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Titus Burckhardt ALQUIMIA Ciência do cosmos, ciência da alma 1 Fons Vitae Louisville Kentuchy A partir da tradução inglesa de William Stoddart Tradução (amadora, para uso particular) para a língua portuguesa: Bruno Costa Magalhães Ilustração da capa: o casamento do rei e da rainha, do sol e da lua, sob a influência do mercúrio espiritual. Do Philosopher´s Rosegarden´, de Arnaldus von Villanova, manuscrito na Biblioteca Vadiana, St. Gallen 2 FONS VITAE ALCHEMY Filho do escultor suíço Carl Burckhardt, Titus Burckhardt nasceu em 1908. Sua juventude foi dedicada a estudos da arte, história da arte, línguas orientais e a viagens pelo norte da África e Oriente Próximo. Em 1942 ele tornou-se diretor da Urs Graf-Verlag, uma editora especializada em edições fac-símile de manuscritos antigos. Lá permaneceu até 1968. Além de escrever livros em alemão, ele traduziu diversos e importantes trabalhos do árabe. De seus trabalhos foram publicados em língua inglesa, An Introduction to Sufi Doctrine, Sacred Art in East and West, Moorish Culture in Spain, The Art of Islam, Sienna, Fez City of Islam, Chartres e uma coleção de seus ensaios Mirror of the Intellect. Os últimos três, assim como Alquimia, foram traduzidos do alemão por William Stoddart. 3 ALCHEMY A editora Fons Vitae orgulha-se de anunciar a publicação de uma nova edição de Alchemy, dedicada a Madame Edith Burckhardt. A realização espiritual tem sido frequentemente descrita na terminologia da tradição alquímica, pela qual a natureza sombria que dirige o homem é reconduzida ao ouro, seu estado original. Isso tem sido frequentemente tratado como 'alquimia espiritual'. Nesse volume maravilhosamente esclarecedor somos conduzidos a algumas dessas metáforas que se têm mostrado úteis para estabelecer determinadas atitudes na alma, entre elas: confiança e resignação, responsabilidade e esperança. Por exemplo: há uma clara pertinência simbólica na seguinte analogia: qualquer substância, ou entidade, submetida à dissolução (isso pode dar-se inclusive em um relacionamento) pode finalmente ser recristalizada em uma nova forma. Em outras palavras, um novo ser é resolidificado em uma forma mais alta e mais nobre. 4 ÍNDICE Introdução 6 1 A origem da alquimia ocidental 9 2 Natureza e linguagem da alquimia 19 3 A sabedoria hermética 28 4 Espírito e matéria 50 5 Planetas e metais 68 6 A rotação dos elementos 82 7 Da materia prima 87 8 Natureza universal 104 9 “A natureza pode dominar a natureza” 111 10 Enxofre, mercúrio e sal 127 11 Do “casamento químico” 138 12 A alquimia da oração 145 13 O Athanor 148 14 A história de Nicolas Flamel e de sua esposa Perrenelle 159 15 Os estágios do trabalho 169 16 A Tábua de Esmeralda 180 17 Conclusão 186 Lista cronológica de autores herméticos e místicos citados 189 Bibliografia de trabalhos clássicos 190 5 INTRODUÇÃO Desde o Século do Iluminismo até os dias de hoje, a alquimia tem sido comumente considerada como a precursora da química moderna. Por isso, quase todos os estudiosos que se dedicam a suas obras não têm tido motivo para ver nela algo além do que um estágio inicial de futuras descobertas na área da química. Esse modo unilateral de tratar a alquimia tem pelo menos o mérito de causar a distinção a ser feita entre seu conjunto de documentos a respeito de experiências artesanais tradicionais – na preparação de metais, corantes e vidros – e os procedimentos aparentemente irracionais que desempenham um papel na alquimia como tal. Como esse conjunto de documentos a respeito das experiências artesanais é, como se sabe, longe de ser insignificante, a obediência teimosa dos alquimistas a fórmulas químicas sem significado do seu magistério não pode deixar de parecer mais peculiares. As pessoas rapidamente concluem que o insaciável desejo de produzir ouro persistentemente motivou os homens a acreditar em um grande número de receitas fantásticas, o que, a bem da verdade, não são nada mais que uma aplicação popular e supersticiosa da filosofia da natureza dos antigos; como se os alquimistas tivessem tentado, em parte através de procedimentos físicos, e em parte através de evocações mágicas, tomar posse direta da materia prima aristotélica – o fundamento de todas as coisas. Nunca pareceu chamar a atenção de ninguém como no mínimo improvável que uma 'arte' assim dessa espécie poderia, apesar de suas loucuras e decepções, ter implantado a si mesma por séculos a fio nas mais diversas culturas no ocidente e no oriente. Pelo contrário, as pessoas estão mais inclinadas a adotar o ponto de vista de que, há até um século, toda a humanidade estava sonhando um sonho estúpido, cujo despertar veio apenas com a nossa época. Como se a faculdade espiritual-intelectual do homem – seu poder de distinguir o real do irreal – estivesse igualmente sujeita a alguma espécie de evolução biológica. Esse modo de olhar para a alquimia é contradito por um determinado princípio de unidade organizado 6 pela própria alquimia: descrições do 'grande trabalho' agitam-se a partir de várias culturas e vários séculos evidenciam, embora, é bem verdade, haja uma multiplicidade de símbolos, determinadas características invariáveis, que não são explicadas empiricamente. Essencialmente, a alquimia indiana é idêntica à ocidental; e a alquimia chinesa, embora arranjada em uma atmosfera espiritual completamente diferente, pode lançar luzes em ambas. Se a alquimia não fosse nada além de uma impostura, a sua forma de expressão revelaria arbitrariedades e loucuras a todo momento; mas, na verdade, ela parece possuir todos os sinais de uma 'tradição' genuína, ou seja, uma orgânica e consistente – embora não necessariamente sistemática – doutrina e um claro corpo de regras estabelecidas e persistentemente exposta por seus adeptos. Assim, a alquimia não é nem um produto híbrido ou fruto do acaso da história humana. Pelo contrário, representa uma profunda possibilidade para o espírito e para a alma. Essa também é a posição da auto- denominada 'psicologia profunda', que pretende encontrar no simbolismo alquímico uma confirmação de suas próprias teses a respeito do 'inconsciente coletivo'1. De acordo com essa visão, o alquimista, na sua busca sonhadora, traz à luz do dia determinados conteúdos da sua própria alma que eram desconhecidos, e assim, sem pretender conscientemente fazê-lo, traz um tipo de reconciliação entre a sua consciência individual, superficial e cotidiana, e o poder do 'inconsciente coletivo', ainda não formado (mas em busca de formação) . Supôs-se que essa reconciliação daria lugar a uma experiência de satisfação íntima, que subjetivamente tem sede no magistério alquímico. Essa visão, assim como as precedentes, é baseada na premissa de que a primeira intenção dos alquimistas é fazer ouro. Considerava-se que o alquimista se havia envolvido em alguma forma de loucura, ou auto-engano, e em razão disso havia sido levado a pensar e a agir como alguém que está sonhando. Essa explicação possui alguma plausibilidade, desde que, de alguma forma, ela se aproxima da verdade – apenas para se afastar dela 1Veja Herbert Silberer, Probleme der Mystik un thre Symbolik, Viena, 1914: C. G. Jung, Psychologie und Alchemie, Zurich, 1944 y 1952, y Mysterium Conjunctionis, Zurich, 1955 e 1957. 7 imediatamente. É verdade que a realidade espiritual na qual o alquimista trabalha é uma espécie de iniciação, é algo de que o iniciante está mais ou menos inconsciente, é algo que está escondido no fundo da alma. Apesardisso, esse 'segredo profundo' não deve ser confundido com o caos do assim- chamado 'inconsciente coletivo' – tanto quando esse conceito algo elástico tenha algum significado preciso. A 'fonte de juventude' dos alquimistas não surge em nenhum sábio a partir de um substrato psíquico obscuro; ela flui através da mesma fonte do espírito. Ela é escondida dos alquimistas no começo do seu 'trabalho', não porque está abaixo mas sim porque está acima do nível do processo de consciência mental. A hipótese dos psicólogos se evapora na medida em que se compreende que os alquimistas genuínos nunca estiveram enredados em nenhum sonho de satisfação de desejos de fazer ouro, nem perseguiam seu objetivo como sonâmbulos, ou por meio de 'projeções' passivas do conteúdo inconsciente de suas almas! Pelo contrário, eles seguiam um método deliberado, cuja expressão metalúrgica – a arte de transmutação de metais comuns em prata ou ouro – reconhecidamente enganou diversos pesquisadores não- iniciados, embora em si mesmo seja ele lógico e, ademais, realmente profundo. 