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TíTULO ORIGINAL L'ATELlER D'ALBERTO GIACOMETTI TRADUÇÃO DE PAULO DA COSTA DOMINGOS FOTOGRAFIAS DE ERNEST SCHEIDEGGER INTRODUÇÃO GENTILMENTE CEDIDA POR AL BERTO (VAI-LHE DEDICADA - E A ALEXANDRE MELO E AO CARLOS FERREIRO - A TRADUÇÃO) AssíRIO & ALVIM COOPERATIVA EDITORA E LIVREIRA, CRL RUA PASSOS MANUEL, 67-B, 1100 LISBOA EDiÇÃO 243, EM MARÇO DE 1986 DEPÓSITO N.' 20042/88 r JEAN GENET o, ESTUDIO DE ALBERTO GIACOMETTI & 3ssírio &alvim JEAN, o PESCADOR DO SUQUET Talvez que a possível homenagem (?) fosse incen- diar algumas cidades para que se revelasse um rosto límpido, ou o magnífico e lodoso sexo de deus. Mas, creio que um homem como Genet, ao ter atravessado a vida e o mundo na mais recolhida fuga já não dese- jasse sequer o fogo, ou um rosto, ou mesmo deus que, como se sabe, chega sempre atrasado a todo o lado. A morte nunca me pareceu uma coisa gloriosa, mesmo quando a santidade adere à pele e ao cora- ção como um destino a cumprir, como uma peste. E, poucos foram aqueles que souberam convivercom o seu próprio Inferno. A admiração que tenho pela obra e pelo homem que, humildemente,conheceu esse lugar de trevaque é o do condenado à morte esperando a execução, exige todo o ouro do meu silêncio. À bientôt Jean, ou même/e jour i/ faitnuit. AL BERTO I "Gritono dia 16de Abril de 1986,a propósitoda mortede Jean Genet, " 11 pedidodo Diário de Lisboa. 9 ," "" 1 Qualquerhomempoderátalvezsentiruma espé- (Il'demágoa,ou pavor,aoconstatarcomoo mundo c a suahistóriasemostramentreguesa um inelutá- velmovimento,sempreexpansivo,quesómotivoscada vezmaisgrosseirosmodificamasmanifestaçõesvisí- veisdessemundo.E o mundovisívelé comoé,nunca :ltlavésda nossaacçãochegaremosa transformá-Io lIoutro.Nostálgicos,porém,sonhamosum universo olldeo homememvezdeagirtãofuriosamentesobre :I aparênciavisível,seapliqueno destruí-Ia,nãoape- liasnegandoa acção,masdespojando-seo bastante parapôr a nu o ponto secreto,dentrode si, a partir do qual sejapossívelaventurahumanaoutra. Mais C/C! t ivarnentemoral, semdúvida. E afinal talvezà 1l1\1l11anacondição,essecompromissoinelutável,deva- l\loSa nostalgiade umacivilizaçãoqueseempenha- 11;1 :1 descobertaem terrenoignoto impossívelde dllllellsionar.Ora a obrade Giacomettitornao nosso lili j Y<'1"sotão insuportávelquanto esteartistaparece If'I sahidoafastaro que lhe perturbaa visão,e des- lohr(·o que restado homemexpurgadasque sejam :1.\ aparências.É tãoprofundaa nostalgiaque o for- 17 taleceunotrabalho,queGiacomettitambémdeveter tido necessidadedessainumanacondiçãoimposta. Sejacomofor,todaa suaobraevocatalprocura,e nãosóemtornodo homemcomode nãoimporta o quêouo maissimplesdosobjectos.E quandocon- seguelibertarobjectosou sereseleitosdaaparência comum,devolve-nosimagensmagníficas.Merecida recompensa,sebemqueprevisível. Na origemdabelezaestáunicamenteaferida,sin- gular,diferenteparacadaqual,escondidaouvisível, quetodososhomensguardamdentrodesi,preser- vada,e ondeserefugiamaopretenderemtrocaro mundoporumasolidãotemporáriamasprofunda. Forademiserabilismos.A artedeGiacomettiparece quererrevelaressaferidasecretadosserese dascoi- sas,paraqueelaos ilumine. TivemedoquandobruscamenteapareceuOsíris- o nichocortadoà face,renteà parede- sobluz verde.E foramosmeusolhososprimeirosaaperceber- -se?Não.Antestinhamsidoombroseanuca,esma- gadapor uma mão,ou massa,obrigando-meao mergulhonosmiléniosegípcios,a curvar-memen- talmente,e atéencolher-me,diantedessapequena estátuacomsorrisoeolharseveros.Estavaaliumdeus. 18 o deusdoinexorável.