Buscar

BENEDICT R_ Padrões de Cultura

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 169 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 169 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 169 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

-PADROES 
DE 
CULTURA 
Por 
RUTH BENEDICT 
O desejo de captar o sentido de 
uma cultura como um con junto, 
levou a autora de Padrões de Cul-
tura a considerar descrições de com· 
portamento csterc:otipado apenas 
como uma alpondra que a conduziu 
a outros problemas. Assim. nesta 
obra verdadeiramente basilar no 
campo das Ciências Humanas, pas-
sou-se a compreender o indivíduo 
como um ser que vive na sua cul-
tura e a cultura como vivida pelos 
seus indivíduos. Mas o que mais 
importa em Padrões de Cultura ~ 
que o interesse por estes problemas 
socio-psicológicos n3o se opõe de 
modo algum ao ponto de vista his-
tórico. Pelo conrr.i rio, revela pro-
cessos dinSmicos que têm actuado 
em modificações culturais e habi· 
lita-nos a apreciar testemunhos obti· 
dos por uma comparação pormeno-
rizada de culturas aparentadas. 
Prefaciado por Franz Boas. Padrões 
de Cultura, vem revelar-nos que nem 
todas as culturas são dominadas por 
um carácter próprio mas que. pelo 
contrário, nelas dominam certos re-
freamentos de emoção e certos 
ideais de conduta que explicam ati-
tudes que se nos apresentam como 
anormais quando observadas do 
ponto de vista da nos.u civilização. 
A. 
• Cole. 
Preoo: 
PADROES DE 
CULTURA 
CAPA DE A. P6DRO 
Reservados todos os direitos pela legislação em vigor 
Lisboa - Janeiro de 2000 
Edição feita por acordo com a 
ROWOHLTS DEUTSCHE ENZYKLOPADIE 
COLECÇÃO VIDA E CULTURA 
RUTH BENEDICT 
PADRÕES DE 
CULTURA 
TRADUÇÃO DE 
ALBERTO CANDEIAS 
EDIÇÃO «LIVROS DO BRASIL• LISBOA 
Rua dos Caetano• , .22 
1'ítulo da edição original: 
PA:TIERNS OF CULTURE 
". 
.J 
1 
1. 
j 
No princípio Deus deu um vaso a 
cada povo, um vaso de barro, e por 
este vaso bebiam a sua vida. 
PllOVfüUllO 
D,OS ÍNDIOS DICCER 
INTRODUÇÃO 
N o decorrer do século actual elaborairam....se muitas novas formas de abordar oo problemas de antropologia social. O velho método de con&truir uma história da 
cultura humana baseando-a em fragmellllX>S de prova& desta-
c~ das circunstâncias com que ;tinham contactos naturais, 
e provenientes de todas as épocas e de todas as partes do 
mundo, perdeu muito da sua validade. Scguh.He-lhc um período 
de laboriosas tentativas de reconstrução de conexões históricas, 
assentes em artudos de distribuição de feições particulares, 
acrescentad~ de prova5 arqueo16gicas. Exa.min.a:ram-se sob 
este pontX> de vista áreas cada vez majs vastas. Tenrou« esta-
belecer conexões sólidas entre várias fciçõcs culturais, que se 
utilizaram no estabelecimento de outras conexões históricas 
mais vastas. Negou-se a pooc;.ibilidade do desenvolvf:meJlltO inde-
pendente de feições culturais análogas, postulado de qualquer 
história geral da cultura, ou, pelo menos, atribuiu-se-lhe um 
papel irrelevanite. Tanto o métxxlo evolutivo <:orno a análise 
de ruturas locais independentes, 9C aplicaram ao desvendar 
das sequências de formas culturais. Ao pasgo que por meio 
dos primeiros se esperarva erigir uma rep.rescrnação unificada 
da história da cultura e da civilização, os adq>t-os dos métodos 
mais recentes, pelo menos os seus adeptos mais conservadores, 
(7) 
corxsiderMam cada cul~ura como uma unidade em si e um 
problema histórico individual. 
Sob a ilúluência da intensiva análise de culturas, a colheita 
indispeosável de factm ?Cferen~ a fonnas culturais foi forte-
mente e6timulada. O Ill31t:erial assim reunido deu--ll(l5 infor-
mações sobre a vida social, romo se esta consb~ em cate-
gorias estritamente estanques, tais como vida económica, téc-
nica, arte, orga.ndzação social, religião, e o laço que as unia 
era difícil de discernir. A posição do antropologista pMCCia-se 
com a que Goethe satirizou: 
Wer will was Lebendig's erkeno.en und beschreibcn. 
Sucbt erst den Geist heraus zu trciben, 
Darut hat e:r die Terle seiner Hand, 
Fehlt leider nur das geistigc Balld. 
Quem quer ·conhecer e descrever o vivente, 
'Procura primeiro desembaraçar-se do &eu espírito, 
E depois de ter as diferentes partes na mão, 
Falta s6, infelizmente, a faixa espirlwal que as une. 
O ooopann<HlOS de culturas vivas criou um mab forte 
intere.sise pela tota.lid'ade de cada cultura. ~ cada vez 
mais que quase nenhlllllla feição etdtural é comp.reccnsível 
quando separada do conjUM'O de que faz parte. A tentativa 
de cooceber toda uma cultura como se ela fosse controlada 
por um úDlico grupo de condições inão resolvia o problema. 
O abordá-lo fonnalistmnente sob o ponto de vista puramente 
antropogeográfico, económico oú outro parecia fornecer re· 
preson,tações defomradas. 
O desejo de captar o sentido de uma cultura como um 
oon1u.n.to, leva.irros a 00ll5idera.r descrições de oompo11ta1mcri1to 
~reotipado apems como uma alpondra ~ nos conduz 
a outros problem~. Devemos compreender o indivíduo como 
[8) 
um ser que vive na sua cultuira; e a cultun, como vivida pe1oo 
seus indivíduos. O interesse por estes problemas socio-psicoló-
gicos não se opõe de modo alg.um ao pom:o de vista histórico. 
Pelo contráTio, revela proc~ dinâmicos que têm aotuado 
em modificações cultumis, e babilit:a."OOS a apreciar 1le1Stmlu-
nhos obtidos por uma. oompairação pornnenJOrizada. de culruras 
apa.reotadas. 
Em vim.le do carácter do ma.~. o problema. da vida 
cultural 'ap~~ muitas vezes como o problema da in.t:cr-
«lação entire vários aspeotos de cultura. Bm certns Ca&90S ~ 
e6tu00 oondurz a. urna apreciação ma.is cometia. da. imensidade 
de integração ou <b. falta dela em uma cultum. Toma perfei-
tame11te claras ~ formais de integração em vários ·tipos de 
cultura, o q·ue prova que as relações mtre diferentes aspeotos 
da cultura seguem os padrões mais variados e não se prestam, 
com proveitt>, a generWixações. Ma6 raramen~ conduz, e 
quallldo o faz, s6 indireotamenrt:e, a uma compreensão da rela-
ção en1!c indivíduo e cuhiura. 
Isto rreq.uer que se pmetre profunbmiente no ~ da 
culrura em questão, que se trave coohccimcntt> com as atitudes 
que controlam o oompomw.ento do indivíduo e do grupo. 
Ao espírito de cada rulll\lra oh'ama a Dr.• Benediot a Súa 
configuração. No presente volume a autora pôs ~ nós 
esse problema e ilustrou-o por mcio do exemplo de tr& cul-
turas, cada. :uma. delais per.meada por IUJlla ideia dominante. 
Esta fonma de .tratar a qUC9tão é diferente do modo, chamado 
.funcloml, de abordar o &n6meno social, na medida IOll1 que 
pretende descobrir as atitudes fundamentlaiis ~is do que as 
relações func~is de cada ~ oultural partkul'a.r. Não 
é histórica., CXaJI>to m faoto de a configuração giorat, enquanto 
ela su:bsiste, limitar ias direcções de modükação que ficam a 
ela sujenas. Omlpa:rada oom as mudanças de conteúdo de cul-
tura a configuração :tem. muitas vezos uma permanência no-
tável. 
Corno a aut.ora põe em :relevo, nem tx>das as cultura5 são 
[9] 
definidas por l.l1ffi cairáoter domine~, mas parece provável que 
quaRlto mais íntimo é o oosoo coohecimcnto dos impulsos 
cuiwrais que doterrmiriaim o comportamento do indivíduo, 
ti.nto maás ireconheceromos que nelas domdmm certos refrea-
mmt:os de emoção, cer.tos ideais de conduta, que ex.plicam 
atitudes que a. nós se llK>5 apnsenitaan como 'élllOrmais quando 
vi9tas do ponto de vista da 0065lal civ.ilização. A relatividade 
do que se considera. sociai ou QSOOCia], OOI1Illal ou ano~. 
~ agora; a· uma Dbva. luz. 
Os casos cxitremos e;colhidos pela autora tomam clara a 
importância. do problema. 
FRANZ BOAS 
( 10] 
PRIMEIRA PARTE 
Apresentação do problema 
••·· · ......... ··sr ··w·r"" ·a-
1 
A CI~NCIA DO COSTUME 
Costumes e Comportamento 
an;tropolog.ia ocupa-se dos seres humanos como pro-
. dutoo- da vida em ~iedade. Fixa a sua airenção nas 
caracteristicas físicas e nas ·técni~ indu!rtliais, nas 
oonvenções e vafores que distinguem uma comunidade de todas 
as outras que pel1t:encem a uma ttadição difurente. 
A 
O que distingue a antropologia das outm5 ciências sociais 
é o ela incluir no seu campo, para as ostuda:r cuidadosamente, 
Sociedades que não são a nossai sociedade. Para os seus fin.s 
qualquernonnia. social de casarmmtx:> e de reprodução tem 
tanto s~1eado romo aquelas que llDS são pr6prias, mesmo 
que · seja. a dns DyWcs do Mar, e oão •tem qualquer passível 
relação histórica com a da nOS9a civilização. Para: o antropolo-
g~. os nossos costumes e os de uma tribo da Nova Guiné i---) 
são dois esquemas oociais pa;'S{vcis, que ·trM:atn do mesmo pro-
blema, e cumpre ao antropologistla enqlialllto antropologista, 
evitar toda e qualquer apreêiaçix> de um cm favor do outro. 
In~-o a conduta humana, não como é modelada· por uma 
certa itiradição, a 0056a ttradição, mas como o foi por qualquer 
tradição, seja ela. q'Uléll foc. Inreressa-<> a vasta gama .de rostu-
mes que existe em culturas diferentes, e o seu objectivo é 
( 13 J 
ooonpree00er o modo como ~ culturas se transformam e se 
, difc.rmdam, ias formas diferentes por que se exprimem, e a 
maneira como os costumes de quaisquer povos funcionam nas 
vidas dos indivfdll05 que os compõem. 
Ora o costume não tem sido considerado assunto de 
grande irnpo1dnda. O funcioniamento íntimo do no.ggo c&ebro, 
eis o que noo paireçe ronstiituir a única coisa digna de estudo; 
o costume, temos tendência pan peosar, é conduta nai sua 
fonna mais v'lUgar. De facto, o contrário é que é verdade. 
