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Alquimia Titus Burckhardt

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Titus Burckhardt
ALQUIMIA
Ciência do cosmos,
ciência da alma
1
Fons Vitae
Louisville Kentuchy
A partir da tradução inglesa de William Stoddart
Tradução (amadora, para uso particular) para a língua
portuguesa: Bruno Costa Magalhães
Ilustração da capa: o casamento do rei e da rainha, do sol e da
lua, sob a influência do mercúrio espiritual. Do Philosopher´s
Rosegarden´, de Arnaldus von Villanova, manuscrito na
Biblioteca Vadiana, St. Gallen
2
FONS VITAE
ALCHEMY
Filho do escultor suíço Carl Burckhardt,
Titus Burckhardt nasceu em 1908. Sua juventude foi dedicada a
estudos da arte, história da arte, línguas orientais e a viagens pelo
norte da África e Oriente Próximo. Em 1942 ele tornou-se
diretor da Urs Graf-Verlag, uma editora especializada em edições
fac-símile de manuscritos antigos. Lá permaneceu até 1968.
Além de escrever livros em alemão, ele traduziu diversos e
importantes trabalhos do árabe. De seus trabalhos foram
publicados em língua inglesa, An Introduction to Sufi Doctrine,
Sacred Art in East and West, Moorish Culture in Spain, The Art
of Islam, Sienna, Fez City of Islam, Chartres e uma coleção de
seus ensaios Mirror of the Intellect. Os últimos três, assim como
Alquimia, foram traduzidos do alemão por William Stoddart.
3
ALCHEMY
A editora Fons Vitae orgulha-se de
anunciar a publicação de uma nova edição de Alchemy, dedicada
a Madame Edith Burckhardt. A realização espiritual tem sido
frequentemente descrita na terminologia da tradição alquímica,
pela qual a natureza sombria que dirige o homem é reconduzida
ao ouro, seu estado original. Isso tem sido frequentemente
tratado como 'alquimia espiritual'. Nesse volume
maravilhosamente esclarecedor somos conduzidos a algumas
dessas metáforas que se têm mostrado úteis para estabelecer
determinadas atitudes na alma, entre elas: confiança e
resignação, responsabilidade e esperança. Por exemplo: há uma
clara pertinência simbólica na seguinte analogia: qualquer
substância, ou entidade, submetida à dissolução (isso pode dar-se
inclusive em um relacionamento) pode finalmente ser
recristalizada em uma nova forma. Em outras palavras, um novo
ser é resolidificado em uma forma mais alta e mais nobre.
4
ÍNDICE
Introdução 6
1 A origem da alquimia ocidental 9
2 Natureza e linguagem da alquimia 19
3 A sabedoria hermética 28
4 Espírito e matéria 50
5 Planetas e metais 68
6 A rotação dos elementos 82
7 Da materia prima 87
8 Natureza universal 104
9 “A natureza pode dominar a natureza” 111
10 Enxofre, mercúrio e sal 127
11 Do “casamento químico” 138
12 A alquimia da oração 145
13 O Athanor 148
14 A história de Nicolas Flamel e de sua esposa
Perrenelle
159
15 Os estágios do trabalho 169
16 A Tábua de Esmeralda 180
17 Conclusão 186
Lista cronológica de autores herméticos e místicos
citados
189
Bibliografia de trabalhos clássicos 190
5
INTRODUÇÃO
Desde o Século do Iluminismo até os dias
de hoje, a alquimia tem sido comumente considerada como a
precursora da química moderna. Por isso, quase todos os
estudiosos que se dedicam a suas obras não têm tido motivo para
ver nela algo além do que um estágio inicial de futuras
descobertas na área da química. Esse modo unilateral de tratar a
alquimia tem pelo menos o mérito de causar a distinção a ser
feita entre seu conjunto de documentos a respeito de
experiências artesanais tradicionais – na preparação de metais,
corantes e vidros – e os procedimentos aparentemente irracionais
que desempenham um papel na alquimia como tal. Como esse
conjunto de documentos a respeito das experiências artesanais é,
como se sabe, longe de ser insignificante, a obediência teimosa
dos alquimistas a fórmulas químicas sem significado do seu
magistério não pode deixar de parecer mais peculiares. As
pessoas rapidamente concluem que o insaciável desejo de
produzir ouro persistentemente motivou os homens a acreditar
em um grande número de receitas fantásticas, o que, a bem da
verdade, não são nada mais que uma aplicação popular e
supersticiosa da filosofia da natureza dos antigos; como se os
alquimistas tivessem tentado, em parte através de procedimentos
físicos, e em parte através de evocações mágicas, tomar posse
direta da materia prima aristotélica – o fundamento de todas as
coisas.
Nunca pareceu chamar a atenção de
ninguém como no mínimo improvável que uma 'arte' assim dessa
espécie poderia, apesar de suas loucuras e decepções, ter
implantado a si mesma por séculos a fio nas mais diversas
culturas no ocidente e no oriente. Pelo contrário, as pessoas estão
mais inclinadas a adotar o ponto de vista de que, há até um
século, toda a humanidade estava sonhando um sonho estúpido,
cujo despertar veio apenas com a nossa época. Como se a
faculdade espiritual-intelectual do homem – seu poder de
distinguir o real do irreal – estivesse igualmente sujeita a alguma
espécie de evolução biológica.
Esse modo de olhar para a alquimia é
contradito por um determinado princípio de unidade organizado
6
pela própria alquimia: descrições do 'grande trabalho' agitam-se
a partir de várias culturas e vários séculos evidenciam, embora, é
bem verdade, haja uma multiplicidade de símbolos,
determinadas características invariáveis, que não são explicadas
empiricamente. Essencialmente, a alquimia indiana é idêntica à
ocidental; e a alquimia chinesa, embora arranjada em uma
atmosfera espiritual completamente diferente, pode lançar luzes
em ambas. Se a alquimia não fosse nada além de uma impostura,
a sua forma de expressão revelaria arbitrariedades e loucuras a
todo momento; mas, na verdade, ela parece possuir todos os
sinais de uma 'tradição' genuína, ou seja, uma orgânica e
consistente – embora não necessariamente sistemática – doutrina
e um claro corpo de regras estabelecidas e persistentemente
exposta por seus adeptos. Assim, a alquimia não é nem um
produto híbrido ou fruto do acaso da história humana. Pelo
contrário, representa uma profunda possibilidade para o espírito
e para a alma.
Essa também é a posição da auto-
denominada 'psicologia profunda', que pretende encontrar no
simbolismo alquímico uma confirmação de suas próprias teses a
respeito do 'inconsciente coletivo'1. De acordo com essa visão, o
alquimista, na sua busca sonhadora, traz à luz do dia
determinados conteúdos da sua própria alma que eram
desconhecidos, e assim, sem pretender conscientemente fazê-lo,
traz um tipo de reconciliação entre a sua consciência individual,
superficial e cotidiana, e o poder do 'inconsciente coletivo', ainda
não formado (mas em busca de formação) . Supôs-se que essa
reconciliação daria lugar a uma experiência de satisfação íntima,
que subjetivamente tem sede no magistério alquímico. Essa
visão, assim como as precedentes, é baseada na premissa de que
a primeira intenção dos alquimistas é fazer ouro. Considerava-se
que o alquimista se havia envolvido em alguma forma de
loucura, ou auto-engano, e em razão disso havia sido levado a
pensar e a agir como alguém que está sonhando. Essa explicação
possui alguma plausibilidade, desde que, de alguma forma, ela se
aproxima da verdade – apenas para se afastar dela
1Veja Herbert Silberer, Probleme der Mystik un thre Symbolik, Viena, 1914: C. G.
Jung, Psychologie und Alchemie, Zurich, 1944 y 1952, y Mysterium Conjunctionis,
Zurich, 1955 e 1957.
7
imediatamente. É verdade que a realidade espiritual na qual o
alquimista trabalha é uma espécie de iniciação, é algo de que o
iniciante está mais ou menos inconsciente, é algo que está
escondido no fundo da alma. Apesardisso, esse 'segredo
profundo' não deve ser confundido com o caos do assim-
chamado 'inconsciente coletivo' – tanto quando esse conceito
algo elástico tenha algum significado preciso. A 'fonte de
juventude' dos alquimistas não surge em nenhum sábio a partir
de um substrato psíquico obscuro; ela flui através da mesma
fonte do espírito. Ela é escondida dos alquimistas no começo do
seu 'trabalho', não porque está abaixo mas sim porque está acima
do nível do processo de consciência mental.
A hipótese dos psicólogos se evapora na
medida em que se compreende que os alquimistas genuínos
nunca estiveram enredados em nenhum sonho de satisfação de
desejos de fazer ouro, nem perseguiam seu objetivo como
sonâmbulos, ou por meio de 'projeções' passivas do conteúdo
inconsciente de suas almas! Pelo contrário, eles seguiam um
método deliberado, cuja expressão metalúrgica – a arte de
transmutação de metais comuns em prata ou ouro –
reconhecidamente enganou diversos pesquisadores não-
iniciados, embora em si mesmo seja ele lógico e, ademais,
realmente profundo.
8
CAPÍTULO 1
A ORIGEM DA ALQUIMIA OCIDENTAL
A alquimia existe desde, pelo menos,
metade do primeiro milênio antes de Cristo, e provavelmente
desde os tempos pré-históricos. À pergunta sobre como pôde a
alquimia existir por milênios em civilizações tão amplamente
separadas, como a do Oriente Próximo e a do Extremo Oriente, a
resposta da maioria dos historiadores possivelmente seria a de
que o homem tem repetidamente falhado na tentativa de ficar
rico rapidamente buscando fazer ouro e prata através de metais
comuns, até que os químicos empíricos do séc. XVIII finalmente
provaram que os metais não podem ser transformados um em
outro. Na realidade, entretanto, a verdade é muito diferente e,
pelo menos em parte, diametralmente oposta.
