológicos, de acordo com o caráter individual ou social de seu enfoque, enquanto a segunda emprega o método dogmático para interpretar e sistematizar as normas jurídicas que se referem ao delito e suas conseqüências. Trata-se de uma dicotomia oriunda do século XIX e que deve ser superada em prol de uma maior integração de ambas, ainda que conservando-se sua autonomia. Indiscutivelmente são aspectos complementares e indispensáveis para o conhecimento dos fenômenos delitivos. A Criminologia pode fundamentar estratégias de ação no campo político-criminal, pois fornece indicativos e dados concretos que podem ser aproveitados para orientar as ações dos agentes e órgãos encarregados do controle social do crime, o que pode levar a inovações no campo legislativo. Além disso, a Criminologia se coloca como disciplina crítica do Direito Penal, pois enquanto este trata da definição normativa da criminalidade, aquelaestuda os mecanismos e escolhas que importam na criminalização, além de estudar a realidade que o Direito Penal procura regular, enquanto meio de controle social que é. A Política Criminal, por sua vez, é algo por definição variável. A própria expressão comporta um significado um tanto quanto vago. Existe uma discussão – não muito proveitosa – sobre o estatuto científico da Política Criminal, uma vez que não se trata, a rigor, de uma disciplina com um método próprio, mas de qualquer forma, sua importância é inegável. A Política Criminal consiste na sistematização de estratégias, táticas e meios de controle social da criminalidade (penais e não penais) tendo, portanto, penetração no Direito Penal (principalmente no que se refere à elaboração das normas) mas não restringindo-se a ele. Sem dúvida, existem diferenças significativas entre a Política Criminal de um Estado autoritário e de um Estado Democrático de Direito. Portanto, importa definir qual o espaço apropriado de atuação da Política Criminal neste último. Quando em um Estado Democrático de Direito se opta pela definição de uma conduta como criminosa, ocorre uma escolha entre várias alternativas que se abrem para a resolução de conflitos. Esta opção política (pela criminalização) será, neste caso, uma opção político criminal. Considera-se que a Política Criminal não deixa de ser o exercício de um poder, que se concretiza com a criminalização, o que faz com que não seja possível dissociar completamente Direito Penal e Política Criminal. Ambos integram o sistema penal. A Política Criminal realiza uma análise crítica do Direito, buscando orientá-lo de acordo com ideais jurídico-penais, mas também critérios políticos e de oportunidade. 3. O Direito Penal e os demais ramos do ordenamento jurídico É evidente que este item mereceria um artigo inteiro por si só, o que certamente não a proposta aqui estabelecida. Dito isso, a intenção foi enfatizar os aspectos mais relevantes da intersecção entre Direito Penal e demais ramos do ordenamento jurídico, a partir da lógica que deve pautar o funcionamento de um sistema penal afeito a um Estado Democrático de Direito. Ou seja, uma proposta de máxima eficácia na redução de danos aos direitos fundamentais do cidadão, acrescida de tutela efetiva e eficaz de bens juridicamente relevantes para a sociedade. 4. Direito Penal, Direito Constitucional e Estado Democrático de Direito A relação entre Direito Penal e Direito Constitucional é profunda e inegável. A Constituição é o marco fundante do ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito, o que faz com que todas as normas devam estar vinculadas e subordinadas aos mandamentos constitucionais. Isso significa dizer que o Direito Constitucional exerce influência sobre todos os ramos do direito e, particularmente, sobre o Direito Penal. Os próprios bens jurídico- penais encontram raízes materiais na Carta Magna e cabe ao Direito Penal a tarefa de tutelar os direitos fundamentais nela insculpidos. O Direito Penal é, por excelência, um meio de controle social (dentre os vários meios que existem) do qual se vale o Estado para efetivar a função constitucional de garantir a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à dignidade, à intimidade, etc. Neste sentido, a criminalização de uma conduta que coloca em risco o bem jurídico vida não visa outra coisa senão a proteção subsidiária da inviolabilidade deste direito fundamental, estabelecido no Art. 5º da Constituição Federal. De outro lado, na medida em que a intervenção jurídico-penal implica em restrições a esses mesmos direitos fundamentais (vida, liberdade, patrimônio) sua aplicação sempre deve ocorrer em conformidade com princípios constitucionais penais que se colocam como limite inegociável à concretização do poder punitivo. Os direitos fundamentais constituem-se, portanto, como duplo núcleo de legitimação e limite da intervenção jurídico-penal. Dentre os princípios que definem os limites da intervenção jurídico- penal destacam-se: a legalidade, proporcionalidade, humanidade e individualização das penas, direito de defesa e devido processo legal, juiz