O costume tradiaional, considertildo pelo mlllldo em geral, é 
uma massa de comuta pormienorizada mais espan.u>sa do que 
o que qualquer pe6SOla pode jamatis revelar n:as acções indivi-
duais, por mais 'abe.mm.tes. Em entanto isto é um aspecto um 
tanto trivial da questão. O que é verdadeiramc.n.te importante 
é o papel ·predomin~ que o oosnune desempenha no que se 
experimmu.· na vida dima. e m> que se crê, e as veroadeira-
mente grandes variedades sob q~ pode manife.9tar«. 
A herança da criança 
Não 'há n.inguém que veja. o mundo oom wna visão pura 
de preconceitos. Vê-O, sim, oom o •.ito c.'Ottlicion~o por 
'\1lll con.junrto definido de cootulmes, e instituições, e modos de 
pensar. Nem mesmo 'l1alS suas ~pções filosóficas ele con-
segue su,btraiT...se a esses eí9t.ereátliipos; até os seus ainccitns do 
verdadeiro e do failso são ainda rereridos aos 9eU5 pa:nticulares 
costumes tradicionaiis. John De~y dee porfeitam.ente a sério 
que o papel desempenhado pelo coot'Ullle 1110 1IDOldasr do rom-
pormmento do indivíduo, comparado com qualquer maneira 
por que este possa aifec~air o coonume tmdicionJal, está nia 
mesma propozção quic a itotalidade do vocabulm. da sua 
língua marema comparnda com os rennos da suta linguagem 
infu.n.til adoptaidos no vem.áicudo da .família. Quando se estudam 
a sério ordens 'SOCialis que se pudemm desenvolver éYUtnoom.a--
l 
1 
" 
mente, àquela comparasno não é mais que ·uma ex.acta. obser-
vação de f\aoto. A história da vida indivklual de cada pessoa 
é acima de <tudo .uma a~o aos padrões de fonna e de + 
medida itmdiciorialmen:te :tran19miitidas !Ilia 5\Ja comunlidade de 
geração paira geração. Desde que o iOO.ivíduo vem ao mundo 
os costumes do alm'bíente em que nasceu moldam ai sua expe-
:rjênda tlos fact:o5 e a sua cond~. Quand'o começa a falair, 
ele é o 1irutozmho da sua cultura., e quando crescido e capaz 
de .oomaa- parte 111as arovid'ades d~, os háibitos dob são os 
seus hábitm, as a'eDÇ1élS dela~ as isuas crenças, as incapatidadcs 
dela. as suas inoapacidade5. Todo aquele que nasça no l9eU 
grupo delas partilhará rom ele. e todo >aquele que nasça num 
grupo do lado oposto do globo adquirirá a milésima parte del&l 
herança. Nenihum OU1tro problem!a. soem allOS c.abe maiis forço-
samente conhecer do que este do papel que o c:ootlmlle descm-
pen'ha na formação do iimivfüuo. EniqUQhto não pU<lennoo 
compreender 135 wes ·leis e aB suas V'alrkdadcs, os principais 
factos que complicam 'a v.ida humt:ma 00!1timlairão a ser para 
nós ininteligíveis. 
A nossa falsa perspectiva 
O estudo do cootume s6 no5 pode iaproves depois de 
aceitmnos <:er·tos pootuladoo; e adgtlll5 d09SCS postulados t&:n 
enoontllado e11guidar C011Jtira si 'UIIll.aJ oposição violmitai. Bm pri- -
meiro ·lugar tndo o. e:stWo científico exiigc a ~iai de trata-
mooto preferencial de um ou oUJtro das ttlrlinos da série 
escothida para ser estuooda .. Bm todos os campos menios sujei-
tos a controvérsia, como o estudo dos cactos, ou das térmites, 
ou da nraiturrez,a das ~bullosas, o método de estuck> a seguir 
é o de agrupar o m'a:terial significatrivo e ~egistu" todas as 
poosf veis funmias e condições w.rianres·. Foi deste modo que 
aprendemos tudo o que sa be:moo das leis da tastrronomia, ou 
d06 hábitos dos ánsectos oociais, por exemplo. S6 no estudo 
[ 15) 
do próprio homem é que as mais importames oiêncm sociais 
suootituíram aquele méoodo pelo egturlo de mna· variação 
local - a civilização OcidC'111tal. 
A antropologia foi, por definição, impcmvel enquanto 
estas distinções entre n66 próprios e o primitivo, nós próp.riioo 
e o bárbaro, nós próprios e o pagão, IDOS dominiaram o espírito. 
Foi necessário começar por cttingir aquele grau de afinamento 
intdectual em que já n&> pomos a nos.sa orcoça cm contraste 
com a superstição do ~ vizinho; foi ~ sabec re-
oonhccer que aquelas ~tituições que as9elDtam nas mamas 
~i&<ias, isto é: o sobrerumiraf, devem ser consideradas sob 
o. mesmo ângulo, aquelas como a nb6'Sa própria, para que tal 
impossibilidade desaparecesse. 
Na primeira metade do século XIX este postuladb elemenr 
tar não podi.ai ooor.ror nem sequer ao espíritn mads iesclarccido 
denllre ~ pessoas da civilização Ocidlerutial. O 1homem, aitraNés 
de t"Oda a ·sua história., defendeu como um ponitt> de honra 
· ! a ideia da sua iocomparabiJJidtOOe, do seu ca.ráctm d'e ser excep-
cionad. No .tempo de Copémico estia 71eivindicação de supre-
maçia era de 1tal modo mnbiciosa que indUIÍa mesI® a Terira 
em que ele VÜV'e, e o sécuk> XIV re<:U610U« com paixão ta. admitir 
a subordinação deste plandta a OC1lpClir apenas um lugair entre 
~ou~ no sistmla rolar. No tempo de DarwID, toodQ oodido 
ao inimigo o sistema solM, o homem lutou com todas as 
atmi5 de que dispunha pela exclusividade da alma, atributo 
iniconçebível dado por Deus ao homem, de anandra ital que 
negou a descendência do homem de q~ membros do 
reino animal. Nem a falta de COllltlnuidadc lógica da. argwnen-
tl:lJÇão, nom. quaisquer dúviidas sobre a natureza d~ ((alma», 
nem sequer a circunsdncia. de o século XIX não ter procurado 
af'irnrar a 9Ula fratemidmle com quaâsquior estranhos ao grupo 
- nenhum de9te6 factns COllltalram cornt:ra. a magnífica exal-
tação que se manifestou r-apid'ameme perante a indignidade 
que a evoluição propuniha C011Jtrra o oonoeito dai excepcionall-
dade do homem, ser Ú•mco mnre os seres. 
[ 16] 
Ambas essa5 ootalh'él\5 se podem co111Siderar gamas - se 
mo já', pelo menos em breve; llml5 a luta s6 mudbu de frente. 
Hoje estamos perfeitamerae dispa;t.os a admitir que a revo-
lução da terra em tomo do Sol, ou a descendência animal do 
homem, quase nada ·têm que vei: com a excepcionalidade das 
nossas realizações humanas. Se habitamos um qualquer pla-
neta dentre mirlarles de sist"emas oolares, <tanto nraior gl6ria 
para n6s, e se •tndas 'él5 ·heter6clitla5 .raças hlliillari>as estão ligadas, 
por evolução, oom o animal, tanito IIl1ais <radialis são as 
diferençar; demonstráveis entre nós e quailquer ~al, e itanto 
maâs notável é a unicid~e Wl5 noosas instituições. Mas as 
nossas .realizações, as nossas instituições sã'o únicas, incompa-- .f.. 
ráivois; são de uma ordem difererute das da5 raças inferiores 
e têm de ser protegidas a todo o custo. De sorte qu~. ou seja 
uma questão ·de imperi.aHsrno, ou de preconceito de !1aça, ou 
de comparação entre Cristianismo e paganismo, continuiarnoo 
envaiidecidoo com a unkidacte, nãro das imtifuições humanas 
do mundo em geral, com qUJC, aliás, niu.nca ning.uém se preo-
cupou, mas das nossas própriias imstitwi.ções e realizações, da 
nossa civilização. 
9!EJ.!!_são de _:ostume local com Natureza humana ) 
..J A civilização OoidentaJ, devido a circtn5t1ndas hist6ricas \ 
_fortuitas, ~ve '\.lllla expansão 'l1l'éÚSvasmi do que a de qu~quor 
OOflrogrupo local até hoje conhecid-tl&tamacdizou..'9C por 
sobre a maior parte do globo, e fomoo, pois, levados a aceitar 
uma crença na, uniformidade da conduta humana, que noutras 
circundncias não teri~ SU1rgido. Até povos muito primitivos 
têm, por v~e:s. muito mais forte conlSCiência· do que nós, os 
ocidentais, do papel das feições culrurais, e por muito boas 
rílrzões. Sofreram a experiência íntima de culturas diferentes. 
Viram a sua religião, o seu sistema econ6mico, as suas restri-
ções matrimoniaJs itombarem pemnte o branco. RCJlA.1111.ciamm 
! - P. DE CULTURA ~ 17) 
a .um~ e aiceit.airam outlras, .muitas vezes com bom grande 
incompreensão delas; mas vêem com clarezJa que existem 
vários ammjoo da v.ida hUllll'a'Dla. Atribuirão, por vezes, centos 
caracteres dominantes do bra:n<:o à 6\Ja. oonco.mência cornerdal, 
ou às isuias instituições miüllarres, muioo da. fonm por que o 
fartem os antropologistas. 
O branco, es.9e, tem tido urna. experiência diferente. Nunca, 
porventura, terá visto um homem de ouaa civcilização, Q não 
ser qUIC o homem de outra civilização já estÍeja europeizado. 
Se viajou, muito provavelmente fê.Jo oom nuncai iter ·fioado 
fora de um hotel coomopolita. Pouco sabe de quaisquer ma-
neiras de v.iver que não sejam ~ isuas. A uniformidade de 
cootumes, de ponoos de vistG, que vê em volta de si parecem-
-lhe suficientemente convincentes, e esconde das suas vistas o 
facto de que se •lTalta, afinal, de um acidente hist6rioo. Aceita 
sem mais complicações a equivalênci'a· da natureza humana e 
dos seus pr6prios padrões de oultu'ra. 
E no enttmto, ra grande expansão da civilização branca. 
não é uma circunstância histórica isolatla. O grupo Polinésio, 
em époc5a5 relativamente recerutes, esprado11« desde Ontong, 
Java, até à Ilha da Páscoa, de Havai até à Nova Zelândia; e as 
tribos de Língua Bantu espalharam-se desde o Sara à África 
do Sul. Mais nós em nenhum caso coruidttamos esseis povos 
como anais do que 'Ulllla va1ria.ção local h'ipertrofiiada dai espécie 
humana. A civilizaçno Ocidental teve todas as suas mNenções 
em meioo de itraDSporte e !todas ~ suas organdzações oomer-
oiais de bigo âmb,ito, a apoiac a sua• vastJa. dispor&ão, re é fácil 
compreender historicamente como isto se deu. 