(Claroquemerefiroàestátua de Osírisempé, na criptado Louvre.)Tivemedo porquesemsombrade dúvidatinhaali um deus. Certasestátuasde Giacomettiprovocamem mim emoçõesmuitopróximasdesteterror,e idênticofas- cínio. Mastambémdespertamemmimumcuriososen- timento:são-mefamiliares,cruzam-secomigonarua. Ora elasvêmdo fim dostempos,do princípiode tudo,e nãocessamdevir ou recuarcomsoberana imobilidade.Seosmeusolhostentamaprisioná-Ias, aproximar-se,elas- semfúrianemcóleranemira, apenaspeladistânciaentrenós,queeu aindanão notara,de talmodoreduzidae escassa,a pontode asjulgarali mesmo- afastam-seaperderdevista: desdobra-sesubitamentea distância.Paraondevão? Emboraa suaimagemcontinuevisível,ondeestão elas?(Refiro-mesobretudoàsoitograndesestátuas expostasesteverãoemVeneza.) AceitomaIo queemartesedesignapor inova- dor.Deveráumaobraserentendidapelasgerações futuras?Porquê?Que quereráissodizer?Que elas poderãoutilizá-Ia?Em quê?Nãovejobem.lá vejo melhor- aindaquemuitoobscuramente- toda a obrade artequepretendaatingirosmaisaltos 19 desígniosdeve,compaciênciae uma infinita aplica- çãodesdeinício, recuarmilêniose juntar-se,sepos- sível,à imemorialnoitepovoadapelosmortosqueirão reconhecer-senessaobra. Nunca, nunca,a obrade artese destinaàsnovas gerações.Ela ê oferendaao inúmeropovodosmor- 10S.Que a acolhem.Ou rejeitam.Masos mortosde quefalo nemvivosforam.Ou entãoesqueci-os.Por- queforam-nosuficienteparaqueosesqueçam,já que a vidatevecomofim levá-Iasa cruzarestatranquila margemde ondeaguardam_. ido daqui- um sinal r('conhecíveL Emborapresentes,onde pertencemessasfiguras de Giacomettique eu cito, senãoà morte?Donde voltam,ao mínimo apelodos nossosolhos, direito a nós. I~mconversacom Giacometti: ELJ - É precisocoraçãoforteparateremcasauma (',sl:llUasua. ELE - Porquê? Ilcsito na resposta.A frasevai pô-Ia a rir-se de 111I1Il. 1':l1 - Uma estátuadessasno quarto e o quarto t LIIIsforma-senum templo. Parecealgo desconcertado. I\LE - E achaissobem? El J - Não sei. E você,que acha? Principalmenteosombrose o peito de duasdelas 21 possuema fragilidadede um esqueletoque,sefosse tocado,desfazer-se-ia.A curvado ombro - a arti- culaçãodo braço- é delicada... (comasminhasdes- culpas,mas) é delicadade força.Toco esseombro fechandoos olhos: custadescrevero bem-estardos meus dedos. Pela primeira vez tocavambronze. Depois, algo forte os guia e apazigua. Tem um modo de falar rude, comose escolhesse a dedoa entoaçãoe ostermosmaispróximosda lin- guagemcorrente.Pareceum tanoeiro. ELE - Viu-as em gesso...lembra-sedo gesso? Eu - Sim. ELE - Acha que perdempor ser bronze? Eu - Não. Nada. ELE - E ganhar,ganham? Hesitodenovoproferira frasequemelhorseaplica aosmeus sentlmentos: Eu - Vaivoltara rir-se,mascuriosamenteeu não diriaqueelasganham,massimqueo bronzeganhou. Pelaprimeiravez na vida o bronzeacabade triun- far. As suasmulheressão uma vitória do bronze. Sobreo próprio bronze, creio. ELE - Seriabom se assimfosse. Sorriu.E toda a pele enrugadado rostodelesor- ria. De modo divertido.Riam os olhos, claro,ma~ 22 tambéma testa(todo ele da cor cinzentado estú- dio). Talvezpor simpatiahajaabsorvidoa cordo pó. Riem-lheos dentes- espaçadose igualmentecin- zentos- com o ventoa passaratravés. Observauma das estátuas: ELE - Um bocadobicorne,não? Usafrequentementeestapalavra.Tambémelebas- tantebicorne.Coçaa cabeçacinzenta,desgrenhada. Foi Annette quem lhe cortou o cabelo.Arregaça ascalçascinzentascaídassobreossapatos.Ainda há dois segundosria, mas eis que toca uma estátua: durantemeiominuto estarápor inteirona passagem que une os dedosà massade terra.Já não lhe inte- resso. A propósitodebronze.Num jantardeamigos,con- certezapor espíritodecontradição,alguém- quem terásido? - lhe disse: - Com franqueza,algumavez um cérebronor- malpoderiaviverdentrode umacabeçaassimespal- mada! BemsabiaGiacomettiqueo cérebronãopodeviver dentrode um crâniode bronze,tivesseelaasmedi- dasexactasdo do sr.RenéCoty.E postoquesejauma cabeçaem bronze,e paraqueviva,e vivao bronze, há que... Evidente,não? 23 Giacomettiinsiste:o seuidealseriaa estatuetaféti- cheem cauchuque vendemaosamericanosno átrio do Folies-Bergeres. ELE - Quando