Ouro e prata já eram metais sagrados antes
mesmo de serem transformados em medida de todas as
transações comerciais. Eles são o reflexo terrestre do Sol e da
Lua, e assim também de todas as realidades do espírito e da alma
que estão relacionadas os pares celestiais. Até mesmo na Idade
Média o valor relativo desses dois metais nobres era determinado
pela relação entre os tempos de rotação desses dois corpos
celestes. Também as moedas antigas usualmente apresentavam
figuras ou sinais relacionados ao Sol ou à sua rotação anual. Para
o homem dos tempos pré-racionalistas, a relação entre os metais
nobres e os dois luminares era óbvia, e todo um mundo de
noções mecanicistas e os preconceitos acabaram necessariamente
obscurecendo a realidade auto-evidente dessa relação e fazendo
com que ela acabasse parecendo um acidente estético.
Não se deve confundir um símbolo com
uma mera alegoria, nem tentar ver nele a expressão de um
instinto coletivo algo nebuloso e irracional. O verdadeiro
simbolismo depende do fato de que as coisas, se se podem
modificar em razão de tempo, espaço, natureza material, e de
várias outras características limitativas, podem, por outro lado,
possuir e exibir a mesma qualidade essencial. Elas, assim,
aparecem como diversos reflexos, manifestações ou produções
9
da mesma realidade – que, em si mesma, é independente de
tempo e de espaço. Assim, não é muito correto dizer que o ouro
representa o Sol, ou que a prata representa a Lua;
diferentemente, trata-se de que os dois metais nobres e os dois
luminares são símbolos das mesmas realidades cósmicas e
divinas2.
A magia do ouro, assim, vem da sua
natureza sagrada, ou perfeição qualitativa, e apenas
secundariamente do seu valor econômico. Em vista da natureza
sagrada do ouro e da prata, a obtenção desses dois metais só
poderia ser uma atividade sacerdotal, assim como a cunhagem de
moedas de ouro e prata era prerrogativa apenas de determinados
lugares sagrados. Em sintonia com isso está o fato de que os
procedimentos metalúrgicos relativos ao ouro e à prata, que
foram preservados em algumas assim-chamadas sociedades
primitivas dos tempos pré-históricos, revelam abundantes sinais
da sua origem sacerdotal3. Nas culturas 'arcaicas', ainda não
familiarizadas com a dicotomia do 'espiritual' e do 'prático', nas
quais tudo era visto em relação com a unidade íntima do homem
e do cosmos, a preparação dos minérios era sempre realizada
como um procedimento sagrado. Como regra, era prerrogativa da
casta sacerdotal, chamada a esta atividade por comando divino.
Onde não era assim, como no caso de determinadas tribos
africanas, que não possuíam suas próprias tradições
metalúrgicas, o fundidor ou ferreiro, como um intruso não
autorizado na sagrada ordem da natureza, caía na suspeição de
envolvimento com a magia negra4.
O que aos olhos do homem moderno
parece superstição – e o que, em parte, apenas sobreviveu como
tal – é na verdade um pressentimento de uma profunda relação
entre a ordem natural e a alma humana. O homem 'primitivo'
estava bem consciente de que a produção de minérios no 'ventre'
da terra e a sua violenta purificação pelo fogo era algo sinistro, e
cheio de possibilidades perigosas, mesmo que eles não tivessem
2Na obra etnológica de E. E. Evans-Pritchard, Nuer Religion, capítulo «The
Problems of Symbols», Oxford at the Clarendon Press, 1956, há uma excelente
explicação do que se pode entender por símbolo.
3Veja Mircea Eliade, Forgerons et Alchimistes, coleção «Horno sapiens», París,
1956.
4ibid.
10
todas as provas de que a história da Era dos Metais tão
abundantemente nos proveu. Para a humanidade 'arcaica' – que
não separava artificialmente matéria de espírito – a chegada da
metalurgia não foi simplesmente uma 'invenção', mas também
uma 'relevação', porque apenas um comando divino poderia
autorizar à humanidade o acesso a tal atividade. No início,
entretanto, essa revelação foi uma faca de dois gumes5; ela
requeria uma prudência especial por parte de quem ela havia sido
recebida. Assim como o trabalho exterior do metalúrgico com os
minérios e o fogo apresentava algo de violento em relação a ele,
assim também a influência que pesava sobre o espírito e a alma –
que eram inescapáveis neste chamado – era de uma perigosa e
dúbia natureza. Em particular a extração de metais nobres a
partir de minérios impuros, por meio de solventes e de agentes
purificadores como o mercúrio e antimônio, e em conjunção com
o fogo, era inevitavelmente realizada contra as resistências de
sombrias e caóticas forças da natureza, assim como a conquista
da 'prata interior' ou do 'ouro interior' – na sua pureza imutável e
luminosidade – demanda a conquista de todos os impulsos
obscuros e irracionais da alma.
*
O diálogo seguinte, extraído da
autobiografia de um senegalês, mostra como em determinadas
tribos africanas o trabalho com o ouro foi continuamente tratado
como arte sagrada até os presentes dias6.
“... Assim que meu pai sinalizou, os dois
aprendizes começaram a trabalhar o fole da pele de carneiro que
estava situado em ambos os lados da fornalha e conectado a ela
por meio de cachimbos de barro... As chamas no forno
espoucavam e pareciam ganhar vida – um gênio animado e mau.
“Meu pai, então, pegou a panela de
fundição com sua longa pinça, e colocou-a nas chamas.
“De repente todas as outras ocupações na
forja cessaram, porque enquanto o ouro estava sendo fundido, e
5“Nós revelamos o ferro. Nele há força maligna e utilidade para os homens”
(Corão, LVII, 25).
6Camara Laye, L'Enfant noir, París, 1953.
11
enquanto ele esfriava, era proibido trabalhar nas suas
proximidades quer com o cobre, quer com oalumínio, para
evitar que uma partícula desses metais comuns entrasse na
panela de fundição. Apenas o aço poderia continuar a ser
trabalhado. Mas mesmo aqueles engajados em alguma tarefa
com o aço geralmente deveria terminá-la rapidamente ou deixá-
la de lado, para juntar-se aos aprendizes em volta do forno...
“Quando meu pai sentiu que seus
movimentos estavam começando a ser impedidos pelos
aprendizes que se amontoavam em volta, fazia sinal para que
eles se afastassem. Nem ele, nem ninguém, poderia pronunciar
nenhuma palavra. A quietude era rompida apenas pelo chiado
dos foles e pelo assovio do ouro. Mas embora meu pai não
dissesse nenhuma palavra, eu sabia que ele falava para si; eu
podia vê-lo por seus lábios, que se moviam silenciosamente
assim que ele mexia no ouro e no carvão com uma vara – que,
assim que pegava fogo, era substituída.
“O que ele dizia para si? Eu não sei dizer
com certeza, já que ele nunca me disse. O que poderia ser senão
uma invocação? Ele não invocava os espíritos do fogo e do ouro,
do fogo e do vento – o vento que soprava através dos foles, do
fogo que vem do vento e do ouro que estava aliado ao fogo?
Certamente ele pedia ajuda e suplicava a sua cooperação e
comunhão; certamente que ele invocava esses espíritos que
estavam entre os mais importantes, e cujo apoio era muitíssimo
necessário para a fundição.
“O processo que acontecia diante de meus
olhos não era apenas e por fora a fundição do ouro. Havia algo
além disso: um processo mágico que os espíritos poderiam
favorecer ou atrapalhar. Daí porque a quietude reinou em volta
de meu pai...
“Não é notável que naquele momento uma
pequena cobra negra sempre permanecia escondida por baixo da
pele do carneiro? Porque ela nem sempre esteve lá. Ela não vem
visitar meus pais todos os dias, e ela nunca deixa de vir quando o
ouro está sendo trabalhado. Isso não me surpreende. Desde
então, em uma noite, meu pai me falou sobre o espírito da nossa
tribo, e eu achei muito natural que aquela cobra estivesse ali,
porque a cobra conhece o futuro...
12
“O artesão que trabalha o ouro deve antes
de tudo purificar-se, deve lavar-se da cabeça aos pés, e, durante o
trabalho deve abster-se de relações sexuais...”
*
Que existe um ouro interior, ou melhor, que
o ouro tem uma realidade interior, assim como uma realidade
exterior, é apenas lógico para o modo contemplativo de olhar as
coisas, que espontaneamente reconhece a mesma 'essência' no
ouro e no Sol. É aqui, e em nenhum outro lugar, que as raízes da
alquimia repousam. As origens da alquimia remontam à arte
sacerdotal dos antigos egípcios; a tradição alquímica que se
espalhou pela Europa e pelo Oriente Próximo, e que talvez até
mesmo influenciou a alquimia indiana, reconheceu como seu
fundador Hermes Trismegistos, o 'Hermes, o três vezes grande',
que é identificado com o antigo deus egípcio Thoth, o deus que
reina sobre toda a arte sacerdotal e científica, um pouco como
Ganesha no Hinduísmo. A expressão alchemia deriva do árabe
al-kimiya, que parece derivar do antigo egípcio kême – a
referência à 'terra negra', que era uma designação do Egito, e que
poderia ter sido também o símbolo da matéria-prima dos
alquimistas. Outra possibilidade é que a expressão deriva do
grego chyma ('fusão' ou 'fundição'). Em todo caso, os desenhos
alquímicos remanescentes mais antigos estão em papiros
egípcios. Que nenhum documento primitivo tenha chegado até
nós não é surpresa, desde que é uma característica essencial de
uma arte sagrada a sua transmissão oral; que seu registro escrito
possa ser encomendado é usualmente o primeiro sinal de
decadência ou do receio de que a tradição oral será perdida.