8 CAPÍTULO 1 A ORIGEM DA ALQUIMIA OCIDENTAL A alquimia existe desde, pelo menos, metade do primeiro milênio antes de Cristo, e provavelmente desde os tempos pré-históricos. À pergunta sobre como pôde a alquimia existir por milênios em civilizações tão amplamente separadas, como a do Oriente Próximo e a do Extremo Oriente, a resposta da maioria dos historiadores possivelmente seria a de que o homem tem repetidamente falhado na tentativa de ficar rico rapidamente buscando fazer ouro e prata através de metais comuns, até que os químicos empíricos do séc. XVIII finalmente provaram que os metais não podem ser transformados um em outro. Na realidade, entretanto, a verdade é muito diferente e, pelo menos em parte, diametralmente oposta. Ouro e prata já eram metais sagrados antes mesmo de serem transformados em medida de todas as transações comerciais. Eles são o reflexo terrestre do Sol e da Lua, e assim também de todas as realidades do espírito e da alma que estão relacionadas os pares celestiais. Até mesmo na Idade Média o valor relativo desses dois metais nobres era determinado pela relação entre os tempos de rotação desses dois corpos celestes. Também as moedas antigas usualmente apresentavam figuras ou sinais relacionados ao Sol ou à sua rotação anual. Para o homem dos tempos pré-racionalistas, a relação entre os metais nobres e os dois luminares era óbvia, e todo um mundo de noções mecanicistas e os preconceitos acabaram necessariamente obscurecendo a realidade auto-evidente dessa relação e fazendo com que ela acabasse parecendo um acidente estético. Não se deve confundir um símbolo com uma mera alegoria, nem tentar ver nele a expressão de um instinto coletivo algo nebuloso e irracional. O verdadeiro simbolismo depende do fato de que as coisas, se se podem modificar em razão de tempo, espaço, natureza material, e de várias outras características limitativas, podem, por outro lado, possuir e exibir a mesma qualidade essencial. Elas, assim, aparecem como diversos reflexos, manifestações ou produções 9 da mesma realidade – que, em si mesma, é independente de tempo e de espaço. Assim, não é muito correto dizer que o ouro representa o Sol, ou que a prata representa a Lua; diferentemente, trata-se de que os dois metais nobres e os dois luminares são símbolos das mesmas realidades cósmicas e divinas2. A magia do ouro, assim, vem da sua natureza sagrada, ou perfeição qualitativa, e apenas secundariamente do seu valor econômico. Em vista da natureza sagrada do ouro e da prata, a obtenção desses dois metais só poderia ser uma atividade sacerdotal, assim como a cunhagem de moedas de ouro e prata era prerrogativa apenas de determinados lugares sagrados. Em sintonia com isso está o fato de que os procedimentos metalúrgicos relativos ao ouro e à prata, que foram preservados em algumas assim-chamadas sociedades primitivas dos tempos pré-históricos, revelam abundantes sinais da sua origem sacerdotal3. Nas culturas 'arcaicas', ainda não familiarizadas com a dicotomia do 'espiritual' e do 'prático', nas quais tudo era visto em relação com a unidade íntima do homem e do cosmos, a preparação dos minérios era sempre realizada como um procedimento sagrado. Como regra, era prerrogativa da casta sacerdotal, chamada a esta atividade por comando divino. Onde não era assim, como no caso de determinadas tribos africanas, que não possuíam suas próprias tradições metalúrgicas, o fundidor ou ferreiro, como um intruso não autorizado na sagrada ordem da natureza, caía na suspeição de envolvimento com a magia negra4. O que aos olhos do homem moderno parece superstição – e o que, em parte, apenas sobreviveu como tal – é na verdade um pressentimento de uma profunda relação entre a ordem natural e a alma humana. O homem 'primitivo' estava bem consciente de que a produção de minérios no 'ventre' da terra e a sua violenta purificação pelo fogo era algo sinistro, e cheio de possibilidades perigosas, mesmo que eles não tivessem 2Na obra etnológica de E. E. Evans-Pritchard, Nuer Religion, capítulo «The Problems of Symbols», Oxford at the Clarendon Press, 1956, há uma excelente explicação do que se pode entender por símbolo. 3Veja Mircea Eliade, Forgerons et Alchimistes, coleção «Horno sapiens», París, 1956. 4ibid. 10 todas as provas de que a história da Era dos Metais tão abundantemente nos proveu. Para a humanidade 'arcaica' – que não separava artificialmente matéria de espírito – a chegada da metalurgia não foi simplesmente uma 'invenção', mas também uma 'relevação', porque apenas um comando divino poderia autorizar à humanidade o acesso a tal atividade. No início, entretanto, essa revelação foi uma faca de dois gumes5; ela requeria uma prudência especial por parte de quem ela havia sido recebida. Assim como o trabalho exterior do metalúrgico com os minérios e o fogo apresentava algo de violento em relação a ele, assim também a influência que pesava sobre o espírito e a alma – que eram inescapáveis neste chamado – era de uma perigosa e dúbia natureza. Em particular a extração de metais nobres a partir de minérios impuros, por meio de solventes e de agentes purificadores como o mercúrio e antimônio, e em conjunção com o fogo, era inevitavelmente realizada contra as resistências de sombrias e caóticas forças da natureza, assim como a conquista da 'prata interior' ou do 'ouro interior' – na sua pureza imutável e luminosidade – demanda a conquista de todos os impulsos obscuros e irracionais da alma. * O diálogo seguinte, extraído da autobiografia de um senegalês, mostra como em determinadas tribos africanas o trabalho com o ouro foi continuamente tratado como arte sagrada até os presentes dias6. “... Assim que meu pai sinalizou, os dois aprendizes começaram a trabalhar o fole da pele de carneiro que estava situado em ambos os lados da fornalha e conectado a ela por meio de cachimbos de barro... As chamas no forno espoucavam e pareciam ganhar vida – um gênio animado e mau. “Meu pai, então, pegou a panela de fundição com sua longa pinça, e colocou-a nas chamas. “De repente todas as outras ocupações na forja cessaram, porque enquanto o ouro estava sendo fundido, e 5“Nós revelamos o ferro. Nele há força maligna e utilidade para os homens” (Corão, LVII, 25). 6Camara Laye, L'Enfant noir, París, 1953. 11 enquanto ele esfriava, era proibido trabalhar nas suas proximidades quer com o cobre, quer com oalumínio, para evitar que uma partícula desses metais comuns entrasse na panela de fundição. Apenas o aço poderia continuar a ser trabalhado. Mas mesmo aqueles engajados em alguma tarefa com o aço geralmente deveria terminá-la rapidamente ou deixá- la de lado, para juntar-se aos aprendizes em volta do forno... “Quando meu pai sentiu que seus movimentos estavam começando a ser impedidos pelos aprendizes que se amontoavam em volta, fazia sinal para que eles se afastassem. Nem ele, nem ninguém, poderia pronunciar nenhuma palavra. A quietude era rompida apenas pelo chiado dos foles e pelo assovio do ouro. Mas embora meu pai não dissesse nenhuma palavra, eu sabia que ele falava para si; eu podia vê-lo por seus lábios, que se moviam silenciosamente assim que ele mexia no ouro e no carvão com uma vara – que, assim que pegava fogo, era substituída. “O que ele dizia para si? Eu não sei dizer com certeza, já que ele nunca me disse. O que poderia ser senão uma invocação? Ele não invocava os espíritos do fogo e do ouro, do fogo e do vento – o vento que soprava através dos foles, do fogo que vem do vento e do ouro que estava aliado ao fogo? Certamente ele pedia ajuda e suplicava a sua cooperação e comunhão; certamente que ele invocava esses espíritos que estavam entre os mais importantes, e cujo apoio era muitíssimo necessário para a fundição. “O processo que acontecia diante de meus olhos não era apenas e por fora a fundição do ouro. Havia algo além disso: um processo mágico que os espíritos poderiam favorecer ou atrapalhar. Daí porque a quietude reinou em volta de meu pai... “Não é notável que naquele momento uma pequena cobra negra sempre permanecia escondida por baixo da pele do carneiro? Porque ela nem sempre esteve lá. Ela não vem visitar meus pais todos os dias, e ela nunca deixa de vir quando o ouro está sendo trabalhado. Isso não me surpreende. Desde então, em uma noite, meu pai me falou sobre o espírito da nossa tribo, e eu achei muito natural que aquela cobra estivesse ali, porque a cobra conhece o futuro... 12 “O artesão que trabalha o ouro deve antes de tudo purificar-se, deve lavar-se da cabeça aos pés, e, durante o trabalho deve abster-se de relações sexuais...” * Que existe um ouro interior, ou melhor, que o ouro tem uma realidade interior, assim como uma realidade exterior, é apenas lógico para o modo contemplativo de olhar as coisas, que espontaneamente reconhece a mesma 'essência' no ouro e no Sol. É aqui, e em nenhum outro lugar, que as raízes da alquimia repousam. As origens da alquimia remontam à arte sacerdotal dos antigos egípcios; a tradição alquímica que se espalhou pela Europa e pelo Oriente Próximo, e que talvez até mesmo influenciou a alquimia indiana, reconheceu como seu fundador Hermes Trismegistos, o 'Hermes, o três vezes grande', que é identificado com o antigo deus egípcio Thoth, o deus que reina sobre toda a arte sacerdotal e científica, um pouco como Ganesha no Hinduísmo. A expressão alchemia deriva do árabe al-kimiya, que parece derivar do antigo egípcio kême – a referência à 'terra negra', que era uma designação do Egito, e que poderia ter sido também o símbolo da matéria-prima dos alquimistas. Outra possibilidade é que a expressão deriva do grego chyma ('fusão' ou 'fundição'). Em todo caso, os desenhos alquímicos remanescentes mais antigos estão em papiros egípcios. Que nenhum documento primitivo tenha chegado até nós não é surpresa, desde que é uma característica essencial de uma arte sagrada a sua transmissão oral; que seu registro escrito possa ser encomendado é usualmente o primeiro sinal de decadência ou do receio de que a tradição oral será perdida. Assim, é completamente natural que o assim-chamado Corpus Hermeticum, que compreende todos os textos atribuídos a Hermes-Thoth, tenham chegado até nós em grego, e