A nossa cegueira perante outras culturas 
As oonsequêndas pskol6gicas destJa. expansão da oulwm 
branoa itêm si<lo desproporcl~ quando comparadas com 
as consequências m:atoria.is. Esta difusão cultural em grau 
[ 18] 
mundial <t&n-ons impedido, como mmca o homem o fui até 
aqui, de ltOmalr a sério as ciVihza.çoes 005" oUtlr~s po~; t'tm 
feito que a nmsa cWtiura e a ~ mivczsalidade maciça 
tenh~. de.9de há anuioo tempo, deixado de tomar em oonsi-
demção o que é de essência hist~ e que .~támos ser, 
~lo ~rio!... neces.sário e inevitml. Initerpreta'ii"iara &pen:] 
T dênicia, em que estamos m llO&Ça civilização, da. cax:orirê:ncia 
económica, romo prova de que esta é a primeiira, causa deter-
minante em que a inatl1reZ'a pode confiar, ou resolvemos, sem. 
mai5, que o camportamervto dias crianças tal corno é moldado 
pela noo<>a civilizaÇão e registado nas cliniclais para crianças, l ll@ 
é psicologia infalntil ou o modo por que o animal hum~ 
L jovem (tem de se oomportar..JO mesmo se dá quer se trate 
da 11106\Sa ética q'oor da 111100Sa1 organização mmiliar. o qute defen-
demos é a inevitabilidade de cada, IIllOtivação familiar, •teotando 
s'1'npre idenitificair as 111<>S.900 modos loca'is de oompootamento, 
com Comportamento, ou os !lbssos próprioo hábitos em socie-
dade, com Naturez.a Humana. 
Ora o homem modemo fez desta tese uma das circuns-
dm::ias vitais do oou pensar e da sua oonduta prática, mas as 
fontes de que ela provém ·reouam até oo que, a '<llV'aliar pela 
sua existênciG universad etlltre povos primitivos, parece sor 
uma das mais primitivas distinções hwnan.as, ~ düeren~ / 
quafüiati_ya entre <CO aneu pr~riio» ~_po_f'eoh~, e o que a • 
éTê e estimnho. Todas as rtriboo primitivas ooncordam cm re-
-c.õríhecer esta categoria d05 estr.lnhos ao oou grupo, aquelas 
que não s6 estão fura das disposições do c6digo moral que é 
~
bservado denâ"o dns limites do grupo de oada ·tnna, mas a 
uem sumariarnenite se ll1ega. Ulll). )ugar ato esquema. huanan~ 
m grande número dos 111omes de triboo oomum.mente usados, 
Zuiü, Déné, Kiowa, e owtro5, são inmmis por meio dos quais 
povos primitivos se reconhecem a si próprios, e são os termos 
nativos que designam «seres humanos», isto é, eles próprios. 
Fom do grupo fec1!iado ri@ hct ISICll"e~_Jn.w~. E isto, a des-
peito dC? moto de, de um ponto de vista objeotivo, carda tribo 
[ 19] 
/:1 
estm rodeada por povos que pa11ti'lham das suas airtac> e inven-
ções materiais, de praticas cornplicadas que se desenvolveram 
através de trocas .mútuas de comportaanento entre um povo 
e outro. 
O homem primitivo nunôa comiderOUI o mundo 41.®1 viu 
'· yay u1t!E.!!f_dade como~ foose..um-grupo, ,nem fC'L causa comum 
._J com a sua espécie. Desde mJcio foi wn habitante de uma pro· 
vinda que se isolÔu por meio de aluis barreirais. Quier se tra· 
tasse de escolher mulher ou de c:ortar U!Ill'a cabeça1, a. primeira 
distinção que mia, e a~ irnportMte, era entre o seu pró-
prio grupo hwnano e os fora do grémio. O seu grupo e todos 
os &e\.l') modos de comportamento, eram únic06. 
De modo que o homem modenro, q~do d~i.ngue_PQ..VO 
Eleito e estrangeiros ~· grupos dentro da sua própria 
civilização genética e culturit.bnente aparentados um com o 
outro, como qUaisquer ·tribos Dai trelva australiana o são, tem 
\ 
por 11rás da sua atitude a justificação de uma longa conlt~n'Uddade 
hist6rica. ~igmeu& têm~ mesmas~· E nao noo é 
fácil Jibertaa:tmo-m:is de uma feição humana tão fundamental, 
mas p<;>demos, pelo men'OS iaprender a confessar a sua história 
e ~ s~ polimorfas ~if CS(Q!Çõe6. 
Uma ~ .manifestações, e aquela que é muitas vezas 
citmla como primária e condicionada mais por emoções reli-
giooas do que por este .ma~ geceralixado provincialismo, é a 
atitude universa<hnente sustentada rias civilizações Ocidentais, 
na mOOida em ql.lle a rneligião se conservou entre elas uma 
cirCUlllStân.da viV'a'. A dis~ entre _qualquer grupo f~hado + + e~ ~nhos t.omar5e, em termos de religião, a de verda.-
deil\05 crerutes e de pagãos. DUlrante milhares de anos não havia 
pontõS de COlttacto entre estas duas ~o~. Não havia 
numa delas, ideias ou instituições que !os.sem válidas na outra. 
Pelo contrário, 1todas as tinstituições eram conside~ anm-
gónicas, oo por perren~rem a UJllQ ou a outtra d~, muitas 
vezes, levemente diferendadas religiões: de um ll3Kk> er'a uma 
questão de Verdru.le Divina• e de vatladeiro crente, de ·revelação 
[ 20] 
e de Deus; do outro era uma questão de erro mortal, de 
f ábutas, do maldito e de dom6nios. Não se trai'tava de equacio-
nar as ootude5 dos grupos em oposição, e por consequência, 
<le compreender através de dados .eswdados objeotiva.mcnte a 
ootureza desta impor.tan.te feição humana- religião. 
Preconceitos de raça 
Nós sentimos uma $erta superlorld~ justi~cada q~a~do \ 1 
se aceita uma caracterização, como esta, da atitude rcbg1osa J 
padrão. Pelo menos desembaraçámo-nos daquela absurdidade 
especial, e aceitámos estudar comparadamente as religi~. 
Mas considerando o alcance que uma atitude semelhante teml 
tido na nossa civilização sob a forma de, por exemplo, pre-
conceitos de raça, justifica-se certo cepticismo quanto a ser 
a nossa largueza de vistas, em questões de religião, devida ao 
facto de termos superado a dndida infantilidade de visão, 
ou simplesmente ao facto de a religião ter deixado de sei:--º @ 
tnblado em que se põem em cena as grandes batalhas da_ VI~\ 
~od~a. Nas questões realmente vitais da nossa civilização 
parece estarmos ainda longe de ter adquirido a atitude desin-
teressada que tão largamente alcançámos no campo da religião. 
Outra circuns~ncia fez do estudo sério do costume uma 
disciplina ainda em atraso e muitas vezes cultivada com hesi-
tação,e esta é uma circunstância mais difícil de vencer do que 
aquelas a que vimos de nos referir. O costume_n~u 1 
a a~n5ão_ dos teorizadores sociais porque _ele ~onstituía a 
1 
própria subst~nc~ ~o ~u P_!Dsar: era..!...P.2_r_~_drzer!..~te 
sem a qual nada podiam ver. ~ente porque_ej'.a ..funda· 
m;ntal, existia fora da sua. atenç!o c_Q._~ent~_Tal .cegueira 
;;a; tem de enigmático. Depois de um investigador reunir 
os vastos dados necessários para o estudo de créditos inter-
nacionais, ou do processo de aprender, ou do narcisismo como 
factor de psiconeuroses, é por intermédio e dentro deste corpo 
[ 21] 
de dados que o economista, ou o psicologista, ou o psiquiatra 
operam. Não toma em consideração o facto de outros com-
plexos sociais em que, porventura, todos os factores se dispõem 
de uma maneira diferente. Isto é, não conta com o condicio-
namento cultural. ~to que est!_ a estu~ar como mani-
~do-s_e_ ~ 1!1~os conhecidos e inevitáveis, e apresenta 
estes como se fossem absoiutos, porque; eles se-rêduzem todos 
õSiiiãteriaiS que lhe servem para trabãlhar racionalmente. Iden-
tfücam-se atitudeslocais da década de trin~m natureza 
humana, e a sua caracterização, com Economia e Psicologia. 
Na prática, isto, muitas vezes, não importa. Os nossos 
filhos devem ser educados na nossa tradição pedagógica, e o 
estudo do processo de aprendizagem nas nossas escolas é o 
que realmente importa. Da mesma forma se justifica o en-
colher de ombros com que muitas vezes se acolhe uma dis-
cussão de outros sistemas económicos que não o nosso. Afinal, 
temos de viver dentro do quadro do meu e do teu que a nossa 
particular cultura estabelece. 
fY1 Isto é, realmente, assim, e o facto de as variedades de 
J.J .;:> JJ( culturas se poderem discutir melhor tais como existem em p é ~q · espaço, pretexto para a nossa1 ~ance. _}ias é apenas n.9"'\ a limitação de material histórico 'b que 1õiPe<ie que se tirem 
exemplos da sucessão das culturas em tempo. Essa sucessão 
é coisa a que não podemos furtar-nos, mesmo que o queiramos, 
e quando olhamos mesmo s6 uma geração para trás que seja, 
então compreendemos até ·que ponto foi longe a revisão, por 
vezes no nosso mais íntimo comportamento. Até aqui tais 
revisões têm sido não deliberadas, mas o resultado das cir-
cunstâncias que s6 retrospectivamente podemos figurar. E se 
não fosse a nossa relutância em enfrentar mudanças culturais 
em questões essenciais, enquanto elas se nos não impõem, não 
seria impossível assumir uma atitude mais inteligente e autori-
l _ zada. Aquela relutância é em grande parte um resultado da 
nossa incompreensão das convenções culturais, e especialmente 
.uma sublimação daquelas que pertencem à nossa nação e à 
[ 22 J 
~-
8' º ![ , ••• 
nos.sa década. Um conhecimento mesmo escasso de outras 
convenções e de como elas podem ser <Jiferentes das- nossas,, 
contribuiria muito para promov~r uma_ordem social racional. 
