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-PADROES DE CULTURA Por RUTH BENEDICT O desejo de captar o sentido de uma cultura como um con junto, levou a autora de Padrões de Cul- tura a considerar descrições de com· portamento csterc:otipado apenas como uma alpondra que a conduziu a outros problemas. Assim. nesta obra verdadeiramente basilar no campo das Ciências Humanas, pas- sou-se a compreender o indivíduo como um ser que vive na sua cul- tura e a cultura como vivida pelos seus indivíduos. Mas o que mais importa em Padrões de Cultura ~ que o interesse por estes problemas socio-psicológicos n3o se opõe de modo algum ao ponto de vista his- tórico. Pelo conrr.i rio, revela pro- cessos dinSmicos que têm actuado em modificações culturais e habi· lita-nos a apreciar testemunhos obti· dos por uma comparação pormeno- rizada de culturas aparentadas. Prefaciado por Franz Boas. Padrões de Cultura, vem revelar-nos que nem todas as culturas são dominadas por um carácter próprio mas que. pelo contrário, nelas dominam certos re- freamentos de emoção e certos ideais de conduta que explicam ati- tudes que se nos apresentam como anormais quando observadas do ponto de vista da nos.u civilização. A. • Cole. Preoo: PADROES DE CULTURA CAPA DE A. P6DRO Reservados todos os direitos pela legislação em vigor Lisboa - Janeiro de 2000 Edição feita por acordo com a ROWOHLTS DEUTSCHE ENZYKLOPADIE COLECÇÃO VIDA E CULTURA RUTH BENEDICT PADRÕES DE CULTURA TRADUÇÃO DE ALBERTO CANDEIAS EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL• LISBOA Rua dos Caetano• , .22 1'ítulo da edição original: PA:TIERNS OF CULTURE ". .J 1 1. j No princípio Deus deu um vaso a cada povo, um vaso de barro, e por este vaso bebiam a sua vida. PllOVfüUllO D,OS ÍNDIOS DICCER INTRODUÇÃO N o decorrer do século actual elaborairam....se muitas novas formas de abordar oo problemas de antropologia social. O velho método de con&truir uma história da cultura humana baseando-a em fragmellllX>S de prova& desta- c~ das circunstâncias com que ;tinham contactos naturais, e provenientes de todas as épocas e de todas as partes do mundo, perdeu muito da sua validade. Scguh.He-lhc um período de laboriosas tentativas de reconstrução de conexões históricas, assentes em artudos de distribuição de feições particulares, acrescentad~ de prova5 arqueo16gicas. Exa.min.a:ram-se sob este pontX> de vista áreas cada vez majs vastas. Tenrou« esta- belecer conexões sólidas entre várias fciçõcs culturais, que se utilizaram no estabelecimento de outras conexões históricas mais vastas. Negou-se a pooc;.ibilidade do desenvolvf:meJlltO inde- pendente de feições culturais análogas, postulado de qualquer história geral da cultura, ou, pelo menos, atribuiu-se-lhe um papel irrelevanite. Tanto o métxxlo evolutivo <:orno a análise de ruturas locais independentes, 9C aplicaram ao desvendar das sequências de formas culturais. Ao pasgo que por meio dos primeiros se esperarva erigir uma rep.rescrnação unificada da história da cultura e da civilização, os adq>t-os dos métodos mais recentes, pelo menos os seus adeptos mais conservadores, (7) corxsiderMam cada cul~ura como uma unidade em si e um problema histórico individual. Sob a ilúluência da intensiva análise de culturas, a colheita indispeosável de factm ?Cferen~ a fonnas culturais foi forte- mente e6timulada. O Ill31t:erial assim reunido deu--ll(l5 infor- mações sobre a vida social, romo se esta consb~ em cate- gorias estritamente estanques, tais como vida económica, téc- nica, arte, orga.ndzação social, religião, e o laço que as unia era difícil de discernir. A posição do antropologista pMCCia-se com a que Goethe satirizou: Wer will was Lebendig's erkeno.en und beschreibcn. Sucbt erst den Geist heraus zu trciben, Darut hat e:r die Terle seiner Hand, Fehlt leider nur das geistigc Balld. Quem quer ·conhecer e descrever o vivente, 'Procura primeiro desembaraçar-se do &eu espírito, E depois de ter as diferentes partes na mão, Falta s6, infelizmente, a faixa espirlwal que as une. O ooopann<HlOS de culturas vivas criou um mab forte intere.sise pela tota.lid'ade de cada cultura. ~ cada vez mais que quase nenhlllllla feição etdtural é comp.reccnsível quando separada do conjUM'O de que faz parte. A tentativa de cooceber toda uma cultura como se ela fosse controlada por um úDlico grupo de condições inão resolvia o problema. O abordá-lo fonnalistmnente sob o ponto de vista puramente antropogeográfico, económico oú outro parecia fornecer re· preson,tações defomradas. O desejo de captar o sentido de uma cultura como um oon1u.n.to, leva.irros a 00ll5idera.r descrições de oompo11ta1mcri1to ~reotipado apems como uma alpondra ~ nos conduz a outros problem~. Devemos compreender o indivíduo como [8) um ser que vive na sua cultuira; e a cultun, como vivida pe1oo seus indivíduos. O interesse por estes problemas socio-psicoló- gicos não se opõe de modo alg.um ao pom:o de vista histórico. Pelo contráTio, revela proc~ dinâmicos que têm aotuado em modificações cultumis, e babilit:a."OOS a apreciar 1le1Stmlu- nhos obtidos por uma. oompairação pornnenJOrizada. de culruras apa.reotadas. Em vim.le do carácter do ma.~. o problema. da vida cultural 'ap~~ muitas vezes como o problema da in.t:cr- «lação entire vários aspeotos de cultura. Bm certns Ca&90S ~ e6tu00 oondurz a. urna apreciação ma.is cometia. da. imensidade de integração ou <b. falta dela em uma cultum. Toma perfei- tame11te claras ~ formais de integração em vários ·tipos de cultura, o q·ue prova que as relações mtre diferentes aspeotos da cultura seguem os padrões mais variados e não se prestam, com proveitt>, a generWixações. Ma6 raramen~ conduz, e quallldo o faz, s6 indireotamenrt:e, a uma compreensão da rela- ção en1!c indivíduo e cuhiura. Isto rreq.uer que se pmetre profunbmiente no ~ da culrura em questão, que se trave coohccimcntt> com as atitudes que controlam o oompomw.ento do indivíduo e do grupo. Ao espírito de cada rulll\lra oh'ama a Dr.• Benediot a Súa configuração. No presente volume a autora pôs ~ nós esse problema e ilustrou-o por mcio do exemplo de tr& cul- turas, cada. :uma. delais per.meada por IUJlla ideia dominante. Esta fonma de .tratar a qUC9tão é diferente do modo, chamado .funcloml, de abordar o &n6meno social, na medida IOll1 que pretende descobrir as atitudes fundamentlaiis ~is do que as relações func~is de cada ~ oultural partkul'a.r. Não é histórica., CXaJI>to m faoto de a configuração giorat, enquanto ela su:bsiste, limitar ias direcções de modükação que ficam a ela sujenas. Omlpa:rada oom as mudanças de conteúdo de cul- tura a configuração :tem. muitas vezos uma permanência no- tável. Corno a aut.ora põe em :relevo, nem tx>das as cultura5 são [9] definidas por l.l1ffi cairáoter domine~, mas parece provável que quaRlto mais íntimo é o oosoo coohecimcnto dos impulsos cuiwrais que doterrmiriaim o comportamento do indivíduo, ti.nto maás ireconheceromos que nelas domdmm certos refrea- mmt:os de emoção, cer.tos ideais de conduta, que ex.plicam atitudes que a. nós se llK>5 apnsenitaan como 'élllOrmais quando vi9tas do ponto de vista da 0065lal civ.ilização. A relatividade do que se considera. sociai ou QSOOCia], OOI1Illal ou ano~. ~ agora; a· uma Dbva. luz. Os casos cxitremos e;colhidos pela autora tomam clara a importância. do problema. FRANZ BOAS ( 10] PRIMEIRA PARTE Apresentação do problema ••·· · ......... ··sr ··w·r"" ·a- 1 A CI~NCIA DO COSTUME Costumes e Comportamento an;tropolog.ia ocupa-se dos seres humanos como pro- . dutoo- da vida em ~iedade. Fixa a sua airenção nas caracteristicas físicas e nas ·técni~ indu!rtliais, nas oonvenções e vafores que distinguem uma comunidade de todas as outras que pel1t:encem a uma ttadição difurente. A O que distingue a antropologia das outm5 ciências sociais é o ela incluir no seu campo, para as ostuda:r cuidadosamente, Sociedades que não são a nossai sociedade. Para os seus fin.s qualquernonnia. social de casarmmtx:> e de reprodução tem tanto s~1eado romo aquelas que llDS são pr6prias, mesmo que · seja. a dns DyWcs do Mar, e oão •tem qualquer passível relação histórica com a da nOS9a civilização. Para: o antropolo- g~. os nossos costumes e os de uma tribo da Nova Guiné i---) são dois esquemas oociais pa;'S{vcis, que ·trM:atn do mesmo pro- blema, e cumpre ao antropologistla enqlialllto antropologista, evitar toda e qualquer apreêiaçix> de um cm favor do outro. In~-o a conduta humana, não como é modelada· por uma certa itiradição, a 0056a ttradição, mas como o foi por qualquer tradição, seja ela. q'Uléll foc. Inreressa-<> a vasta gama .de rostu- mes que existe em culturas diferentes, e o seu objectivo é ( 13 J ooonpree00er o modo como ~ culturas se transformam e se , difc.rmdam, ias formas diferentes por que se exprimem, e a maneira como os costumes de quaisquer povos funcionam nas vidas dos indivfdll05 que os compõem. Ora o costume não tem sido considerado assunto de grande irnpo1dnda. O funcioniamento íntimo do no.ggo c&ebro, eis o que noo paireçe ronstiituir a única coisa digna de estudo; o costume, temos tendência pan peosar, é conduta nai sua fonna mais v'lUgar. De facto, o contrário é que é verdade. O costume tradiaional, considertildo pelo mlllldo em geral, é uma massa de comuta pormienorizada mais espan.u>sa do que o que qualquer pe6SOla pode jamatis revelar n:as acções indivi- duais, por mais 'abe.mm.tes. Em entanto isto é um aspecto um tanto trivial da questão. O que é verdadeiramc.n.te importante é o papel ·predomin~ que o oosnune desempenha no que se experimmu.