natural, contraditório, presunção de inocência, irretroatividade da lei penal, etc. O limite dado por este núcleo principiológico constitucional se manifesta tanto em sede de aplicação da norma quanto da sua elaboração, sendo esta a especificidade que distingue os Estados Constitucionais de Direito dos antigos Estados de Direito do século XIX e dos Estados Absolutistas. Portanto, como lembra Hesse, é a Constituição que estabelece os pressupostos de criação, vigência e execução do ordenamento jurídico, sendo seu elemento de unidade. Portanto, uma determinada norma pode ter vigência (formal), observando-se apenas o critério de legitimidade jurídica formal, mas não ter validade (material) por estar em desconformidade com significados ou conteúdos normativos delimitados constitucionalmente. No Estado absolutista validade e vigência eram equivalentes. O Estado Democrático de Direito caracteriza-se justamente por essa possível divergência. A validade das normas exige conformidade com os valores estabelecidos por outras normas superiores a elas. Uma teoria juspositivista contemporânea como a de Kelsen não faz essa distinção, pois para o autor, todo Estado é um Estado de Direito, equivalendo-se vigência e validade. A possibilidade de invalidade de uma norma vigente se abre diante da recusa dessa premissa, onde por muito tempo se afirmou que o ordenamento jurídico é um todo completo e coerente, desprovido de lacunas. Em um Estado Absoluto, a resposta à questão “quando e como punir?” é muito simples: “quando e como queira o soberano”. Já no Estado Democrático de Direito, são normas constitucionais que oferecem as respostas aos problemas do “quando” e do “como”. Para Ferrajoli, dependendo do caráter vinculante das respostas, um sistema será mais ou menos garantista, mais ou menos de “direito”. Dessa forma, a técnica de legitimação interna própria do direito penal consiste em vinculações ou imperativos negativos que prescrevem ao legislador e/ou ao juiz, quando e como não punir, não proibir, não julgar, etc. Em um Estado Democrático de Direito, resultam vinculantes para todas as normas de nível inferior. Portanto, não há exagero em afirmar que o Direito Constitucional se sobrepõe ao Direito Penal (assim como a todos os demais ramos do ordenamento jurídico). 4.1 Direito Penal e Direito Privado Como afirmado anteriormente, o Direito é uno, ou seja, todos os ramos do ordenamento jurídico encontram-se interligados, ainda que, em certa medida, tenham sua autonomia preservada de acordo com as especificidades de cada área. Em determinadas circunstâncias, podem, inclusive, relacionar-se de forma complementar. É o caso, por exemplo, das indenizações civis ex-delicto que acompanham a condenação em âmbito penal e a tutela penal de vários institutos de âmbito civil, como a propriedade (furto, roubo, dano, etc.), a fraude nos negócios privados, a violação da fé pública e autenticidade de documentos públicos e particulares. Além disso, em sede comercial, o Direito Penal exerce tutela do cheque, das duplicatas e da emissão dewarrants, além de estabelecer sanções para a fraude mercantil e para especulações abusivas (Direito Penal Econômico). Também se mostra um meio apto – em casos de falência – a coibir os abusos sobre garantias do crédito mercantil. 4.2 A função ético-social do Direito Penal De acordo com Silva-Sanchéz, parece difícil negar que no plano de realidade (fático) o Direito Penal exerce sobre a sociedade uma função ético-social, que também pode ser chamada de força configuradora de costumes. Portanto, a partir deste ponto devista, o que interessa investigar é a legitimidade e a extensão dessa influência e não a sua existência. Silva-Sanchéz considera que essa função pode ser comprovada com transcorrer de tempo de um processo de criminalização ou descriminalização e provavelmente tem relação com a estreita vinculação entre a matéria penal e os valores éticos fundamentais. De acordo com essa perspectiva, o Direito Penal representa o “mínimo ético” da comunidade, integrado pelas convicções mais profundas e geralmente compartilhadas em seu seio. Portanto, sob um ponto de vista material, o delito não lesiona ou põe em perigo somente um bem jurídico, mas também constitui uma infração da ética social. O autor de maior nome que sustenta a função ético-social do Direito Penal é Hans Welzel. Importante referir que, no entanto, Welzel não nega em momento algum a função de proteção de bens jurídicos, mas apenas lhe atribui uma característica subsidiária face à função ético-social. A proteção de bens jurídicos efetivamente se dá, para ele, através e por meio da tutela de valores elementares ético-sociais da ação. Welzel fundamenta sua posição através da conexão entre Direito Penal e valores elementares da ética social e inclusive, considera que a função ético-social é muito mais eficaz (no campo político criminal) do que a clássica função de proteção de bens jurídicos enquanto meio de defesa da sociedade e luta contra o delito. Segundo o autor, com isso é assegurada a vigência dos valores ético-sociais