vou pela rua fora e distingoao longeumapêgavestida,sóvejonelaumapêga.Assimqueentramosno quartoe elasepõenua ali à minha frente,vejo uma deusa. Eu - Paramim uma mulher em pêlo não passa dumamulherem pêlo. Não me afecta.Sou absolu- tamenteincapazde vernelaqualquerdeusa.Já com assuasestátuasvejo-ascomovocêcostumaveraspêgas em pêlo. ELE - Acha que conseguireproduzi-Iascomoas vejo? Nessatardeno estúdio.Reparoem duastelas- duascabeças- de extraordináriaacuidade,parecem. . mover-se,Vir ao meu encontro,seminterrompero movimentona minha direcção,vindas de não sei dondeao fundo da tela que, incessante,emiteesse rosto acutilante. ELE - Outra vez? Interrogao meu rosto.Depois, fica tranquilo. ELE- Fi-Iasa noitepassada.De memória... E fiz uns desenhos[hesita]... mas não são bons. Quer vê-Ios? Devoterdadoumarespostaesquisita,tantoa per- gunta me surpreendeu.Em quatroanosde encon- tros regulares,é a primeira vez que se propõe 24 •.•..~.;,~t-. mostrar-meas obras.Até aí limitara-sea constatar - um pouco espantado- como observoe o admiro. Abre pois uma pastae tira de lá seisdesenhos, quatro dos quais simplesmentenotáveis.Um dos que menosme tocou representacertopersonagem de pequeno porte, rente ao pé da enormefolha branca. ELE- Não estounadasatisfeito,foi a primeiravez que ousei istO. Talvezele queira dizer: «Dar ênfasea tão vasta superfíciebrancaà custade um minúsculopersona- gem»?Ou então:«Mostrarqueasdimensõesdo per- sonagemresistemà tentativade esmagamentonuma grandesuperfície»?Ou... Fosseo que fosse,a reflexãodele emudeceu-me, sendo ele homem que nunca evita ousar.Aquele pequenopersonagemé uma dassuasvitórias.Que de tão ameaçadorteveGiacomettique vencer? Se pronuncieiatrás«...aosmortos»foi afinal para que essamultidão anónimavejaagoratudo quanto nãopôdeveremvida, agarradaqueestavaaosossos. Poisé precisoumaarte- nãofluida,antespelocon- trário,muito dura - dotadado estranhopoderde penetraros domíniosda morte,capazde seinfiltrar pelasparedesporosasdo reinodassombras.A injus- tiça - e a nossador - seriamdemasiadograndes seum úniconessamultidãofosseimpedidodo con- 26 lactocomalguémentrenós,e bempobreseránosso Iriunfo se apenasnos conduz a uma glória futura. A obrade Giacomettitransmiteao povodosmortos o conhecimentodasolidãodetodososserese detodas as coisas,solidão,nossamais certaglória. Não seabordaumaobrade arte- quemduvida? comoseabordaumapessoa,um servivoou outro knómeno natural. Poema,quadro,estátua,exigem examecom um númerode qualidadespreciso.Mas passemosaosquadros. Nenhumrostovivofacilmenteserevela,e contudo 1>:ISIaum pequenoesforçopara descobrir-lheo sig- Ilifjeado.Penso- arriscoeu -, pensoqueo impor- t:lllteé isolá-Io.Só quandoo meuolharo destacade Illdo emredor,sóquandoo meuolhar(aminhaaten- t.:10) jrnpedeesserostode seconfundir com o resto do mundo evadindo-senuma infinitude de signifi- I :1I,(lt'Scadavezmaisvagas,exterioresa si, ou quando, "ciocontrário,obtenhoa necessáriasolidãopelaqual II 11Ieuolhar o recortado mundo, entãosomenteo \1J',llil'iradodesserosto- pessoa,serou fenómeno :dluirá,condensando-se.Queroeu dizer,o conhe- t 1I11('fllodeum rosto,apretender-seestético,temque 1d111ar a história. Paraanalisarum quadrosãoprecisosmaioresforço ,. IIl11a complexaoperação.Foi realmenteo pintor - , II J o (,SnJ \tor- quempor nósrealizouessaditaope- 1,11.:10.Assim nos é restituídaa solidãodo persona- 27 gemou objectorepresentadose nós, que olhamos, para a compreendermose sermospor ela tocados, devemosterexperiêncianãodacontinuidademassim da descontinuidadedo espaço. Cada objectocria seu espaçoinfinito. Como disse,seolho um quadro,percebo-ona sua absolutasolidãode objectoenquantoquadro.Masisso nãomepreocupa.O queinteressaé o quea teladeve representar.Aquilo que eu pretendodecifrarnessa solidãoé simultaneamentea imagemsobrea tela e o objectorealpor