Assim, é completamente natural que o assim-chamado Corpus
Hermeticum, que compreende todos os textos atribuídos a
Hermes-Thoth, tenham chegado até nós em grego, e revestido
mais ou menos em uma linguagem platônica. Que esses textos
são, todavia, originados de uma tradição genuína, e que não são
fabricações pseudo-arcaicas dos gregos, é provado por sua
fecundidade espiritual. As evidência sugerem que a assim-
chamada 'Tábua de Esmeralda' é também parte do Corpus
Hermeticum. A Tábua da Esmeralda declara-se uma revelação de
13
Hermes Trismegistos, e é considerada pelos alquimistas que
escreveram em árabe e em latim como nada menos que a 'tábua
da lei' da sua arte. Não há nenhum texto primitivo da Tábua da
Esmeralda. Ela chegou até nós apenas em tradições árabes e
latinas – pelo menos tanto quanto se pesquisou até agora – mas
seu conteúdo evidencia sua autenticidade.
Em abono à origem egípcia da alquimia do
Oriente Próximo e do Ocidente está o fato de que toda uma série
de procedimentos artesanais, relacionados com a alquimia e
provendo-a de várias expressões simbólicas, apareceu como um
conjunto coerente a partir dos últimos tempos egípicios,
finalmente aparecendo nos livros prescritivos medievais. Este
corpo de procedimentos contém alguns elementos claramente
derivados do Egito. Entre esses procedimentos, além do trabalho
do metal e da preparação de tinturas, está a produção de pedras
preciosas artificiais e vidros coloridos, uma arte que floresceu no
Egito. De mais a mais, toda a arte egípcia dos metais e minerais,
no seu esforço para extrair o a essência, secreta e preciosa, de
uma 'substância' terrestre, mostra uma óbvia relação espiritual
com a alquimia.
A Alexandria egípcia, em seus últimos
tempos, foi sem dúvida o cadinho no qual a alquimia, juntamente
com outras artes e ciências cosmológicas, recebeu a forma na
qual ela nos é hoje conhecida, sem por isso ser alterada em
nenhum aspecto essencial. Pode muito bem ter sido nessa época
que a alquimia também adquiriu alguns temas da mitologia grega
e asiática. Isso não deve ser considerado um acontecimento
artificial. O crescimento de uma tradição genuína parece-se com
um cristal, que atrai partículas homólogas a si próprio,
incorporando-as de acordo com as suas próprias leis de
harmonia.
Dessa época em diante, podem-se observar
duas correntes na alquimia. Uma é predominante e naturalmente
artesanal; o simbolismo de um 'trabalho interior' aparece aqui
como um complemento a uma atividade profissional e é apenas
ocasional e incidentalmente mencionado; a outra faz uso de um
processo metalúrgico exclusivamente como analogia. Então se
pode até mesmo perguntar se esses procedimentos foram
utilizados 'exteriormente'. Isso fez com que alguns cunhassem a
14
distinção entre a alquimia artesanal – a qual se acredita seja mais
antiga – e a assim-chamada alquimia mística, que se supõe de
desenvolvimento superior. Na realidade, entretanto, trata-se de
dois aspectos de uma e mesma tradição, na qual o aspecto
simbólico é sem dúvida o mais arcaico.
Será sem dúvida questionado como foi
possível à alquimia, juntamente com o seu fundamento
mitológico, ser incorporada nas religiões monoteístas: judaísmo,
cristianismo e islã. A explicação para isso é que as perspectivas
cosmológicas próprias da alquimia, relativas tanto à esfera
externa dos metais (e minerais em geral) quanto ao terreno
interior da alma, estavam organicamente ligadas com a
metalurgia antiga, e assim esse fundo cosmológico foi recebido,
juntamente com as técnicas artesanais, simplesmente como uma
ciência da natureza (physis) no sentido mais amplo do termo,
assim como o cristianismo e o islã se apropriaram das tradições
pitagóricas na música e na arquitetura, e assimilaram a
correspondente perspectiva espiritual.
Do ponto de vista cristão, a alquimia era
como que um espelho natural para asverdades relevadas: a pedra
filosofal, que transformava metais em ouro, é um símbolo de
Cristo, e a sua produção a partir do 'fogo que não se queima' do
enxofre, e a 'água inabalável' do mercúrio simbolizam o
nascimento de Cristo-Emmanuel.
Através dessa assimilação pela fé cristão, a
alquimia foi espiritualmente fecundada, enquanto o cristianismo
encontrou nela um caminho que, através da contemplação da
natureza, conduzia a uma verdadeira 'gnosis'.
Ainda com maior facilidade a arte
hermética entrou no mundo espiritual islâmico. Este sempre
esteve pronto, em princípio, para reconhecer qualquer arte pré-
islâmica que aparecesse sob o aspecto de 'conhecimento'
(hikmah) como patrimônio dos primeiros profetas. Assim, no
mundo islâmico, Hermes Trismegistos é algumas vezes
identificado com Enoch (Idrîs).
Foi a doutrina da 'unidade da existência'
(wahdat-al-wujûd) – a interpretação esotérica da confissão de fé
islâmica – que deu ao hermetismo um novo eixo espiritual ou,
em outras palavras, restabeleceu seu horizonte espiritual original
15
em toda a sua plenitude e libertou-a da sufocação do recente
'naturalismo' helenístico.
Enquanto isso, o simbolismo da alquimia,
como resultado da sua incorporação gradual no tardio e clássico
pensamento semítico, desenvolveu-se numa variada
multiplicidade. Apesar disso, alguns traços fundamentais,
próprios da alquimia como 'arte', permaneceram como seu sinal
específico através dos séculos: acima de tudo, mencione-se o
plano preciso do 'trabalho alquímico', as fases individuais com as
quais é caracterizado por meio de alguns processos 'simbólicos'
que nem sempre podem ser levados a cabo na prática.
Em um primeiro momento, a alquimia
entrou na civilização cristã ocidental através de Bizâncio, e
depois, e em maior medida, através da Espanha árabe. Foi no
mundo islâmico que a alquimia alcançou a plenitude de seu
florescimento. Jâbir ibn Hayyân, um discípulo do sexto Shiite
Imam Jafar as-Sâdiq, fundou no séc. XVIII d. C. uma verdadeira
escola, a partir da qual centenas de textos alquímicos fluíam.
Sem dúvida que foi em razão de o nome de Jâbir ter-se
transformado em uma marca de qualidade de grande erudição
alquímica, que o autor da Summa Perfectionis, um italiano ou
catalão do séc. XIII d. C., também assumiu o nome, Gebe, na sua
forma latinizada.
Quando, com o Renascimento, ocorreu a
grande irrupção da filosofia grega, uma nova onda de alquimia
bizantina alcançou o Ocidente. Nos séc. XVI e XVII vários
trabalhos alquímicos foram impressos, e até então existiam
apenas manuscritos que haviam circulado mais ou menos
secretamente. Como resultado disso, o estudo do hermetismo
alcançou um novo patamar; foi em breve, contudo, que entrou
em decadência.
O séc. XVII d. C. é algumas vezes
considerado como marca do florescimento completo do
hermetismo europeu. Na realidade, entretanto, a sua decadência
já havia começado no séc. XV d. C. e prosseguia sem demora
com o desenvolvimento humanístico e já fundamentalmente
racionalista do pensamento ocidental, pelo qual qualquer
perspectiva universal, espiritual e intuitiva, foi privado de seu
fundamento básico. É verdade que por determinado tempo,
16
imediatamente anterior à era moderna, elementos de uma gnosis
genuína, que haviam sido, com dificuldade, tirados do terreno da
teologia tanto pelo desenvolvimento sentimental unilateral dos
últimos místicos cristãos e pela tendência agnóstica inerente à
Reforma, encontraram refúgio na alquimia especulativa. Isso
sem dúvida explica fenômenos como os ecos de hermetismo
detectados em trabalhos de Shakespeare, Jakob Boehme e Georg
Gichtel.
A medicina que derivou da alquimia durou
mais que a própria alquimia. Paracelsus chamou a isso de
'spagyric medicine'. O termo vem das palavras gregas
correspondentes a 'divisão' e 'união' – correspondendo aos termos
alquímicos solve et coagula.
Em geral, a alquimia europeia que se
seguiu à Renascença teve um caráter fragmentário; como uma
arte espiritual, carecia de fundo metafísico. Isso é especialmente
verdade a respeito de seus últimos vestígios no séc. XVIII d. C. –
mesmo apesar do fato de que entre todos os 'queimadores de
carvão', homens de real gênio tais como Newton e Goethe se
ocuparam dela, embora sem sucesso.
Nesse ponto parece oportuno dizer
categoricamente que não pode haver alquimia 'independente' e
hostil à Igreja, porque o primeiro pré-requisito de toda arte
espiritual genuína é reconhecer tudo o que a condição humana,
na sua supremacia e na sua precariedade, necessita em vista de
sua salvação. Que haja também uma alquimia pré-cristã de
nenhum modo prova o contrário; a alquimia sempre foi, em
qualquer época, uma parte orgânica de uma tradição completa,
integral, que em certo sentido congregava todos os aspectos da
existência humana. Na medida, entretanto, em que o
Cristianismo revelou verdades que estavam escondidas da
antiguidade pré-cristã, isso deve ser levado em conta pelos
alquimistas cautelosos. É, assim, um grande erro acreditar que a
alquimia ou o hermetismo, por si sós, poderiam possivelmente
ser uma religião auto-suficiente, ou mesmo um paganismo
secreto. Qualquer atitude dessa espécie deve necessariamente ser
vista como racionalismo e humanismo que paralisa desde o
princípio qualquer esforço em direção ao magistério interior.