positivos, como o respeito à vida, à saúde, à propriedade, etc. São valores que consistem em uma atitude de conformidade ao Direito e que constituem o substrato ético-social das normas de Direito Penal. Portanto, a função do Direito Penal seria assegurar a validade inviolável desses valores, mediante a ameaça e aplicação de penas para ações que afrontam de modo significativo valores fundamentais da vida humana. Como percebe Garcia-Pablos, Welzel estrutura seu sistema a partir da distinção entre desvalor da ação e desvalor do resultado, atribuindo primazia ao primeiro.De um lado, o Direito Penal busca a proteção de determinados bens essenciais para a convivência humana (os bens jurídicos), estabelecendo uma sanção em caso de lesão a eles (desvalor do resultado); de outro lado, obtém a proteção de tais bens jurídicos proibindo ou castigando as condutas dirigidas a lesioná-los, objetivando evitar o desvalor da ação. Portanto, a partir do momento que o Direito Penal fixa pena ao atos contrários ao Direito, ampara, ao mesmo tempo, os bens jurídicos, estabelecendo o desvalor do ato correlativo. Assim, por exemplo, ao assegurar o respeito pela personalidade humana, protege a vida. Sendo assim, a função primária do Direito Penal, para Welzel, não é a proteção de bens jurídicos (como a propriedade e a vida), pois sua intervenção é tardia. Acima da proteção de bens jurídicos concretos se encontra a missão de assegurar a validade real (a observância) dos valores de atuar conforme o pensamento jurídico, que constitui o mais sólido fundamento sobre o qual se sustentam o Estado e a sociedade. De acordo com Welzel, o mero amparo de bens jurídicos tem somente uma finalidade negativo-preventiva, policial-preventiva. O papel mais profundo que cabe ao Direito Penal é de natureza positiva, ético-social: ao estabelecer sanções aos afastamentos mais manifestos dos valores fundamentais do pensamento jurídico, o Estado exterioriza, da forma mais ostensiva que dispõe, a validade inviolável de tais valores, formando o juízo ético-social dos cidadãos e fortalecendo seu sentimento de permanente fidelidade ao Direito. Enfim, para Welzel, é somente através da garantia de valores elementares ético-sociais da ação que é possível obter uma proteção ampla e duradoura dos bens jurídicos. A função ético-social garantiria de forma mais eficaz a proteção de bens jurídicos do que a mera idéia de amparo a esses bens. O autor inclusive aponta que o Direito deve exercer influência sobre a consciência dos cidadãos e sobre os costumes, fazendo valer a sua força sobre os instintos egoístas, sendo essa uma missões fundamentais de todo o Direito, quem dirá do Direito Penal e do Direito Público. Ainda que possa ser discutida a sua validade enquanto fundamentação teórica, o fato é que o Direito Penal vem exercendo uma força criadora de costumes, conformando uma espécie de pedagogia social. Os processos político-criminais de neocriminalização são, eles próprios, em alguma medida, formas de estabelecimento de uma moral, de uma ética em determinado sentido. Este é o caso, evidentemente, de boa parte das infrações contra o meio ambiente, como refere Silva Sánchez. Não é aceitável que em um Estado Democrático de Direito o Direito Penal tenha a pretensão de exercer influência sobre a consciência dos indivíduos, interferindo e modificando seus valores e crenças. Com efeito, trata-se de algo que perigosamente se aproxima da vocação totalitária de regimes como o Nazista e o Fascista, onde se esperava lealdade do cidadão ao Estado acima de tudo. Trata-se de uma interferência que é visivelmente abusiva e ameaça borrar a distinção entre Direito e Moral, que, como visto anteriormente, é essencial para o desenvolvimento de todo sistema jurídico-penal contemporâneo. De fato, a função ético-social acaba por legitimar a expansão do âmbito de intervenção jurídico-penal para além dos estritos limites impostos pela idéia de lesão ou perigo concreto de lesão a bem jurídico. Há um deslocamento de enfoque onde evitar o resultado passa a ser menos importante do que buscar uma modificação das atitudes dos cidadãos diante dos valores exigidos pelo Direito. Como aponta Silva Sánchez, a atribuição dessa função ao Direito Penal prejudica, inclusive, o surgimento de uma ética civil. Como se isso não bastasse, os processos de descriminalização poderiam conduzir a equívocos, onde o que não tem relevância penal poderia ser considerado ética e moralmente aceitável, só porque não é punido com uma pena. Para Garcia-Pablos, a função ético-social não é nada além do que uma manifestação da função promocional, que alguns autores atribuem, sem fundamento algum, ao Direito Penal. Sem fundamento porque o Direito Penal não é responsável pelo desenvolvimento social e nem tampouco o baluarte moral da sociedade. Ainda que uma melhora nos níveis éticos da sociedade seja necessária e que ela possa conduzir a uma redução significativa nas taxas de criminalidade, não corresponde ao Direito Penal tal missão. Introdução aos Fundamentos do Direito Penal
Compartilhar