· na vida dima. e m> que se crê, e as veroadeira- mente grandes variedades sob q~ pode manife.9tar«. A herança da criança Não 'há n.inguém que veja. o mundo oom wna visão pura de preconceitos. Vê-O, sim, oom o •.ito c.'Ottlicion~o por '\1lll con.junrto definido de cootulmes, e instituições, e modos de pensar. Nem mesmo 'l1alS suas ~pções filosóficas ele con- segue su,btraiT...se a esses eí9t.ereátliipos; até os seus ainccitns do verdadeiro e do failso são ainda rereridos aos 9eU5 pa:nticulares costumes tradicionaiis. John De~y dee porfeitam.ente a sério que o papel desempenhado pelo coot'Ullle 1110 1IDOldasr do rom- pormmento do indivíduo, comparado com qualquer maneira por que este possa aifec~air o coonume tmdicionJal, está nia mesma propozção quic a itotalidade do vocabulm. da sua língua marema comparnda com os rennos da suta linguagem infu.n.til adoptaidos no vem.áicudo da .família. Quando se estudam a sério ordens 'SOCialis que se pudemm desenvolver éYUtnoom.a-- l 1 " mente, àquela comparasno não é mais que ·uma ex.acta. obser- vação de f\aoto. A história da vida indivklual de cada pessoa é acima de <tudo .uma a~o aos padrões de fonna e de + medida itmdiciorialmen:te :tran19miitidas !Ilia 5\Ja comunlidade de geração paira geração. Desde que o iOO.ivíduo vem ao mundo os costumes do alm'bíente em que nasceu moldam ai sua expe- :rjênda tlos fact:o5 e a sua cond~. Quand'o começa a falair, ele é o 1irutozmho da sua cultura., e quando crescido e capaz de .oomaa- parte 111as arovid'ades d~, os háibitos dob são os seus hábitm, as a'eDÇ1élS dela~ as isuas crenças, as incapatidadcs dela. as suas inoapacidade5. Todo aquele que nasça no l9eU grupo delas partilhará rom ele. e todo >aquele que nasça num grupo do lado oposto do globo adquirirá a milésima parte del&l herança. Nenihum OU1tro problem!a. soem allOS c.abe maiis forço- samente conhecer do que este do papel que o c:ootlmlle descm- pen'ha na formação do iimivfüuo. EniqUQhto não pU<lennoo compreender 135 wes ·leis e aB suas V'alrkdadcs, os principais factos que complicam 'a v.ida humt:ma 00!1timlairão a ser para nós ininteligíveis. A nossa falsa perspectiva O estudo do cootume s6 no5 pode iaproves depois de aceitmnos <:er·tos pootuladoo; e adgtlll5 d09SCS postulados t&:n enoontllado e11guidar C011Jtira si 'UIIll.aJ oposição violmitai. Bm pri- - meiro ·lugar tndo o. e:stWo científico exiigc a ~iai de trata- mooto preferencial de um ou oUJtro das ttlrlinos da série escothida para ser estuooda .. Bm todos os campos menios sujei- tos a controvérsia, como o estudo dos cactos, ou das térmites, ou da nraiturrez,a das ~bullosas, o método de estuck> a seguir é o de agrupar o m'a:terial significatrivo e ~egistu" todas as poosf veis funmias e condições w.rianres·. Foi deste modo que aprendemos tudo o que sa be:moo das leis da tastrronomia, ou d06 hábitos dos ánsectos oociais, por exemplo. S6 no estudo [ 15) do próprio homem é que as mais importames oiêncm sociais suootituíram aquele méoodo pelo egturlo de mna· variação local - a civilização OcidC'111tal. A antropologia foi, por definição, impcmvel enquanto estas distinções entre n66 próprios e o primitivo, nós próp.riioo e o bárbaro, nós próprios e o pagão, IDOS dominiaram o espírito. Foi necessário começar por cttingir aquele grau de afinamento intdectual em que já n&> pomos a nos.sa orcoça cm contraste com a superstição do ~ vizinho; foi ~ sabec re- oonhccer que aquelas ~tituições que as9elDtam nas mamas ~i&<ias, isto é: o sobrerumiraf, devem ser consideradas sob o. mesmo ângulo, aquelas como a nb6'Sa própria, para que tal impossibilidade desaparecesse. Na primeira metade do século XIX este postuladb elemenr tar não podi.ai ooor.ror nem sequer ao espíritn mads iesclarccido denllre ~ pessoas da civilização Ocidlerutial. O 1homem, aitraNés de t"Oda a ·sua história., defendeu como um ponitt> de honra · ! a ideia da sua iocomparabiJJidtOOe, do seu ca.ráctm d'e ser excep- cionad. No .tempo de Copémico estia 71eivindicação de supre- maçia era de 1tal modo mnbiciosa que indUIÍa mesI® a Terira em que ele VÜV'e, e o sécuk> XIV re<:U610U« com paixão ta. admitir a subordinação deste plandta a OC1lpClir apenas um lugair entre ~ou~ no sistmla rolar. No tempo de DarwID, toodQ oodido ao inimigo o sistema solM, o homem lutou com todas as atmi5 de que dispunha pela exclusividade da alma, atributo iniconçebível dado por Deus ao homem, de anandra ital que negou a descendência do homem de q~ membros do reino animal. Nem a falta de COllltlnuidadc lógica da. argwnen- tl:lJÇão, nom. quaisquer dúviidas sobre a natureza d~ ((alma», nem sequer a circunsdncia. de o século XIX não ter procurado af'irnrar a 9Ula fratemidmle com quaâsquior estranhos ao grupo - nenhum de9te6 factns COllltalram cornt:ra. a magnífica exal- tação que se manifestou r-apid'ameme perante a indignidade que a evoluição propuniha C011Jtrra o oonoeito dai excepcionall- dade do homem, ser Ú•mco mnre os seres. [ 16] Ambas essa5 ootalh'él\5 se podem co111Siderar gamas - se mo já', pelo menos em breve; llml5 a luta s6 mudbu de frente. Hoje estamos perfeitamerae dispa;t.os a admitir que a revo- lução da terra em tomo do Sol, ou a descendência animal do homem, quase nada ·têm que vei: com a excepcionalidade das nossas realizações humanas. Se habitamos um qualquer pla- neta dentre mirlarles de sist"emas oolares, <tanto nraior gl6ria para n6s, e se •tndas 'él5 ·heter6clitla5 .raças hlliillari>as estão ligadas, por evolução, oom o animal, tanito IIl1ais <radialis são as diferençar; demonstráveis entre nós e quailquer ~al, e itanto maâs notável é a unicid~e Wl5 noosas instituições. Mas as nossas .realizações, as nossas instituições sã'o únicas, incompa-- .f.. ráivois; são de uma ordem difererute das da5 raças inferiores e têm de ser protegidas a todo o custo. De sorte qu~. ou seja uma questão ·de imperi.aHsrno, ou de preconceito de !1aça, ou de comparação entre Cristianismo e paganismo, continuiarnoo envaiidecidoo com a unkidacte, nãro das imtifuições humanas do mundo em geral, com qUJC, aliás, niu.nca ning.uém se preo- cupou, mas das nossas própriias imstitwi.ções e realizações, da nossa civilização. 9!EJ.!!_são de _:ostume local com Natureza humana ) ..J A civilização OoidentaJ, devido a circtn5t1ndas hist6ricas \ _fortuitas, ~ve '\.lllla expansão 'l1l'éÚSvasmi do que a de qu~quor OOflrogrupo local até hoje conhecid-tl&tamacdizou..'9C por sobre a maior parte do globo, e fomoo, pois, levados a aceitar uma crença na, uniformidade da conduta humana, que noutras circundncias não teri~ SU1rgido. Até povos muito primitivos têm, por v~e:s. muito mais forte conlSCiência· do que nós, os ocidentais, do papel das feições culrurais, e por muito boas rílrzões. Sofreram a experiência íntima de culturas diferentes. Viram a sua religião, o seu sistema econ6mico, as suas restri- ções matrimoniaJs itombarem pemnte o branco. RCJlA.1111.ciamm ! - P. DE CULTURA ~ 17) a .um~ e aiceit.airam outlras, .muitas vezes com bom grande incompreensão delas; mas vêem com clarezJa que existem vários ammjoo da v.ida hUllll'a'Dla. Atribuirão, por vezes, centos caracteres dominantes do bra:n<:o à 6\Ja. oonco.mência cornerdal, ou às isuias instituições miüllarres, muioo da. fonm por que o fartem os antropologistas. O branco, es.9e, tem tido urna. experiência diferente. Nunca, porventura, terá visto um homem de ouaa civcilização, Q não ser qUIC o homem de outra civilização já estÍeja europeizado. Se viajou, muito provavelmente fê.Jo oom nuncai iter ·fioado fora de um hotel coomopolita. Pouco sabe de quaisquer ma- neiras de v.iver que não sejam ~ isuas. A uniformidade de cootumes, de ponoos de vistG, que vê em volta de si parecem- -lhe suficientemente convincentes, e esconde das suas vistas o facto de que se •lTalta, afinal, de um acidente hist6rioo. Aceita sem mais complicações a equivalênci'a· da natureza humana e dos seus pr6prios padrões de oultu'ra. E no enttmto, ra grande expansão da civilização branca. não é uma circunstância histórica isolatla. O grupo Polinésio, em époc5a5 relativamente recerutes, esprado11« desde Ontong, Java, até à Ilha da Páscoa, de Havai até à Nova Zelândia; e as tribos de Língua Bantu espalharam-se desde o Sara à África do Sul. Mais nós em nenhum caso coruidttamos esseis povos como anais do que 'Ulllla va1ria.ção local h'ipertrofiiada dai espécie humana. A civilizaçno Ocidental teve todas as suas mNenções em meioo de itraDSporte e !todas ~ suas organdzações oomer- oiais de bigo âmb,ito, a apoiac a sua• vastJa. dispor&ão, re é fácil compreender historicamente como isto se deu. A nossa cegueira perante outras culturas As oonsequêndas pskol6gicas destJa. expansão da oulwm branoa itêm si<lo desproporcl~ quando comparadas com as consequências m:atoria.is. Esta difusão cultural em grau [ 18] mundial <t&n-ons impedido, como mmca o homem o fui até aqui, de ltOmalr a sério as ciVihza.çoes 005" oUtlr~s po~; t'tm feito que a nmsa cWtiura e a ~ mivczsalidade maciça tenh~. de.9de há anuioo tempo, deixado de tomar em oonsi- demção o que é de essência hist~ e que .~támos ser, ~lo ~rio!... neces.sário e inevitml. Initerpreta'ii"iara &pen:] T dênicia, em que estamos m llO&Ça civilização, da. cax:orirê:ncia económica, romo prova de que esta é a primeiira, causa deter- minante em que a inatl1reZ'a pode confiar, ou resolvemos, sem. mai5, que o camportamervto dias crianças tal corno é moldado pela noo<>a civilizaÇão e registado nas cliniclais para crianças, l ll@ é psicologia infalntil ou o modo por que o animal hum~ L jovem (tem de se oomportar..JO mesmo se dá quer se trate da 11106\Sa ética q'oor da 111100Sa1 organização mmiliar. o qute defen- demos é a inevitabilidade de cada, IIllOtivação familiar, •teotando s'1'npre idenitificair as 111<>S.900 modos loca'is de oompootamento, com Comportamento, ou os !lbssos próprioo hábitos em socie- dade, com Naturez.a Humana. Ora o homem modemo fez desta tese uma das circuns- dm::ias vitais do oou pensar e da sua oonduta prática, mas as fontes de que ela provém ·reouam até oo que, a '<llV'aliar pela sua existênciG universad etlltre povos primitivos, parece sor uma das mais primitivas distinções hwnan.as, ~ düeren~ / quafüiati_ya entre <CO aneu pr~riio» ~_po_f'eoh~, e o que a • éTê e estimnho. Todas as rtriboo primitivas ooncordam cm re- -c.