É verdade que 'o Espírito sopra onde quer',
17
e ninguém pode, de fora, impor delimitações dogmáticas em suas
manifestações; mas o Espírito não 'sopra' onde ele próprio – o
Espírito Santo – é renegado em qualquer de suas revelações.
Na realidade, a alquimia, que não é ela
mesma uma religião, requer a confirmação de uma revelação –
com os seus meios de graça –, que é endereçada a todos os
homens. Essa confirmação consiste no reconhecimento da via e
do trabalho alquímicos pelos próprios alquimistas como um meio
específico de acesso ao significado completo da mensagem
eterna e salvífica da relevação.
Não devemos nos alongar na história da
alquimia, que, em todo caso, não é conhecida em detalhes, sem
dúvida em grande parte em razão de que a transmissão de uma
arte esotérica geralmente ocorre oralmente. Um último ponto
deve, apesar disso, ser mencionado; o fato de que escritores
alquímicos assumam nomes fantásticos, fora de qualquer relação
com a cronologia, alegadamente como seus autores ou fontes,
em nenhum sentido milita contra o valor dos textos em questão;
porque, independentemente do fato de que o ponto de vista
histórico e o conhecimento alquímico não tenham nada a ver um
com o outro, esses nomes (como no caso do Geber latino) são
indicações de uma dada 'corrente' da tradição, em vez de
pretender ser certificados de autoria. A questão sobre se dado
texto hermético é genuíno ou não, vale dizer, se ele procede de
um conhecimento e experiência verdadeiros da arte hermética,
ou se foi simplesmente coletado arbitrariamente, não pode ser
determinada nem pela filologia, nem pela comparação com a
química empírica; o único critério é a unidade espiritual da
tradição mesma.
18
CAPÍTULO 2
NATUREZA E LINGUAGEM DA ALQUIMIA
No meu livro a respeito dos princípios e
métodos da arte sagrada7, mais de uma vez tive a ocasião de
mencionar a alquimia, a título de comparação, quando se
considera a criação artística como aparece dentro da tradição
sagrada, não do ponto de vista de seu aspecto estético externo,
mas como um processo interno cuja meta é o amadurecimento,
'transmutação', ou renascimento da alma do próprio artista. Aalquimia também foi chamada arte – precisamente a 'arte real'
(ars regia) – por seus mestres e, com sua imagem da
transmutação dos metais comuns em ouro e prata, se presta como
um magnífico símbolo evocativo do processo interno a que ela se
refere. Efetivamente a alquimia pode considerada a arte da
transmutação da alma. Ao dizer isso não estou buscando negar
que os alquimistas também conheciam e praticavam os
procedimentos metalúrgicos, tais como a purificação e a liga de
metais; seu trabalho real, entretanto, dos quais estes
procedimentos são meramente o suporte exterior, ou símbolos
operacionais, foi a transmutação da alma. O testemunho dos
alquimistas nesse ponto é unânime. Por exemplo, no The Book of
Seven Chapters, que foi atribuído a Hermes Trismegistos, o pai
da alquimia ocidental e do Oriente Próximo, lemos: “Veja, eu
abri diante de você o que estava escondido: O trabalho
[alquímico] está em suas mãos e juntamente com você; na
medida em que se encontra dentro de você e é duradouro. Você
sempre terá isso presente, onde quer que você esteja, na terra ou
no mar...”8. E no famoso diálogo entre o rei árabe Khalid e o
sábio Morienus (ou Marianus) se disse como o rei questionou o
sábio sobre onde se poderia encontrar algo com que se pudesse
realizar o trabalho hermético. A isso Morienus se silenciou, e foi
apenas após muita hesitação que ele respondeu: “Ó rei, eu lhe
digo a verdade, que Deus, em sua misericórdia, criou essa coisa
extraordinária dentro de você; onde quer que você esteja, está
7Vom Wesen heiliger Kunst in den Weltreligionen, Origo-Verlag, Zurich, 1955, y 
Príncipes et méthodes de l’art sacré, Lyon, 1968.
8 Bibliothèque des Philosophes Chimiques, ed. por G. Salmon, París, 1741.
19
sempre com você e nunca pode ser separado de você...”9.
A partir de tudo isso, veremos que a
diferença entre a alquimia e qualquer outra arte sagrada é que o
conhecimento alquímico não é alcançado visivelmente, na plano
externo artesanal, como na arquitetura e na pintura, mas apenas
no coração; porque a transmutação de chumbo em ouro, que
constitui o trabalho alquímico, de longe ultrapassa as
possibilidades do conhecimento artesanal. O caráter miraculoso
desse processo – efetuando um 'salto' que, de acordo com os
alquimistas, a natureza por si própria, apenas pode realizar em
um tempo imprevisivelmente longo – destaca a diferença entre
as possibilidades corporais e aquelas da alma. Enquanto uma
substância mineral – cuja solução, cristalização, fundição e
aquecimento podem refletir até certo ponto as mudanças da alma
– deve permanecer confinada em limites definidos, a alma, por
sua parte, pode superar os limites 'físicos' correspondentes,
graças ao encontro com o espírito, que não é confinado por
nenhuma forma. O 'chumbo' representa o caótico, 'pesada' e
doentia condição do metal ou do homem interior, enquanto o
ouro – 'luz congelada' e 'sol terreno' – representa a perfeição da
existência metálica e humana. Na perspectiva dos alquimistas, o
ouro é a efetiva meta da natureza metálica; todos os outros
metais são passos preparatórios, ou experimentais, para esse fim.
O ouro, em si mesmo, possui o equilíbrio harmonioso de todas as
propriedades metálicas e assim também possui durabilidade. O
'cobre não encontra sossego até que se transforme em ouro', disse
Mestre Eckhart, referindo-se, na realidade, à alma, que anseia
por seu próprio ser eterno. Assim, em contraste com a acusação
usual contra eles, os alquimistas não procuram, por meio de
fórmulas secretamente conservadas, nas quais apenas eles
acreditam, fazer ouro de metais ordinários. Quem quer que
realmente tenha desejado tentar isto pertence aos chamados
'charcoal burners' que, sem nenhuma conexão com a tradição
alquímica viva, e puramente com base no estudo de textos que
eles apenas podem compreender no sentido literal, buscaram
alcançar o 'grande trabalho'.
9Ibíd. II. O relato do diálogo entre o rei árabe Chalid e o monge Morieno, o
mariano, foi provavelmente o primeiro texto alquímico treduzido do árabe para o
latim.
20
Como um caminho que pode conduzir o
homem ao conhecimento do seu próprio ser eterno, a alquimia
pode ser comparada com o misticismo. Isso também é indicado
pelo fato de que as expressões alquímicas foram adotadas pela
mística cristã, e ainda mais pela islâmica. Os símbolos
alquímicos da perfeição referem-se ao conhecimento espiritual
da condição humana, ao retorno ao centro ao qual as três
religiões monoteístas chamam de reconquistas do paraíso
terrestre. Nicolas Flamel (1330-1417), que foi um alquimista que
recorreu à linguagem da fé cristã, escreveu sobre a conclusão do
trabalho, que ele 'transforma o homem em bom, afastando dele a
raiz de todos os pecados, especificamente a cobiça. Então ele
torna-se generoso, benigno, piedoso, crente e temente a Deus,
independentemente de quão mal ele havia sido anteriormente;
porque, a partir de então, ele estará sempre cheio da graça e
misericórdia com que ele foi recebido por Deus, e com o mais
profundo de seus maravilhosos trabalhos10.
A essência e o objetivo do misticismo é a
união com Deus. A alquimia não fala disso. O que tem relação
com o caminho místico, entretanto, é a meta alquímica de
reconquistar a nobreza original da condição humana e o seu
simbolismo; porque a união com Deus é possível apenas em
virtude daquilo que, a despeito do abismo incomensurável entre
a criatura e Deus, une o antigo ao mais recente – e isso é o
'teomorfismo' de Adão, que foi 'deslocado' ou se tornou inefetivo
pela Queda. A pureza do homem simbólico deve ser
reconquistada antes que a forma humana possa ser reassumida
no seu arquétipo infinito e divino. Compreendida em seu aspecto
espiritual, a transmutação do chumbo em ouro não é nada além
da reconquista da original nobreza da natureza humana. Assim
como a inigualável qualidade do ouro não pode ser produzida
pela soma exterior das propriedades dos metais tais como massa,
dureza, cor etc., assim a perfeição 'adâmica' não é uma mera
assimilação de virtudes. É tão inimitável quanto o ouro. E o
homem que tenha 'realizado' esta perfeição não pode ser
comparado com os outros. Tudo nele é original, no sentido de
que o seu ser está completamente acordado e unido com a sua
origem. Na medida em que a realização desse estado
10 Bibl, des Phil. Chim.
21
necessariamente pertence à via mística, a alquimia pode, de fato,
ser considerada como um ramo do misticismo.
Ademais, o 'estilo' da alquimia é tão
diferente do misticismo, que é diretamente baseado em uma fé
religiosa, que alguns foram tentados a chamá-lo de 'misticismo
sem Deus'. Essa expressão, entretanto, é perfeitamente
disparatada, para não dizer completamente falsa, porque a
alquimia pressupõe a crença em Deus, e praticamente todos os
mestres dão grande importância à prática da oração. Essa
expressão é verdadeira apenas na medida em que a alquimia, em
si mesma, não possui nenhuma armadura teológica. Assim, a
perspectiva teológica tão característica do misticismo não
delimita o horizonte intelectual da alquimia. O misticismo judeu,
cristão e muçulmano é centrado na contemplação de uma
verdade revelada, um aspecto de Deus, ou uma 'ideia' no sentido
mais profundo da palavra; ele é a realização espiritual dessa
ideia. A alquimia, por sua vez, não é primeiramente nem
teológica (ou metafisica) nem ética; ela olha ao conjunto dos
poderes da alma de um ponto de vista puramente cosmológico e
trata a alma como uma 'substância' que deve ser purificada,
dissolvida e cristalizadanovamente. A alquimia age como uma
ciência ou arte da natureza, em razão disso todos os estados da
consciência íntima são vias da uma única 'natureza' que engloba
tanta as formas externas, visíveis e corporais quanto as formas
internas e invisíveis da alma.