--0-CStudo de culturas diferentes tem ainda outro alcaii~ 
muito importante sobre o pensamento e o comportamento de 
hoje em dia. A vida moder~.Jlluitas.civiliza~ ell_!_Çon-
@, tacto íntimo, e no momento presente a reacção dominante a 
esta situação é o nacionalismo e o snobismo racial. Nunca, 
mais do que hoje, a civilização teve necessidade de indivíduos 
bem conscientes do sentido de cultura, capazes de verem objec-
tivamente o comportamento socialmente condicionado d~ 
outros povos sem temor e sem recrimina~o. \ 
Desdém pelo estrangeiro não é a única solução possível do 
nosso actual contacto de raças e nacionalidades; esta nem 
, sequer é uma solução cientificamente alicerçadajà tradicio-......, 
j ual intolerância anglo-saxónica é uma feição cultural, local e_J 
_temporal como qualquer out:afMesmo um povo tão aproxima-
damente do mesmo sangue e da mesma cultura como o espa-
nhol dela não sofreu, e o preconceito de ·raça nos países qe 
coloniza~o ~anhola_é uma co~ com~etamente diferente 
do dos países dominados pela Inglaterra e pelos Estados 
Unidos. Neste5 não se -trata evidentemente de uma intolerâ-;_ 
eia dirigida contra a mistura de sangue de raças biologica-
mente muito distantes, porque ocasionalmente a exaltação é 
tão grande contra o católico irlandês em B6ston, ou o italiano 
na Nova Inglaterra, como contra o Oriental na Califórnia. 
l! a velha distinção entre o grupo de dentro e o grupo de fora, 
e se neste aspecto continuamos a tradição primitiva, temos 
muito menos desculpa do que as tribos selvagens. Nós viajá-
mos, orgulhamo-nos das nossas vistas desempoeiradas. Mas 
1 (\, 
~~/ 
. ~1 
não conseguimos compreender a relatividade dos hábitos cul-
turais, e continuam~ privados de muito prove!to e de muito 
prazer nas nossas relãÇOes- humanas com povos de_djfefe!!tes 
tipo~ de cultura, e a não ser dignos de confiança nas nossas 
relações com eles. t 
[ 23] 
? I 
< -
11 
O reconhecimento da base cultural do preconceito de 
raça é hoje uma necessidade desesperada na civilização Oci-
dental. Chegámos a um ponto em que alimentamos precon-
ceitos de raça contra os nossos irmãos ·de sangue, os Irlande-
ses, e em que a Noruega e a Suécia falam da sua inimizade 
como se também eles representassem sangues diferentes. A cha-
mada linha racial, durante uma guerra em que a França e a 
Alemanha se batem em campos opostos, mantém-se para di-
vidir o povo de Baden do da Alsácia, ainda que somaticamente 
ambos pertençam à sub-raça alpina. Numa época de movi-
mentos sem embaraços e de casamentos mistos na ascendência 
dos elementos mais desejáveis da comunidade, pregamos, sem 
corar de vergonha, o evangelho da raça pura. 
O homem moldado pelo costume nêl.o pelo instinto 
A isto a antropologia dá duas respostas. A primeira res-
peita à natureza da cultura, e a segunda à natureza da herança. 
A resposta respeitante à natureza da cultura leva-nos até às 
sociedades pré-humanas. Há sociedades em que a Natureza 
perpetua o mais ténue modo de comportamento por meio de 
mecanismos biológicos, mas tais sociedades não são· de homens, 
são de insectos. A formiga rainha, transportada para um ninho 
solitário, reproduzirá todas as feições do comportamento 
sexual, todos os pormenores do ninho. Os insectos sociais re-
presentam a Natureza não disposta a correr quaisquer riscos. 
O padrão de toda a estrutura social, confia-o ao comporta-
mento instintivo da formiga. Não há maior número de proba-
bilidades de as classes sociais de uma sociedade de formigas 
ou de os seus padrões de agricultura se perderem pela sepa-
ração de uma formiga do seu grupo, do que de a formiga não 
. vir a reproduzir a forma das suas antenas ou a estrutu.ra do 
seu abdómen. 
Feliz ou infelizmente, a solução do homem ocupa o p6lo 
[ 24] 
oposto. Nada da sua orgfilLização social tribal, da..sua.Ji!i~a-1 
\ g_em, .ia sua _religião .. local é transportado...na_sua célula_g~­
nal. Na Europa, em séculos passados, quando se encontravam 
crianças que tinham sido abandonadas e se tinham conservado 
em florestas, separadas de outros seres humanos, eram de tal 
modo- parecidas entre si que Lineu as classificou como uma 
espécie à parte, Homo ferus, e supôs que eram uma espécie 
de anões raros. Não podia conceber que tivessem nascido de 
homens, esses brutos idiotas, esses seres sem interesse no que 
se passava à sua volta, oscilando ritmicamente para trás e para 
diante como qualquer animal de jardim zoológico, com órgãos 
da fala e da audição que mal podiam educar-se, que resistiam 
ao frio apenas com uns farrapos e tiravam batatas de água a 
fcn:cr sem o menor incómodo. ~ claro que não havia qualquer 
dúvida que se tratava de crianças abandonadas na infância,_ 
e o. que a todas faltara fora a associação com os seus seme-
lhantes, só através da qual as: faculdades do homem se afinam 
e ganham forma. 
Hoje, na nossa civilização, mais humanitária, já não se 
encontram crianças selvagens. Mas o facto ressalta com igual 
clareza de qualquer caso de adopção- de uma criança cm outra 
raça ou cultura. Uma criança Oriental adoptada por uma 
família Ocidental, aprendeinglês, revela para os seus pais 
adoptivos as atitudes correntes entre as crianças com quem 
brinca, e encarreira-se para as mesmas profissões que elas 
escolhem. Aprende todo o conjunto de feições culturais da 
sociedade que adoptou, e o grupo dos seus verdadeiros proge-
nitores não desempenha cm tudo isto qualquer papel. O mesmo 
se passa em grande escala quando populações inteiras se 
desembaraçam da sua cultura tradicional em duas ou três 
gerações e adoptam os costumes de um grupo estrangeiro. 
A cultura do Negro americano nas cidades do norte veio a 
aproximar-se em todos os pormenores da dos brancos nas 
mesmas cidades. Há alguns anos, quando se fez um recensea-
mento cultural em Harlém, um dos traços peculiares aos 
[ 25] 
Negros era a moda que seguiam de apostar nqs três últimos 
algarismos dos investimentos da bolsa no dia seguinte. Pelo 
menos saía mais barato do que a correspondente predilecção 
dos brancos por jogarem na pr6pria bolsa, e tinha a mesma 
incerteza e era igualmente excitante. Era uma variante do 
padrão branco, mas nem por isso se afastava muito dele. 
E a maioria das feições de Harlém conservam-se ainda mais 
próximas das formas correntes em grupos · brancos. 
Por toda a parte, e desde o princípio da hist6ria do 
homem, se demonstra que certos povos puderam adaptar a 
cultura de povos de outro sangue. Não há na estrutura bioló-
gica do homem nada que tome isto sequer difícil, muito menos 
impossível. O homem não é obrigado, pela sua constituição 
biol6gica, a obedecer em pormenor a qualquer variedade par-
ticular de comportamento. A grande diversidade de soluções 
elaboradas por ele em diferentes culturas relativ~mente à união 
dos sexos, por exemplo, ou ao comércio, são todas igualmente 
possíveis na base dos seus dotes originais. ~~ não ~um 
~omplexo que seja transmitido biologicam~!,.e. 
O que se perde em garantia de segurança dada pela Natu-
reza é compensado pelas .vantagens de uma maior plasticidade. 
No animal humano não se desenvolve, como no urso, um re-
vestimento de pêlos que o resguardam do frio, com o resul-
tado de, depois de muitas gerações, se adaptar aos rigores 
árcticos. Ele aprende, sim, a fazer agasalhos e a construir uma 
casa de neve. Pelo que nos diz a hi5t6ria da inteligência nas 
sociedades pré-humanas, como nas humanas, esta plasticidade 
foi o húmus em que o progresso humano começou a crescer 
e em que se tem mantido vivo. Nos tempos dos mamutes, espé-
cies sobre espécies sem plasticidade surgiram, ultrapassaram-se 
e desapareceram, vítimas do desenvolvimento daquelas mesmas 
feições que a adaptação ao ambiente nelas tinha produzido. 
Os animais carnívoros e por fim os símios superiores vieram 
lentamente a apoiar-se em adaptações não meramente bioló-
gicas, e foi sobre a consequente plasticidade assim aumentada 
[ 26) 
que se estabeleceram, pouco a pouco, as fundações para o 
desenvolvimento da inteligência. Talva, como muitas vaes se 
sugere, o homem venha a destruir-se a si pr6prio em virtude 
exactamente do desenvolvimento da sua inteligência. Mas nunca 
ninguém se lembrou de aventar quaisquer meios por que possa-
mos voltar aos mecanismos do insecto social; de modo que nãa 
nos resta qualquer alternativa. A herança cultural humana, 
para nosso bem ou para nosso mal, não se transmite biologica-
mente. 
O corolário que daqui deriva em política moderna é que 
não há qualquer fundamento no argumento de que podemos 
confiar as nossas conquistas espirituais e culturais a quaisquer 
plasmas germinais especiais hereditários. Na nossa civilização 
Ocidental a liderança passou, em diferentes períodos, sucessi-
vamente para os Hamitas, para o subgrupo Mediterrâneo da 
raça branca e finalmente para os N6rdicos. Não M qualquer 
dúvida acerca da realidade do facto da continuidade cultural 
da civilização, seja quem for o seu portador em dado mo-
mento. Temos de aceitar todas as implicações da nossa herança 
humana, uma das maiores das quais é a inimportância relativa 
do comportamento biologicamente transmitido, e o papel 
enorme do processo cultural da transmissão da tradição. 
A «pureza racial» é uma ilusao 
A segunda resposta dada pela antropologia ao argumento 
do purista racial, respeita à natureza da hereditariedade. O pu-
rista racial é a vítima de um mito. Porque, o que vem a ser 
«herança racial»? Sabe-se mais ou menos o que é herança de pai 
para filho. Dentro de uma linhagem familiar a importância 
da hereditariedade é imensa. Mas hereditariedade é uma questão 
de linhagens familiares. Para além disso é mito. Em comuni-
dades pequenas e estáticas, como uma aldeia Esquim6 isolada, 
J:ereditariedade racial e hereditariedade de filho e pais são pra-
[ 27 ] 
ticamente equivalentes, e nessas condições a expressão heredi· 
tariedade racial faz sentido. Mas como conceito aplicado a 
grupos espalhados por uma área vasta, digamos, no caso dos 
Nórdicos, não tem qualquer base real. Em primeiro lugar, em 
todas as nações nórdicas há linhagens de família que também 
são representadas em comunidades alpinas ou mediterrâneas. 
Qualquer análise da constituição física de uma população euro-
peia apresenta zonas de sobreposição: o Sueco de olhos e cabelos 
escuros representa linhagens de família que são mais. concen· 
tradas para o Sul, mas ele deve ser considerado em relação ao 
que sabemos destes últimos grupos. A sua hereditariedade, na 
medida em que tem qualquer realidade física, é uma questão 
G!a sua linhagem de família, que não se confina à Suécia. Não 
sabemos até que ponto tipos físicos podem variar sem entre· 
mistura. Sabemos que o intracruzamento provoca o apareci-
-~ento de um tipo local. Mas este caso quase não se dá na 
ossa cosmopolita civilização branca, e quando se invoca a 
((hereditariedade racial», como é habitual, para reunir um grupo 
de pessoas com, aproximadamente, a mesma posição econó-
mica, com cursos de, aproximadamente, as mesmas escolas, e 
que lêem os mesmos semanários, tal categoria é nada mais do 
que outra versão do grupo dentro do grémio e do grupo fora 
do grémio, e não se refere à verdadeira homogeneidade bioló-
gica do grupo. 