õríhecer esta categoria d05 estr.lnhos ao oou grupo, aquelas que não s6 estão fura das disposições do c6digo moral que é ~ bservado denâ"o dns limites do grupo de oada ·tnna, mas a uem sumariarnenite se ll1ega. Ulll). )ugar ato esquema. huanan~ m grande número dos 111omes de triboo oomum.mente usados, Zuiü, Déné, Kiowa, e owtro5, são inmmis por meio dos quais povos primitivos se reconhecem a si próprios, e são os termos nativos que designam «seres humanos», isto é, eles próprios. Fom do grupo fec1!iado ri@ hct ISICll"e~_Jn.w~. E isto, a des- peito dC? moto de, de um ponto de vista objeotivo, carda tribo [ 19] /:1 estm rodeada por povos que pa11ti'lham das suas airtac> e inven- ções materiais, de praticas cornplicadas que se desenvolveram através de trocas .mútuas de comportaanento entre um povo e outro. O homem primitivo nunôa comiderOUI o mundo 41.®1 viu '· yay u1t!E.!!f_dade como~ foose..um-grupo, ,nem fC'L causa comum ._J com a sua espécie. Desde mJcio foi wn habitante de uma pro· vinda que se isolÔu por meio de aluis barreirais. Quier se tra· tasse de escolher mulher ou de c:ortar U!Ill'a cabeça1, a. primeira distinção que mia, e a~ irnportMte, era entre o seu pró- prio grupo hwnano e os fora do grémio. O seu grupo e todos os &e\.l') modos de comportamento, eram únic06. De modo que o homem modenro, q~do d~i.ngue_PQ..VO Eleito e estrangeiros ~· grupos dentro da sua própria civilização genética e culturit.bnente aparentados um com o outro, como qUaisquer ·tribos Dai trelva australiana o são, tem \ por 11rás da sua atitude a justificação de uma longa conlt~n'Uddade hist6rica. ~igmeu& têm~ mesmas~· E nao noo é fácil Jibertaa:tmo-m:is de uma feição humana tão fundamental, mas p<;>demos, pelo men'OS iaprender a confessar a sua história e ~ s~ polimorfas ~if CS(Q!Çõe6. Uma ~ .manifestações, e aquela que é muitas vezas citmla como primária e condicionada mais por emoções reli- giooas do que por este .ma~ geceralixado provincialismo, é a atitude universa<hnente sustentada rias civilizações Ocidentais, na mOOida em ql.lle a rneligião se conservou entre elas uma cirCUlllStân.da viV'a'. A dis~ entre _qualquer grupo f~hado + + e~ ~nhos t.omar5e, em termos de religião, a de verda.- deil\05 crerutes e de pagãos. DUlrante milhares de anos não havia pontõS de COlttacto entre estas duas ~o~. Não havia numa delas, ideias ou instituições que !os.sem válidas na outra. Pelo contrário, 1todas as tinstituições eram conside~ anm- gónicas, oo por perren~rem a UJllQ ou a outtra d~, muitas vezes, levemente diferendadas religiões: de um ll3Kk> er'a uma questão de Verdru.le Divina• e de vatladeiro crente, de ·revelação [ 20] e de Deus; do outro era uma questão de erro mortal, de f ábutas, do maldito e de dom6nios. Não se trai'tava de equacio- nar as ootude5 dos grupos em oposição, e por consequência, <le compreender através de dados .eswdados objeotiva.mcnte a ootureza desta impor.tan.te feição humana- religião. Preconceitos de raça Nós sentimos uma $erta superlorld~ justi~cada q~a~do \ 1 se aceita uma caracterização, como esta, da atitude rcbg1osa J padrão. Pelo menos desembaraçámo-nos daquela absurdidade especial, e aceitámos estudar comparadamente as religi~. Mas considerando o alcance que uma atitude semelhante teml tido na nossa civilização sob a forma de, por exemplo, pre- conceitos de raça, justifica-se certo cepticismo quanto a ser a nossa largueza de vistas, em questões de religião, devida ao facto de termos superado a dndida infantilidade de visão, ou simplesmente ao facto de a religião ter deixado de sei:--º @ tnblado em que se põem em cena as grandes batalhas da_ VI~\ ~od~a. Nas questões realmente vitais da nossa civilização parece estarmos ainda longe de ter adquirido a atitude desin- teressada que tão largamente alcançámos no campo da religião. Outra circuns~ncia fez do estudo sério do costume uma disciplina ainda em atraso e muitas vezes cultivada com hesi- tação,e esta é uma circunstância mais difícil de vencer do que aquelas a que vimos de nos referir. O costume_n~u 1 a a~n5ão_ dos teorizadores sociais porque _ele ~onstituía a 1 própria subst~nc~ ~o ~u P_!Dsar: era..!...P.2_r_~_drzer!..~te sem a qual nada podiam ver. ~ente porque_ej'.a ..funda· m;ntal, existia fora da sua. atenç!o c_Q._~ent~_Tal .cegueira ;;a; tem de enigmático. Depois de um investigador reunir os vastos dados necessários para o estudo de créditos inter- nacionais, ou do processo de aprender, ou do narcisismo como factor de psiconeuroses, é por intermédio e dentro deste corpo [ 21] de dados que o economista, ou o psicologista, ou o psiquiatra operam. Não toma em consideração o facto de outros com- plexos sociais em que, porventura, todos os factores se dispõem de uma maneira diferente. Isto é, não conta com o condicio- namento cultural. ~to que est!_ a estu~ar como mani- ~do-s_e_ ~ 1!1~os conhecidos e inevitáveis, e apresenta estes como se fossem absoiutos, porque; eles se-rêduzem todos õSiiiãteriaiS que lhe servem para trabãlhar racionalmente. Iden- tfücam-se atitudeslocais da década de trin~m natureza humana, e a sua caracterização, com Economia e Psicologia. Na prática, isto, muitas vezes, não importa. Os nossos filhos devem ser educados na nossa tradição pedagógica, e o estudo do processo de aprendizagem nas nossas escolas é o que realmente importa. Da mesma forma se justifica o en- colher de ombros com que muitas vezes se acolhe uma dis- cussão de outros sistemas económicos que não o nosso. Afinal, temos de viver dentro do quadro do meu e do teu que a nossa particular cultura estabelece. fY1 Isto é, realmente, assim, e o facto de as variedades de J.J .;:> JJ( culturas se poderem discutir melhor tais como existem em p é ~q · espaço, pretexto para a nossa1 ~ance. _}ias é apenas n.9"'\ a limitação de material histórico 'b que 1õiPe<ie que se tirem exemplos da sucessão das culturas em tempo. Essa sucessão é coisa a que não podemos furtar-nos, mesmo que o queiramos, e quando olhamos mesmo s6 uma geração para trás que seja, então compreendemos até ·que ponto foi longe a revisão, por vezes no nosso mais íntimo comportamento. Até aqui tais revisões têm sido não deliberadas, mas o resultado das cir- cunstâncias que s6 retrospectivamente podemos figurar. E se não fosse a nossa relutância em enfrentar mudanças culturais em questões essenciais, enquanto elas se nos não impõem, não seria impossível assumir uma atitude mais inteligente e autori- l _ zada. Aquela relutância é em grande parte um resultado da nossa incompreensão das convenções culturais, e especialmente .uma sublimação daquelas que pertencem à nossa nação e à [ 22 J ~- 8' º ![ , ••• nos.sa década. Um conhecimento mesmo escasso de outras convenções e de como elas podem ser <Jiferentes das- nossas,, contribuiria muito para promov~r uma_ordem social racional. --0-CStudo de culturas diferentes tem ainda outro alcaii~ muito importante sobre o pensamento e o comportamento de hoje em dia. A vida moder~.Jlluitas.civiliza~ ell_!_Çon- @, tacto íntimo, e no momento presente a reacção dominante a esta situação é o nacionalismo e o snobismo racial. Nunca, mais do que hoje, a civilização teve necessidade de indivíduos bem conscientes do sentido de cultura, capazes de verem objec- tivamente o comportamento socialmente condicionado d~ outros povos sem temor e sem recrimina~o. \ Desdém pelo estrangeiro não é a única solução possível do nosso actual contacto de raças e nacionalidades; esta nem , sequer é uma solução cientificamente alicerçadajà tradicio-......, j ual intolerância anglo-saxónica é uma feição cultural, local e_J _temporal como qualquer out:afMesmo um povo tão aproxima- damente do mesmo sangue e da mesma cultura como o espa- nhol dela não sofreu, e o preconceito de ·raça nos países qe coloniza~o ~anhola_é uma co~ com~etamente diferente do dos países dominados pela Inglaterra e pelos Estados Unidos. Neste5 não se -trata evidentemente de uma intolerâ-;_ eia dirigida contra a mistura de sangue de raças biologica- mente muito distantes, porque ocasionalmente a exaltação é tão grande contra o católico irlandês em B6ston, ou o italiano na Nova Inglaterra, como contra o Oriental na Califórnia. l! a velha distinção entre o grupo de dentro e o grupo de fora, e se neste aspecto continuamos a tradição primitiva, temos muito menos desculpa do que as tribos selvagens. Nós viajá- mos, orgulhamo-nos das nossas vistas desempoeiradas. Mas 1 (\, ~~/ . ~1 não conseguimos compreender a relatividade dos hábitos cul- turais, e continuam~ privados de muito prove!to e de muito prazer nas nossas relãÇOes- humanas com povos de_djfefe!!tes tipo~ de cultura, e a não ser dignos de confiança nas nossas relações com eles. t [ 23] ? I < - 11 O reconhecimento da base cultural do preconceito de raça é hoje uma necessidade desesperada na civilização Oci- dental. Chegámos a um ponto em que alimentamos precon- ceitos de raça contra os nossos irmãos ·de sangue, os Irlande- ses, e em que a Noruega e a Suécia falam da sua inimizade como se também eles representassem sangues diferentes. A cha- mada linha racial, durante uma guerra em que a França e a Alemanha se batem em campos opostos, mantém-se para di- vidir o povo de Baden do da Alsácia, ainda que somaticamente ambos pertençam à sub-raça alpina. Numa época de movi- mentos sem embaraços e de casamentos mistos na ascendência dos elementos mais desejáveis da comunidade, pregamos, sem corar de vergonha, o evangelho da raça pura. O homem moldado pelo costume nêl.o pelo instinto A isto a antropologia dá duas respostas. A primeira res- peita à natureza da cultura, e a segunda à natureza da herança. A resposta respeitante à natureza da cultura leva-nos até às sociedades pré-humanas. Há sociedades em que a Natureza perpetua o mais ténue modo de comportamento por meio de mecanismos biológicos, mas tais sociedades não são· de homens, são de insectos. A formiga rainha, transportada para