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História do Direito Parte I - Sociedades Primevas A principal característica das sociedades primevas é a inexistência e o repúdio à constituição de uma soberania única, do Único, como Pierre-Clastres afirmou, em suma, da formação do Estado. Dizemos sociedades primevas na medida em que não tem sentido chamá-las de “primitivas” ou “selvagens” unicamente pelo fato de terem desenvolvido estratégias que impedem com total estranhamento a formação desse poder único, o Estado. As sociedades primevas têm uma relação absolutamente direta e intrínseca com a natureza, e neste sentido todas as práticas de sobrevivência encontra nessa relação mística os elementos necessários ao comedimento e preservação do meio-ambiente, e da cultura milenar em harmonia com a mesma, afinal tão igual ao preconizado a partir do século II a.C. pelos estoicos, como Sêneca e Cícero. Assim é que quando o colonizador europeu encontrou os Índios da América do Sul os considerou preguiçosos e afeitos apenas a festas e cerimoniais, o que, em verdade, esses cerimoniais que podem durar dias, além de reforçar o xamanismo e os laços de respeito e subserviência à floresta, aos rios e aos astros, é uma forma eficiente para destruir os excedentes produtivos da tribo evitando assim que esses excedentes sejam acumulados e surjam grandes possuidores de bens e riquezas, princípio fundamental para que o sedentarismo, o patriarcado e o poder de um sobre o outro passe a sobre elevar-se na comunidade. Esta é a finalidade estratégica de grandes festas e grandes confraternizações com a união de dezenas de tribos como o Quarup do alto Xingu. É verdade que de alguma forma as sociedades primevas ou primárias desenvolvem em princípio dois grupos que se destacam na tribo: os xamãs ou feiticeiros e os guerreiros. Mas, apesar desses dois grupos incipientes para o poder se “digladiarem”, existe um terceiro elemento que de fato chama mais atenção do grupo e tem mais chances de acumular prestigio, fazendo assim o contraponto aos anseios de poder de sacerdotes e de guerreiros. Esse “terceiro”, citado por Norberto Bobbio, poder moderador, “acima das partes, que detém o monopólio da força legítima, permite soluções pactuadas e pacíficas dos principais conflitos internos”, diferente de nossas sociedades estatais, não é o indivíduo que acumula mais, mas aquele que, ou por dons naturais capaz de alcançar maior produtividade ou porque recebe dádivas de seus semelhantes por proezas heroicas ou liderança nata na resolução de conflitos, esse elemento que se constitui assim como o “Terceiro Superior”, longe de ser o que retém os excedentes de víveres e outros bens, é aquele que distribui o que tem mesmo em detrimento muitas vezes de sua própria necessidade. A este elemento mediador que de verdade interpõe o poder bélico dos guerreiros e o mítico- religioso do xamã ou feiticeiro, damos o nome de “esbanjador”. Em nossas sociedades industriais - Sociedades do haver, como Oswald de Andrade cunhou em contraposição às Sociedades do ser, primevas, as que não conhecem o dinheiro como forma mercantil de troca - o status, o “respeito” e o poder se origina da acumulação de riqueza, como metais, commodities e dinheiro. Nas Sociedades primevas, no entanto, o prestígio é dado pela comunidade àquele que não tem interesse em acumular e que doa qualquer excedente produto de seu trabalho, suscita a distribuição ou consumo desses excedentes, inclusive usando para isso as cerimônias religiosas onde o mítico-religioso serve para destruir o poder, ao mesmo tempo, do feiticeiro e do guerreiro. Em situações assim o grande fundamento do Direito estatal não tem importância significativa, a saber, o problema da propriedade e herança, pois os bens da comunidade são de todos e repartidos conforme as necessidades de todos. O grupo está acima do individual, ou como Aristóteles classificou, o Justo Total deve prevalecer sobre o Justo Particular. Existe em Montaigne uma narrativa das mais ilustrativas com