elarepresentado.Tereiprimeiroque tentarisolaro quadrono seusignificadode objecto (tela, moldura, etc.), a fim de subtraí-Ioà imensa famíliadapintura(mesmoqueo devolvamaistarde) e a imagemsobrea tela estabelecerligaçõescom a minha experiênciado espaço,com o meu conheci- mentoda solidãodosobjectos,dosserese dosacon- tecimentos,como acimareferi. Quem nunca ficou maravilhadocom tal solidão nuncaconheceráa belezadapintura.Sedissero con- trário,mente. Cadaestátuaé nitidamentediferente.Conheçoape- nasasestátuasdemulheresparaasquaisAnnetteser- viu de modelo,e os bustosde Diego - cadaqual, umadeusa,e eleum deus-; aquihesito:seperante essasmulherestenhoo sentimentode estarfacea face com deusas- deusas,e não estátuasde deusas-, nuncao bustode Diego consegueguindar-seàquela 28 grandeza,nunca,atéhoje, ele recuou- regressan- (li I depois a uma velocidadeterrível - para a distânciade que falei. Será anteso busto de um \;uerdotedo clerosuperior.Deus,não,Todavia,cada lIova estátuase liga invariavelmenteà mesmafamí- Ii;l altivae sombria.Familiar,muito próxima.Inaces- •..IveI. (;iacometti,queleuestetexto,pergunta-mepor- (/IIC\ a meuver,a diferençadeintensidadeentreas nl:ílUasdasmulherese osbustosdeDiego. HIJ - Talvez...[hesitomuitonaresposta}... talvez .1mulherlhesurjanaturalmentemaisdistante,ape- \.Ir de tudo... ou entãovocêpretendeafastá-la... Involuntariamente,mesmosemdizernada,eusei 1.1secomistoevocoaimagemdaMãe,tidanumlugar ,I p:Jrte? HI.H - Sim,podeserisso. (,'ontinuaa leitura - a mim, o pensamento '/í's:lgrega-se-me-; levantaa cabeça,tiraosóculos 1'·lriÍdos,sujos: Hu; - TalvezporasestátuasdeAnnetteseremde 11'1/)0 inteiro,enquantoDiegoé apenasum busto. hl:í cortado,o queéconvencional.E talconvenção l/lfI/:I-O menosdistante. 1);lrcce-meacertadaa explicação. lil! - Temrazão.Isso«socializa-o». Iloje, ao redigiresteapontamento,estoumenos , IInvictodaquiloquemedisse,porquenãovejobem 29 comoiriaelemodelaraspernas.Oumelhor,o resto do corpo.Ao comporum indivíduoindissolúvel, numaesculturadestascadaórgãooumembroéde tal formaprolongamentodosoutrosqueperdeo nomequelhe édevido.«Este»braçoseriaimpensá- velsemo corpoqueo continuae, emúltimaaná- lise,o significa(sendoo corpoprolongamentodo braço),e afinaldesconheçobraçotãointensamente, tãoexpressamentebraçocomoaquele. Quero crer que estasemelhançase não deveao «modo»do auto!.Poiscadafiguratema mesmaori- gem,nocturnasemdúvida,masbem localizadano mundo. Onde? Há quatroanos,nãomais,no comboio,ia sentado à minhafrenteno compartimentoum velhotemedo- nho.Sujoemanifestamentemau,comoveioaprovar- -se por algumasdas suasreacções.Recusando-me prosseguirumaconversanadaagradável,tenteilermas não conseguiaevitarolhá-Io:o velhoteerafeiíssimo. Os seusolhos,costumadizer-se,cruzaramos meus, já nãorecordosepor instantesou não,e sentio dolo- roso- sim,o dolorososentimentode quequalquer homem valiaexactamente- desculpem,maspre- tendopôr anteso acentoemexaetamente- o mesmo • 30 queoutroqualquer.«Quemquerqueseja,penseieu, podeseramadoapesardafealdade,da tolice,damal- vadez.» Um olhar apenas, demorado ou fugaz, preso ao meu, revelado!.E o mesmo que possibilita o homemser amadoapesarda fealdadee da malva- dez, permiteque atéamemosestas.Sem equívoco: nãosetratavade bondademinha, masde evidência. O olharde Giacomettiviraissohá muito,e no-lo res- titui. Digo o quesinto:julgo queo manifestoparen- (CSCodassuasfigurasestánesseponto preciosoonde () serhumano reaveráquanto tem de mais irredu- lível: a solidão de ser seguramenteigual a tantos outros, Se - e as figurasde Giacomettisãoincorruptas - o acidentefor diluído, que restaafinal? Admirável,o cãoembronzede Giacometti.Ainda na maisbelo quandoa suaestranhamatéria(gesso ('mrdéis,ou estopa)sedesfazia.A curvaturadapata dianteira,semarticulaçãodefinida e contudosensí- vel, é tão bela que por si só define o andarágil do ( ;11), Elebusca,farejando,como focinhorenteaochão. Magro. Esquecia-medo admirávelgato:emgesso,pratica- IIICl1tehorizontal do focinho ao rabo, capazde se 111riItrar pelo buracode um rato. Até essarígida Illllúontalidade não ilude a forma do gato,se en- 1/'SI ';/(/0 . 