um ninho solitário, reproduzirá todas as feições do comportamento sexual, todos os pormenores do ninho. Os insectos sociais re- presentam a Natureza não disposta a correr quaisquer riscos. O padrão de toda a estrutura social, confia-o ao comporta- mento instintivo da formiga. Não há maior número de proba- bilidades de as classes sociais de uma sociedade de formigas ou de os seus padrões de agricultura se perderem pela sepa- ração de uma formiga do seu grupo, do que de a formiga não . vir a reproduzir a forma das suas antenas ou a estrutu.ra do seu abdómen. Feliz ou infelizmente, a solução do homem ocupa o p6lo [ 24] oposto. Nada da sua orgfilLização social tribal, da..sua.Ji!i~a-1 \ g_em, .ia sua _religião .. local é transportado...na_sua célula_g~ nal. Na Europa, em séculos passados, quando se encontravam crianças que tinham sido abandonadas e se tinham conservado em florestas, separadas de outros seres humanos, eram de tal modo- parecidas entre si que Lineu as classificou como uma espécie à parte, Homo ferus, e supôs que eram uma espécie de anões raros. Não podia conceber que tivessem nascido de homens, esses brutos idiotas, esses seres sem interesse no que se passava à sua volta, oscilando ritmicamente para trás e para diante como qualquer animal de jardim zoológico, com órgãos da fala e da audição que mal podiam educar-se, que resistiam ao frio apenas com uns farrapos e tiravam batatas de água a fcn:cr sem o menor incómodo. ~ claro que não havia qualquer dúvida que se tratava de crianças abandonadas na infância,_ e o. que a todas faltara fora a associação com os seus seme- lhantes, só através da qual as: faculdades do homem se afinam e ganham forma. Hoje, na nossa civilização, mais humanitária, já não se encontram crianças selvagens. Mas o facto ressalta com igual clareza de qualquer caso de adopção- de uma criança cm outra raça ou cultura. Uma criança Oriental adoptada por uma família Ocidental, aprendeinglês, revela para os seus pais adoptivos as atitudes correntes entre as crianças com quem brinca, e encarreira-se para as mesmas profissões que elas escolhem. Aprende todo o conjunto de feições culturais da sociedade que adoptou, e o grupo dos seus verdadeiros proge- nitores não desempenha cm tudo isto qualquer papel. O mesmo se passa em grande escala quando populações inteiras se desembaraçam da sua cultura tradicional em duas ou três gerações e adoptam os costumes de um grupo estrangeiro. A cultura do Negro americano nas cidades do norte veio a aproximar-se em todos os pormenores da dos brancos nas mesmas cidades. Há alguns anos, quando se fez um recensea- mento cultural em Harlém, um dos traços peculiares aos [ 25] Negros era a moda que seguiam de apostar nqs três últimos algarismos dos investimentos da bolsa no dia seguinte. Pelo menos saía mais barato do que a correspondente predilecção dos brancos por jogarem na pr6pria bolsa, e tinha a mesma incerteza e era igualmente excitante. Era uma variante do padrão branco, mas nem por isso se afastava muito dele. E a maioria das feições de Harlém conservam-se ainda mais próximas das formas correntes em grupos · brancos. Por toda a parte, e desde o princípio da hist6ria do homem, se demonstra que certos povos puderam adaptar a cultura de povos de outro sangue. Não há na estrutura bioló- gica do homem nada que tome isto sequer difícil, muito menos impossível. O homem não é obrigado, pela sua constituição biol6gica, a obedecer em pormenor a qualquer variedade par- ticular de comportamento. A grande diversidade de soluções elaboradas por ele em diferentes culturas relativ~mente à união dos sexos, por exemplo, ou ao comércio, são todas igualmente possíveis na base dos seus dotes originais. ~~ não ~um ~omplexo que seja transmitido biologicam~!,.e. O que se perde em garantia de segurança dada pela Natu- reza é compensado pelas .vantagens de uma maior plasticidade. No animal humano não se desenvolve, como no urso, um re- vestimento de pêlos que o resguardam do frio, com o resul- tado de, depois de muitas gerações, se adaptar aos rigores árcticos. Ele aprende, sim, a fazer agasalhos e a construir uma casa de neve. Pelo que nos diz a hi5t6ria da inteligência nas sociedades pré-humanas, como nas humanas, esta plasticidade foi o húmus em que o progresso humano começou a crescer e em que se tem mantido vivo. Nos tempos dos mamutes, espé- cies sobre espécies sem plasticidade surgiram, ultrapassaram-se e desapareceram, vítimas do desenvolvimento daquelas mesmas feições que a adaptação ao ambiente nelas tinha produzido. Os animais carnívoros e por fim os símios superiores vieram lentamente a apoiar-se em adaptações não meramente bioló- gicas, e foi sobre a consequente plasticidade assim aumentada [ 26) que se estabeleceram, pouco a pouco, as fundações para o desenvolvimento da inteligência. Talva, como muitas vaes se sugere, o homem venha a destruir-se a si pr6prio em virtude exactamente do desenvolvimento da sua inteligência. Mas nunca ninguém se lembrou de aventar quaisquer meios por que possa- mos voltar aos mecanismos do insecto social; de modo que nãa nos resta qualquer alternativa. A herança cultural humana, para nosso bem ou para nosso mal, não se transmite biologica- mente. O corolário que daqui deriva em política moderna é que não há qualquer fundamento no argumento de que podemos confiar as nossas conquistas espirituais e culturais a quaisquer plasmas germinais especiais hereditários. Na nossa civilização Ocidental a liderança passou, em diferentes períodos, sucessi- vamente para os Hamitas, para o subgrupo Mediterrâneo da raça branca e finalmente para os N6rdicos. Não M qualquer dúvida acerca da realidade do facto da continuidade cultural da civilização, seja quem for o seu portador em dado mo- mento. Temos de aceitar todas as implicações da nossa herança humana, uma das maiores das quais é a inimportância relativa do comportamento biologicamente transmitido, e o papel enorme do processo cultural da transmissão da tradição. A «pureza racial» é uma ilusao A segunda resposta dada pela antropologia ao argumento do purista racial, respeita à natureza da hereditariedade. O pu- rista racial é a vítima de um mito. Porque, o que vem a ser «herança racial»? Sabe-se mais ou menos o que é herança de pai para filho. Dentro de uma linhagem familiar a importância da hereditariedade é imensa. Mas hereditariedade é uma questão de linhagens familiares. Para além disso é mito. Em comuni- dades pequenas e estáticas, como uma aldeia Esquim6 isolada, J:ereditariedade racial e hereditariedade de filho e pais são pra- [ 27 ] ticamente equivalentes, e nessas condições a expressão heredi· tariedade racial faz sentido. Mas como conceito aplicado a grupos espalhados por uma área vasta, digamos, no caso dos Nórdicos, não tem qualquer base real. Em primeiro lugar, em todas as nações nórdicas há linhagens de família que também são representadas em comunidades alpinas ou mediterrâneas. Qualquer análise da constituição física de uma população euro- peia apresenta zonas de sobreposição: o Sueco de olhos e cabelos escuros representa linhagens de família que são mais. concen· tradas para o Sul, mas ele deve ser considerado em relação ao que sabemos destes últimos grupos. A sua hereditariedade, na medida em que tem qualquer realidade física, é uma questão G!a sua linhagem de família, que não se confina à Suécia. Não sabemos até que ponto tipos físicos podem variar sem entre· mistura. Sabemos que o intracruzamento provoca o apareci- -~ento de um tipo local. Mas este caso quase não se dá na ossa cosmopolita civilização branca, e quando se invoca a ((hereditariedade racial», como é habitual, para reunir um grupo de pessoas com, aproximadamente, a mesma posição econó- mica, com cursos de, aproximadamente, as mesmas escolas, e que lêem os mesmos semanários, tal categoria é nada mais do que outra versão do grupo dentro do grémio e do grupo fora do grémio, e não se refere à verdadeira homogeneidade bioló- gica do grupo. O que na realidade liga os homens é a sua cultura - as ideias e os padrões que têm em comum. Se em vez de escolher um símbolo como hereditariedade de sangue comum, e de o arvorar em moto, a nação dirigisse antes a sua atenção para a cultura que une o seu povo, pondo em relevo os seus méritos e reconhecendo os diferentes valores que se podem desenvolver numa cultura diferente, substituiria uma espécie de simbolismo perigoso, por ser enganador, por um pensar realista. [ 28] Razão para se fazer o estudo de povos primitivos No pensar social é necessário um conhecimento de diferen- tes formas de cultura, e este livro ocupa-se deste problema da cultura. Como acabámos de ver, forma do corpo, ou raça, é separável de cultura, e, para o fim que temos em vista, tal conceito pode ser posto de parte, excepto em certos pontos em que por qualquer razão especial passe a ser relevante. Uma discussão de cultura exige em primeiro lugar que se baseie numa larga selecção de formas culturais possíveis. Só assim poderemos distinguir entre aqueles ajustamentos humanos culturalmente condicionados e os que são comuns e, tanto quanto podemos saber, inevitáveis, na humanidade. Não podemos, por intros- pecção ou por observação de qualquer sociedade, descobrir que comportamento é «instintivo», isto é, organicamente determi· nado. Para classificarmos de instintivo qualquer comporta- mento, não basta provar que ele é automático. O reflexo con· dicionado é tão automático como o determinado organica· mente, e reacções culturalmente condicionadas constituem a maioria do nosso vasto equipamento de comportamento auto- mático. Por consequência_o 2!1ª~~1 mais signif!_cativo para o_caso de uma discu.$São de formas ~ro_çessos culturais_é o da,ç~e dades tant~ ,g~a.!!!º possível historicamente J?Ol!_CO ~J~~o~das com a nossa e entre si. Com a vasta rede de contacteis históricos .. --.....