relação a esta noção de equidistância e reciprocidade. No capítulo “Os Canibais” da obra “Ensaios”, Montaigne, no final do século XVI, dá-nos uma descrição brevíssima, mas de profunda grandeza, de como os indivíduos das sociedades primárias se apresentaram pela primeira vez aos europeus civilizados. A propósito da visita de três indígenas brasileiros à corte do rei inglês Carlos IX, conta Montaigne: “Entreteve-se o rei com eles, longamente; mostraram-lhes como vivíamos no cotidiano; ofereceram-lhes grandes festas; ensinaram-lhes como era uma cidade grande. Alguém lhes havendo perguntado mais tarde o que pensavam da cidade e o que ela lhes tinha chamado a atenção, disseram antes de tudo que lhes parecia estranho tão grande número de homens de alta estatura e barba na cara, robustos e armados que se achavam junto ao rei (provavelmente se referiam aos suíços da guarda) se sujeitassem em obedecer a uma criança e que fora mais natural se escolhessem um deles para o comando. Em segundo lugar observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua linguagem metafórica a tais infelizes chamam “metades”); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais”. Foi Lévi-Strauss que anunciou uma das mais significativas características das sociedades humanas: a sociedade propriamente dita, ou a sociedade civil, como os Contratualistas dos séculos XVII e XVIII denominaram a passagem do “estado de natureza” para a “sociedade política e jurídica”, começa quando algum tipo de proibição de acasalamento se produz na base estrutural dessa comunidade. A restrição a algum tipo de acasalamento não significa, como em nossas sociedades ocidentais, a proibição entre pais e filhos, irmãos e mesmo primos, como ainda recentemente aparecia tradicionalmente como uma aberração. Isto representa, entre outras coisas, que seja qual for a relação de casamento e procriação social, existem valores muito fortes e arraigados ao grupo, uma tradição que é passada nas sociedades primárias de forma iminentemente oral e através de práticas de xamanismo, cerimônias mítico-religiosas e de integração com a natureza. Neste sentido, não podemos duvidar que entre essas comunidades sem Estado existisse igualmente Direito e Leis, julgamentos e punições, cujo caráter, contudo, é a coesão e bem estar social e a imediata e permanente preocupação com a reinserção do elemento faltoso ao convívio da comunidade, algo que o Direito Ocidental moderno tem procurado instruir em muitos casos e lugares com o nome de Justiça Restaurativa. Foi o grandioso trabalho de pesquisa do antropólogo Malinowsky nas Ilhas Trobriand da Austrália, recobrando o sentido do parentesco do tipo avunculato, onde o tio materno é o chefe da família e por ele se distribui a educação e a propriedade, diferente do pai social, o que fez o filho por simples ato sexual. Tal prática não deixa de ser um tipo do que no ocidente chamou-se de Incesto. No nosso caso, no entanto, o incesto adquiriu ao longo de milênios a forma proibitiva de reprodução humana entre pais e filhos e irmãos, ainda que até bem pouco tempo o acasalamento entre primos fosse tão condenável quanto entre irmãos. Se hoje o casamento entre primos pareça mais natural e seja menos repudiado socialmente, por outro lado, se um pai efetuar relação amorosa com um filho adotivo, portanto, que não é de seu sangue, é mais repudiado e sobre esse enlace cairá o peso da proibição do incesto tal como entre nós a concebemos. A mesma coisa, por exemplo, não acontece entre os Inuits,os esquimós da Groenlândia e Alasca, onde devido às condições exigentes de sobrevivência, quando a esposa é oferecida ao viajante sozinho, e se a mesma engravidar, essa criança passa a ser filho natural e social do marido da esposa e eventualmente reconhecido igualmente como filho do pai biológico. A criança tem dois pais, um biológico e um social. Entre nós essa prática é inconcebível. Por outro lado é curioso observar que quando dois irmãos são criados como tal e não sabem que não são irmãos de sangue, se