31 Como eu me espanteide haverum único animal entreas suasfiguras: ELE - Sou eu. Certodia vi-meassimna rua.Um cão. Seo cãofoi escolhidoparadarum toquesolitário de miséria,a verdadeé quepossuitraçosharmonio- sos,a curvada espinhacorrespondeà curvada pata, traçostambémde supremolouvor à solidão. Zonasecreta,solidãoondeserefugiamosseres- e ascoisas-, é ela que dá belezaà rua: por exem- plo, se for sentadonum autocarrobastaolhar pela janela.A rua cedeo que o autocarrodevassa.Sigo demasiadodepressaparatertempode reterrostosou gestos,a velocidadeexigedo meuolhar igualveloci- dade, e por issonem um rosto,um corpo,ou ati- tudesequer,me;esperam:tudo estáali a nu. Registo: um homem enorme,curvado,muito magro,peito escavado,óculos,o narizcomprido;umadona-de-casa gordacaminhalentamente,pesada,triste;um velho semgraça,umaárvoresolitária,ao lado outraárvore solitária,e outra...; um empregado,outro,umamul- tidãode empregados,a cidadeinteiracheiadeempre- gadoscurvados,todosjuntosnum pormenorque os meusolhosregistam:bocascrispadas,ombroscaídos... umaa uma,talvezdevidoà velocidadedosmeusolhos e do veículo,as suasatitudesficam rabiscadastão depressa,tãorápido surpreendidasem seuarabesco, que cadaenteé-mereveladono que tem de novoe 34 ínsubstituível- invariavelmenteumaferida- gra- ,:asà solidãoondeessaferidaoscolocae elesmalreco- nhecem,sebemquetodoo seuseraí aflua.Atravesso assimumacidadeesboçadapor Rembrandt,comcada qual e cadacoisafixosnuma verdadeque dispensa belezaplástica.A cidade- feitade solidão- seria admirávelde vida não fôra o meu autocarrocruzar- -secomum par de namoradosa atravessarum largo: agarradospela cintura, a raparigaengendroueste gestoencantador:metere tirar a mãozitano bolso Iraseirodo blue-jean do rapaz, gestograciosode afectoque banalizauma página inteira de obras- -pnmas. Solidão,comoeu a entendo,não designaestatuto demisériamassecretasoberania,nemprofundainco- municabilidademas conhecimentomais ou menos obscurode uma singularidadeintocável. É inevitáveltocaras estátuas:afastoos olhos e a minhamãoprosseguesozinhaà descoberta:pescoço, cabeça,nuca,ombros... Confluemsensaçõesnaponta dosdedos.Nenhumaserepete,demodoquea mão Il(.:rcorreessapaisagemvariadae viva. FREDERICO II (DEPOIS DE OUVIR, CREIO EU, «A "LAUTA MÁGICA»), DIRIGINDO-SE A MOZART - Que Ilutas!que notas! MOZART - Senhor,não há uma única a mais. Os meus dedosrepetemo percursodos de Gia- 35 cometti,masenquantoosdeleprocuravamapoiono gessohúmido ou no barro,os meusretomam-lheos passoscomsegurança.E - afinal!- a mãovive,a mão vê. Pensoque essabeleza- a dasesculturasde Gia- cometti- secumpreno ininterruptoe incessantevai- vémda distânciamaislongínquaparaa maispróxima familiaridade:vaivémimparável,leva-nosa dizerque elasestãoem movimento. Vamosbeberum copo.Ele toma café.Párapara melhorcaptara belezapenetranteda rua de Alésia, belezasuave,por causadasacáciascujafolhagempon- tiaguda,acerada,à transparênciado sol, maisama- relo que verde,parecederramarsobre a rua uma poalha doirada. ELE - Que bonito, que bonito... Recomeçaa andar,coxeando.Conta-mecomose sentiufeliz aosaberquea operação- depoisdo aci- dente- o deixariacoxo.Vou arriscaro seguinte:as estátuasdeledãoa sensaçãode no limite serefugia- rem não sei em que secretaenfermidadeprotectora da solidão. 