- que as grandes civilizações espalharam sobre enormes áreas, as culturas primitivas são hoje a única fonte a que devemos recorrer. Elas são um laboratório em que podemos estudar a diversidade de instituições humanas. Com o seu relativo isola- mento, muitas regiões primitivas tiveram ao seu dispor vários séculos em que puderam elaborar os temas culturais de que se apropriaram. Fornecem-nos, prontas para serem estudadas, informações relativas a possíveis grandes variações em ajusta· mentos humanos, e para qualquer compreensão dos processos culturais é essencial um exame crítico desses ajustamentos. [ 29] ~ este o único laboratório de formas sociais de que dispomos ou disporemos. Este laboratório tem outra vantagem. Os problemas põem-se aqui em termos mais simples do que nas grandes civilizações Ocidentais. Com as invenções que tomam fáceis os transportes, com cabos internacionais, telefones, rádiotransmissão, aquelas invenções que asseguram permanência e vasta distribuição da imprensa, o desenvolvimento de grupos profissionais, cultos e classes em concorrência e a sua uniformização por todo o mundo, a civilização moderna tomou-se demasiadamente com- plexa para ser - convenientenlente analisada, excepto .quando, '-{ para isso, se fraccione em ~quenas secç_9es artificiais. E estas análises parciais são inadequadas porque muitos factores exter- nos que se .apresentam não podem ser controlados. Umã revista de qualquer grupo envolve indivíduos provenientes de grupos heterogéneos opostos, com padrões diferentes, diferentes objec- tivos sociais, relações familiares e moralidade. A inter-relação destes grupos é demasiadamente complicada para a avaliarmos com o necessário pormenor. Na sociedade primitiva, a tradição 11 cultural é suficientemente simples. para que o saber de cada adulto a abranja, e os modos de proceder e a moral do grupo ajustam-se a um padrão geral bem definido. e possível neste ambiente simples, avaliar a inter-relação de aspectos de uma forma impossível nas correntes que se chocam na nossa com- plexa civilização. Nenhuma destas razões para insistir nos factos de cultura primitiva tem nada que ver com o uso que classicamente se tem feito deste material. Este uso visava à reconstituição de origens. Os antropologistas anteriores tentavam dispor. todos os aspectos de culturas diferentes numa sequência evolutiva, desde as primeiras formas até ao seu desenvolvimento último na civi- lização Ocidental. Mas não se deve supor que ao discutir a reli- gião Australiana, e não a nossa, nós, estamos a revelar a religião primitiva, ou que ao discutir a organização social Iroquiana revertemos aos hábitos de acasalamento dos primeiros ante- passados do homem. lJma vez. que somos forçados a aceitar que o homem cons- titui uma espécie, conclui-se daí que por toda a parte o homem tem atrás de si uma história igualmente longa. t possível que certas tribos primitivas se tenham co~rvado mais pr6ximas de formas primitivas de comportamento do que o homem civi- lizado, mas pode suceder que isto seja apenas relativo, e as nossas suposições tanto podem ser verdadeiras como err6neas. Não se justifica que identifiquemos qualquer primitivo costume actual com o tipo original de comportamento humano. No ponto de vista de método s6 há urna maneira de atingir um conhecimento aproximado desses estádios primitivos da huma· nidade; pelo estudo da distribuição desse pequeno número de feições universais ou quase universais da sociedade humana. Muitas são bem conhecidas. Dentre elas todos concordam em contar o animismo (1) e as restrições exógamas sobre o casa- mento. Mais questionáveis são as concepções, que afinal mos- tram ser muito diferentes, sobre a alma humana e sobre uma vida futura. Crenças quase universais como estas últimas, podem justificadamente considerar-se como invenções humanas extraor- dinariamente antigas. O que não quer dizer que as consideremos determinadas biologicamente, pois que podem ter sido invenções muito primitivas do homem, feições «de berço» que se tor- naram fundamentais em todo o pensar humano. Em última análise podem ser tão socialmente condicionadas como qualquer costume local. Mas tomaram-se desde há muito automáticas no comportamento humano. São antigas e universais. Mas não podemos concluir daí que as formas que hoje se podem obser- var sejam as formas originais surgidas nos tempos primitivos. Nem há qualquer processo de reconstituir essas origens a partir do estudo das suas variedades. Podemos isolar o núcleo uni- (1) Crença na exist@ncia do espírito em toda a · Natureza. (N. do T. alemão) [ 31] versai da crença e derivar dele as suas formas locais, mas apesar disso é ainda possível que a feição particular tenha surgido de uma forma local pronunciada e não de qualquer núnimo deno- minador comum de todas as formas observadas. Por isto, a utilização de costumes primitivos no estabele- cimento de origens é de natureza especulativa. 1! possível for- mular um argumento em apoio de quaisquer origens que se desejem, origens que se excluam mutuamente ou que sejam complementares. De todas as utilizações de material antropo- lógico, é este aquele em que especulação seguiu especulação mais rapidamente, e em que, pela própria nature-za da questão, não é possível fazer prova. 1ão-pouco a razão de utilizar sociedades primitivas na dis- cussão de formas sociais está necessariamente relacionada com um romântico regresso ao primitivo. Ele não se filia em qual- quer espírito de poetização dos povos menos evoluídos. Sob muitos aspectos a cultura de um ou outro povo seduz-nos forte- mente nesta era de padrões heterogéneos e de confusa agitação mecânica. Mas não é num regresso a ideais conservados por povos primitivos para nosso proveito, que a nossa sociedade curará os seus males. O romântico Utopianismo que anseia pelo primitivo mais simples, por atraente que por ve-zes possa ser, constitui nos estudos de antropologia tanto um empecilho como um auxílio. O estudo cuidadoso das sociedades primitivas é hoje, como dissemos, importante, mas por fornecer material para o estudo de formas e processos culturais. Ajuda-nos a distinguir as res- pnSt'aS cspeclficas de tipos oulrtltmllis locais, das que são gerais na Humanidade. Além disto ajudam-nos a avaliar e compreender o papel imensamente importante de comportamento cultural- mente condicionado. A cultura, com os seus processos e funções, é um assunto sobre que necessi~mos todo o esclarecimento possível, e em nada como nos factos das sociedades pré-letradas nós podemos buscar colheita. mais compensadora. [ 32] 2 A DIVERSIDADE DE CULTURAS O vaso da vida U M chefe dos fndios Digger (1), como os habitantes da Califórnia lhes chamam, falou muito comigo a res- · peito dos hábitos do seu povo em tempos idos. Era cristão e pioneiro entre os seus na cultura de pêssegos e alperces de regadio, mas ao fam dos ~ãs que, virai ele com os seus olhos, se tinham transformado em ursos durante a dança-dos- -ursos, as mãos tremiam-lhe e a voz vibrava de emoção. Era uma coisa extraordinária a energia do seu povo nos tempos anti~os. Mais do que tudo gostava de falar do que o deserto lhes dava como alimentos. Tratava cada planta que arrancava, com amor e ·com uma segurança absoluta da sua importância. Nesses tempos o seu povo tinha comido «da saúde do deserto», dizia ele, e ignorava tudo a respeito de latas de conserva e do que se vendia nos talhos. Tinham sido estas inovações que tinham acabado por fazê-los degenerar. . · Um dia, sem transição. Ramon começou a descrever como (') cfndios Diggcr-, os autóctones da Grande Bacia. (N. do T. aiem8o) a • P. DE CULTURA [ 331 ee'd'tsr nr liiiJ se esmagava o mendobi e se preparava sopa de bolota. «No prin- cípio», dizia, «Deus deu um vaso a cada povo, um vaso de barro, e por este vaso bebiam a sua vida.» Não sei se o símbolo aparecia em qualquer rito tradicional do seu povo que nunca descobri qual fosse,ou se era inventado por ele. E. difícil admitir que o tivesse recebido dos brancos que conhecera em Banning; estes não eram gente que discutisse o etos de diferentes povos. Seja como for, no espírito deste índio humilde a figura de ret6- rica era clara e rica de significado. <<Todos enchiam o seu vaso mergulhando-o na água», contill\lava, .«mas os vasos eram dife- rentes. O nosso quebrou-se; desapareceu.» O nosso vaso quebrou-se. Aquilo que tinha atribuído signi- ficado à vida do seu povo, os rituais domésticos de tomarem os alimentos, as obrigações do sistema económico, a sucessão dos cerimoniais nas aldeias, o estado d~ possessos na dança do urso, os padrões do bem e do mal - tudo desaparecera, e com isso a forma e o significado da sua vida. O velho conservava-se ainda vigoroso e continuava a ser quem orientava as relações dos seus com os brancos. Não queria ele dizer, com aquele modo de se exprimir, que se tratava de qualquer coisa como a e>:tinção do seu povo. Mas no seu espírito hâvia como que a consciência da perda de qualquer coisa que tinha um valor igual ao da própria vida, ·toda a estrutura dos padrões e das crenças do seu povo. Havia ainda outros vasos da vida, talvez com a mesma água, mas a perda era irreparável. Não se tratava de juntar aqui isto, de tirar ali aquilo. A modelação do vaso fora fundamental, fosse como fosse era de uma s6 peça. Fora o seu vaso. Romão tinha tido a experiência pessoal daquilo de que falava. Fizera a forquilha entre duas culturas cujos valores e modos de pensamento eram incomensuráveis. Duro destino. Na civilização Ocidental as nossas experiências foram diferentes. Somos educados para viver dentro de uma cultura cosmopolita, e as nossas ciências sociais, a nossa psicolpgia e a nossa teologia teimam em ignorar a verdade. expressa pela figura de Romão. [ 34] O curso da existência e a pressão do ambiente, para não falar da facúndia da imaginação humana, .proporciona um nú- mero incrível de orientações possíveis, todas as quais, aparente- mente, permitem