O que na realidade liga os homens é a sua cultura - as 
ideias e os padrões que têm em comum. Se em vez de escolher 
um símbolo como hereditariedade de sangue comum, e de o 
arvorar em moto, a nação dirigisse antes a sua atenção para a 
cultura que une o seu povo, pondo em relevo os seus méritos 
e reconhecendo os diferentes valores que se podem desenvolver 
numa cultura diferente, substituiria uma espécie de simbolismo 
perigoso, por ser enganador, por um pensar realista. 
[ 28] 
Razão para se fazer o estudo de povos primitivos 
No pensar social é necessário um conhecimento de diferen-
tes formas de cultura, e este livro ocupa-se deste problema da 
cultura. Como acabámos de ver, forma do corpo, ou raça, é 
separável de cultura, e, para o fim que temos em vista, tal 
conceito pode ser posto de parte, excepto em certos pontos em 
que por qualquer razão especial passe a ser relevante. Uma 
discussão de cultura exige em primeiro lugar que se baseie numa 
larga selecção de formas culturais possíveis. Só assim poderemos 
distinguir entre aqueles ajustamentos humanos culturalmente 
condicionados e os que são comuns e, tanto quanto podemos 
saber, inevitáveis, na humanidade. Não podemos, por intros-
pecção ou por observação de qualquer sociedade, descobrir que 
comportamento é «instintivo», isto é, organicamente determi· 
nado. Para classificarmos de instintivo qualquer comporta-
mento, não basta provar que ele é automático. O reflexo con· 
dicionado é tão automático como o determinado organica· 
mente, e reacções culturalmente condicionadas constituem a 
maioria do nosso vasto equipamento de comportamento auto-
mático. 
Por consequência_o 2!1ª~~1 mais signif!_cativo para o_caso 
de uma discu.$São de formas ~ro_çessos culturais_é o da,ç~e­
dades tant~ ,g~a.!!!º possível historicamente J?Ol!_CO ~J~~o~das 
com a nossa e entre si. Com a vasta rede de contacteis históricos .. --.....-
que as grandes civilizações espalharam sobre enormes áreas, 
as culturas primitivas são hoje a única fonte a que devemos 
recorrer. Elas são um laboratório em que podemos estudar a 
diversidade de instituições humanas. Com o seu relativo isola-
mento, muitas regiões primitivas tiveram ao seu dispor vários 
séculos em que puderam elaborar os temas culturais de que se 
apropriaram. Fornecem-nos, prontas para serem estudadas, 
informações relativas a possíveis grandes variações em ajusta· 
mentos humanos, e para qualquer compreensão dos processos 
culturais é essencial um exame crítico desses ajustamentos. 
[ 29] 
~ este o único laboratório de formas sociais de que dispomos 
ou disporemos. 
Este laboratório tem outra vantagem. Os problemas põem-se 
aqui em termos mais simples do que nas grandes civilizações 
Ocidentais. Com as invenções que tomam fáceis os transportes, 
com cabos internacionais, telefones, rádiotransmissão, aquelas 
invenções que asseguram permanência e vasta distribuição da 
imprensa, o desenvolvimento de grupos profissionais, cultos e 
classes em concorrência e a sua uniformização por todo o 
mundo, a civilização moderna tomou-se demasiadamente com-
plexa para ser - convenientenlente analisada, excepto .quando, 
'-{ para isso, se fraccione em ~quenas secç_9es artificiais. E estas 
análises parciais são inadequadas porque muitos factores exter-
nos que se .apresentam não podem ser controlados. Umã revista 
de qualquer grupo envolve indivíduos provenientes de grupos 
heterogéneos opostos, com padrões diferentes, diferentes objec-
tivos sociais, relações familiares e moralidade. A inter-relação 
destes grupos é demasiadamente complicada para a avaliarmos 
com o necessário pormenor. Na sociedade primitiva, a tradição 
11 
cultural é suficientemente simples. para que o saber de cada 
adulto a abranja, e os modos de proceder e a moral do grupo 
ajustam-se a um padrão geral bem definido. e possível neste 
ambiente simples, avaliar a inter-relação de aspectos de uma 
forma impossível nas correntes que se chocam na nossa com-
plexa civilização. 
Nenhuma destas razões para insistir nos factos de cultura 
primitiva tem nada que ver com o uso que classicamente 
se tem feito deste material. Este uso visava à reconstituição de 
origens. Os antropologistas anteriores tentavam dispor. todos os 
aspectos de culturas diferentes numa sequência evolutiva, desde 
as primeiras formas até ao seu desenvolvimento último na civi-
lização Ocidental. Mas não se deve supor que ao discutir a reli-
gião Australiana, e não a nossa, nós, estamos a revelar a religião 
primitiva, ou que ao discutir a organização social Iroquiana 
revertemos aos hábitos de acasalamento dos primeiros ante-
passados do homem. 
lJma vez. que somos forçados a aceitar que o homem cons-
titui uma espécie, conclui-se daí que por toda a parte o homem 
tem atrás de si uma história igualmente longa. t possível que 
certas tribos primitivas se tenham co~rvado mais pr6ximas 
de formas primitivas de comportamento do que o homem civi-
lizado, mas pode suceder que isto seja apenas relativo, e as 
nossas suposições tanto podem ser verdadeiras como err6neas. 
Não se justifica que identifiquemos qualquer primitivo costume 
actual com o tipo original de comportamento humano. No 
ponto de vista de método s6 há urna maneira de atingir um 
conhecimento aproximado desses estádios primitivos da huma· 
nidade; pelo estudo da distribuição desse pequeno número de 
feições universais ou quase universais da sociedade humana. 
Muitas são bem conhecidas. Dentre elas todos concordam em 
contar o animismo (1) e as restrições exógamas sobre o casa-
mento. Mais questionáveis são as concepções, que afinal mos-
tram ser muito diferentes, sobre a alma humana e sobre uma 
vida futura. Crenças quase universais como estas últimas, podem 
justificadamente considerar-se como invenções humanas extraor-
dinariamente antigas. O que não quer dizer que as consideremos 
determinadas biologicamente, pois que podem ter sido invenções 
muito primitivas do homem, feições «de berço» que se tor-
naram fundamentais em todo o pensar humano. Em última 
análise podem ser tão socialmente condicionadas como qualquer 
costume local. Mas tomaram-se desde há muito automáticas 
no comportamento humano. São antigas e universais. Mas não 
podemos concluir daí que as formas que hoje se podem obser-
var sejam as formas originais surgidas nos tempos primitivos. 
Nem há qualquer processo de reconstituir essas origens a partir 
do estudo das suas variedades. Podemos isolar o núcleo uni-
(1) Crença na exist@ncia do espírito em toda a · Natureza. 
(N. do T. alemão) 
[ 31] 
versai da crença e derivar dele as suas formas locais, mas apesar 
disso é ainda possível que a feição particular tenha surgido de 
uma forma local pronunciada e não de qualquer núnimo deno-
minador comum de todas as formas observadas. 
Por isto, a utilização de costumes primitivos no estabele-
cimento de origens é de natureza especulativa. 1! possível for-
mular um argumento em apoio de quaisquer origens que se 
desejem, origens que se excluam mutuamente ou que sejam 
complementares. De todas as utilizações de material antropo-
lógico, é este aquele em que especulação seguiu especulação 
mais rapidamente, e em que, pela própria nature-za da questão, 
não é possível fazer prova. 
1ão-pouco a razão de utilizar sociedades primitivas na dis-
cussão de formas sociais está necessariamente relacionada com 
um romântico regresso ao primitivo. Ele não se filia em qual-
quer espírito de poetização dos povos menos evoluídos. Sob 
muitos aspectos a cultura de um ou outro povo seduz-nos forte-
mente nesta era de padrões heterogéneos e de confusa agitação 
mecânica. Mas não é num regresso a ideais conservados por 
povos primitivos para nosso proveito, que a nossa sociedade 
curará os seus males. O romântico Utopianismo que anseia pelo 
primitivo mais simples, por atraente que por ve-zes possa ser, 
constitui nos estudos de antropologia tanto um empecilho como 
um auxílio. 
O estudo cuidadoso das sociedades primitivas é hoje, como 
dissemos, importante, mas por fornecer material para o estudo 
de formas e processos culturais. Ajuda-nos a distinguir as res-
pnSt'aS cspeclficas de tipos oulrtltmllis locais, das que são gerais na 
Humanidade. Além disto ajudam-nos a avaliar e compreender 
o papel imensamente importante de comportamento cultural-
mente condicionado. A cultura, com os seus processos e funções, 
é um assunto sobre que necessi~mos todo o esclarecimento 
possível, e em nada como nos factos das sociedades pré-letradas 
nós podemos buscar colheita. mais compensadora. 
[ 32] 
2 
A DIVERSIDADE DE CULTURAS 
O vaso da vida 
U
M chefe dos fndios Digger (1), como os habitantes da 
Califórnia lhes chamam, falou muito comigo a res- · 
peito dos hábitos do seu povo em tempos idos. Era 
cristão e pioneiro entre os seus na cultura de pêssegos e alperces 
de regadio, mas ao fam dos ~ãs que, virai ele com os seus 
olhos, se tinham transformado em ursos durante a dança-dos-
-ursos, as mãos tremiam-lhe e a voz vibrava de emoção. Era uma 
coisa extraordinária a energia do seu povo nos tempos anti~os. 
Mais do que tudo gostava de falar do que o deserto lhes dava 
como alimentos. Tratava cada planta que arrancava, com amor 
e ·com uma segurança absoluta da sua importância. Nesses 
tempos o seu povo tinha comido «da saúde do deserto», dizia 
ele, e ignorava tudo a respeito de latas de conserva e do que 
se vendia nos talhos. Tinham sido estas inovações que tinham 
acabado por fazê-los degenerar. . · 
Um dia, sem transição. Ramon começou a descrever como 
(') cfndios Diggcr-, os autóctones da Grande Bacia. (N. do T. 
aiem8o) 
a • P. DE CULTURA [ 331 
ee'd'tsr nr liiiJ 
se esmagava o mendobi e se preparava sopa de bolota. «No prin-
cípio», dizia, «Deus deu um vaso a cada povo, um vaso de 
barro, e por este vaso bebiam a sua vida.» Não sei se o símbolo 
aparecia em qualquer rito tradicional do seu povo que nunca 
descobri qual fosse,ou se era inventado por ele. E. difícil admitir 
que o tivesse recebido dos brancos que conhecera em Banning; 
estes não eram gente que discutisse o etos de diferentes povos. 
Seja como for, no espírito deste índio humilde a figura de ret6-
rica era clara e rica de significado. <<Todos enchiam o seu vaso 
mergulhando-o na água», contill\lava, .«mas os vasos eram dife-
rentes. O nosso quebrou-se; desapareceu.» 