revestido mais ou menos em uma linguagem platônica. Que esses textos são, todavia, originados de uma tradição genuína, e que não são fabricações pseudo-arcaicas dos gregos, é provado por sua fecundidade espiritual. As evidência sugerem que a assim- chamada 'Tábua de Esmeralda' é também parte do Corpus Hermeticum. A Tábua da Esmeralda declara-se uma revelação de 13 Hermes Trismegistos, e é considerada pelos alquimistas que escreveram em árabe e em latim como nada menos que a 'tábua da lei' da sua arte. Não há nenhum texto primitivo da Tábua da Esmeralda. Ela chegou até nós apenas em tradições árabes e latinas – pelo menos tanto quanto se pesquisou até agora – mas seu conteúdo evidencia sua autenticidade. Em abono à origem egípcia da alquimia do Oriente Próximo e do Ocidente está o fato de que toda uma série de procedimentos artesanais, relacionados com a alquimia e provendo-a de várias expressões simbólicas, apareceu como um conjunto coerente a partir dos últimos tempos egípicios, finalmente aparecendo nos livros prescritivos medievais. Este corpo de procedimentos contém alguns elementos claramente derivados do Egito. Entre esses procedimentos, além do trabalho do metal e da preparação de tinturas, está a produção de pedras preciosas artificiais e vidros coloridos, uma arte que floresceu no Egito. De mais a mais, toda a arte egípcia dos metais e minerais, no seu esforço para extrair o a essência, secreta e preciosa, de uma 'substância' terrestre, mostra uma óbvia relação espiritual com a alquimia. A Alexandria egípcia, em seus últimos tempos, foi sem dúvida o cadinho no qual a alquimia, juntamente com outras artes e ciências cosmológicas, recebeu a forma na qual ela nos é hoje conhecida, sem por isso ser alterada em nenhum aspecto essencial. Pode muito bem ter sido nessa época que a alquimia também adquiriu alguns temas da mitologia grega e asiática. Isso não deve ser considerado um acontecimento artificial. O crescimento de uma tradição genuína parece-se com um cristal, que atrai partículas homólogas a si próprio, incorporando-as de acordo com as suas próprias leis de harmonia. Dessa época em diante, podem-se observar duas correntes na alquimia. Uma é predominante e naturalmente artesanal; o simbolismo de um 'trabalho interior' aparece aqui como um complemento a uma atividade profissional e é apenas ocasional e incidentalmente mencionado; a outra faz uso de um processo metalúrgico exclusivamente como analogia. Então se pode até mesmo perguntar se esses procedimentos foram utilizados 'exteriormente'. Isso fez com que alguns cunhassem a 14 distinção entre a alquimia artesanal – a qual se acredita seja mais antiga – e a assim-chamada alquimia mística, que se supõe de desenvolvimento superior. Na realidade, entretanto, trata-se de dois aspectos de uma e mesma tradição, na qual o aspecto simbólico é sem dúvida o mais arcaico. Será sem dúvida questionado como foi possível à alquimia, juntamente com o seu fundamento mitológico, ser incorporada nas religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islã. A explicação para isso é que as perspectivas cosmológicas próprias da alquimia, relativas tanto à esfera externa dos metais (e minerais em geral) quanto ao terreno interior da alma, estavam organicamente ligadas com a metalurgia antiga, e assim esse fundo cosmológico foi recebido, juntamente com as técnicas artesanais, simplesmente como uma ciência da natureza (physis) no sentido mais amplo do termo, assim como o cristianismo e o islã se apropriaram das tradições pitagóricas na música e na arquitetura, e assimilaram a correspondente perspectiva espiritual. Do ponto de vista cristão, a alquimia era como que um espelho natural para asverdades relevadas: a pedra filosofal, que transformava metais em ouro, é um símbolo de Cristo, e a sua produção a partir do 'fogo que não se queima' do enxofre, e a 'água inabalável' do mercúrio simbolizam o nascimento de Cristo-Emmanuel. Através dessa assimilação pela fé cristão, a alquimia foi espiritualmente fecundada, enquanto o cristianismo encontrou nela um caminho que, através da contemplação da natureza, conduzia a uma verdadeira 'gnosis'. Ainda com maior facilidade a arte hermética entrou no mundo espiritual islâmico. Este sempre esteve pronto, em princípio, para reconhecer qualquer arte pré- islâmica que aparecesse sob o aspecto de 'conhecimento' (hikmah) como patrimônio dos primeiros profetas. Assim, no mundo islâmico, Hermes Trismegistos é algumas vezes identificado com Enoch (Idrîs). Foi a doutrina da 'unidade da existência' (wahdat-al-wujûd) – a interpretação esotérica da confissão de fé islâmica – que deu ao hermetismo um novo eixo espiritual ou, em outras palavras, restabeleceu seu horizonte espiritual original 15 em toda a sua plenitude e libertou-a da sufocação do recente 'naturalismo' helenístico. Enquanto isso, o simbolismo da alquimia, como resultado da sua incorporação gradual no tardio e clássico pensamento semítico, desenvolveu-se numa variada multiplicidade. Apesar disso, alguns traços fundamentais, próprios da alquimia como 'arte', permaneceram como seu sinal específico através dos séculos: acima de tudo, mencione-se o plano preciso do 'trabalho alquímico', as fases individuais com as quais é caracterizado por meio de alguns processos 'simbólicos' que nem sempre podem ser levados a cabo na prática. Em um primeiro momento, a alquimia entrou na civilização cristã ocidental através de Bizâncio, e depois, e em maior medida, através da Espanha árabe. Foi no mundo islâmico que a alquimia alcançou a plenitude de seu florescimento. Jâbir ibn Hayyân, um discípulo do sexto Shiite Imam Jafar as-Sâdiq, fundou no séc. XVIII d. C. uma verdadeira escola, a partir da qual centenas de textos alquímicos fluíam. Sem dúvida que foi em razão de o nome de Jâbir ter-se transformado em uma marca de qualidade de grande erudição alquímica, que o autor da Summa Perfectionis, um italiano ou catalão do séc. XIII d. C., também assumiu o nome, Gebe, na sua forma latinizada. Quando, com o Renascimento, ocorreu a grande irrupção da filosofia grega, uma nova onda de alquimia bizantina alcançou o Ocidente. Nos séc. XVI e XVII vários trabalhos alquímicos foram impressos, e até então existiam apenas manuscritos que haviam circulado mais ou menos secretamente. Como resultado disso, o estudo do hermetismo alcançou um novo patamar; foi em breve, contudo, que entrou em decadência. O séc. XVII d. C. é algumas vezes considerado como marca do florescimento completo do hermetismo europeu. Na realidade, entretanto, a sua decadência já havia começado no séc. XV d. C. e prosseguia sem demora com o desenvolvimento humanístico e já fundamentalmente racionalista do pensamento ocidental, pelo qual qualquer perspectiva universal, espiritual e intuitiva, foi privado de seu fundamento básico. É verdade que por determinado tempo, 16 imediatamente anterior à era moderna, elementos de uma gnosis genuína, que haviam sido, com dificuldade, tirados do terreno da teologia tanto pelo desenvolvimento sentimental unilateral dos últimos místicos cristãos e pela tendência agnóstica inerente à Reforma, encontraram refúgio na alquimia especulativa. Isso sem dúvida explica fenômenos como os ecos de hermetismo detectados em trabalhos de Shakespeare, Jakob Boehme e Georg Gichtel. A medicina que derivou da alquimia durou mais que a própria alquimia. Paracelsus chamou a isso de 'spagyric medicine'. O termo vem das palavras gregas correspondentes a 'divisão' e 'união' – correspondendo aos termos alquímicos solve et coagula. Em geral, a alquimia europeia que se seguiu à Renascença teve um caráter fragmentário; como uma arte espiritual, carecia de fundo metafísico. Isso é especialmente verdade a respeito de seus últimos vestígios no séc. XVIII d. C. – mesmo apesar do fato de que entre todos os 'queimadores de carvão', homens de real gênio tais como Newton e Goethe se ocuparam dela, embora sem sucesso. Nesse ponto parece oportuno dizer categoricamente que não pode haver alquimia 'independente' e hostil à Igreja, porque o primeiro pré-requisito de toda arte espiritual genuína é reconhecer tudo o que a condição humana, na sua supremacia e na sua precariedade, necessita em vista de sua salvação. Que haja também uma alquimia pré-cristã de nenhum modo prova o contrário; a alquimia sempre foi, em qualquer época, uma parte orgânica de uma tradição completa, integral, que em certo sentido congregava todos os aspectos da existência humana. Na medida, entretanto, em que o Cristianismo revelou verdades que estavam escondidas da antiguidade pré-cristã, isso deve ser levado em conta pelos alquimistas cautelosos. É, assim, um grande erro acreditar que a alquimia ou o hermetismo, por si sós, poderiam possivelmente ser uma religião auto-suficiente, ou mesmo um paganismo secreto. Qualquer atitude dessa espécie deve necessariamente ser vista como racionalismo e humanismo que paralisa desde o princípio qualquer esforço em direção ao magistério interior. É verdade que 'o Espírito sopra onde quer', 17 e ninguém pode, de fora, impor delimitações dogmáticas em suas manifestações; mas o Espírito não 'sopra' onde ele próprio – o Espírito Santo – é renegado em qualquer de suas revelações. Na realidade, a alquimia, que não é ela mesma uma religião, requer a confirmação de uma revelação – com os seus meios de graça –, que é endereçada a todos os homens. Essa confirmação consiste no reconhecimento da via e do trabalho alquímicos pelos próprios alquimistas como um meio específico de acesso ao significado completo da mensagem eterna e salvífica da relevação. Não devemos nos alongar na história da alquimia, que, em todo caso, não é conhecida em detalhes, sem dúvida em grande parte em razão de que a transmissão de uma arte esotérica geralmente ocorre oralmente. Um último ponto deve, apesar disso, ser mencionado; o fato de que escritores alquímicos assumam nomes fantásticos, fora de qualquer relação com a cronologia, alegadamente como seus autores ou fontes, em nenhum sentido milita contra o valor dos textos em questão; porque, independentemente do fato de que o ponto de vista histórico e o conhecimento alquímico não tenham nada a ver um com o outro, esses nomes (como no caso do Geber latino) são indicações de uma dada 'corrente' da tradição, em vez de pretender ser certificados de autoria. A questão sobre se dado texto hermético é genuíno ou não, vale dizer, se ele procede de um conhecimento e experiência verdadeiros da arte hermética, ou se foi simplesmente coletado arbitrariamente, não pode ser determinada nem pela filologia, nem pela comparação com a química empírica; o único critério é a unidade espiritual da tradição mesma. 