36 Giacomettie eu - e concertezaalgunsparisien- ses- sabemosqueexisteem Paris,e aquipertence, umaentidadedegrandeelegância,fina, altiva,apru- mada, singular e cinzenta- de um cinza muito suave:é a rua Oberkampfque, desenvolta,muda de nomeum poucomaisacimatransformando-sena rua deMénilmontant.Belacomoum 2Ímbório,ergue-se aoscéus.Se optarmospor percorrê-Iade automóvel a partir da avenidaVoltaire,à medidaque subimos apresenta-sede modocurioso:ascasas,emvezde se afastarem,aproximam-se,franqueandofachadase empenasmuito simples,de grandevulgaridade,mas tingidascomcertaespéciede bonomiafamiliare dis- tante,verdadeiramentetransfiguradaspelapersona- lidadeda rua.Há poucotempopuseramlá umasérie de estúpidosdiscosazuisescuroscom barrasverme- lhasatravessadas,a indicarque estáinterditoo esta- cionamento.Estragaram-na?Ainda ficoumaisbonita. Porquenada, nada!a poderádesfigurar. Que aconteceupois? Onde foi ela arranjaressa nobredoçura?Como pode serela simultaneamente suavee distante,e por que nos impõe assimtanto respeito?Que Giacomettime perdoe,masessarua quaseerectaé nem maisnem menosuma dassuas melhoresestátuas,inquieta,palpitante,serena. E ainda não chegámosaospés... Cabe aqui uma palavra:salvohomensem anda- mento,todasas estátuasde Giacomettitêm os pés numblocoúnicoinclinado,volumoso,maisparecendo um pedestal.O corpoque daí brotasustentalá no altoa cabeçaminúscula.Essaenormemassade gesso 37 ou bronze - em proporçãocom a cabeça- po- derialevar-nosa imaginarospéscarregadosde toda a materialidadeliberta pela cabeça... mas não; há uma ininterruptatrocaentreestespés maciçose a cabeça.Nunca as mulheresse erguemda pesada lama: elasdeslizarãopela margemsombriaao cre- púsculo. As estátuasdir-se-ia pertencerema uma idade defunta,descobertasdepoisda noitee do tempo- que as trabalharamcom inteligência- ashaverem corroídodando-Iheso ar docee duro da eternidade quepassa.Ou entãosaíramdo forno,rezíduosdeter- rível cozedura:extintaa labareda,deveserissoque resta. E que labareda! Conta-meGiacomettique teveoutroraa ideia de esculpiruma estátuae enterrá-Ia.(Assalta-melogo o espírito:«Quea terralhe sejaleve.»)Paraa nãodes- cobrirem,ou só muito mais tarde,quandoelepró- prio e a lembrançado seu nome houvessemdesa- parecido. Enterrá-Ia,legando-aaosmortos? Àcercada solidãodos objectos: ELE - Um dia, no quarto,ao olhar uma toalha em cima da cadeirative vivamentea impressãode 38 que,alémde estaremsós,osobjectostinhamum peso - melhor,umaausênciade peso- queosimpedia de assentarsobreos outros.A toalha estavasó, de tal modo só que eu tivea sensaçãode poderpegar na cadeirasema toalhase mexerdo sítio. Tinha o seulugarpróprio,o seupeso,e atéum silênciopró- prio. O mundo era leve,leve... Tivesseele que oferecerum presentea alguém amadoou da sua estima,decertoenviaria,convicto de agradar,uma aparade bétula, um caracolde madeiraapanhadono marceneiro. As telas.Visto dentrodo estúdio(muito escuro; Giacomettirespeitatantoa matériaque sezangaria seAnnettedestruísseo pó dosvidrosdajanela),onde tenhopoucorecuo,o retratocomeçapor serum enca- valgamentode linhascurvas,vírgulas,pequenoscír- culos atravessadospor uma secante,sobretudoem rosa,cinzentoe preto - à misturacom um estra- nho verde-, encavalgamentofeito commuitadeli- cadeza,ondesemdúvidaseanula.Masdeu-mepara trazero quadroparao pátio:o resultadofoi assusta- dor.À medidaquemeafastava(abrimesmoa porta do pátio, saíparaa rua, recuandouns vintea vinte cincometros)o rostorevelava-seemtodososseuscon- tornos,impunha-se- conformefenómenojá descrito 39 e comumnasfigurasde Giacometti-, vinhaaomeu encontro,fundia-secomigo,reprecipitando-sena tela de onde partira,com uma presença,uma autentici- dade e um relevoterríveis. Disse«contornos»,mastrata-sedeoutracoisa.Creio que elenuncasepreocupounemcomos tons,nem sombras,nemvaloresconvencionais.Porqueconsegue essaredelinearapenascomdesenhosdentrodo dese- nho. O que não entendoé comosemnuncaprocu- raro relevomediantesombrasou cores,nempormeio de qualquerconvençãopictórica,obtém ele o mais extraordináriodos relevos.