O nosso vaso quebrou-se. Aquilo que tinha atribuído signi-
ficado à vida do seu povo, os rituais domésticos de tomarem 
os alimentos, as obrigações do sistema económico, a sucessão 
dos cerimoniais nas aldeias, o estado d~ possessos na dança do 
urso, os padrões do bem e do mal - tudo desaparecera, e com 
isso a forma e o significado da sua vida. O velho conservava-se 
ainda vigoroso e continuava a ser quem orientava as relações 
dos seus com os brancos. Não queria ele dizer, com aquele 
modo de se exprimir, que se tratava de qualquer coisa como a 
e>:tinção do seu povo. Mas no seu espírito hâvia como que a 
consciência da perda de qualquer coisa que tinha um valor 
igual ao da própria vida, ·toda a estrutura dos padrões e das 
crenças do seu povo. Havia ainda outros vasos da vida, talvez 
com a mesma água, mas a perda era irreparável. Não se tratava 
de juntar aqui isto, de tirar ali aquilo. A modelação do vaso 
fora fundamental, fosse como fosse era de uma s6 peça. Fora o 
seu vaso. 
Romão tinha tido a experiência pessoal daquilo de que 
falava. Fizera a forquilha entre duas culturas cujos valores e 
modos de pensamento eram incomensuráveis. Duro destino. 
Na civilização Ocidental as nossas experiências foram diferentes. 
Somos educados para viver dentro de uma cultura cosmopolita, 
e as nossas ciências sociais, a nossa psicolpgia e a nossa teologia 
teimam em ignorar a verdade. expressa pela figura de Romão. 
[ 34] 
O curso da existência e a pressão do ambiente, para não 
falar da facúndia da imaginação humana, .proporciona um nú-
mero incrível de orientações possíveis, todas as quais, aparente-
mente, permitem que sejam adoptadas por uma sociedade. 
Há os esquemas da propriedade, com a hierarquia social que se 
pode associar ao que se possui; há coisas materiais e as compli-
cadas técnicas correspondentes; há. todas as facetas da vida 
sexual, da paternidade e do culto dos antepassados; há as asso-
ciações ou· os cultos que podem estruturar a sociedade; há as 
trocas económicas; há os deuses e as sanções sobrenaturais. 
Cada um destes aspectos e muitos outros serão exaustivamente + 
seguidos com uma elaboração cultural e cerimonial que mono-
poliza a energia cultural e deixa pouco lugar para a criação 
de outros aspectos. Aspectos da vida que se nos afiguram impor-
tantíssimos foram ignorados e desatendidos por povos cuja 
cultura, orientada noutra direcção, esteve longe de ser pobre. 
Ou a mesma feição comum pode tomar-se complicada a tal 
ponto que a consideramos fantástica. 
Necessidade de uma selecção 
Passa-se na vida cultural o que se passa com a linguagem. 
O número de sons que as nossas cordas vocais e as nossas 
cavidades bucais e nasais podem emitir é praticamente ilimi-
tado. As três ou quatro dezenas da língua ing)eSa constituem 
uma escolha que nem com a de outras línguas tão intimamente 
relacionadas com ela como o Alemão e o Francês coincide. 
Nunca ninguém ousou calcular o número total desses sons 
usados em diferentes linguagens. Mas cada lfngua tem de 
escolher os seus e de . os aceitar, sob pena de perder toda a 
inteligibilidade. Uma língua que utilizasse mesmo as poucas 
centenas dos elementos fonéticos possíveis - e realmente regis- ; 
tados - seria inutili~ como meio de comunicação oral. Por J 
outro lado muito da nossa incompreensão das línguas que não 
[ 35] 
sejam afins da nossa resultá de tentarmos relacionar sistemas 
fonéticos estranhos, com o nosso próprio como ponto de refe-
rência. Nós só reconhecemos um K . • Se outras têm cinco 
sons diferentes de K localizados em diferentes pontos na gar-
' ganta e na boca, é-nos· impos.5fvel compreender diferenças de 
voca~ulário e de construção que dependem daquelas locali-
zações enquanto não dominarmos estas. Nós temos um d 
e um n. Entre eles pode haver um som intermediário que, se 
não conseguimos identificá-lo, representaremos ora por um d 
ora por um n, introduzindo distinções que não existem. A con-
dição prévia elementar da análise linguística é posruir a . cons-
. ciência desse incrível número de sons ao nosso dispor, de que 
cada linguagem escolhe uns tantos. 
Também em cultura temos de imaginar um grande arco 
em que alinham os interesses pos.5fveis que o ciclo da vida 
humana, ou o ambiente, ou as várias actividades do homem 
fornecem. Uma tultura que acumulasse mesmo uma proporção 
considerável desses interesses seria tão inteligível como uma 
linguagem que utilizasse todos os sons linguais, todas as sus-
pensões glóticas, todas as labiais, dentais, sibilantes, e guturais 
das mudas às tónicas, das orais às nasais. O seu carácter distin· 
r tivo, como uma cu1~a, depende da escolha de certos seg-
~entos desse arco. Toda a sociedade humana, onde quer que 
seja, realizou essa escolha nas suas instituições cultUrais. Cada 
uma delas, do ponto de vista de qualquer ºoutra, ignora o que 
é essencial e explora o que é irrelevante. Uma cultura quase 
não reconhece valores monetários; outra tomou-Os fundamen-
tais em todos os campos do comportamento. Numa sociedade 
a técnica é inacreditavelmente desdenhada, mesmo naqueles 
aspectos da vida que parecem necessários para garantir a sobre-
vivência; em outra tão simples como ela, os aperfeiçoamentos 
técnicos são extraordinariamente complexos e admiravelmente 
adequados a cada situação. Uma erige uma enorme superstru-
tura cultural sobre a adolescência, outra, sol>re a morte, outra 
ainda, sobre a vida futura. • 
O caso da adolescência é particularmente interessante, já 
porque está em foco na nossa civilização, já porque sobre ele 
dispomos de informações suficientes relativas a outras culturas. 
Entre nós toda uma vasta bibliografia de estudos psicológicos 
pôs em relevo a inevitável inquietação do período da puber· 
dade. Na nossa tradição ele é um estado fisiológico tão precisa-
mente caracterizado por explosões domésticas e por rebelião, 
como a tifóide o é pela febre. Não são os factos que faltam. 
Na América são comuns. O problema está antes na sua inevi-
tabilidade . 
Maneiras diferentes em diferentes sociedades 
de considerar a adolescência e a puberdade 
O exame mais perf unctório dos modos como diferentes 
sociedades têm considerado a adolescência, põe em evidência o 
seguinte facto: mesmo naquelas culturas que dão mais impor-
tância a este aspecto, a idade em que fazem incidir a sua aten-
ção varia num largo intervalo de anos. ~. pois, imediatamente 
claro que se continuamos a pensar em termos de puberdade 
biológica as chamadas instituições de puberdade são uma má 
designação. A puberdade que elas consideram é de natureza so-
cial, e as cerim6nias correspondentes são um' reconheeimento, 
variável na forma, da nova condição cío estado de adulto da 
criança. Esta investidura em novas ocupações e obrigações é 
consequentemente tão variada e culturalmente tão condicionada 
como o são aquelas mesmas ocupações e obrigações. Se o único 
dever considerado honroso do homem adulto são os feitos 
guerreiros, a investidura do guerreiro faz-se mais tarde e é de 
natureza düerente da de uma sociedade em que o estado de 
adulto .confere o privilégio de dançar numa representação de 
deuses mascarados. Para compreendermos as instituições de 
puberdade não é da análise da necessária natureza dos rituais 
de transição que nós precisamos; do que precisamos é, antes, 
(37] 
de saber o que, em diferentes culturas, se identifica com o início 
da fase de adulto e quais os seus métodos de admissão no novo 
estado de maturidade. 
Maturidade na América Central significa capacidade de 
fazer a guerra. Honorabilidade nesta é a grande ambição de 
todos os homens.O tema sempre repetidq da emancipação do 
mancebo, como da preparação para a carreira das armas em 
qualquer idade, é um ritual mágico do êxito na guerra. A tor-
tura não é inflingida aos iniciados por outrem, mas por estes 
a si próprios: cortam ti.ras de pele nos braços e pernas, amputam 
dedos, arrastam grandes pesos fixados aos músculos do peito 
ou das pernas. O seu galardão é exaltação _de proezas em feitos 
de guerra. 
Na Austrália, pelo contrário, maturidade significa partici· 
pação num culto exclusivamente masculino cuja feição funda-
mental é a exclusão de mulheres. Qualquer mulher que ouça 
sequer o homem que solta o urro do touro nas cerimónias, é 
condenada a morrer; ela nunca deve ter conhecimento dos ritos. 
As cerimónias de. puberdade são repudiações simbólicas e com-
plicadas das ligações com a fêmea; os homens são simbolica-
mente promovidos a seres que se bastam a si pr6prios e ele-
mentos .completamente responsáveis da comunidade. Para alcan-
çarem esse fim empregam-se drásticos ritos sexuais e confe-
rem-se ao iniciado garantias sobrenaturais. 
Os factos fisiológicos claros da adolescência são, pois, prin-
cipalmente, interpretados socialmente, mesmo onde eles são 
postos em relevo. Mas uma revista das instituiç&s de puber· 
dade toma evidente uma coisa: a puberdade é, no ponto de vista 
fisiológico, uma coisa diferente no ciclo vital do macho e da 
fêmea. Se o aspecto cultural acompanhasse o aspecto fisiológico, 
as cerimónias no caso das raparigas seriam mais fortemente 
caracterizadas do que no dos rapazes; isso, porem, não é o 
que se dá. As cerimónias celebram um facto social: as prerro-
gativas do homem têm mais largo alcance do que as das 
mulheres, seja qual for a cultura, e por ·consequência, como 
nos casos acima citados, é mais comum nas sociedades darem 
atenção a este período nos rapazes do que nas raparigas. 
A puberdade de rapazes e de raparigas pode, porém, ser 
celebrada na tribo da mesma maneira. Onde, como no interior 
da Colúmbia Britânica, os ritos de adolescência são um treino 
mágico para todas as ocupações, os rapazes e as raparigas são 
sujeitos aos mesmos tipos de procedimento. Os rapazes fazem 
rolar pedras pelas montanhas empurrando-as encosta abaixo 
para serem rápidos na corrida, ou arremessam varas-de-arre· 
messo para serem bem sucedidos nos jogos; as raparigas trans-
portam água de fontes distantes ou deixam cair pedras entre 
as roupas e o corpo, para que os seus filhos nasçam com tanta 
facilidade como as pedras caem. 