18 CAPÍTULO 2 NATUREZA E LINGUAGEM DA ALQUIMIA No meu livro a respeito dos princípios e métodos da arte sagrada7, mais de uma vez tive a ocasião de mencionar a alquimia, a título de comparação, quando se considera a criação artística como aparece dentro da tradição sagrada, não do ponto de vista de seu aspecto estético externo, mas como um processo interno cuja meta é o amadurecimento, 'transmutação', ou renascimento da alma do próprio artista. Aalquimia também foi chamada arte – precisamente a 'arte real' (ars regia) – por seus mestres e, com sua imagem da transmutação dos metais comuns em ouro e prata, se presta como um magnífico símbolo evocativo do processo interno a que ela se refere. Efetivamente a alquimia pode considerada a arte da transmutação da alma. Ao dizer isso não estou buscando negar que os alquimistas também conheciam e praticavam os procedimentos metalúrgicos, tais como a purificação e a liga de metais; seu trabalho real, entretanto, dos quais estes procedimentos são meramente o suporte exterior, ou símbolos operacionais, foi a transmutação da alma. O testemunho dos alquimistas nesse ponto é unânime. Por exemplo, no The Book of Seven Chapters, que foi atribuído a Hermes Trismegistos, o pai da alquimia ocidental e do Oriente Próximo, lemos: “Veja, eu abri diante de você o que estava escondido: O trabalho [alquímico] está em suas mãos e juntamente com você; na medida em que se encontra dentro de você e é duradouro. Você sempre terá isso presente, onde quer que você esteja, na terra ou no mar...”8. E no famoso diálogo entre o rei árabe Khalid e o sábio Morienus (ou Marianus) se disse como o rei questionou o sábio sobre onde se poderia encontrar algo com que se pudesse realizar o trabalho hermético. A isso Morienus se silenciou, e foi apenas após muita hesitação que ele respondeu: “Ó rei, eu lhe digo a verdade, que Deus, em sua misericórdia, criou essa coisa extraordinária dentro de você; onde quer que você esteja, está 7Vom Wesen heiliger Kunst in den Weltreligionen, Origo-Verlag, Zurich, 1955, y Príncipes et méthodes de l’art sacré, Lyon, 1968. 8 Bibliothèque des Philosophes Chimiques, ed. por G. Salmon, París, 1741. 19 sempre com você e nunca pode ser separado de você...”9. A partir de tudo isso, veremos que a diferença entre a alquimia e qualquer outra arte sagrada é que o conhecimento alquímico não é alcançado visivelmente, na plano externo artesanal, como na arquitetura e na pintura, mas apenas no coração; porque a transmutação de chumbo em ouro, que constitui o trabalho alquímico, de longe ultrapassa as possibilidades do conhecimento artesanal. O caráter miraculoso desse processo – efetuando um 'salto' que, de acordo com os alquimistas, a natureza por si própria, apenas pode realizar em um tempo imprevisivelmente longo – destaca a diferença entre as possibilidades corporais e aquelas da alma. Enquanto uma substância mineral – cuja solução, cristalização, fundição e aquecimento podem refletir até certo ponto as mudanças da alma – deve permanecer confinada em limites definidos, a alma, por sua parte, pode superar os limites 'físicos' correspondentes, graças ao encontro com o espírito, que não é confinado por nenhuma forma. O 'chumbo' representa o caótico, 'pesada' e doentia condição do metal ou do homem interior, enquanto o ouro – 'luz congelada' e 'sol terreno' – representa a perfeição da existência metálica e humana. Na perspectiva dos alquimistas, o ouro é a efetiva meta da natureza metálica; todos os outros metais são passos preparatórios, ou experimentais, para esse fim. O ouro, em si mesmo, possui o equilíbrio harmonioso de todas as propriedades metálicas e assim também possui durabilidade. O 'cobre não encontra sossego até que se transforme em ouro', disse Mestre Eckhart, referindo-se, na realidade, à alma, que anseia por seu próprio ser eterno. Assim, em contraste com a acusação usual contra eles, os alquimistas não procuram, por meio de fórmulas secretamente conservadas, nas quais apenas eles acreditam, fazer ouro de metais ordinários. Quem quer que realmente tenha desejado tentar isto pertence aos chamados 'charcoal burners' que, sem nenhuma conexão com a tradição alquímica viva, e puramente com base no estudo de textos que eles apenas podem compreender no sentido literal, buscaram alcançar o 'grande trabalho'. 9Ibíd. II. O relato do diálogo entre o rei árabe Chalid e o monge Morieno, o mariano, foi provavelmente o primeiro texto alquímico treduzido do árabe para o latim. 20 Como um caminho que pode conduzir o homem ao conhecimento do seu próprio ser eterno, a alquimia pode ser comparada com o misticismo. Isso também é indicado pelo fato de que as expressões alquímicas foram adotadas pela mística cristã, e ainda mais pela islâmica. Os símbolos alquímicos da perfeição referem-se ao conhecimento espiritual da condição humana, ao retorno ao centro ao qual as três religiões monoteístas chamam de reconquistas do paraíso terrestre. Nicolas Flamel (1330-1417), que foi um alquimista que recorreu à linguagem da fé cristã, escreveu sobre a conclusão do trabalho, que ele 'transforma o homem em bom, afastando dele a raiz de todos os pecados, especificamente a cobiça. Então ele torna-se generoso, benigno, piedoso, crente e temente a Deus, independentemente de quão mal ele havia sido anteriormente; porque, a partir de então, ele estará sempre cheio da graça e misericórdia com que ele foi recebido por Deus, e com o mais profundo de seus maravilhosos trabalhos10. A essência e o objetivo do misticismo é a união com Deus. A alquimia não fala disso. O que tem relação com o caminho místico, entretanto, é a meta alquímica de reconquistar a nobreza original da condição humana e o seu simbolismo; porque a união com Deus é possível apenas em virtude daquilo que, a despeito do abismo incomensurável entre a criatura e Deus, une o antigo ao mais recente – e isso é o 'teomorfismo' de Adão, que foi 'deslocado' ou se tornou inefetivo pela Queda. A pureza do homem simbólico deve ser reconquistada antes que a forma humana possa ser reassumida no seu arquétipo infinito e divino. Compreendida em seu aspecto espiritual, a transmutação do chumbo em ouro não é nada além da reconquista da original nobreza da natureza humana. Assim como a inigualável qualidade do ouro não pode ser produzida pela soma exterior das propriedades dos metais tais como massa, dureza, cor etc., assim a perfeição 'adâmica' não é uma mera assimilação de virtudes. É tão inimitável quanto o ouro. E o homem que tenha 'realizado' esta perfeição não pode ser comparado com os outros. Tudo nele é original, no sentido de que o seu ser está completamente acordado e unido com a sua origem. Na medida em que a realização desse estado 10 Bibl, des Phil. Chim. 21 necessariamente pertence à via mística, a alquimia pode, de fato, ser considerada como um ramo do misticismo. Ademais, o 'estilo' da alquimia é tão diferente do misticismo, que é diretamente baseado em uma fé religiosa, que alguns foram tentados a chamá-lo de 'misticismo sem Deus'. Essa expressão, entretanto, é perfeitamente disparatada, para não dizer completamente falsa, porque a alquimia pressupõe a crença em Deus, e praticamente todos os mestres dão grande importância à prática da oração. Essa expressão é verdadeira apenas na medida em que a alquimia, em si mesma, não possui nenhuma armadura teológica. Assim, a perspectiva teológica tão característica do misticismo não delimita o horizonte intelectual da alquimia. O misticismo judeu, cristão e muçulmano é centrado na contemplação de uma verdade revelada, um aspecto de Deus, ou uma 'ideia' no sentido mais profundo da palavra; ele é a realização espiritual dessa ideia. A alquimia, por sua vez, não é primeiramente nem teológica (ou metafisica) nem ética; ela olha ao conjunto dos poderes da alma de um ponto de vista puramente cosmológico e trata a alma como uma 'substância' que deve ser purificada, dissolvida e cristalizadanovamente. A alquimia age como uma ciência ou arte da natureza, em razão disso todos os estados da consciência íntima são vias da uma única 'natureza' que engloba tanta as formas externas, visíveis e corporais quanto as formas internas e invisíveis da alma. Por tudo isso, a alquimia não está isenta de um aspecto contemplativo. De forma alguma isso consiste em mero pragmatismo vazio de intuição espiritual. A sua natureza espiritual e, de certo modo, contemplativa reside diretamente na sua forma concreta, na analogia entre o reino mineral e o reino da alma; essa similaridade pode apenas ser percebida por uma visão que seja capaz de olhar as coisas materiais qualitativamente – intimamente, num certo sentido –, e que compreenda as coisas da alma 'materialmente' – o que quer dizer objetiva e concretamente. Em outras palavras, a cosmologia alquímica é essencialmente uma doutrina do ser, uma ontologia. O símbolo metalúrgico não é meramente um improviso, uma descrição aproximada do processo interior; como todo símbolo genuíno, é uma espécie de revelação. 