repudiam amorosamente, mas quando descobre que não têm relação consanguínea, o amor entre eles cresce e o estranhamento desaparece. A exogamia aparece, a nossos olhos, natural per se. Mas a endogamia é que está no fundamento de nossa reprodução e procriação em variáveis graus de relação amorosa. O mesmo se pode falar da monogamia, pois é sabido que em todas as civilizações mais avançadas que vale a pena observar do ponto de vista cultural e jurídico, eram em seus primórdios essencialmente poligâmicas, como, aliás, se encontra ainda hoje entre várias sociedades desenvolvidas do Oriente, da Ásia e da África. Nas sociedades em que o matriarcado foi encontrado era comum observar-se que a matriarca exercia seu poder e prestígio através do status da poligamia – ela tinha vários companheiros morando e dedicando-se a ela. Todos esses exemplos, ainda eventualmente entre nós nos dias atuais, demonstra claramente que o fundamento da proibição de acasalamento, de algum tipo de acasalamento, não tem nada a ver com a preservação da espécie, atribuindo-se a tais procedimentos sociais caráter nefando em nome das doenças e degenerações possíveis, mas a outro princípio social muito mais forte. Qual o valor ou efetivamente o motivo pelo qual nos parece tão detestável que uma pessoa idosa tenha relacionamentos com um jovem maior de idade e porque a lei regulamenta de forma diversa o tipo de casamento (CC; Livro IV – Do Direito de Família; art. 1511 e seguintes)? Por séculos os egípcios acasalaram consanguineamente e ao que tudo indica eram perfeitos do ponto de vista fisiológico e mental. Devido ao sistema de castas na Índia ainda é observável o casamento entre indivíduos familiarmente muito próximos. Na antiga Pérsia (Babilônia e atual Irã e Iraque) os sacerdotes escolhiam suas parceiras e futuras esposas unicamente entre as filhas do clã sacerdotal, o que provocava acasalamentos que em uma ou duas gerações já havia consanguinidade suficiente pra ser tido como incesto pelos parâmetros atuais. O mesmo acontecia com o rei. Na antiguidade clássica, tanto em Grécia como em Roma, as relações amorosas eram tão permissivas que grandes festas eram organizadas para o ato procriativo, apenas procriativo, sem qualquer demanda ou preocupação com adultério. O mesmo acontecia com relação aos contatos homossexuais e tais práticas não foram impeditivas de florescimento técnico e cultural desses impérios. Nos nossos dias, ainda hoje, podemos encontrar exemplos nítidos de endogamia, como no caso de toda uma herança cultural do povo judeu em perpetrar casamentos muito perto da consanguinidade como forma de manter a propriedade e a herança centralizada. O que, então, seria a base desses impedimentos e desses estranhamentos e repúdios? A transmissão da propriedade, a herança, a organização familiar econômica ligada à sobrevivência do grupo, são a matriz de onde se podem derivar inúmeras formas de parentesco e de acasalamento, e, obviamente, cabe aos sacerdotes de plantão e ao poder das elites, de quem está no comando, determinar os valores morais e os bons costumes correspondentes a essa organização estrutural primária. A religião serviu com sucesso a essa necessidade como as atuais igrejas ainda prescrevem esses mandamentos com base bíblica, da Torá, do Alcorão etc. De forma geral o patriarcado favorece esse tipo de proibição e essa organização proibitiva desde que o homem órfico se fixou e organizou sedentariamente de forma social e econômica. Nas sociedades matriarcais, pouco estudadas no ocidente, as relações amorosas e a formação de casais são muito mais flexíveis e é comum que seja a moça a escolher seu parceiro cujo enlace matrimonial pode ocorrer muito tempo depois, se ocorrer. Nesses casos obviamente faz mais sentido que a propriedade e herança sejam mais simbólicas e culturais do que material, e que o pai biológico seja menos valorizado do que aquele que cuidará e educará a criança, como o caso do tio materno, o avunculato.
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