Numa tribo como a Nandi, da região dos lagos da África 
Oriental, rapazes e raparigas partilham em comum num rito de 
puberdade uniforme, ainda que, atendendo ao papel dominante 
do homem na cultura, o seu período de treino juvenil seja mais 
intenso do que o das mulheres. Neste caso os ritos são uma 
provocação infligida pelos já admitidos à situação de adultos, 
aos que eles agora são forçados a admitir no seu seio. Exigem 
deles o mais complexo estoicismo perante engenhosas torturas 
relacionadas com a circuncisão. Os ritos para os dois sexos 
são separados mas seguem o mesmo padrão. Em ambos, os 
noviços envergam para a cerim6nia os vestuários dos seus 
namorados. Durante a operação espiam-se-lhes os mais ligeiros 
sinais de sofrimento, e a retribuição da coragem é conferida 
com grande regozijo pelo namorado, que se adianta para receber 
qualquer dos seus adornos. Para ambos, rapariga e rapaz, os 
ritos marcam a sua entrée numa nova situação de sexo: o rapaz 
é agora um guerreiro e pode ter uma namorada, a rapariga 
pode casar-se. Os testes de adolescência são para.ambos os sexos 
uma provação pré-marital, em que a palma é conferida pelos 
respectivos namorados. 
Os ritos de puberdade podem também assentar nos factos 
da puberdade da rapariga, sem admitir extensão aos rapazes. 
[ 39] 
Um dos mais ingénuos deste género é a instituição da casa-de-
,engorda para raparigas, na África Central. Na região em que a 
beleza quase se identifica com a obesidade, a rapariga na puber-
dade é segregada, às vezes duraiite anos, alimentada com gor-
duras e substlncias doces, e não desenvolve qualquer actividade, 
e fricciona-se-lhe o corpo repetidamente com óleos. Durante 
C$C período ensinam-so-lhe os seus .futuros deveres. e a reclusão 
termina com utna exibição da sua corpulência a que se segue o 
casamento com o noivo, orgulhoso. Quanto ao homem não se 
considera necessário que ele atinja semelhante forma de apa-
n-nte beleza. 
As ideias usuais em tomo das quais as instituições de pu-
berdade gravitam, e que não se alargam naturalmente aos 
rapazes, são as relacionadas com a menstruação. A impureza 
da mulher menstruada é uma ideia muito espalhada, e em certas 
regiões a primeira menstruação tomou-se o foco em que con-
vergem todas as atitudes com ela relacionadas. Os ritos de pu-
berdade nestes c:asos têm um carácter completamente diferente 
. dos daqueles de que já: falámos. Entre os índios Carricr da 
C9lúmbia Britânica, o temor e o horror da puberdade de uma 
rapariga atingiu o grau máximo. Os seus três ou quatro anos 
de isolamento designavam-se pela expressão .<centcrramento em 
vida», e durante todo esse tempo ela vivia sozinha na selva, 
numa cabana de ramos afastada de todas as veredas frequen-
tadas. Constituía uma ameaça para todo aquele que sequer 
a visse, mesmo só de fugida, e as suas meras pegadas poluíam 
um carreiro ou um rio. Andava coberta com uma grande capa 
de pele curtida que lhe escondia a cara e os peitos e por trás 
lhe caía até aos pés. Os braços e pernas estavam carregados 
com tiras de tecido tendinos<>, para a proteger do espírito mau 
de que estava possessa. Em perigo, ela mesma, constituía para 
os outros uma fonte de ameaças. 
As cerimónias de puberdade das raparigas, fundamentadas 
nas ideias que se associam ao mênstruo, são facilmente conver-
tíveis no que, do ponto de vista do indivíduo em questão, é o 
comportamento exactamente oposto. Há sempre dois. aspectos 
possíveis do sagrado; ele pode ser uma fonte de perigos ou uma 
fonte de bênçãos. Em certas tribos a primeira menstruação 
da rapariga é uma grande bênção sobrenatural. Assim, entre 
os apaches, vi os próprios padres.passarem, de joelhos, .diante da 
fileira de solenes rapariguinhas, para delas receberem a bênção 
de os toca.rem. Todas as criancinhas e os velhos acorrem tam-
bém até elas, para que os aliviem dos seus males. As adoles-
centes não são segregadas como fontes de perigos, mas rende-se-
·lhes preito ~mo a fontes de bênçãos sobrenaturais. Pois que as 
ideias em que assentam os ritos de puberdade das raparigas, 
se fundamentam em crenças relativas à menstruação~ tanto 
entre os Carrier como entre os Apaches, aqueles não são exten-
síveis aos rapazes, e a puberdade destes é celebrada em vez 
diss0, e superficialmente, com simples testes e provas de vi· 
rilidade. 
De modo que o comportamento de adolescência, mesmo 
nas raparigas não era ditado por qualquer carácter fisiológico 
do próprio período, mas sim por requisitos maritais ou mágicos 
com ele socialmente relacionados. Estas crenças faziam que a 
adolescência fosse numa tribo serenamente religiosa e bené-
fica, e noutra, tão perig~mente impura que a adolescente 
tinha de advertir os outros em altos gritos, para que evitassem 
na selva a sua proximidade. A adolescência das raparigas pode 
também, como vimos. ser um tema que a cultura não institu-
cionaliza. Mesmo onde, como na maior parte da Austrália, a 
adolescência dos rapazes recebe um tratamento complicado, 
pode suceder que os ritos sejam uma entrada na situaçãq do 
estado de adulto e na participação do macho em questões de 
tribo, e que a adolescência da fêmea passe sem qualquer espé-
cie de reconhecimento formal. 
Estes factos, porém, deixam ainda sem resposta a questão 
fundamental. Não terão todas as culturas ·de enfrentar as per-
turbações naturais deste período, mesmo que se lhes não dê 
expressão institucional? A Dr." Mead estudou esta .questão em 
Samoa. A1 a vida da rapariga passa por períodosbem ·caracte-
rizados. Os seus primeiros anos depois da infân~ia, ~-os em 
pequenos grupos vizinhos de companheiré\,S da mesma idade, 
de que os rapazes são estritamente excluídos. O cantinho da 
aldeia a que ela pertence é o que realmente importa, e os rapa-
zitos são seus inimigos tradicionais. O seu dever é tratar da 
criança de idade infantil, mas em vez de ficar em casa a cuidar 
dela, leva-a consigo, e assim os seus divertimentos não são 
seriamente prejudicados. Alguns anos antes da puberdade, 
quando já ganhou forças suficientes para se lhe poderem exigir 
t:trefas mais pesadas e se tomou suficientemente sensata para 
aprender técnicas que exigem mais habilidade, o seu grupo, 
em que cresceu e brincou, dispersa-se. Passa a usar trajes de 
mulher e cabe-lhe cooperar na lida da casa. Para ela este pe-
ríodo é bem pouco interessante, e não passa de calma rotina. 
A puberdade não altera nada. 
Passados anos, depois de ser mulher feita, começam os 
tempoo ~!dá.veis de inaimoricos casll'ais e irrespon~is que ela 
prolongará tanto quanto possa até ao momento em que é con-
siderada já capaz de casar. Nenhuma manifestação social re-
conhece expressamente a sua puberdade, nem mudança de 
atitude nem expectativa. Tudo se passa como se a sua timidez 
de pré-adolescente continuasse durante alguns anos. A vida de 
rapariga, em Samoa, é absorvida por outras considerações que 
não a de maturação fisiológica do sexo, e a puberdade passa 
como um período particularmente apagado e calmo durante 
o qual não se manifestam quaisquer conflitos de adolescente. 
A adolescência, por consequência, não s6 não é celebrada por 
qualquer cerimonial, como não tem qualquer espécie de impor-
tância na vida emocional da rapariga e na atitude da aldeia 
para com ela. 
[ 42] 
Povos que nunca ouviram falar de guerra 
A guerra é outro tema social que pode ser ou não consi-
derado em cada cultura. Onde se lhe liga grande importância, 
pode ter objectivos diferentes, diferente organização relativa-
mente ao Estado, e arrastar consigo sanções diferentes. Pode ser 
um meio de obter cativos para sacrifícios religiosos, como 
sucede entre os Astecas. Como os espanhóis combatiam, segundo 
o modo de ver Asteca, para ma·tar, faltavam às regras do jogo. 
Os astecas perderam a coragem, e Cortês entrou vitorioso na 
capital. 
H-ª' até, em diferentes partes do mundo, noções a respeito 
da guerra que são, do nosso ponto de vista, ainda mais singu-
lares. Para o fim que nos propomos basta notar o que se passa 
naquelas regiões em aue não se encontram meios organizados de 
matança mútua entre grupos sociais. S6 a nossa familiaridade 
com a guerra toma inteligível que um estado de guerra alterne 
com um estado de paz nas relações de uma tribo com outra. 
Esta ideia, é, naturalmente, perfeitamente vulgar em várias 
partes do mundo. Mas, por um lado, para certos povos, é incon- ..+-
cebível um estado de paz, o que para a sua maneira de ver, 
seria equivalente a admitir tribos inimigas na categoria de seres 
humanos que, por definição, eles não são, mesmo que a tribo 
excluída possa ser da mesma raça e ter a mesma cultura que . 
as outras. 
Por outro lado, pode ser igualmente impos.sível a um povo. 
conceber um estado de guerra. Rasmusscn fala-nos da perplexi-
dade com que o Esquim6 reagiu à sua exposição do nosso 
costume. Os esquimós compreendem perfeitamente que se mate 
um homem. Se ~le se lhe atravessa no caminho, deita contas 
à sua própria força e, se se sente capaz de o fazer, mata-0. 
Se o que matou é forte, não há intervenção social. Mas a ideia 
de uma aldeia esquimó atacar outra aldeia esquim6 em ar de 
guerra, ou de uma tribo atacar outra tribo, ou, até, de outra 
aldeia poder ser legitimamente atacada de emboscada, é para 
[ 43] 
eles completamente estranha. Matar é sempre matar, e não se 
distinguem, no acto, categorias, como nós fazemos: ser o matar, 
num caso coisa meritória e noutro ofensa capital. 
Eu próprio tentei falar de guerra aos índios da Missão, da 
Calif6rnia, mas era coisa impassível. A sua incompreensão de 
um estado de guerra era irredutível. Não havia na sua cultura 
base em que assentasse tal ideia, e as suas tentativas de pro-
curar interpretá-la racionalmente reduziam as grandes guerras, 
a que n6s estamos prontos a entregar-nos com fervor moral, 
a i:neras desordens de vielas. Não tinham na sua cultura padrão 
nada que lhes permitisse distinguir uma coisa da outra. 
A guerra é, vemo-nos forçados a admitir, mesmo perante o 
lugar enorme que ocupa na nossa civilização, um aspecto 
associai. No caos <iue se seguiu à Segunda Grande Guerra Mun-
dial, todos os argumentos que no decorrer dela se apresentavam 
para explicar o alto preço da coragem, do altruísmo, dos va-
lores espirituais, soavam desagradavelmente a falso. Guerra, na 
nossa civilização, é o melhor exemplo dos excessos de destrui-
ção até que pode conduzir o desenvolvimento de uma feição 
cu1lturalmente esoolhida. Se justifiicamoo a guerra é porque 
todos os povos justificam os aspcctos de que se sentem pos.rui-
dores, não porque a guerra resista a um exame objcctivo dos 
pr6prios méritos. 