22 Com esse modo 'impessoal' de olhar para o mundo da alma, a alquimia coloca-se em uma relação muito mais próxima com o 'caminho do conhecimento' (gnosis) do que com o 'caminho do amor'. Porque é prerrogativa da gnosis – no sentido genuíno, e não no herético, da expressão – reconquistar a alma individual 'objetivamente', em lugar de experimentá-la apenas subjetivamente. Daí porque trata-se de um misticismo fundado no 'caminho do conhecimento', que por acaso usou modos de expressão alquímicos, se de fato não assimilou de fato as formas da alquimia com os graus e os modos de seu próprio 'caminho'. A expressão 'misticismo' vem de 'segredo' ou 'afastamento' (do grego myein); a essência do misticismo impede uma interpretação meramente racional, e isso soa bem no caso da alquimia. * Outra razão por que a doutrina alquímica se esconde em enigmas é que ela não é feita para todos. A 'arte régia' pressupõe uma compreensão além da ordinária, e também um certo tipo de alma, sem os quais a prática envolve perigos relevantes para a alma. 'Não se reconhece', escreve Artephius, um famoso alquimista da Idade Média11, 'que a nossa arte é cabalística12? Com isso eu quero dizer que ela é transmitida oralmente e é repleta de segredos. Mas você, pobre e iludido discípulo, você é tão ingênio a ponto de acreditar que podemos ensinar clara e abertamente os maiores e mais importantes de todos os segredos, ao ponto de você poder interpretar nossas palavras literalmente? Eu lhe asseguro, de boa-fé (porque eu não sou tão ciumento como outros filósofos), que quem interprete literalmente o que os outros filósofos (isto é, os outros alquimistas) escreveram, perder-se-ão a si próprios nos recessos de um labirinto do qual eles nunca escaparão, e quererão o fio de 11Artefius pode ser o nome latinizado de um autor árabe desconhecido (Veja E. von Lippmann, Entstehung und Ausbreitung der Alchemie, Berlín, 1919). Provavelmente viveu antes do ano 1.250. 12“Cabalístico” significa, aqui, de acordo com a etimologia da palavra, “transmitido oralmente”. 23 Ariadne para mantê-los no caminho correto, e levá-los com segurança para fora...'13 E Synesios14, que provavelmente viveu no séc. IV d. C., escreveu: '(Os verdadeiros alquimistas) apenas se expressam por símbolos, metáforas e similares, assim eles apenas podem ser compreendidos pelos santos, pelos sábios e por almas dotadas de entendimento. Por essa razão, eles observaram, em seus trabalhos, um certo caminho e uma certa regra, de tal modo que o homem sábio possa entender e, talvez após alguns tropeços, atingir tudo o que é aí descrito secretamente'15. Finalmente Geber, que resume toda a ciência alquímica medieval na sua Summa, declara: 'Não se pode expor esta arte por palavras obscuras apenas; por outro lado, não se pode explicá-la tão claramente que todos possam compreendê-la. Por isso eu a ensino de um modo que nada permanece escondido ao homem sábio, embora possa repercutir em mentes medíocres como algo obscuro; os ignorantes, por sua vez, não compreenderão nada...'16. Alguns podem se surpreender com o fato de que, apesar dessas advertências, das quais muitos outros exemplos podem ser fornecidos, muitas pessoas – especialmente nos séc. XVII e XVIII – tenham acreditado que através do estudo diligente dos textos alquímicos seriam capazes de encontrar uma fórmula de fazer ouro. É verdade que os autores alquímicos frequentemente deixam a entender que eles preservam o segredo da alquimia apenas para prevenir que alguém indigno adquira um poder perigoso. Eles assim fazem uso de uma inevitável equívoco para manter pessoas desqualificadas à distância. Ademais eles nunca falaram das finalidades aparentemente materiais de sua arte, sem mencionar ao mesmo tempo a verdade. Quem quer que se tenha motivado por paixões terrenas falhará automaticamente em compreender o essencial de qualquer explicação. Assim, no Hermetc Triumph está escrito: 'A pedra filosofial' (com a qual se pode transformar metal em ouro) concede vida longa e imunidade a doenças àquele que a possui, e através desse poder traz mais ouro e prata do que todos os mais poderosos conquistadores tiveram entre eles. Ademais, esse 13 Bibl. des Phil. Chim. 14Tem-se discutivo se são a mesma pessoa este Sinésio e o homônimo Bispo de Cirene (379-415), que fui discípulo da platônica Hipatia de Alejandría. 15 Bibl. des Phil. Chim. 16 Ibid. 24 tesouro tem a vantagem sobre todos os outros nesta vida, especificamente o de que aquele que o usufrui será perfeitamente feliz – a mera visão disso o faz feliz – e nunca será assaltado pelo medo de perdê-lo.'17 A primeira assertiva aparenta confirmar a interpretação externa da alquimia, enquanto a segunda indica, tão claro quanto desejável, que a posse que aqui se discute é interior e espiritual. O mesmo se encontra no já mencionado no The Book of Seven Chapters: 'Com a ajuda do Deus misericordioso, esta pedra (filosofal) libertará você e o protegerá das mais severas doenças; também o protegerá da tristeza e dos problemas, e especialmente contra tudo o que puder prejudicar o corpo e a alma. Levará você das trevas à luz, do deserto à casa e da indigência à riqueza.'18 O duplo sentido que se percebe em todas essas assertivas está em relação com a frequentemente mencionada intenção de ensinar o 'sábio' e de confundir o 'tolo'. Porque o modo de expressão dos alquimistas, com todo o seu taciturno 'hermetismo', não é uma invenção arbitrária, mas algo inteiramente autêntico, Geber foi capaz de dizer, em um apêndice à sua famosa Summa: 'Quando eu parecia falar mais clara e abertamente sobre nossa ciência, na realidade me expressei de modo mais obscuro, e ocultei o objeto de meu discurso com maior intensidade, e ainda a despeito de tudo isso, nunca revesti o trabalho alquímico com alegorias ou enigmas, mas tratei disso com palavras claras e inteligíveis, e descrevi com honestidade, tanto quanto eu o conhecia e aprendi por inspiração divina...' Por outro lado, outros alquimistas, propositadamente, compuseram seus textos em uma forma tal que a leitura deles proporciona a 'separação das ovelhas dos cabritos'. O último trabalho mencionado é um exemplo disso, pois Geber diz no mesmo apêndice: 'Por esse meio, declaro que nesta Summa não ensinei nossa ciência sistematicamente, mas a espalhei aqui e ali em vários capítulos; porque se eu a houvesse apresentado numa ordem lógica e coerente, o mal-intencionado, que poderia usurpar esse conhecimento, seria capaz de aprender tão facilmente como as pessoas de boa-fé...' Se alguém estuda de pertoa intenção aparentemente metalúrgica da exposição de Geber, descobrirá no meio das descrições mais ou menos 17 Ibid. 18 Ibid. 25 artesanais dos procedimentos químicos consideráveis saltos de pensamento: por exemplo, o autor, que não havia mencionado previamente uma 'substância' (em conexão com o 'trabalho'), de repente dirá: 'Agora pegue essa substância, que você conhece suficientemente bem, e a coloque no recipiente...' Ou de repente, depois salientar que os metais não são transmutados em sentido exterior, ele fala de um 'remédio que cura todos os metais doentes', transformando-os em prata e ouro. Em cada uma dessas ocasiões, a compreensão é rudemente levada ao colapso, e isso de fato é o propósito de uma exposição dessa espécie. O discípulo é levado a experimentar diretamente os limites de sua própria razão (ratio). Então, finalmente, como Geber disse, ele pode olhar para dentro de si mesmo: 'Voltando-me para mim mesmo, e meditando no caminho no qual a natureza produz metais no interior da terra, percebo aquela real substância com a qual a natureza nos preparou, de modo a permitirmos aperfeiçoá- las na terra...' Aqui alguém notará uma certa similaridade com o método do Zen Budismo, que procura transcender os limites da faculdade mental, através da meditação concentrada em certos paradoxos enunciados por um mestre. Este é o limite espiritual que os alquimistas devem ultrapassar. Os limites éticos, como temos visto, é a tentativa de buscar a arte alquímica apenas por conta do ouro. Os alquimistas insistem constantemente que o grande obstáculo para o seu trabalho é a cobiça. Esse vício é para sua arte o que o orgulho é para 'o caminho do amor', e o que o auto-engano é para o 'caminho do conhecimento'. Aqui a cobiça é simplesmente outro nome para o egoísmo, para o apego do próprio ego no caminho da paixão. Por outro lado, a exigência de que o discípulo de Hermes deva apenas