que sejam adoptadas por uma sociedade. Há os esquemas da propriedade, com a hierarquia social que se pode associar ao que se possui; há coisas materiais e as compli- cadas técnicas correspondentes; há. todas as facetas da vida sexual, da paternidade e do culto dos antepassados; há as asso- ciações ou· os cultos que podem estruturar a sociedade; há as trocas económicas; há os deuses e as sanções sobrenaturais. Cada um destes aspectos e muitos outros serão exaustivamente + seguidos com uma elaboração cultural e cerimonial que mono- poliza a energia cultural e deixa pouco lugar para a criação de outros aspectos. Aspectos da vida que se nos afiguram impor- tantíssimos foram ignorados e desatendidos por povos cuja cultura, orientada noutra direcção, esteve longe de ser pobre. Ou a mesma feição comum pode tomar-se complicada a tal ponto que a consideramos fantástica. Necessidade de uma selecção Passa-se na vida cultural o que se passa com a linguagem. O número de sons que as nossas cordas vocais e as nossas cavidades bucais e nasais podem emitir é praticamente ilimi- tado. As três ou quatro dezenas da língua ing)eSa constituem uma escolha que nem com a de outras línguas tão intimamente relacionadas com ela como o Alemão e o Francês coincide. Nunca ninguém ousou calcular o número total desses sons usados em diferentes linguagens. Mas cada lfngua tem de escolher os seus e de . os aceitar, sob pena de perder toda a inteligibilidade. Uma língua que utilizasse mesmo as poucas centenas dos elementos fonéticos possíveis - e realmente regis- ; tados - seria inutili~ como meio de comunicação oral. Por J outro lado muito da nossa incompreensão das línguas que não [ 35] sejam afins da nossa resultá de tentarmos relacionar sistemas fonéticos estranhos, com o nosso próprio como ponto de refe- rência. Nós só reconhecemos um K . • Se outras têm cinco sons diferentes de K localizados em diferentes pontos na gar- ' ganta e na boca, é-nos· impos.5fvel compreender diferenças de voca~ulário e de construção que dependem daquelas locali- zações enquanto não dominarmos estas. Nós temos um d e um n. Entre eles pode haver um som intermediário que, se não conseguimos identificá-lo, representaremos ora por um d ora por um n, introduzindo distinções que não existem. A con- dição prévia elementar da análise linguística é posruir a . cons- . ciência desse incrível número de sons ao nosso dispor, de que cada linguagem escolhe uns tantos. Também em cultura temos de imaginar um grande arco em que alinham os interesses pos.5fveis que o ciclo da vida humana, ou o ambiente, ou as várias actividades do homem fornecem. Uma tultura que acumulasse mesmo uma proporção considerável desses interesses seria tão inteligível como uma linguagem que utilizasse todos os sons linguais, todas as sus- pensões glóticas, todas as labiais, dentais, sibilantes, e guturais das mudas às tónicas, das orais às nasais. O seu carácter distin· r tivo, como uma cu1~a, depende da escolha de certos seg- ~entos desse arco. Toda a sociedade humana, onde quer que seja, realizou essa escolha nas suas instituições cultUrais. Cada uma delas, do ponto de vista de qualquer ºoutra, ignora o que é essencial e explora o que é irrelevante. Uma cultura quase não reconhece valores monetários; outra tomou-Os fundamen- tais em todos os campos do comportamento. Numa sociedade a técnica é inacreditavelmente desdenhada, mesmo naqueles aspectos da vida que parecem necessários para garantir a sobre- vivência; em outra tão simples como ela, os aperfeiçoamentos técnicos são extraordinariamente complexos e admiravelmente adequados a cada situação. Uma erige uma enorme superstru- tura cultural sobre a adolescência, outra, sol>re a morte, outra ainda, sobre a vida futura. • O caso da adolescência é particularmente interessante, já porque está em foco na nossa civilização, já porque sobre ele dispomos de informações suficientes relativas a outras culturas. Entre nós toda uma vasta bibliografia de estudos psicológicos pôs em relevo a inevitável inquietação do período da puber· dade. Na nossa tradição ele é um estado fisiológico tão precisa- mente caracterizado por explosões domésticas e por rebelião, como a tifóide o é pela febre. Não são os factos que faltam. Na América são comuns. O problema está antes na sua inevi- tabilidade . Maneiras diferentes em diferentes sociedades de considerar a adolescência e a puberdade O exame mais perf unctório dos modos como diferentes sociedades têm considerado a adolescência, põe em evidência o seguinte facto: mesmo naquelas culturas que dão mais impor- tância a este aspecto, a idade em que fazem incidir a sua aten- ção varia num largo intervalo de anos. ~. pois, imediatamente claro que se continuamos a pensar em termos de puberdade biológica as chamadas instituições de puberdade são uma má designação. A puberdade que elas consideram é de natureza so- cial, e as cerim6nias correspondentes são um' reconheeimento, variável na forma, da nova condição cío estado de adulto da criança. Esta investidura em novas ocupações e obrigações é consequentemente tão variada e culturalmente tão condicionada como o são aquelas mesmas ocupações e obrigações. Se o único dever considerado honroso do homem adulto são os feitos guerreiros, a investidura do guerreiro faz-se mais tarde e é de natureza düerente da de uma sociedade em que o estado de adulto .confere o privilégio de dançar numa representação de deuses mascarados. Para compreendermos as instituições de puberdade não é da análise da necessária natureza dos rituais de transição que nós precisamos; do que precisamos é, antes, (37] de saber o que, em diferentes culturas, se identifica com o início da fase de adulto e quais os seus métodos de admissão no novo estado de maturidade. Maturidade na América Central significa capacidade de fazer a guerra. Honorabilidade nesta é a grande ambição de todos os homens.O tema sempre repetidq da emancipação do mancebo, como da preparação para a carreira das armas em qualquer idade, é um ritual mágico do êxito na guerra. A tor- tura não é inflingida aos iniciados por outrem, mas por estes a si próprios: cortam ti.ras de pele nos braços e pernas, amputam dedos, arrastam grandes pesos fixados aos músculos do peito ou das pernas. O seu galardão é exaltação _de proezas em feitos de guerra. Na Austrália, pelo contrário, maturidade significa partici· pação num culto exclusivamente masculino cuja feição funda- mental é a exclusão de mulheres. Qualquer mulher que ouça sequer o homem que solta o urro do touro nas cerimónias, é condenada a morrer; ela nunca deve ter conhecimento dos ritos. As cerimónias de. puberdade são repudiações simbólicas e com- plicadas das ligações com a fêmea; os homens são simbolica- mente promovidos a seres que se bastam a si pr6prios e ele- mentos .completamente responsáveis da comunidade. Para alcan- çarem esse fim empregam-se drásticos ritos sexuais e confe- rem-se ao iniciado garantias sobrenaturais. Os factos fisiológicos claros da adolescência são, pois, prin- cipalmente, interpretados socialmente, mesmo onde eles são postos em relevo. Mas uma revista das instituiç&s de puber· dade toma evidente uma coisa: a puberdade é, no ponto de vista fisiológico, uma coisa diferente no ciclo vital do macho e da fêmea. Se o aspecto cultural acompanhasse o aspecto fisiológico, as cerimónias no caso das raparigas seriam mais fortemente caracterizadas do que no dos rapazes; isso, porem, não é o que se dá. As cerimónias celebram um facto social: as prerro- gativas do homem têm mais largo alcance do que as das mulheres, seja qual for a cultura, e por ·consequência, como nos casos acima citados, é mais comum nas sociedades darem atenção a este período nos rapazes do que nas raparigas. A puberdade de rapazes e de raparigas pode, porém, ser celebrada na tribo da mesma maneira. Onde, como no interior da Colúmbia Britânica, os ritos de adolescência são um treino mágico para todas as ocupações, os rapazes e as raparigas são sujeitos aos mesmos tipos de procedimento. Os rapazes fazem rolar pedras pelas montanhas empurrando-as encosta abaixo para serem rápidos na corrida, ou arremessam varas-de-arre· messo para serem bem sucedidos nos jogos; as raparigas trans- portam água de fontes distantes ou deixam cair pedras entre as roupas e o corpo, para que os seus filhos nasçam com tanta facilidade como as pedras caem. Numa tribo como a Nandi, da região dos lagos da África Oriental, rapazes e raparigas partilham em comum num rito de puberdade uniforme, ainda que, atendendo ao papel dominante do homem na cultura, o seu período de treino juvenil seja mais intenso do que o das mulheres. Neste caso os ritos são uma provocação infligida pelos já admitidos à situação de adultos, aos que eles agora são forçados a admitir no seu seio. Exigem deles o mais complexo estoicismo perante engenhosas torturas relacionadas com a circuncisão. Os ritos para os dois sexos são separados mas seguem o mesmo padrão. Em ambos, os noviços envergam para a cerim6nia os vestuários dos seus namorados. Durante a operação espiam-se-lhes os mais ligeiros sinais de sofrimento, e a retribuição da coragem é conferida com grande regozijo pelo namorado, que se adianta para receber qualquer dos seus adornos. Para ambos, rapariga e rapaz, os ritos marcam a sua entrée numa nova situação de sexo: o rapaz é agora um guerreiro e pode ter uma namorada, a rapariga pode casar-se. Os testes de adolescência são para.ambos os sexos uma provação pré-marital, em que a palma é conferida pelos respectivos namorados. Os ritos de puberdade podem também assentar nos factos da puberdade da rapariga, sem admitir extensão aos rapazes. [ 39] Um dos mais ingénuos deste género é a instituição da casa-de- ,engorda para raparigas, na África Central. Na região em que a beleza quase se identifica com a obesidade, a rapariga na puber- dade é segregada, às vezes duraiite anos, alimentada com gor- duras e substlncias doces, e não desenvolve qualquer actividade, e fricciona-se-lhe o corpo repetidamente com óleos. Durante C$C período ensinam-so-lhe os seus .futuros deveres. e a reclusão termina com utna exibição da sua corpulência a que se segue o casamento com o noivo, orgulhoso. Quanto ao homem não se considera necessário que ele atinja semelhante forma de apa- n-nte beleza. As ideias usuais em tomo das quais as instituições de pu- berdade gravitam, e que não se alargam naturalmente aos rapazes, são as relacionadas com a menstruação. A impureza da mulher menstruada é uma ideia muito espalhada, e em certas regiões a primeira menstruação tomou-se o foco em que con- vergem todas as atitudes com ela relacionadas. Os ritos de pu- berdade nestes c:asos têm um carácter completamente diferente . dos daqueles de que já: falámos. Entre os índios Carricr da C9lúmbia Britânica, o temor e o horror da puberdade de uma rapariga atingiu o grau máximo. Os seus três ou quatro anos de isolamento designavam-se pela expressão .