Por tudo isso, a alquimia não está isenta de
um aspecto contemplativo. De forma alguma isso consiste em
mero pragmatismo vazio de intuição espiritual. A sua natureza
espiritual e, de certo modo, contemplativa reside diretamente na
sua forma concreta, na analogia entre o reino mineral e o reino
da alma; essa similaridade pode apenas ser percebida por uma
visão que seja capaz de olhar as coisas materiais
qualitativamente – intimamente, num certo sentido –, e que
compreenda as coisas da alma 'materialmente' – o que quer dizer
objetiva e concretamente. Em outras palavras, a cosmologia
alquímica é essencialmente uma doutrina do ser, uma ontologia.
O símbolo metalúrgico não é meramente um improviso, uma
descrição aproximada do processo interior; como todo símbolo
genuíno, é uma espécie de revelação.
22
Com esse modo 'impessoal' de olhar para o
mundo da alma, a alquimia coloca-se em uma relação muito
mais próxima com o 'caminho do conhecimento' (gnosis) do que
com o 'caminho do amor'. Porque é prerrogativa da gnosis – no
sentido genuíno, e não no herético, da expressão – reconquistar a
alma individual 'objetivamente', em lugar de experimentá-la
apenas subjetivamente. Daí porque trata-se de um misticismo
fundado no 'caminho do conhecimento', que por acaso usou
modos de expressão alquímicos, se de fato não assimilou de fato
as formas da alquimia com os graus e os modos de seu próprio
'caminho'.
A expressão 'misticismo' vem de 'segredo'
ou 'afastamento' (do grego myein); a essência do misticismo
impede uma interpretação meramente racional, e isso soa bem no
caso da alquimia.
*
Outra razão por que a doutrina alquímica
se esconde em enigmas é que ela não é feita para todos. A 'arte
régia' pressupõe uma compreensão além da ordinária, e também
um certo tipo de alma, sem os quais a prática envolve perigos
relevantes para a alma. 'Não se reconhece', escreve Artephius,
um famoso alquimista da Idade Média11, 'que a nossa arte é
cabalística12? Com isso eu quero dizer que ela é transmitida
oralmente e é repleta de segredos. Mas você, pobre e iludido
discípulo, você é tão ingênio a ponto de acreditar que podemos
ensinar clara e abertamente os maiores e mais importantes de
todos os segredos, ao ponto de você poder interpretar nossas
palavras literalmente? Eu lhe asseguro, de boa-fé (porque eu não
sou tão ciumento como outros filósofos), que quem interprete
literalmente o que os outros filósofos (isto é, os outros
alquimistas) escreveram, perder-se-ão a si próprios nos recessos
de um labirinto do qual eles nunca escaparão, e quererão o fio de
11Artefius pode ser o nome latinizado de um autor árabe desconhecido (Veja E. von 
Lippmann, Entstehung und Ausbreitung der Alchemie, Berlín, 1919). Provavelmente
viveu antes do ano 1.250.
12“Cabalístico” significa, aqui, de acordo com a etimologia da palavra,
“transmitido oralmente”.
23
Ariadne para mantê-los no caminho correto, e levá-los com
segurança para fora...'13 E Synesios14, que provavelmente viveu
no séc. IV d. C., escreveu: '(Os verdadeiros alquimistas) apenas
se expressam por símbolos, metáforas e similares, assim eles
apenas podem ser compreendidos pelos santos, pelos sábios e
por almas dotadas de entendimento. Por essa razão, eles
observaram, em seus trabalhos, um certo caminho e uma certa
regra, de tal modo que o homem sábio possa entender e, talvez
após alguns tropeços, atingir tudo o que é aí descrito
secretamente'15. Finalmente Geber, que resume toda a ciência
alquímica medieval na sua Summa, declara: 'Não se pode expor
esta arte por palavras obscuras apenas; por outro lado, não se
pode explicá-la tão claramente que todos possam compreendê-la.
Por isso eu a ensino de um modo que nada permanece escondido
ao homem sábio, embora possa repercutir em mentes medíocres
como algo obscuro; os ignorantes, por sua vez, não
compreenderão nada...'16. Alguns podem se surpreender com o
fato de que, apesar dessas advertências, das quais muitos outros
exemplos podem ser fornecidos, muitas pessoas – especialmente
nos séc. XVII e XVIII – tenham acreditado que através do estudo
diligente dos textos alquímicos seriam capazes de encontrar uma
fórmula de fazer ouro. É verdade que os autores alquímicos
frequentemente deixam a entender que eles preservam o segredo
da alquimia apenas para prevenir que alguém indigno adquira
um poder perigoso. Eles assim fazem uso de uma inevitável
equívoco para manter pessoas desqualificadas à distância.
Ademais eles nunca falaram das finalidades aparentemente
materiais de sua arte, sem mencionar ao mesmo tempo a
verdade. Quem quer que se tenha motivado por paixões terrenas
falhará automaticamente em compreender o essencial de
qualquer explicação. Assim, no Hermetc Triumph está escrito: 'A
pedra filosofial' (com a qual se pode transformar metal em ouro)
concede vida longa e imunidade a doenças àquele que a possui, e
através desse poder traz mais ouro e prata do que todos os mais
poderosos conquistadores tiveram entre eles. Ademais, esse
13 Bibl. des Phil. Chim.
14Tem-se discutivo se são a mesma pessoa este Sinésio e o homônimo Bispo de
Cirene (379-415), que fui discípulo da platônica Hipatia de Alejandría.
15 Bibl. des Phil. Chim.
16 Ibid.
24
tesouro tem a vantagem sobre todos os outros nesta vida,
especificamente o de que aquele que o usufrui será perfeitamente
feliz – a mera visão disso o faz feliz – e nunca será assaltado
pelo medo de perdê-lo.'17 A primeira assertiva aparenta confirmar
a interpretação externa da alquimia, enquanto a segunda indica,
tão claro quanto desejável, que a posse que aqui se discute é
interior e espiritual. O mesmo se encontra no já mencionado no
The Book of Seven Chapters: 'Com a ajuda do Deus
misericordioso, esta pedra (filosofal) libertará você e o protegerá
das mais severas doenças; também o protegerá da tristeza e dos
problemas, e especialmente contra tudo o que puder prejudicar o
corpo e a alma. Levará você das trevas à luz, do deserto à casa e
da indigência à riqueza.'18 O duplo sentido que se percebe em
todas essas assertivas está em relação com a frequentemente
mencionada intenção de ensinar o 'sábio' e de confundir o 'tolo'.
Porque o modo de expressão dos
alquimistas, com todo o seu taciturno 'hermetismo', não é uma
invenção arbitrária, mas algo inteiramente autêntico, Geber foi
capaz de dizer, em um apêndice à sua famosa Summa: 'Quando
eu parecia falar mais clara e abertamente sobre nossa ciência, na
realidade me expressei de modo mais obscuro, e ocultei o objeto
de meu discurso com maior intensidade, e ainda a despeito de
tudo isso, nunca revesti o trabalho alquímico com alegorias ou
enigmas, mas tratei disso com palavras claras e inteligíveis, e
descrevi com honestidade, tanto quanto eu o conhecia e aprendi
por inspiração divina...' Por outro lado, outros alquimistas,
propositadamente, compuseram seus textos em uma forma tal
que a leitura deles proporciona a 'separação das ovelhas dos
cabritos'. O último trabalho mencionado é um exemplo disso,
pois Geber diz no mesmo apêndice: 'Por esse meio, declaro que
nesta Summa não ensinei nossa ciência sistematicamente, mas a
espalhei aqui e ali em vários capítulos; porque se eu a houvesse
apresentado numa ordem lógica e coerente, o mal-intencionado,
que poderia usurpar esse conhecimento, seria capaz de aprender
tão facilmente como as pessoas de boa-fé...' Se alguém estuda de
pertoa intenção aparentemente metalúrgica da exposição de
Geber, descobrirá no meio das descrições mais ou menos
17 Ibid.
18 Ibid.
25
artesanais dos procedimentos químicos consideráveis saltos de
pensamento: por exemplo, o autor, que não havia mencionado
previamente uma 'substância' (em conexão com o 'trabalho'), de
repente dirá: 'Agora pegue essa substância, que você conhece
suficientemente bem, e a coloque no recipiente...' Ou de repente,
depois salientar que os metais não são transmutados em sentido
exterior, ele fala de um 'remédio que cura todos os metais
doentes', transformando-os em prata e ouro. Em cada uma dessas
ocasiões, a compreensão é rudemente levada ao colapso, e isso
de fato é o propósito de uma exposição dessa espécie. O
discípulo é levado a experimentar diretamente os limites de sua
própria razão (ratio). Então, finalmente, como Geber disse, ele
pode olhar para dentro de si mesmo: 'Voltando-me para mim
mesmo, e meditando no caminho no qual a natureza produz
metais no interior da terra, percebo aquela real substância com a
qual a natureza nos preparou, de modo a permitirmos aperfeiçoá-
las na terra...' Aqui alguém notará uma certa similaridade com o
método do Zen Budismo, que procura transcender os limites da
faculdade mental, através da meditação concentrada em certos
paradoxos enunciados por um mestre.