procurar transmutar elementos com a intenção de ajudar os pobres necessitados – ou à própria natureza necessitada – relembra a promessa budista de procurar a iluminação mais alta apenas em vista da salvação das criaturas. Somente a compaixão nos liberta da astúcia do ego, que de todo modo procura apenas olhar para si próprio. * Pode ser objetado que a minha tentativa de 26 explicar o significado da alquimia é uma violação do primeiro pressuposto alquímico, especificamente a necessidade de reservar os ensinamentos ao seu próprio domínio. A isso pode ser respondido que, em todo caso, é impossível exaurir por meras palavras o significado dos símbolos que contêm a chave para o mais íntimo segredo da alquimia. O que pode ser explicado em larga medida são as doutrinas cosmológicas fundamentais da arte alquímica, a sua visão do homem e da natureza, e também o seu modo geral de proceder. E mesmo se alguém for apto a interpretar todo o trabalho hermético, sempre haverá algo deixado de lado, que nenhum trabalho escrito pode transmitir, e que é indispensável para a perfeição do trabalho. Assim como toda arte sagrada, no sentido genuíno do termo (como todo 'método' que pode conduzir a uma realização dos altos estados de consciência), a alquimia depende de uma iniciação: a permissão para empreender o trabalho deve ser obtida geralmente de um mestre, e apenas em instâncias raras, quando as correntes de homem a homem tenham sido quebradas, pode acontecer que a influência espiritual salta miraculosamente sobre o abismo. No diálogo entre o rei Khalid e Morienus, foi dito a esse respeito: 'O fundamento dessa arte é que quem quer que deseje ultrapassá-la deve receber os ensinamentos de um mestre... Também é necessário que o mestre a pratique em frente ao discípulo... Quem quer que conheça a sequência desse trabalho e já o tenha experimentado por si próprio não pode ser comparado com aquele que apenas o viu em livros...'19. E o alquimista Denis Zachaire20 escreveu: 'Acima de tudo, gostaria que isso fosse compreendido – caso haja alguém que ainda não aprendeu – que essa filosofia divina ultrapassa em muito o poder humano; menos ainda pode ser adquirida através de livros, a menos que Deus a introduza dentro dos corações pelo poder do seu Espírito Santo, ou nos tenha ensinado da boca de um homem vivo...'21 19 Ibid. 20 Alquimista francês do século XVI. 21 Bibl. des Phil. Chim. II. 27 CAPÍTULO 3 A SABEDORIA HERMÉTICA A perspectiva do hermetismo origina-se da visão de que o universo (ou macrocosmo) e o homem (ou o microcosmo) correspondem-se como reflexos; o que quer que haja em um deve também, de alguma maneira, estar presente no outro. Essa correspondência pode ser melhor compreendida reduzindo-a ao relacionamento mútuo de sujeito e objeto, de conhecedor e conhecido. O mundo, como objeto, aparece no espelho do sujeito humano. Embora esses dois polos possam ser distinguidos teoreticamente, eles contudo nunca podem ser separados. Cada um deles apenas pode ser concebido em relação ao outro. Para o bem da clareza, é necessário examinar os vários significados que podem ser dados ao termo 'sujeito'. Se se diz que a perspectiva que o homem tem do universo é 'subjetiva' isso geralmente significa que a perspectiva em questão depende da particular posição do homem no espaço e no tempo, e do maior ou menor desenvolvimento de sua habilidade e conhecimento; a dependência 'subjetiva' é aqui aquela de um indivíduo ou de um grupo de pessoas limitado temporal ou espacialmente. Contudo, não é meramente limitado em cada caso: é especificamente limitado em si mesmo, e nesse sentido não há algo como um conhecimento puramente subjetivo do mundo colocado fora da esfera do sujeito humano. Nem a concordância de todas as possíveis observações individuais nem o uso de significados que amplia o alcance dos juízos podem ir além deste âmbito, que condiciona tanto o mundo como um objeto reconhecível, como o homem como um ser que conhece. A coerência lógica do mundo – que faz de suas múltiplas aparências um todo mais ou menos palpável – pertence tanto ao mundo como à natureza unitária do sujeito humano. Apesar disso, todo conhecimento, embora possa ser interpretado pelo indivíduo ou pela espécie, tem algo de absoluto. Do contrário, não haveria ponte do sujeito ao objeto, do 'eu' para o 'tu', não haveria unidade atrás dos inúmeros 'mundos' como vistos pelos 28 diversos e muito grandemente variáveis indivíduos. Esse elemento incondicional e imutável, que é a raiz do 'conteúdo de verdade' mais ou menos escondido em toda porção de conhecimento – e sem o qual não seria conhecimento em absoluto – é o puro Espírito ou Intelecto, que como conhecedor e conhecido estão absoluta e indivisivelmente presentes em todo ser. De todos os seres neste mundo, o homem é o mais perfeito reflexo do universal – e, no que diz respeito à sua origem, divino – Intelecto, e nesse respeito ele pode ser considerado como o espelho ou a imagem total do cosmos. Façamos uma pausa por um momento para considerar as diferentes realidades que encaram como um espelho: primeiro e principalmente, há o Intelecto Universal ou “Sujeito Transcendental”, cujo objeto não é apenas o mundo físico aparente, mas também o mundo secreto da alma – tanto quando a razão; as operações da razão podem ser objeto de conhecimento, ao passo que o intelecto universal é incapaz de qualquer objetivação que seja. É verdade que o Intelecto tem conhecimento direto e imediato de si mesmo, mas esse conhecimento está para além do mundo das distinções, então do ponto de vista da percepção distintiva (dividida que estáentre objeto e sujeito), parece inexistente. Um pouco diferente é o sujeito humano, dotado que está com as faculdades do pensamento, imaginação e memória, e dependente da percepção sensorial, daí que ele, o sujeito humano, tem como objeto todo o mundo corpóreo. É do Intelecto Universal que o sujeito humano extrai sua capacidade de conhecimento. Finalmente há propriamente o homem, composto de espírito (ou intelecto), alma e corpo, que são tanto parte do cosmos que é objeto de seu conhecimento, e que também, em virtude de sua especial categoria (sua natureza eminentemente espiritual), aparece como um pequeno cosmos dentro de um cosmos maior, do qual ele é a contrapartida, como uma imagem refletida. Assim, a doutrina da correspondência recíproca do cosmos e do ser humano é também fundada na ideia do Intelecto Transcendente e único, cujo relacionamento com o que é comumente chamado de 'intelecto' (ou simplesmente razão) é como a de uma fonte de luz para a sua 29 reflexão para um meio limitado22. Essa ideia, que é uma ponte entre cosmologia (a ciência dos cosmos) e a metafísica pura23 não é de modo algum uma prerrogativa especial do hermetismo, embora ela seja exposta de um modo particularmente claro nos escritos de Hermes Trismegisto, o 'Três vezes grande Hermes'. Em um desses escritos está dito a respeito do Intelecto ou Espírito: 'O Intelecto (nous) se origina da substância (ousia) de Deus, na medida em que se pode falar de Deus tendo uma substância24; de que natureza essa substância é apenas Deus pode saber exatamente25. O Intelecto não é parte da substância de Deus, mas irradia deste como luz resplandecente vinda do sol. Nos seres humanos esse Intelecto é Deus...”26. Não se deve deixar enganar pelo inevitável defeito da analogia aqui empregada. Quando alguém fala de irradiação ou resplandecência do Intelecto de sua fonte divina não se quer significar alguma espécie de emanação material. No mesmo livro está dito que a alma (psyque) está presente no corpo do mesmo modo que o Intelecto (nous) está presente na alma, e como a Palavra de Deus (Logos) está presente no Intelecto. (Vale dizer, pelo contrário, que o corpo está na alma como a alma está no espírito ou intelecto, e o espírito está na Palavra). Deus é chamado o Pai de tudo. Será visto quão próximo essa doutrina está da teologia joanina – fato que explica como o círculo cristão da Idade Média foi capaz de ver nos escritos do Corpus Hermeticum (assim como naqueles de Platão), as sementes pré- cristãs do Logos27. Embora a doutrina da unidade 22O entendimento se parece a uma lente condensadora que projeta a luz do espírito em uma direção determinada e sobre um campo limitado. 23Entendemos por Metafísica a ciência do não-criado. A maior parte da “Metafísica” aristotélica é, simplesmente, cosmologia. Distintivo da verdadeira Metafísica é seu caráeter “apofático”. 24Traduzimos ousía por substância, de acordo com os usos da Escolástica. Na realidade, aqui se trata da essência de Deus. 25Vale dizer, a substância ou o ser de Deus não pode ser reconhecida por nada que esteja fora de si mesmo, pois está além de toda dualidade e de toda diferenciação entre sujeito e objeto. 26Corpus Hermeticum, trad. por A.-J. Festugière, París, “Les Belles Lettres”, 1945. Capítulo “D'Hermes Trismégiste: sur l'Intellect commun, à Tat”. 27 Veja os escritos herméticos, entre outros, de Santo Alberto Magno. 