<centcrramento em vida», e durante todo esse tempo ela vivia sozinha na selva, numa cabana de ramos afastada de todas as veredas frequen- tadas. Constituía uma ameaça para todo aquele que sequer a visse, mesmo só de fugida, e as suas meras pegadas poluíam um carreiro ou um rio. Andava coberta com uma grande capa de pele curtida que lhe escondia a cara e os peitos e por trás lhe caía até aos pés. Os braços e pernas estavam carregados com tiras de tecido tendinos<>, para a proteger do espírito mau de que estava possessa. Em perigo, ela mesma, constituía para os outros uma fonte de ameaças. As cerimónias de puberdade das raparigas, fundamentadas nas ideias que se associam ao mênstruo, são facilmente conver- tíveis no que, do ponto de vista do indivíduo em questão, é o comportamento exactamente oposto. Há sempre dois. aspectos possíveis do sagrado; ele pode ser uma fonte de perigos ou uma fonte de bênçãos. Em certas tribos a primeira menstruação da rapariga é uma grande bênção sobrenatural. Assim, entre os apaches, vi os próprios padres.passarem, de joelhos, .diante da fileira de solenes rapariguinhas, para delas receberem a bênção de os toca.rem. Todas as criancinhas e os velhos acorrem tam- bém até elas, para que os aliviem dos seus males. As adoles- centes não são segregadas como fontes de perigos, mas rende-se- ·lhes preito ~mo a fontes de bênçãos sobrenaturais. Pois que as ideias em que assentam os ritos de puberdade das raparigas, se fundamentam em crenças relativas à menstruação~ tanto entre os Carrier como entre os Apaches, aqueles não são exten- síveis aos rapazes, e a puberdade destes é celebrada em vez diss0, e superficialmente, com simples testes e provas de vi· rilidade. De modo que o comportamento de adolescência, mesmo nas raparigas não era ditado por qualquer carácter fisiológico do próprio período, mas sim por requisitos maritais ou mágicos com ele socialmente relacionados. Estas crenças faziam que a adolescência fosse numa tribo serenamente religiosa e bené- fica, e noutra, tão perig~mente impura que a adolescente tinha de advertir os outros em altos gritos, para que evitassem na selva a sua proximidade. A adolescência das raparigas pode também, como vimos. ser um tema que a cultura não institu- cionaliza. Mesmo onde, como na maior parte da Austrália, a adolescência dos rapazes recebe um tratamento complicado, pode suceder que os ritos sejam uma entrada na situaçãq do estado de adulto e na participação do macho em questões de tribo, e que a adolescência da fêmea passe sem qualquer espé- cie de reconhecimento formal. Estes factos, porém, deixam ainda sem resposta a questão fundamental. Não terão todas as culturas ·de enfrentar as per- turbações naturais deste período, mesmo que se lhes não dê expressão institucional? A Dr." Mead estudou esta .questão em Samoa. A1 a vida da rapariga passa por períodosbem ·caracte- rizados. Os seus primeiros anos depois da infân~ia, ~-os em pequenos grupos vizinhos de companheiré\,S da mesma idade, de que os rapazes são estritamente excluídos. O cantinho da aldeia a que ela pertence é o que realmente importa, e os rapa- zitos são seus inimigos tradicionais. O seu dever é tratar da criança de idade infantil, mas em vez de ficar em casa a cuidar dela, leva-a consigo, e assim os seus divertimentos não são seriamente prejudicados. Alguns anos antes da puberdade, quando já ganhou forças suficientes para se lhe poderem exigir t:trefas mais pesadas e se tomou suficientemente sensata para aprender técnicas que exigem mais habilidade, o seu grupo, em que cresceu e brincou, dispersa-se. Passa a usar trajes de mulher e cabe-lhe cooperar na lida da casa. Para ela este pe- ríodo é bem pouco interessante, e não passa de calma rotina. A puberdade não altera nada. Passados anos, depois de ser mulher feita, começam os tempoo ~!dá.veis de inaimoricos casll'ais e irrespon~is que ela prolongará tanto quanto possa até ao momento em que é con- siderada já capaz de casar. Nenhuma manifestação social re- conhece expressamente a sua puberdade, nem mudança de atitude nem expectativa. Tudo se passa como se a sua timidez de pré-adolescente continuasse durante alguns anos. A vida de rapariga, em Samoa, é absorvida por outras considerações que não a de maturação fisiológica do sexo, e a puberdade passa como um período particularmente apagado e calmo durante o qual não se manifestam quaisquer conflitos de adolescente. A adolescência, por consequência, não s6 não é celebrada por qualquer cerimonial, como não tem qualquer espécie de impor- tância na vida emocional da rapariga e na atitude da aldeia para com ela. [ 42] Povos que nunca ouviram falar de guerra A guerra é outro tema social que pode ser ou não consi- derado em cada cultura. Onde se lhe liga grande importância, pode ter objectivos diferentes, diferente organização relativa- mente ao Estado, e arrastar consigo sanções diferentes. Pode ser um meio de obter cativos para sacrifícios religiosos, como sucede entre os Astecas. Como os espanhóis combatiam, segundo o modo de ver Asteca, para ma·tar, faltavam às regras do jogo. Os astecas perderam a coragem, e Cortês entrou vitorioso na capital. H-ª' até, em diferentes partes do mundo, noções a respeito da guerra que são, do nosso ponto de vista, ainda mais singu- lares. Para o fim que nos propomos basta notar o que se passa naquelas regiões em aue não se encontram meios organizados de matança mútua entre grupos sociais. S6 a nossa familiaridade com a guerra toma inteligível que um estado de guerra alterne com um estado de paz nas relações de uma tribo com outra. Esta ideia, é, naturalmente, perfeitamente vulgar em várias partes do mundo. Mas, por um lado, para certos povos, é incon- ..+- cebível um estado de paz, o que para a sua maneira de ver, seria equivalente a admitir tribos inimigas na categoria de seres humanos que, por definição, eles não são, mesmo que a tribo excluída possa ser da mesma raça e ter a mesma cultura que . as outras. Por outro lado, pode ser igualmente impos.sível a um povo. conceber um estado de guerra. Rasmusscn fala-nos da perplexi- dade com que o Esquim6 reagiu à sua exposição do nosso costume. Os esquimós compreendem perfeitamente que se mate um homem. Se ~le se lhe atravessa no caminho, deita contas à sua própria força e, se se sente capaz de o fazer, mata-0. Se o que matou é forte, não há intervenção social. Mas a ideia de uma aldeia esquimó atacar outra aldeia esquim6 em ar de guerra, ou de uma tribo atacar outra tribo, ou, até, de outra aldeia poder ser legitimamente atacada de emboscada, é para [ 43] eles completamente estranha. Matar é sempre matar, e não se distinguem, no acto, categorias, como nós fazemos: ser o matar, num caso coisa meritória e noutro ofensa capital. Eu próprio tentei falar de guerra aos índios da Missão, da Calif6rnia, mas era coisa impassível. A sua incompreensão de um estado de guerra era irredutível. Não havia na sua cultura base em que assentasse tal ideia, e as suas tentativas de pro- curar interpretá-la racionalmente reduziam as grandes guerras, a que n6s estamos prontos a entregar-nos com fervor moral, a i:neras desordens de vielas. Não tinham na sua cultura padrão nada que lhes permitisse distinguir uma coisa da outra. A guerra é, vemo-nos forçados a admitir, mesmo perante o lugar enorme que ocupa na nossa civilização, um aspecto associai. No caos <iue se seguiu à Segunda Grande Guerra Mun- dial, todos os argumentos que no decorrer dela se apresentavam para explicar o alto preço da coragem, do altruísmo, dos va- lores espirituais, soavam desagradavelmente a falso. Guerra, na nossa civilização, é o melhor exemplo dos excessos de destrui- ção até que pode conduzir o desenvolvimento de uma feição cu1lturalmente esoolhida. Se justifiicamoo a guerra é porque todos os povos justificam os aspcctos de que se sentem pos.rui- dores, não porque a guerra resista a um exame objcctivo dos pr6prios méritos. Costumes relacionados com -0 casamento A guerra não é um caso isolado. Em todas as partes do mundo e em todos os níveis de complexidade cultural é possível encontrar exemplos da elaboração presunçosa e, afinal de contas, associai de uma feição da cultura. Esses casos são da máxima clareza onde, como por exemplo, cm normas de regime alimentar ou de acasalamento, a tradição vai contra os impulsos biol6gicos. A organização social, em antropologia, tem um sig- nificado inteiramente especializado, devido à unanimidade, cxis- ( +l] tente em todas as sociedades, em acentuar os grupos de paren- teSco em que o casamento é proibido. Não há nenhum povo em que toda a mulher seja considerada como uma esposa possível. Isto não é um meio de, como muitas vezes se supõe, evitar uniões consanguíneas, no sentido . em que isto nos é familiar, porque em muitas partes do mundo a esposa prevista é uma prima. muitas vezes a