Este é o limite espiritual que os alquimistas
devem ultrapassar. Os limites éticos, como temos visto, é a
tentativa de buscar a arte alquímica apenas por conta do ouro. Os
alquimistas insistem constantemente que o grande obstáculo para
o seu trabalho é a cobiça. Esse vício é para sua arte o que o
orgulho é para 'o caminho do amor', e o que o auto-engano é para
o 'caminho do conhecimento'. Aqui a cobiça é simplesmente
outro nome para o egoísmo, para o apego do próprio ego no
caminho da paixão. Por outro lado, a exigência de que o
discípulo de Hermes deva apenas procurar transmutar elementos
com a intenção de ajudar os pobres necessitados – ou à própria
natureza necessitada – relembra a promessa budista de procurar a
iluminação mais alta apenas em vista da salvação das criaturas.
Somente a compaixão nos liberta da astúcia do ego, que de todo
modo procura apenas olhar para si próprio.
*
Pode ser objetado que a minha tentativa de
26
explicar o significado da alquimia é uma violação do primeiro
pressuposto alquímico, especificamente a necessidade de
reservar os ensinamentos ao seu próprio domínio. A isso pode ser
respondido que, em todo caso, é impossível exaurir por meras
palavras o significado dos símbolos que contêm a chave para o
mais íntimo segredo da alquimia. O que pode ser explicado em
larga medida são as doutrinas cosmológicas fundamentais da arte
alquímica, a sua visão do homem e da natureza, e também o seu
modo geral de proceder. E mesmo se alguém for apto a
interpretar todo o trabalho hermético, sempre haverá algo
deixado de lado, que nenhum trabalho escrito pode transmitir, e
que é indispensável para a perfeição do trabalho. Assim como
toda arte sagrada, no sentido genuíno do termo (como todo
'método' que pode conduzir a uma realização dos altos estados de
consciência), a alquimia depende de uma iniciação: a permissão
para empreender o trabalho deve ser obtida geralmente de um
mestre, e apenas em instâncias raras, quando as correntes de
homem a homem tenham sido quebradas, pode acontecer que a
influência espiritual salta miraculosamente sobre o abismo. No
diálogo entre o rei Khalid e Morienus, foi dito a esse respeito: 'O
fundamento dessa arte é que quem quer que deseje ultrapassá-la
deve receber os ensinamentos de um mestre... Também é
necessário que o mestre a pratique em frente ao discípulo...
Quem quer que conheça a sequência desse trabalho e já o tenha
experimentado por si próprio não pode ser comparado com
aquele que apenas o viu em livros...'19. E o alquimista Denis
Zachaire20 escreveu: 'Acima de tudo, gostaria que isso fosse
compreendido – caso haja alguém que ainda não aprendeu – que
essa filosofia divina ultrapassa em muito o poder humano;
menos ainda pode ser adquirida através de livros, a menos que
Deus a introduza dentro dos corações pelo poder do seu Espírito
Santo, ou nos tenha ensinado da boca de um homem vivo...'21
19 Ibid.
20 Alquimista francês do século XVI.
21 Bibl. des Phil. Chim. II.
27
CAPÍTULO 3
A SABEDORIA HERMÉTICA
A perspectiva do hermetismo origina-se da
visão de que o universo (ou macrocosmo) e o homem (ou o
microcosmo) correspondem-se como reflexos; o que quer que
haja em um deve também, de alguma maneira, estar presente no
outro. Essa correspondência pode ser melhor compreendida
reduzindo-a ao relacionamento mútuo de sujeito e objeto, de
conhecedor e conhecido. O mundo, como objeto, aparece no
espelho do sujeito humano. Embora esses dois polos possam ser
distinguidos teoreticamente, eles contudo nunca podem ser
separados. Cada um deles apenas pode ser concebido em relação
ao outro.
Para o bem da clareza, é necessário
examinar os vários significados que podem ser dados ao termo
'sujeito'. Se se diz que a perspectiva que o homem tem do
universo é 'subjetiva' isso geralmente significa que a perspectiva
em questão depende da particular posição do homem no espaço e
no tempo, e do maior ou menor desenvolvimento de sua
habilidade e conhecimento; a dependência 'subjetiva' é aqui
aquela de um indivíduo ou de um grupo de pessoas limitado
temporal ou espacialmente. Contudo, não é meramente limitado
em cada caso: é especificamente limitado em si mesmo, e nesse
sentido não há algo como um conhecimento puramente subjetivo
do mundo colocado fora da esfera do sujeito humano. Nem a
concordância de todas as possíveis observações individuais nem
o uso de significados que amplia o alcance dos juízos podem ir
além deste âmbito, que condiciona tanto o mundo como um
objeto reconhecível, como o homem como um ser que conhece.
A coerência lógica do mundo – que faz de suas múltiplas
aparências um todo mais ou menos palpável – pertence tanto ao
mundo como à natureza unitária do sujeito humano. Apesar
disso, todo conhecimento, embora possa ser interpretado pelo
indivíduo ou pela espécie, tem algo de absoluto. Do contrário,
não haveria ponte do sujeito ao objeto, do 'eu' para o 'tu', não
haveria unidade atrás dos inúmeros 'mundos' como vistos pelos
28
diversos e muito grandemente variáveis indivíduos. Esse
elemento incondicional e imutável, que é a raiz do 'conteúdo de
verdade' mais ou menos escondido em toda porção de
conhecimento – e sem o qual não seria conhecimento em
absoluto – é o puro Espírito ou Intelecto, que como conhecedor e
conhecido estão absoluta e indivisivelmente presentes em todo
ser.
De todos os seres neste mundo, o homem é
o mais perfeito reflexo do universal – e, no que diz respeito à sua
origem, divino – Intelecto, e nesse respeito ele pode ser
considerado como o espelho ou a imagem total do cosmos.
Façamos uma pausa por um momento para
considerar as diferentes realidades que encaram como um
espelho: primeiro e principalmente, há o Intelecto Universal ou
“Sujeito Transcendental”, cujo objeto não é apenas o mundo
físico aparente, mas também o mundo secreto da alma – tanto
quando a razão; as operações da razão podem ser objeto de
conhecimento, ao passo que o intelecto universal é incapaz de
qualquer objetivação que seja. É verdade que o Intelecto tem
conhecimento direto e imediato de si mesmo, mas esse
conhecimento está para além do mundo das distinções, então do
ponto de vista da percepção distintiva (dividida que estáentre
objeto e sujeito), parece inexistente. Um pouco diferente é o
sujeito humano, dotado que está com as faculdades do
pensamento, imaginação e memória, e dependente da percepção
sensorial, daí que ele, o sujeito humano, tem como objeto todo o
mundo corpóreo. É do Intelecto Universal que o sujeito humano
extrai sua capacidade de conhecimento. Finalmente há
propriamente o homem, composto de espírito (ou intelecto),
alma e corpo, que são tanto parte do cosmos que é objeto de seu
conhecimento, e que também, em virtude de sua especial
categoria (sua natureza eminentemente espiritual), aparece como
um pequeno cosmos dentro de um cosmos maior, do qual ele é a
contrapartida, como uma imagem refletida. Assim, a doutrina da
correspondência recíproca do cosmos e do ser humano é também
fundada na ideia do Intelecto Transcendente e único, cujo
relacionamento com o que é comumente chamado de 'intelecto'
(ou simplesmente razão) é como a de uma fonte de luz para a sua
29
reflexão para um meio limitado22. Essa ideia, que é uma ponte
entre cosmologia (a ciência dos cosmos) e a metafísica pura23
não é de modo algum uma prerrogativa especial do hermetismo,
embora ela seja exposta de um modo particularmente claro nos
escritos de Hermes Trismegisto, o 'Três vezes grande Hermes'.
Em um desses escritos está dito a respeito
do Intelecto ou Espírito: 'O Intelecto (nous) se origina da
substância (ousia) de Deus, na medida em que se pode falar de
Deus tendo uma substância24; de que natureza essa substância é
apenas Deus pode saber exatamente25. O Intelecto não é parte da
substância de Deus, mas irradia deste como luz resplandecente
vinda do sol. Nos seres humanos esse Intelecto é Deus...”26.
Não se deve deixar enganar pelo inevitável
defeito da analogia aqui empregada. Quando alguém fala de
irradiação ou resplandecência do Intelecto de sua fonte divina
não se quer significar alguma espécie de emanação material.
No mesmo livro está dito que a alma
(psyque) está presente no corpo do mesmo modo que o Intelecto
(nous) está presente na alma, e como a Palavra de Deus (Logos)
está presente no Intelecto. (Vale dizer, pelo contrário, que o
corpo está na alma como a alma está no espírito ou intelecto, e o
espírito está na Palavra). Deus é chamado o Pai de tudo.
Será visto quão próximo essa doutrina está
da teologia joanina – fato que explica como o círculo cristão da
Idade Média foi capaz de ver nos escritos do Corpus
Hermeticum (assim como naqueles de Platão), as sementes pré-
cristãs do Logos27.
Embora a doutrina da unidade
22O entendimento se parece a uma lente condensadora que projeta a luz do espírito
em uma direção determinada e sobre um campo limitado.
23Entendemos por Metafísica a ciência do não-criado. A maior parte da
“Metafísica” aristotélica é, simplesmente, cosmologia. Distintivo da verdadeira
Metafísica é seu caráeter “apofático”.
24Traduzimos ousía por substância, de acordo com os usos da Escolástica. Na
realidade, aqui se trata da essência de Deus.
25Vale dizer, a substância ou o ser de Deus não pode ser reconhecida por nada que
esteja fora de si mesmo, pois está além de toda dualidade e de toda diferenciação
entre sujeito e objeto.
26Corpus Hermeticum, trad. por A.-J. Festugière, París, “Les Belles Lettres”, 1945.
Capítulo “D'Hermes Trismégiste: sur l'Intellect commun, à Tat”.