30 transcendente do Intelecto seja afirmada por todas as escrituras sagradas, não obstante ela permanece esotérica naquilo que não pode ser transmitida para todos sem um risco de uma simplificação enganosa. O principal perigo é que no seu esforço para compreender a imaginação pode conceber a unidade do espírito e do intelecto como uma espécie de unidade material. Isso pode conduzir à obscuridade da distinção entre Deus e a criação, assim como àquela entre a singularidade essencial de cada criatura individual. O Intelecto Universal não é numericamente um, mas um na sua indivisibilidade. Desse modo está completamente presente em cada criatura, e a partir dele cada criatura adquire sua singularidade. Porque não há nada que possua mais unidade, completude e perfeição do que aquilo pelo qual é conhecido. Um exemplo dessa falsa visão a respeito do Intelecto único presente em todos os seres é fornecida pela opinião filosófica de que quando um ser espiritual, individual, deixa o corpo no momento da morte, ele imediatamente retorna para o Intelecto Universal, daí que não há sobrevivência separada após a morte. Entretanto, aquilo que durante a vida confere uma limitação à individualidade na luz infinita do intelecto não é o corpo, mas a alma. Agora a alma sobrevive após a separação do corpo, mesmo quando, durante a vida, ela tenha sido inteiramente orientada em direção ao corpo e de fato aparentou não haver nada além do que isso28. Desde que o Intelecto, como polo cognitivo da existência universal, não é acessível ao conhecimento discursivo, o conhecimento dele não transformará a experiência do mundo – pelo menos não no campo dos fatos. O conhecimento essencial pode, entretanto, determinar a assimilação interior dessa experiência, i.e., a apreensão de sua verdade. Para a ciência moderna, 'verdades' (ou leis gerais) – sem as quais a simples experiência será nada mais do que areias movediças – são apenas descrições simplificadas de aparências, úteis mas sempre 'abstrações' provisórias. Para a ciência tradicional, por outro lado, a verdade é uma expressão ou 28 Daí os tormentos que, ao abandonar o corpo, sofrem as almas que só se preocuparam com o corporal. 31 'cristalização' (em uma forma acessível à razão) da possibilidade contida no Intelecto Universal, e desde que essa possibilidade está contida permanente e imutavelmente no Intelecto, ela pode também ser manifestada no mundo exterior. A ideia da verdade é assim muito mais absoluta na tradição do que na ciência moderna – sem, contudo, que as formas conceptuais de verdade, se tenham transformado em um fim em si mesmas, já que a captação da verdade pela razão e pela imaginação não é nada mais do que um símbolo das possibilidades contidas no Intelecto eterno. De acordo com o ponto de vista moderno, a ciência é construída exclusivamente com base na experiência. Para o ponto de vista tradicional a experiência não é nada sem o núcleo de verdade que vem do Intelecto, e em torno do qual a experiência individual pode-se cristalizar. Assim, a ciência hermética é baseada em determinada tradição simbólica que deriva da revelação espiritual. A expressão 'revelação' é usada aqui no sentido mais largo do que dado pela teologia, mas não num sentido puramente poético. Em termos hindus, o processo espiritual em questão pode ser considerado como uma revelação de 'segundo grau', como smriti em lugar de shruti. Em termos cristãos, pode-se falar de uma inspiração do Espírito Santo, endereçada não a toda a comunidade de fiéis, mas apenas a determinadas pessoas capazes de um certo modo e grau de contemplação. Foi nesse sentido, de qualquer modo, que os alquimistas cristãos consideravam a herança do hermetismo. O hermetismo é, na verdade, um ramo da revelação primordial que, persistindo através das eras, estendeu-se também ao mundo cristão e islâmico. As possibilidades imutáveis contida no Intelecto não podem ser absorvidas imediatamente pela razão. Platão chamou essas possibilidades de ideias ou arquétipos. Faríamos bem em preservar o real significado dessas expressões, e não aplicá-las a meras generalizações – que, no melhor doscasos, não são mais que reflexos das verdadeiras ideias – nem ao campo puramente psicológico, conhecido como 'inconsciente coletivo'. Essa última distorção é especialmente enganosa, porque envolve uma confusão da indivisibilidade do intelecto com a impenetrabilidade da profundidade passiva e obscura da 32 alma. Os arquétipos são encontrados não abaixo, mas acima do nível da razão. E tanto é assim que o que quer que a razão possa discernir a respeito deles não passa de um aspecto severamente restrito daquilo que eles são em si mesmos. Apenas a união da alma com o Espírito – ou o seu retorno à unidade indivisível do espírito – opera uma certa reflexão das possibilidades eternas que têm lugar na consciência formal. O conteúdo do Intelecto, que é, por assim dizer, a 'faculdade' do Espírito, assim repentinamente 'cristaliza-se', na forma de símbolos, na razão e na imaginação. No livro do Corpus Hermeticum, conhecido como 'Poimandres' está descrito como o Intelecto Universal revela-se a si mesmo a Hermes-Thoth: '... Com essas palavras, ele olhou-me longamente na face, o que me fez estremecer. Então, assim que ele levantou sua cabeça novamente, eu vi como, no meu próprio espírito (nous), a luz que consiste de inumeráveis possibilidades transformou-se um infinito Todo, enquanto o fogo, cercado e contido por um poder sagrado, atingiu sua posição imóvel: foi isso o que eu fui capaz de apreender racionalmente desta visão... Enquanto eu estava completamente fora de mim mesmo, ele disse novamente: você agora, no intelecto (nous) viu o arquétipo, a origem e o começo que nunca termina...'29 Um símbolo, nos planos da alma e do corpo, é aquilo que reproduz os arquétipos espirituais. Em conexão com esta reflexão de realidades superiores em planos inferiores, a imaginação possui certa vantagem sobre o pensamento abstrato. Em primeiro lugar, é capaz de múltiplas interpretações; ademais, não é tão esquemática como o pensamento abstrato e então, na medida em que se 'condensa' em uma imagem pura, baseia-se na correspondência inversa que existe entre o terreno corporal e espiritual, de acordo com a lei segundo a qual 'o que está embaixo é reflexo do que está acima', como está colocado na Tábua de Esmeralda. * Na medida em que o intelecto humano, 29Corpus Hermeticum, op. cit., capítulo “Poimandrès”. 33 como resultado de uma união mais ou menos completa com o Intelecto Universal, afasta-se da multiplicidade das coisas, e por assim dizer sobe em direção à unidade indivisa, assim o conhecimento da natureza que o homem obtém de tal intuição não pode ser de uma espécie puramente racional e discursiva. Para ele o mundo agora se mostra transparente: nessa aparência ele vê o reflexo de 'arquétipos' eternos. E mesmo quando essa intuição não é imediatamente presente os símbolos que saltam dele, contudo desperta a memória ou a 'recordação' desses protótipos. Esta é a visão hermética da natureza. O que é decisivo para este ponto de vista não é a natureza mensurável e inumerável das coisas, condicionada que é pelas causas e circunstâncias temporais; é precisamente suas qualidades essenciais, que podem ser imaginadas como os fios verticais (urdidura) de um tecido, tomado como representação do mundo, na qual se entrelaçam os fios horizontais (trama), fazendo assim do tecido um material unificado e compacto. Os fios verticais são o conteúdo imutável ou 'essência' das coisas, enquanto os fios horizontais representam sua natureza 'substancial', dominada pelo tempo, espaço e condições similares30. Dessa comparação pode-se ver como a visão do cosmos baseada na tradição espiritual num senso 'vertical' pode estar correta, ainda que ela possa parecer inexata num sentido 'horizontal' – vale dizer, num sentido de observação discursiva e analítica. Assim, por exemplo, não é necessário conhecer todo metal existente em vista de conhecer diretamente o arquétipo do metal em si mesmo. É suficiente levar em consideração os sete metais mencionados pela tradição – ouro, prata, cobre, estanho, ferro, chumbo e mercúrio – em vista de compreender a possível gama de variações dentro de um tipo. (Aqui nos preocupamos apenas com o aspecto qualitativo do metal). É o mesmo que considerar o conhecimento dos quatro elementos31, que na alquimia desempenha um papel tão importante. Esses elementos não são os constituintes químicos 30 Sobre o simbolismo do tecido, veja René Guénon, Le Symbolisme de la Croix, París, 1931. 31 Os hindus falam de cinco elementos, pois incluem o éter (akasha), a quintessência dos alquimistas. 34 das coisas, mas são as determinações qualitativas da matéria em si mesma. Tanto que no lugar de se falar em terra, água, ar e fogo, pode-se também falar no modo sólido, líquido, aéreo ou ígneo da existência dos materiais. A evidência analítica de que a água consiste em duas partes de hidrogênio e de uma parte de oxigênio não nos diz absolutamente nada sobre a essência do elemento água. Pelo contrário, esse fato, que apenas pode ser conhecido circunstancialmente, e por assim dizer abstratamente, na realidade obscurece a qualidade essencial 'água'. Além disso, a abordagem científica a rigor limita a realidade em questão a um plano determinado, apesar de que a intuição imediata e simbólica do elemento desperta um eco que ressoa através dos níveis de consciência, a partir do corpóreo ao espiritual. A ciência moderna 'disseca' as coisas, com a intenção de possuir a manejá-las no seu próprio nível. Esse objetivo está acima de toda a tecnologia. O racionalismo apega- se à crença de que através dos materiais e das análises quantitativas, pode-se descobrir a verdadeira natureza das coisas. Característico desse ponto de vista é a opinião de Descartas de que as definições escolásticas do homem como um 'animal dotado de razão' não diz nada a respeito dele, a não ser através do estudo de seus ossos, tendões, tecidos etc32. Como se uma uma substância não fosse mais próxima da realidade, quanto mais ampla fosse! O entendimento analítico é, em última instância, nada mais que uma faca que investiga na articulação das coisas. Fazendo assim ele permite uma visão mais clara delas. Mas a essência não é acessível à mera dissecação. Goethe entendeu isso muito bem quando disse que o que a natureza não nos revelou na luz do dia não pode ser retirado à força dela pelas 'alavancas e parafusos'. * A diferença entre a cosmologia tradicional, a exemplo da cosmologia hermética, e a ciência analítica, dominada apenas pela razão, mostra-se mais claramente na sua 32Descartes, La recherche de la Vérité par les lumieres naturelles, citado em Maurice Dumas, Histoire de la Science. «Encyclopédie de la Pléiade», pág. 481. 