«Relevo»?Observando melhora tela,essapalavranãoseajusta.Diria antes, uma duraçãoindestrutívelobtida pela figura, que deveterum pesomolecularmuitíssimogrande.Não vivendoà maneiradecertasfigurasquedizemosvivas por teremsido apanhadasnum instanteprecisodo seumovimento,ou por reconhecermosnelasalgum acidenteespecíficoda suahistória,pelo contrário:os rostospintadosporGiacomettitalveztenhamreunido tamanhavida que não lhes restequalquer outra, nenhum gesto,e (não que hajamacabadode mor- rer) conhecemenfim a morte,tal o excessode vida acumulado.A vintemetrosde distânciacadaretrato é umapequenamassadevida,rijacomopedra,cheia comoum ovo,capazde nutrir semesforçomaiscem retratos. 40 Ele pinta assim:recusamarcardiferençasde«nível» - ou de plano - entreas váriaspartesdo rosto. A mesmalinha, ou conjuntode linhas,podeabran- ger o olho, a facee a sobrancelha.Nunca os olhos sãoazuis,nem as facesrosadas,nem a sobrancelha negrae curva:uma linha contínuaformao olho, a facee a sobrancelha.Não há sombrado nariz sobre o rosto,ou antes,a existir,essasombradeveserenten- dida comoparteintegrantedo mesmo,comidênti- cos traços,curvas,todos igualmenteválidos. No meio de garrafasvelhascom terebentina,a paletados últimosdias:uma poçade lamaem cin- zentosvários. Essacapacidadede isolarobjectose aí fazercon- fluir as suasespecíficase únicassignificações,só é possívelcom a abolição histórica do observador. Requerexcepcionalesforçoesquecera história,sem nostornarmosnumaespéciede eternopresente,mas antesvertiginosae ininterruptacorridado passado parao futuro, oscilaçãode extremoa extremo,sem repouso. Seolho o roupeirono intuito de saberfinalmente o queeleé, eliminotudoo queelenãoé.E o esforço despendidofaz de mim um sercurioso:tal ser, tal observador,deixade estarpresente,e deixaatéde ser 41 observadorpresente:não cessandode voltarao pas- sadoe a um futuro indefinido.Ausenta-separaque permaneçao roupeiro,e paraque entresi e o rou- peiro desapareçamtodosos laçosafectivosou utili- tários. (Setembrode 57) Dei com a mais bela estátua de Giacometti- há três anos - sob a mesa,ao baixar-mepara apanharuma beata.Cheia de pó, escondida,o pé de alguémpoderiajá tê-Iaquebrado inadvertidamente... ELE - Se ela tiver força,acabarápor mostrar-se, mesmoque eu a esconda. ELE - Bem bonito *!... bem bonito!... Ainda que lhe custe,mantevelevementeo sota- lue dosGrisons... Bem bonito!- olhosarregalados, sorrisoamável;referia-seà poeiraque cobreasgar- rafas de terebentinaempilhadasna mesa do es- túdio. * No originaljoli trazumagrafia,o circunflexonoi, indicadorado desviofonético.Intraduzívelparaportuguês. 42 T í Si ~ liIltt r l' I1 I I ~i ~! 1"j T o chãodo quartodelee de Annette estácoberto comtijoleiravermelha,lindíssima.Outrorafôra em terrabatida.Choviálá dentro.Com amortena alma, acaboupor resignar-seà tijoleira. Muito bonita, e barata.Confidenciou-mequenuncairia quereroutra casasenãoaqueleestúdioeo quarto.Sepudesseainda seriammaismodestos. Ao almoçar um dia com Sartre, repeti-lhe a minha fórmula sobreasestátuas:«Ganhouo bron- ze.» «É o maior prazerque poderiadar-lhe»,diz Sar- tre.«O sonhodeleseriasumir-secompletamenteatrás da obra. Ficariafelicíssimose o bronzese manifes- tassepor si próprio.» Habitualmenteuso um truque quandopretendo domesticarumaobradearte:finjo pôr-meemestado de ingenuidade,falo àcercadela - falo com ela também, em tom coloquial, um pouco beatífico até. Começopor aproximar-me.Estou a referir-me a obrasnobres- esforço-mepor sermaisingénuo e inábil que nunca. Tentoassimlibertar-meda ti- midez. «Olhem que engraçado... é vermelho vermelho aqui... ali azul... parecebarro a pintura » A obra perde então solenidade.Mediante este contactofamiliarentrodevagarinhono seusegredo... Comumaobrade Giacometti,nadafeito.Encontram- -sedesdelogo demasiadolonge.Impossívelsimular- 45 uma parvoícegentil. Severamente,sou obrigadoa afastar-meparao ponto solitáriode onde ela deve serobservada. Os