27 Veja os escritos herméticos, entre outros, de Santo Alberto Magno.
30
transcendente do Intelecto seja afirmada por todas as escrituras
sagradas, não obstante ela permanece esotérica naquilo que não
pode ser transmitida para todos sem um risco de uma
simplificação enganosa. O principal perigo é que no seu esforço
para compreender a imaginação pode conceber a unidade do
espírito e do intelecto como uma espécie de unidade material.
Isso pode conduzir à obscuridade da distinção entre Deus e a
criação, assim como àquela entre a singularidade essencial de
cada criatura individual.
O Intelecto Universal não é numericamente
um, mas um na sua indivisibilidade. Desse modo está
completamente presente em cada criatura, e a partir dele cada
criatura adquire sua singularidade. Porque não há nada que
possua mais unidade, completude e perfeição do que aquilo pelo
qual é conhecido.
Um exemplo dessa falsa visão a respeito do
Intelecto único presente em todos os seres é fornecida pela
opinião filosófica de que quando um ser espiritual, individual,
deixa o corpo no momento da morte, ele imediatamente retorna
para o Intelecto Universal, daí que não há sobrevivência
separada após a morte. Entretanto, aquilo que durante a vida
confere uma limitação à individualidade na luz infinita do
intelecto não é o corpo, mas a alma. Agora a alma sobrevive após
a separação do corpo, mesmo quando, durante a vida, ela tenha
sido inteiramente orientada em direção ao corpo e de fato
aparentou não haver nada além do que isso28.
Desde que o Intelecto, como polo cognitivo
da existência universal, não é acessível ao conhecimento
discursivo, o conhecimento dele não transformará a experiência
do mundo – pelo menos não no campo dos fatos. O
conhecimento essencial pode, entretanto, determinar a
assimilação interior dessa experiência, i.e., a apreensão de sua
verdade. Para a ciência moderna, 'verdades' (ou leis gerais) –
sem as quais a simples experiência será nada mais do que areias
movediças – são apenas descrições simplificadas de aparências,
úteis mas sempre 'abstrações' provisórias. Para a ciência
tradicional, por outro lado, a verdade é uma expressão ou
28 Daí os tormentos que, ao abandonar o corpo, sofrem as almas que só se
preocuparam com o corporal.
31
'cristalização' (em uma forma acessível à razão) da possibilidade
contida no Intelecto Universal, e desde que essa possibilidade
está contida permanente e imutavelmente no Intelecto, ela pode
também ser manifestada no mundo exterior. A ideia da verdade é
assim muito mais absoluta na tradição do que na ciência
moderna – sem, contudo, que as formas conceptuais de verdade,
se tenham transformado em um fim em si mesmas, já que a
captação da verdade pela razão e pela imaginação não é nada
mais do que um símbolo das possibilidades contidas no Intelecto
eterno.
De acordo com o ponto de vista moderno, a
ciência é construída exclusivamente com base na experiência.
Para o ponto de vista tradicional a experiência não é nada sem o
núcleo de verdade que vem do Intelecto, e em torno do qual a
experiência individual pode-se cristalizar. Assim, a ciência
hermética é baseada em determinada tradição simbólica que
deriva da revelação espiritual. A expressão 'revelação' é usada
aqui no sentido mais largo do que dado pela teologia, mas não
num sentido puramente poético. Em termos hindus, o processo
espiritual em questão pode ser considerado como uma revelação
de 'segundo grau', como smriti em lugar de shruti. Em termos
cristãos, pode-se falar de uma inspiração do Espírito Santo,
endereçada não a toda a comunidade de fiéis, mas apenas a
determinadas pessoas capazes de um certo modo e grau de
contemplação. Foi nesse sentido, de qualquer modo, que os
alquimistas cristãos consideravam a herança do hermetismo. O
hermetismo é, na verdade, um ramo da revelação primordial que,
persistindo através das eras, estendeu-se também ao mundo
cristão e islâmico.
As possibilidades imutáveis contida no
Intelecto não podem ser absorvidas imediatamente pela razão.
Platão chamou essas possibilidades de ideias ou arquétipos.
Faríamos bem em preservar o real significado dessas expressões,
e não aplicá-las a meras generalizações – que, no melhor doscasos, não são mais que reflexos das verdadeiras ideias – nem ao
campo puramente psicológico, conhecido como 'inconsciente
coletivo'. Essa última distorção é especialmente enganosa,
porque envolve uma confusão da indivisibilidade do intelecto
com a impenetrabilidade da profundidade passiva e obscura da
32
alma. Os arquétipos são encontrados não abaixo, mas acima do
nível da razão. E tanto é assim que o que quer que a razão possa
discernir a respeito deles não passa de um aspecto severamente
restrito daquilo que eles são em si mesmos. Apenas a união da
alma com o Espírito – ou o seu retorno à unidade indivisível do
espírito – opera uma certa reflexão das possibilidades eternas
que têm lugar na consciência formal. O conteúdo do Intelecto,
que é, por assim dizer, a 'faculdade' do Espírito, assim
repentinamente 'cristaliza-se', na forma de símbolos, na razão e
na imaginação.
No livro do Corpus Hermeticum,
conhecido como 'Poimandres' está descrito como o Intelecto
Universal revela-se a si mesmo a Hermes-Thoth: '... Com essas
palavras, ele olhou-me longamente na face, o que me fez
estremecer. Então, assim que ele levantou sua cabeça novamente,
eu vi como, no meu próprio espírito (nous), a luz que consiste de
inumeráveis possibilidades transformou-se um infinito Todo,
enquanto o fogo, cercado e contido por um poder sagrado,
atingiu sua posição imóvel: foi isso o que eu fui capaz de
apreender racionalmente desta visão... Enquanto eu estava
completamente fora de mim mesmo, ele disse novamente: você
agora, no intelecto (nous) viu o arquétipo, a origem e o começo
que nunca termina...'29
Um símbolo, nos planos da alma e do
corpo, é aquilo que reproduz os arquétipos espirituais. Em
conexão com esta reflexão de realidades superiores em planos
inferiores, a imaginação possui certa vantagem sobre o
pensamento abstrato. Em primeiro lugar, é capaz de múltiplas
interpretações; ademais, não é tão esquemática como o
pensamento abstrato e então, na medida em que se 'condensa' em
uma imagem pura, baseia-se na correspondência inversa que
existe entre o terreno corporal e espiritual, de acordo com a lei
segundo a qual 'o que está embaixo é reflexo do que está acima',
como está colocado na Tábua de Esmeralda.
*
Na medida em que o intelecto humano,
29Corpus Hermeticum, op. cit., capítulo “Poimandrès”.
33
como resultado de uma união mais ou menos completa com o
Intelecto Universal, afasta-se da multiplicidade das coisas, e por
assim dizer sobe em direção à unidade indivisa, assim o
conhecimento da natureza que o homem obtém de tal intuição
não pode ser de uma espécie puramente racional e discursiva.
Para ele o mundo agora se mostra transparente: nessa aparência
ele vê o reflexo de 'arquétipos' eternos. E mesmo quando essa
intuição não é imediatamente presente os símbolos que saltam
dele, contudo desperta a memória ou a 'recordação' desses
protótipos. Esta é a visão hermética da natureza.
O que é decisivo para este ponto de vista
não é a natureza mensurável e inumerável das coisas,
condicionada que é pelas causas e circunstâncias temporais; é
precisamente suas qualidades essenciais, que podem ser
imaginadas como os fios verticais (urdidura) de um tecido,
tomado como representação do mundo, na qual se entrelaçam os
fios horizontais (trama), fazendo assim do tecido um material
unificado e compacto. Os fios verticais são o conteúdo imutável
ou 'essência' das coisas, enquanto os fios horizontais representam
sua natureza 'substancial', dominada pelo tempo, espaço e
condições similares30.
Dessa comparação pode-se ver como a
visão do cosmos baseada na tradição espiritual num senso
'vertical' pode estar correta, ainda que ela possa parecer inexata
num sentido 'horizontal' – vale dizer, num sentido de observação
discursiva e analítica. Assim, por exemplo, não é necessário
conhecer todo metal existente em vista de conhecer diretamente
o arquétipo do metal em si mesmo. É suficiente levar em
consideração os sete metais mencionados pela tradição – ouro,
prata, cobre, estanho, ferro, chumbo e mercúrio – em vista de
compreender a possível gama de variações dentro de um tipo.
(Aqui nos preocupamos apenas com o aspecto qualitativo do
metal). É o mesmo que considerar o conhecimento dos quatro
elementos31, que na alquimia desempenha um papel tão
importante. Esses elementos não são os constituintes químicos
30 Sobre o simbolismo do tecido, veja René Guénon, Le Symbolisme de la Croix,
París, 1931.
31 Os hindus falam de cinco elementos, pois incluem o éter (akasha), a
quintessência dos alquimistas.
34
das coisas, mas são as determinações qualitativas da matéria em
si mesma. Tanto que no lugar de se falar em terra, água, ar e
fogo, pode-se também falar no modo sólido, líquido, aéreo ou
ígneo da existência dos materiais.
A evidência analítica de que a água
consiste em duas partes de hidrogênio e de uma parte de
oxigênio não nos diz absolutamente nada sobre a essência do
elemento água. Pelo contrário, esse fato, que apenas pode ser
conhecido circunstancialmente, e por assim dizer abstratamente,
na realidade obscurece a qualidade essencial 'água'. Além disso,
a abordagem científica a rigor limita a realidade em questão a
um plano determinado, apesar de que a intuição imediata e
simbólica do elemento desperta um eco que ressoa através dos
níveis de consciência, a partir do corpóreo ao espiritual.