35 perspectiva astronômica. A mais antiga concepção do mundo, na qual a Terra é vista como um disco coberto por um céu de abóboda estrelada, está cheia de significados os mais gerais e profundos – significados que são tanto menos obsoletos quanto esta imagem do mundo continua sendo verdade, não sendo outra coisas que não a experiência natural e imediata de todo ser humano. O céu, por seu movimento o medidor de tempo, a determinação do dia e da noite e das estações, a causa do subir e baixar dos luminares, o distribuidor das chuvas, manifesta o polo ativo e masculino da existência. A Terra, por outro lado, que por influência do céu se fertiliza, traz à tona plantas e nutre todas as criaturas vivas, corresponde ao polo passivo e feminino. Esse relacionamento entre o céu e a Terra, da existência ativa e passiva,é o arquétipo e modelo de várias dualidades analógicas, tal como o par conceitual 'forma essencial' (eidos, forma) e 'matéria' ou 'substância' (hyle, materia), e a dualidade, compreendida à luz de Platão, do espírito ou intelecto (nous) e alma (psyche). O movimento circular dos céus pressupõe a existência de eixos imóveis e invisíveis, correspondentes ao intelecto, que está presente imutavelmente em todas as circunstâncias do mundo. Do mesmo modo, o percurso do Sol traça uma cruz regular composta de pontos cardinais – Norte e Sul, Leste e Oeste – após o que as qualidades cósmicas que governam toda a vida distribuem-se respectivamente como frios e quentes, secos e úmidos. Podemos ver mais tarde como essa ordem é repetida dentro do microcosmo da alma humana. O percurso solar, na medida em que aparece sobre o horizonte, segue um círculo cada vez mais largo do solstício de inverno ao solstício de verão, e então um círculo cada vez mais curto, até que todo o ano se transcorra. Basicamente isso corresponde a um espiral que se vai 'liberando', e que após várias voltas transforma-se numa espiral que se vai 'enrolando' – uma imagem que foi retratada numa variedade de sinais, como a espiral dupla, 36 a espiral de dois vórtices, conhecida como o yin-yang chinês, e não menos importante no grupo de Hermes (os caduceus) nos quais duas cobras são entrelaçadas em um eixo – o eixo do mundo33. A oposição se manifesta nas duas fases do curso solar (o ascendente e o descendente), correspondendo, em um certo sentido, à oposição entre céu e Terra – com a diferença de que aqui os dois lados são móveis, e então no lugar de uma oposição de causas, trata-se de uma questão de alternância de forças. Céu e Terra estão acima e abaixo; os dois solstícios estão um no Sul e outro Norte; eles estão relacionados um com o outro como expansão e contração. Nós podemos mais uma vez nos depararmos com essa oposição, que tem vários significados, em conexão com o magistério alquímico, onde ela aparece como oposição entre o enxofre e o mercúrio. * 33A esse respeito, René Guénon, Le Symbolisme de la Croix y Julius Schwabe, Archetyp und Tierkreis, Basilea, 1951. 37 Uma forma irlandesa ou anglo-saxônica dos dois dragões na árvore do universo. A suástica no tronco da árvore (que corresponde ao eixo universal) representa o movimento dos céus. Cada dragão é composto de doze sóis e estrelas, que podem corresponder aos doze meses. De uma minuatura do séx. XVIII, extraída das 'Cartas paulinas de Northumberland', na Biblioteca da Universidade de Würzburg. A concepção do universo de Ptolomeu (na 38 qual a Terra, como um globo, representa o centro, ao redor do qual os planetas giram em uma variedade de órbitas e esferas, cercados pelo céu de estrelas fixas e, na parte externa, pelo empíreo sem estrelas) não afasta o significado da antiga concepção de universo, e nem retira a experiência imediata que o ser humano tem dela. Ademais, isso coloca em jogo um simbolismo diferente, especificamente aquele do caráter compreensivo do espaço. A graduação das esferas celestes reflete a ordem ontológica do mundo, segundo a qual cada nível de existência procede de um mais alto, de modo que um nível superior 'contém' o inferior, assim como a causa 'contém' o efeito. Assim, quanto maior for a esfera celeste na qual as estrelas se movem, mais puro, menos condicionado e mais próximo da origem divina será o nível de consciência a que isso corresponde. O empíreo sem estrelas, que envolve os céus estrelados e que aparenta compartilhar seu movimento com o firmamento das estrelas fixas (a rotação mais rápida e mais regular de todas as esferas), representa o primeiro motor (primum mobile) e assim também o Intelecto Divino que abrange tudo. Essa é a concepção de mundo de Ptolomeu adotado por Dante. Antes dele já se encontrava em textos árabes. Há também um manuscrito hermético anônimo, do séx. XII, escrito em latim e provavelmente de origem catalã34, no qual o significado espiritual das esferas celestes que se abarcam é apresentada de uma forma muito parecida com a da Divina Comédia. A ascensão através das esferas é descrita como uma subida através da hierarquia dos níveis espirituais (ou intelectuais), por meio da qual a alma, que sucessivamente assimila isso, gradualmente se desloca dos limites do conhecimento discursivo às formas de uma visão indiferenciada e imediata na qual sujeito e objeto, conhecedor e conhecido são um. Essa descrição é ilustrada por desenhos que demonstram as esferas celestes como círculos concêntricos, através dos quais o homem sobe, como se estivesse nas escadas de Jacó, à mais alta 34Publicado em M. T. d'Alverny, Les pélégrinations de l’Ame dans l'autre Monde d’après un anonyme de la fin du XIIè siècle, en «Archives d'Histoire doctrinale et littéraire du Moyen Age», 1940-1942. Segundo investigações posteriores de M.T. d’Alverny, o manuscrito que se conserva na Biblioteca Nacional de Paris foi escrito provavelmente na Bolonha, inspirado em um antecedente espanhol. 39 esfera, o Empíreo, no qual Cristo está sentado em seu trono35. Os círculos celestes são complementados em uma direção descendente – ou seja, em direção à Terra – pelos elementos. Próximo à esfera lunar está o círculo do fogo; abaixo está o círculo do ar, que confina a água, que imediatamente envolve a Terra. Vale ressaltar que esse escrito anônimo, cujas características herméticas são evidentes, reconhece a validade de todas as três religiões monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Isso demonstra claramente como a ciência hermética, graças à sua linguagem cosmológica simbólica pura, baseada na natureza, pode ser combinada com qualquer religião genuína, sem conflitos com os respectivos dogmas. Como a revolução do oitavo céu, o firmamento de estrelas fixas é a medida básica do tempo. Então o céu externo sem estrelas (que confere ao oitavo o seu movimento ligeiramente atrasado, em razão da assim chamada processão dos equinócios) deve representar a linha divisória entre tempo e eternidade, ou entre todos os modos de duração mais ou menos condicionados36 e o eterno 'agora'. A alma, que é representada como ascendendo através das esferas, uma vez alcançado o Empíreo, deixará para trás o mundo da multiplicidade e das formas e condições mutuamente exclusivas e alcançará o Ser indiviso e todo envolvente. Dante representa essa passagem – que envolve uma completa reversão do panorama – confrontando a ordem cósmica das esferas concêntricas, que amplia sucessivamente da limitação da Terra à Infinidade Divina, com uma ordem invertida, cujo centro é Deus, e ao redor de quem o coro dos anjos gira, em cada vez maiores círculos. Eles giram mais rapidamente onde eles estão mais próximos da origem divina – em contraposição com as esferas cósmicas, cujo aparente movimento cresce em proporção com sua distância do centro terrestre. Com essa 'transformação' da ordem cósmica em ordem divina, Dante antecipa o profundo significado da concepção heliocêntrica. * 35 Veja as lâmitas l e 2; e a explicação correspondente adiante. 36 Segundo Averróis, o movimento ininterrupto do ciclo sem estrelas é a interseção entre tempo e eternidade. 40 Figuras 1 e 2. A ascensão da alma através 41 das esferas. Duas representações análogas de um manuscrito hermético anônimo do final do séc. XII (MS Latin 3236A da Biblioteca Nacional de Paris; publicado pela primeira vez por M. T. d´Alverny nos Arquivos de História doutrinal e literal da Idade Média, 1940-42).
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