Costumes relacionados com -0 casamento 
A guerra não é um caso isolado. Em todas as partes do 
mundo e em todos os níveis de complexidade cultural é possível 
encontrar exemplos da elaboração presunçosa e, afinal de 
contas, associai de uma feição da cultura. Esses casos são da 
máxima clareza onde, como por exemplo, cm normas de regime 
alimentar ou de acasalamento, a tradição vai contra os impulsos 
biol6gicos. A organização social, em antropologia, tem um sig-
nificado inteiramente especializado, devido à unanimidade, cxis-
( +l] 
tente em todas as sociedades, em acentuar os grupos de paren-
teSco em que o casamento é proibido. Não há nenhum povo 
em que toda a mulher seja considerada como uma esposa 
possível. Isto não é um meio de, como muitas vezes se supõe, 
evitar uniões consanguíneas, no sentido . em que isto nos é 
familiar, porque em muitas partes do mundo a esposa prevista 
é uma prima. muitas vezes a filha de um tio materno. Os pa-
rentes a que a proibição se refere variam radicalmente de povo 
para povo, mas todas as sociedades humanas se assemelham 
no respeitante a fazer restrições d~te tipo. O incesto, mais do 
que qualquer ideia humana, tem tido, em cultura, constantes e 
complicadas elaborações. Os grupos de incesto são muitas vezes 
as unidades funcionais mais importantes da tribo, e os deveres 
de cada indivíduo em relação a qualquer outro definem-se pelas 
suas relativas posições nesses grupos. Tais grupos funcionam · 
como unidades em cerimoniais religiosos e em ciclos de trocas 
económicas, e é enorme o papel que têm desempenhado na 
hist6ria social. 
Algumas religiões consideram moderadamente tabu o 
incesto. A despeito das restrições feitas, pode haver um número 
considerável de mulheres com que um homem pode casar. 
Noutras o grupo que é tabu, alarga-se, em virtude de uma 
ficção social. de modo a incluir grande número de indivíduos 
que não tenham quaisquer antepassados comuns discerníveis, 
e a escolha de uma consorte é consequentemente excessiva-
mente limitada. Esta ficção social tem expressão inequívoca 
nos termos de relação de parentesco usados. Em vez de ~ 
tinguir parentesco linear de parentesco colateral, como n6s 
fazemos na distinção entre pai e tio, irmão e primo, um dos 
termos usados signüica, literalmente, «homem do grupo de meu 
pai (parentesco, localidade, etc.) da sua geração» sem distinguir 
entre linhas directa e colateral, mas fázendo outras distinções 
que nós não fazemos. Certas tribos da Austrália oriental usam 
uma forma extrema deste chamado sistema de classificação-
de parentesco. Aqueles a quem chamam irmãos e irmãs são os. 
[ 45] 
da sua geração com quem reconhecem ter qualquer parentesco. 
A categoria primo ou qualquer coisa que lhe corresponda não 
existe; todos os parentes da geração de um indivíduo são seus 
innãos e irmãs. 
Este modo de avaliar o. parentesco é mais comum do que 
podejulgar-se, mas na Austrália há, além disso, um horror sem 
igual pelo casamento com uma irmã, e um desenvolvimento 
sem paralelo de restrições exógamas. Assim os Kurnai, com o 
seu sistema de classificação de parentesco levado ao extremo, 
sentem o horror característico do australiano peias relações 
sexuais com todas as sua~ irmãs, isto é, com as mulheres da 
sua geração que de qualquer modo com eles são aparentados. 
Além disto, os Kumai têm regras locais estritas que presidem 
à escolha de uma companheira. Por vezes duas localidades das 
. quinze ou dezasseis que pertencem à mesma tribo, são obrigadas 
a trocar as mulheres, e não escolher esposas em qualquer outro 
grupo. Mais ainda, como sucede em toda a Austrália, os velhos 
são um grupo privilegiado, e os seus privilégios vão até poderem 
casar com as raparigas jõvens e atraentes. Resulta destas regras 
que, é claro, em todo o grupo local que deve por prescrição 
absoluta fornecer a um mancebo uma esposa, não há rapariga 
que não caia dentro do campo destes tabus. Ou é uma das que 
por parentesco com a mãe daquele é sua irmã, ou foi já nego-
ciada por um velho, ou por qualquer razão menos importante é 
vedada ao pretendente. 
Isto não leva os Kumai a reformular as suas regras de 
exogamia. Insistem em que elas sejam respeitadas, por todas 
as formas de violência. Por consequência, o único meio por que 
conseguem casar-se é levantando-se francamente contra as re-
gulações, recorrendo ao rapto. Logo que a aldeia tem conheci-. 
mento do que se passou, lança-se em perseguição dos fugitivos, 
e se o par é apanhado, matam os dois. Não importa que, como 
pode suceder, os perseguidores se tenham casado também. por 
rapto. A indignação moral é enorme. Há, porém, uma ilha que 
é considerada refúgio seguro, e se os fugitivos conseguem chegar 
lá e aí se conservarem até que lhes nasça uin filho, quando de 
volta S;ão ainda recebidos com pancadas, é certo, mas podem 
defender.se. Depois de aceitarem o repto e de passarem entre 
filas de homens, e de ·serem por eles açoitados e espancados, 
assumem então o estado de pessoas casadas na tribo. 
Esta maneira de os Kurnai resolverem o seu dilema cultural 
é bem típica. Alargaram e complicaram um aspecto particul:tr 
de conduta até ao ponto de o tomar um impedimento. Ou têm 
de o modüicar, ou o rodeiam por subterfúgio. Ao recorrer ao 
subterfúgio evitam a extinção, e mantêm a sua ética sem alte-
ração patente. Este modo de tratar o mores nada perdeu com J_. 
o progresso da civilização. A geração antecedente da nossa 
civilização defendeu a prostituição, e nunca os louvores· da 
monogamia foram tão fervorosos como nos grandes tempos dos 
bairros da lanterna vermelha às portas. As sociedades justificam 
sempre as fórmulas tradicionais favoritas. Quando estas são 
excedidas e se recorre a alguma nova forma de comportamento 
suplementar, presta.se preito à fórmula tradicional como se este 
não existisse. 
Entretecimento de feições culturai~ 
Esta rápida revista de formas culturais humanas põe a 
claro vários falsos conceitos comuns. Em primeiro lugar as insti-
tuições que as culturas humanas erigem sobre as indicações 
dadas pelo ambiente ou em virtude das necessidades físicas do 
home9 ão se mantêm sem se desviarem do impulso original, 'f 
tão integralmente como facilmente se julga. Aquelas indicações 
são, na realidade, meros esboços grosseiros, uma lista de factos 
crus. São potencialidades ínfimas, e a elaboração que em volta 
delas se borda é ditada por muitas considerações estranhas à 
questão. A guerra não é a expressão do instinto da belicosidade. 
A belicosidade do homem é uma característica tão ínfima no 
carácter humano que pode nem ter qualquer expressão nas 
[ .f7] 
relações entre as tribos. Quando é institucionalizada, a f6rmula 
que assume segue outras linhas de pensamento diferentes das 
implícitas no impulso original. Belicosidade não passa de um 
leve ponto de contacto na bola do· costume, e um ponto, além 
disso, que pode não ser tocado. 
Este modo de ver os processos culturais exige uma rectifi-
cação de muitos dos nossos argumentos correntes em defesa 
das nossas instituições tradicionais. Esses argumentos assentam 
ordinariamente na impossibilidade de o homem funcionar, na 
ausência dessas particulares formas tradicionais. Mesmo feições 
muito especiais intervêm nesta espécie de validação, como, 
por exemplo, a forma particular de m6bil econ6mico que surge 
no nosso sistema particular de posse de bens individuais. ~ esta 
uma motivação especialíssima, e há provas de que mesmo na 
nossa geração está a sofrer fortes modificaçeyes. Seja porém 
como for, não temos de tomar confuso o problema discutindo-o 
como se se tratasse de u_ma questão de valores de sobrevivência 
biol6gica. Manutenção do indivíduo é um. motivo de que a 
nossa civilização tirou proveito. Se a nossa estrutura mudar de 
modo que este motivo perca o valor de m6bil tão forte como o 
foi na era da grande fronteira e do industrialismo em expansão, 
há mujtos outros motivos que seriam adequados a uma nova 
organização econ6mica. Cada cultura, cada era, explora apenas 
poucas de entre um grande número de alternativas possíveis. 
As transformações podem ser muito inquietantes e envolverem 
grandes perdas, mas isso resulta das dificuldades de tudo o que 
é mudança em si, não do facto de a nossa época e o nosso país 
terem acertado na única possível motivação pela qual a vida 
humana pode conduzir-se. Devemos lembrar-nos que as trans-
formações, apesar de todas as dificuldades que arrastam, são 
inevitáveis. Os nossos temores perante até os mínimos desvios 
da norma são, ordinariamente, inanes. As civilizações podiam 
mudar muito mais radicalmente do que qualquer autoridade 
humanâ jamais tenha desejado ou imaginado mudá-las, e no 
entanto funcionarem perfeitamente. As pequenas transforma-
ções que tanta repulsa hoje provocam, tais como o aumento do 
número de div6rcios, a secularização cada vez maior das nossas 
cidades, as reuniões caridosas de rapazes e raparigas, e muitas 
outras, podiam ajustar-se perfeitamente num padrão de cultura 
s6 muito levemente diferente do nosso. Desde que se tomassem 
tradicionais receberiam a mesma riqueza de conteúdo, a mesma 
impordncia e o mesmo valor que os velhos padrões tiveram 
noutras gerações. · 
A verdade da questão está, antes, em que os possíveis mo-
tivos e instituições humanas são legião, em todos os planos 
de simplicidade ou complexidade culturais, e que a sabedoria 
consiste numa muito maior tolerancia para com as suas varie-
dades. Ninguém pode participar completamente em qualquer 
cultura se não tiver sido criado dentro das suas formas e vivido 
de acordo com elas; mas todos podem conceder que outras 
culturas têm, para os seus participantes, o mesmo significado 
que se reconhecem na sua pr6pria. . 
A diversidade das culturas resulta não apenas da facilidade 
com que as sociedades elaboram ou repudiam aspectos possíveis 
da existência. e devida ainda mais a um complexo entreteci-
mento de feições culturais. A forma final de qualquer insti-
tuição tradicional vai, como dissemos, muito além do impulso 
humano original. Em grande parte esta forma final depende do 
modo como esta feição se fundiu com outras de diferentes 
campos da experiência. 
Uma feição largamente espalhada pode, num povo, ser 
saturada com crenças religiosas e funcionar como um aspecto 
importante da sua religião. Noutro, pode ser absolutamente uma 
questão de transferência econ6mica e constituir, por isso, um 
aspecto dos seus arranjos monetários. As possibilidades neste 
campo são inúmeras, e os ajustamentos, muitas vezes singu-
lares. A natureza da feição será variável com as regiões e de 
acordo com os elementos com que está, combinada. 
Importa que vejamos claramente este processo, pois, de 
contrário, caímos facilmente na tentação de generalizar numa 
4 - P . DE CULTURA [ 49] 
lei social geral os resultados de uma fusão local de feições, ou 
tomamos a sua união como um fenómeno universal.

Outros materiais