A ciência moderna 'disseca' as coisas, com
a intenção de possuir a manejá-las no seu próprio nível. Esse
objetivo está acima de toda a tecnologia. O racionalismo apega-
se à crença de que através dos materiais e das análises
quantitativas, pode-se descobrir a verdadeira natureza das coisas.
Característico desse ponto de vista é a opinião de Descartas de
que as definições escolásticas do homem como um 'animal
dotado de razão' não diz nada a respeito dele, a não ser através
do estudo de seus ossos, tendões, tecidos etc32. Como se uma
uma substância não fosse mais próxima da realidade, quanto
mais ampla fosse! O entendimento analítico é, em última
instância, nada mais que uma faca que investiga na articulação
das coisas. Fazendo assim ele permite uma visão mais clara
delas. Mas a essência não é acessível à mera dissecação. Goethe
entendeu isso muito bem quando disse que o que a natureza não
nos revelou na luz do dia não pode ser retirado à força dela pelas
'alavancas e parafusos'.
*
A diferença entre a cosmologia tradicional,
a exemplo da cosmologia hermética, e a ciência analítica,
dominada apenas pela razão, mostra-se mais claramente na sua
32Descartes, La recherche de la Vérité par les lumieres naturelles, citado em
Maurice Dumas, Histoire de la Science. «Encyclopédie de la Pléiade», pág. 481.
35
perspectiva astronômica. A mais antiga concepção do mundo, na
qual a Terra é vista como um disco coberto por um céu de
abóboda estrelada, está cheia de significados os mais gerais e
profundos – significados que são tanto menos obsoletos quanto
esta imagem do mundo continua sendo verdade, não sendo outra
coisas que não a experiência natural e imediata de todo ser
humano. O céu, por seu movimento o medidor de tempo, a
determinação do dia e da noite e das estações, a causa do subir e
baixar dos luminares, o distribuidor das chuvas, manifesta o polo
ativo e masculino da existência. A Terra, por outro lado, que por
influência do céu se fertiliza, traz à tona plantas e nutre todas as
criaturas vivas, corresponde ao polo passivo e feminino. Esse
relacionamento entre o céu e a Terra, da existência ativa e
passiva,é o arquétipo e modelo de várias dualidades analógicas,
tal como o par conceitual 'forma essencial' (eidos, forma) e
'matéria' ou 'substância' (hyle, materia), e a dualidade,
compreendida à luz de Platão, do espírito ou intelecto (nous) e
alma (psyche). O movimento circular dos céus pressupõe a
existência de eixos imóveis e invisíveis, correspondentes ao
intelecto, que está presente imutavelmente em todas as
circunstâncias do mundo. Do mesmo modo, o percurso do Sol
traça uma cruz regular composta de pontos cardinais – Norte e
Sul, Leste e Oeste – após o que as qualidades cósmicas que
governam toda a vida distribuem-se respectivamente como frios
e quentes, secos e úmidos. Podemos ver mais tarde como essa
ordem é repetida dentro do microcosmo da alma humana.
O percurso solar, na medida em que
aparece sobre o horizonte, segue um círculo cada vez mais largo
do solstício de inverno ao solstício de verão, e então um círculo
cada vez mais curto, até que todo o ano se transcorra.
Basicamente isso corresponde a um espiral que se vai 'liberando',
e que após várias voltas transforma-se numa espiral que se vai
'enrolando' – uma imagem que foi retratada numa variedade de
sinais, como a espiral dupla,
36
a espiral de dois vórtices, conhecida como
o yin-yang chinês, e não menos importante no grupo de Hermes
(os caduceus) nos quais duas cobras são entrelaçadas em um
eixo – o eixo do mundo33. A oposição se manifesta nas duas fases
do curso solar (o ascendente e o descendente), correspondendo,
em um certo sentido, à oposição entre céu e Terra – com a
diferença de que aqui os dois lados são móveis, e então no lugar
de uma oposição de causas, trata-se de uma questão de
alternância de forças. Céu e Terra estão acima e abaixo; os dois
solstícios estão um no Sul e outro Norte; eles estão relacionados
um com o outro como expansão e contração. Nós podemos mais
uma vez nos depararmos com essa oposição, que tem vários
significados, em conexão com o magistério alquímico, onde ela
aparece como oposição entre o enxofre e o mercúrio.
*
33A esse respeito, René Guénon, Le Symbolisme de la Croix y Julius Schwabe,
Archetyp und Tierkreis, Basilea, 1951.
37
Uma forma irlandesa ou anglo-saxônica dos dois dragões na
árvore do universo. A suástica no tronco da árvore (que
corresponde ao eixo universal) representa o movimento dos
céus. Cada dragão é composto de doze sóis e estrelas, que
podem corresponder aos doze meses.
De uma minuatura do séx. XVIII, extraída das 'Cartas paulinas
de Northumberland', na Biblioteca da Universidade de
Würzburg.
A concepção do universo de Ptolomeu (na
38
qual a Terra, como um globo, representa o centro, ao redor do
qual os planetas giram em uma variedade de órbitas e esferas,
cercados pelo céu de estrelas fixas e, na parte externa, pelo
empíreo sem estrelas) não afasta o significado da antiga
concepção de universo, e nem retira a experiência imediata que o
ser humano tem dela. Ademais, isso coloca em jogo um
simbolismo diferente, especificamente aquele do caráter
compreensivo do espaço. A graduação das esferas celestes reflete
a ordem ontológica do mundo, segundo a qual cada nível de
existência procede de um mais alto, de modo que um nível
superior 'contém' o inferior, assim como a causa 'contém' o
efeito. Assim, quanto maior for a esfera celeste na qual as
estrelas se movem, mais puro, menos condicionado e mais
próximo da origem divina será o nível de consciência a que isso
corresponde. O empíreo sem estrelas, que envolve os céus
estrelados e que aparenta compartilhar seu movimento com o
firmamento das estrelas fixas (a rotação mais rápida e mais
regular de todas as esferas), representa o primeiro motor
(primum mobile) e assim também o Intelecto Divino que abrange
tudo.
Essa é a concepção de mundo de Ptolomeu
adotado por Dante. Antes dele já se encontrava em textos árabes.
Há também um manuscrito hermético anônimo, do séx. XII,
escrito em latim e provavelmente de origem catalã34, no qual o
significado espiritual das esferas celestes que se abarcam é
apresentada de uma forma muito parecida com a da Divina
Comédia. A ascensão através das esferas é descrita como uma
subida através da hierarquia dos níveis espirituais (ou
intelectuais), por meio da qual a alma, que sucessivamente
assimila isso, gradualmente se desloca dos limites do
conhecimento discursivo às formas de uma visão indiferenciada
e imediata na qual sujeito e objeto, conhecedor e conhecido são
um. Essa descrição é ilustrada por desenhos que demonstram as
esferas celestes como círculos concêntricos, através dos quais o
homem sobe, como se estivesse nas escadas de Jacó, à mais alta
34Publicado em M. T. d'Alverny, Les pélégrinations de l’Ame dans l'autre Monde
d’après un anonyme de la fin du XIIè siècle, en «Archives d'Histoire doctrinale et
littéraire du Moyen Age», 1940-1942. Segundo investigações posteriores de M.T.
d’Alverny, o manuscrito que se conserva na Biblioteca Nacional de Paris foi escrito
provavelmente na Bolonha, inspirado em um antecedente espanhol.
39
esfera, o Empíreo, no qual Cristo está sentado em seu trono35. Os
círculos celestes são complementados em uma direção
descendente – ou seja, em direção à Terra – pelos elementos.
Próximo à esfera lunar está o círculo do fogo; abaixo está o
círculo do ar, que confina a água, que imediatamente envolve a
Terra. Vale ressaltar que esse escrito anônimo, cujas
características herméticas são evidentes, reconhece a validade de
todas as três religiões monoteístas, Judaísmo, Cristianismo e
Islamismo. Isso demonstra claramente como a ciência hermética,
graças à sua linguagem cosmológica simbólica pura, baseada na
natureza, pode ser combinada com qualquer religião genuína,
sem conflitos com os respectivos dogmas.
Como a revolução do oitavo céu, o
firmamento de estrelas fixas é a medida básica do tempo. Então
o céu externo sem estrelas (que confere ao oitavo o seu
movimento ligeiramente atrasado, em razão da assim chamada
processão dos equinócios) deve representar a linha divisória
entre tempo e eternidade, ou entre todos os modos de duração
mais ou menos condicionados36 e o eterno 'agora'. A alma, que é
representada como ascendendo através das esferas, uma vez
alcançado o Empíreo, deixará para trás o mundo da
multiplicidade e das formas e condições mutuamente exclusivas
e alcançará o Ser indiviso e todo envolvente. Dante representa
essa passagem – que envolve uma completa reversão do
panorama – confrontando a ordem cósmica das esferas
concêntricas, que amplia sucessivamente da limitação da Terra à
Infinidade Divina, com uma ordem invertida, cujo centro é Deus,
e ao redor de quem o coro dos anjos gira, em cada vez maiores
círculos. Eles giram mais rapidamente onde eles estão mais
próximos da origem divina – em contraposição com as esferas
cósmicas, cujo aparente movimento cresce em proporção com
sua distância do centro terrestre. Com essa 'transformação' da
ordem cósmica em ordem divina, Dante antecipa o profundo
significado da concepção heliocêntrica.
*
35 Veja as lâmitas l e 2; e a explicação correspondente adiante.
36 Segundo Averróis, o movimento ininterrupto do ciclo sem estrelas é a interseção
entre tempo e eternidade.
40
Figuras 1 e 2. A ascensão da alma através
41
das esferas. Duas representações análogas de um manuscrito
hermético anônimo do final do séc. XII (MS Latin 3236A da
Biblioteca Nacional de Paris; publicado pela primeira vez por
M. T. d´Alverny nos Arquivos de História doutrinal e literal da
Idade Média, 1940-42).

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