filha de um tio materno. Os pa- rentes a que a proibição se refere variam radicalmente de povo para povo, mas todas as sociedades humanas se assemelham no respeitante a fazer restrições d~te tipo. O incesto, mais do que qualquer ideia humana, tem tido, em cultura, constantes e complicadas elaborações. Os grupos de incesto são muitas vezes as unidades funcionais mais importantes da tribo, e os deveres de cada indivíduo em relação a qualquer outro definem-se pelas suas relativas posições nesses grupos. Tais grupos funcionam · como unidades em cerimoniais religiosos e em ciclos de trocas económicas, e é enorme o papel que têm desempenhado na hist6ria social. Algumas religiões consideram moderadamente tabu o incesto. A despeito das restrições feitas, pode haver um número considerável de mulheres com que um homem pode casar. Noutras o grupo que é tabu, alarga-se, em virtude de uma ficção social. de modo a incluir grande número de indivíduos que não tenham quaisquer antepassados comuns discerníveis, e a escolha de uma consorte é consequentemente excessiva- mente limitada. Esta ficção social tem expressão inequívoca nos termos de relação de parentesco usados. Em vez de ~ tinguir parentesco linear de parentesco colateral, como n6s fazemos na distinção entre pai e tio, irmão e primo, um dos termos usados signüica, literalmente, «homem do grupo de meu pai (parentesco, localidade, etc.) da sua geração» sem distinguir entre linhas directa e colateral, mas fázendo outras distinções que nós não fazemos. Certas tribos da Austrália oriental usam uma forma extrema deste chamado sistema de classificação- de parentesco. Aqueles a quem chamam irmãos e irmãs são os. [ 45] da sua geração com quem reconhecem ter qualquer parentesco. A categoria primo ou qualquer coisa que lhe corresponda não existe; todos os parentes da geração de um indivíduo são seus innãos e irmãs. Este modo de avaliar o. parentesco é mais comum do que podejulgar-se, mas na Austrália há, além disso, um horror sem igual pelo casamento com uma irmã, e um desenvolvimento sem paralelo de restrições exógamas. Assim os Kurnai, com o seu sistema de classificação de parentesco levado ao extremo, sentem o horror característico do australiano peias relações sexuais com todas as sua~ irmãs, isto é, com as mulheres da sua geração que de qualquer modo com eles são aparentados. Além disto, os Kumai têm regras locais estritas que presidem à escolha de uma companheira. Por vezes duas localidades das . quinze ou dezasseis que pertencem à mesma tribo, são obrigadas a trocar as mulheres, e não escolher esposas em qualquer outro grupo. Mais ainda, como sucede em toda a Austrália, os velhos são um grupo privilegiado, e os seus privilégios vão até poderem casar com as raparigas jõvens e atraentes. Resulta destas regras que, é claro, em todo o grupo local que deve por prescrição absoluta fornecer a um mancebo uma esposa, não há rapariga que não caia dentro do campo destes tabus. Ou é uma das que por parentesco com a mãe daquele é sua irmã, ou foi já nego- ciada por um velho, ou por qualquer razão menos importante é vedada ao pretendente. Isto não leva os Kumai a reformular as suas regras de exogamia. Insistem em que elas sejam respeitadas, por todas as formas de violência. Por consequência, o único meio por que conseguem casar-se é levantando-se francamente contra as re- gulações, recorrendo ao rapto. Logo que a aldeia tem conheci-. mento do que se passou, lança-se em perseguição dos fugitivos, e se o par é apanhado, matam os dois. Não importa que, como pode suceder, os perseguidores se tenham casado também. por rapto. A indignação moral é enorme. Há, porém, uma ilha que é considerada refúgio seguro, e se os fugitivos conseguem chegar lá e aí se conservarem até que lhes nasça uin filho, quando de volta S;ão ainda recebidos com pancadas, é certo, mas podem defender.se. Depois de aceitarem o repto e de passarem entre filas de homens, e de ·serem por eles açoitados e espancados, assumem então o estado de pessoas casadas na tribo. Esta maneira de os Kurnai resolverem o seu dilema cultural é bem típica. Alargaram e complicaram um aspecto particul:tr de conduta até ao ponto de o tomar um impedimento. Ou têm de o modüicar, ou o rodeiam por subterfúgio. Ao recorrer ao subterfúgio evitam a extinção, e mantêm a sua ética sem alte- ração patente. Este modo de tratar o mores nada perdeu com J_. o progresso da civilização. A geração antecedente da nossa civilização defendeu a prostituição, e nunca os louvores· da monogamia foram tão fervorosos como nos grandes tempos dos bairros da lanterna vermelha às portas. As sociedades justificam sempre as fórmulas tradicionais favoritas. Quando estas são excedidas e se recorre a alguma nova forma de comportamento suplementar, presta.se preito à fórmula tradicional como se este não existisse. Entretecimento de feições culturai~ Esta rápida revista de formas culturais humanas põe a claro vários falsos conceitos comuns. Em primeiro lugar as insti- tuições que as culturas humanas erigem sobre as indicações dadas pelo ambiente ou em virtude das necessidades físicas do home9 ão se mantêm sem se desviarem do impulso original, 'f tão integralmente como facilmente se julga. Aquelas indicações são, na realidade, meros esboços grosseiros, uma lista de factos crus. São potencialidades ínfimas, e a elaboração que em volta delas se borda é ditada por muitas considerações estranhas à questão. A guerra não é a expressão do instinto da belicosidade. A belicosidade do homem é uma característica tão ínfima no carácter humano que pode nem ter qualquer expressão nas [ .f7] relações entre as tribos. Quando é institucionalizada, a f6rmula que assume segue outras linhas de pensamento diferentes das implícitas no impulso original. Belicosidade não passa de um leve ponto de contacto na bola do· costume, e um ponto, além disso, que pode não ser tocado. Este modo de ver os processos culturais exige uma rectifi- cação de muitos dos nossos argumentos correntes em defesa das nossas instituições tradicionais. Esses argumentos assentam ordinariamente na impossibilidade de o homem funcionar, na ausência dessas particulares formas tradicionais. Mesmo feições muito especiais intervêm nesta espécie de validação, como, por exemplo, a forma particular de m6bil econ6mico que surge no nosso sistema particular de posse de bens individuais. ~ esta uma motivação especialíssima, e há provas de que mesmo na nossa geração está a sofrer fortes modificaçeyes. Seja porém como for, não temos de tomar confuso o problema discutindo-o como se se tratasse de u_ma questão de valores de sobrevivência biol6gica. Manutenção do indivíduo é um. motivo de que a nossa civilização tirou proveito. Se a nossa estrutura mudar de modo que este motivo perca o valor de m6bil tão forte como o foi na era da grande fronteira e do industrialismo em expansão, há mujtos outros motivos que seriam adequados a uma nova organização econ6mica. Cada cultura, cada era, explora apenas poucas de entre um grande número de alternativas possíveis. As transformações podem ser muito inquietantes e envolverem grandes perdas, mas isso resulta das dificuldades de tudo o que é mudança em si, não do facto de a nossa época e o nosso país terem acertado na única possível motivação pela qual a vida humana pode conduzir-se. Devemos lembrar-nos que as trans- formações, apesar de todas as dificuldades que arrastam, são inevitáveis. Os nossos temores perante até os mínimos desvios da norma são, ordinariamente, inanes. As civilizações podiam mudar muito mais radicalmente do que qualquer autoridade humanâ jamais tenha desejado ou imaginado mudá-las, e no entanto funcionarem perfeitamente. As pequenas transforma- ções que tanta repulsa hoje provocam, tais como o aumento do número de div6rcios, a secularização cada vez maior das nossas cidades, as reuniões caridosas de rapazes e raparigas, e muitas outras, podiam ajustar-se perfeitamente num padrão de cultura s6 muito levemente diferente do nosso. Desde que se tomassem tradicionais receberiam a mesma riqueza de conteúdo, a mesma impordncia e o mesmo valor que os velhos padrões tiveram noutras gerações. · A verdade da questão está, antes, em que os possíveis mo- tivos e instituições humanas são legião, em todos os planos de simplicidade ou complexidade culturais, e que a sabedoria consiste numa muito maior tolerancia para com as suas varie- dades. Ninguém pode participar completamente em qualquer cultura se não tiver sido criado dentro das suas formas e vivido de acordo com elas; mas todos podem conceder que outras culturas têm, para os seus participantes, o mesmo significado que se reconhecem na sua pr6pria. . A diversidade das culturas resulta não apenas da facilidade com que as sociedades elaboram ou repudiam aspectos possíveis da existência. e devida ainda mais a um complexo entreteci- mento de feições culturais. A forma final de qualquer insti- tuição tradicional vai, como dissemos, muito além do impulso humano original. Em grande parte esta forma final depende do modo como esta feição se fundiu com outras de diferentes campos da experiência. Uma feição largamente espalhada pode, num povo, ser saturada com crenças religiosas e funcionar como um aspecto importante da sua religião. Noutro, pode ser absolutamente uma questão de transferência econ6mica e constituir, por isso, um aspecto dos seus arranjos monetários. As possibilidades neste campo são inúmeras, e os ajustamentos, muitas vezes singu- lares. A natureza da feição será variável com as regiões e de acordo com os elementos com que está, combinada. Importa que vejamos claramente este processo, pois, de contrário, caímos facilmente na tentação de generalizar numa 4 - P . DE CULTURA [ 49] lei social geral os resultados de uma fusão local de feições, ou tomamos a sua união como um fenómeno universal.
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