desenhos.Só desenhacomaparoou lápisduro - por vezeso papel tem buracos,gopes. As curvas sãofirmes,semfraquezanemdoçura.E comoseuma linha fosseum homem:trata-ade igual para igual. As linhasquebradassãopontiagudasdandoaodese- nho - devidoà matériagranítica,e paradoxalmente baça,do lápis- aspectocintilante.Diamantes.Dia- mantes,muitomaispelomodocomoutilizaosbran- cos.Naspaisagens,por exemplo:todaa páginaforma um diamantecom uma das facesvisível,graçasàs linhasquebradase subtis,enquantoa outrafaceonde a luz incide - e de onde mais precisamenteserá reflectida- nadapermiteversenãobranco.Istopro- duz jóias extraordinárias- comonas aguarelasde Cézanne- por causados brancos;onde o desenho invisível está subentendidotem-sea sensaçãodo espaçocomtalforçaqueesteespaçosurgequasemen- surável.(Pensavaaqui sobretudonos interiorescom candeeiros,e naspalmeiras,masdepoiselefeza série dosquatrodesenhosda mesasobuma abóbadaque deitama perderos outros.)Jóias maravilhosamente cinzeladas.Brarú:o- a páginabranca- cinzelado por Giacometti. 46 Àcercados quatro grandesdesenhosda mesa. Em certastelas(Monet, Bonnard...) o ar circula. Nos desenhosa qu~merefiro,comodizer?... o espaço circula.Thmbéma luz. Sema mínima oposiçãode valoresconvencional- sombra/luz- a luz irradia e uns poucostraçosesculpem-na. Os aborrecimentosde Giacometticom uma cara japonesa.O professorjaponêsYanamara,a quempin- tavao retrato,tevede atrasardois mesesa partida porqueGiacomettinuncaficavasatisfeitocomo qua- dro e recomeçava-otodososdias.O professorregres- souaoJapão semretrato.Esserosto,nadaanguloso masgravee doce,deviadesafiaro seugénio.Os qua- drosquesobreviveramsãoadmiráveisde intensidade: algumaslinhascinzentas,quasebrancas,sobrefundo cinzentoquasepreto.E o mesmoacumularde vida, já referido.Semmargemparamaisum grão.Extremo ondea vidaseassemelhaà matériainanimada.Caras sopradas. Pouso.Desenhacomprecisão- semcuidadoartís- tico - a chaminédo fogãoatrásde mim. Sabeque tem de ser exacto,fiel à realidadedos objectos. ELE - Devemospintar exactissimamenteo que temosà nossafrente. Digo que sim. Depois, um silêncio: ELE - Além de serprecisopintar o quadro. 47 Lamentao desaparecimentodosbordéis.Pensoque tiveram- e a recordaçãopersiste- tanta impor- tânciana suavida que há que falardisso.Julgo que osfrequentavaquasecomofiel. Ia lá ajoelharperante divindadesimplacáveise longínquas.Entreumaputa nua e ele talvezfossea distânciaa que as suases- tátuasnos mantêm.Cada estátuapareceregressara - ou vir de - uma noite tão distantee espessa queseconfundecoma morte:do mesmomododeve cada puta mergulhar na noite misteriosada sua própria soberania.E ele, da margem,a vê-Ia la- tejar. Arriscoainda:não é nos bordéisque a mulherse orgulhada feridaque a retémpresaà solidão?e não a despojam,osmesmosbordéis,de atributosutilitá- rios? garantindo-lhecertapureza. Muitas das suas grandesestátuassão doiradas. Duranteo períodode luta contrao rostode Yanai- hara(suponha-seum rostoque seoferecefurtando- -sea semelhançascoma tela,comosea todoo custo defendesseumaidentidadeúnica)presencieio como- venteespectáculodo homem que jamais se enga- navamasa todo o instanteseperdia.Mergulhando progressivamenteem regiõesimpossíveise semsaí- da. Hoje, já ultrapassoutudo aquilo. A sua obra, de novo assombrada,deslumbra.(Os quatro dese- nhos da mesasãoimediatamenteposterioresa esta época.) 48 CONTA-MESARTRE- Estivecom ele na alturado japonêse a coisanão ia nada bem. Eu - Isso diz eresempre.Nunca estásatisfeito. SARTRE- Nessaalturasentia-severdadeiramente desesperado. A propósitodos desenhosescrevi:«Objectosinfi- nitamentepreciosos...» Quereriatambémreferircomo osbrancosdãoàpáginaum valororiental- ou marca defogo-, sendoostraçosusadossemqualqueratri- buto,masunicamenteparaconferirsignificadoa esse branco.Só estãoalia dar forma e consistênciaao branco.Repare-se:não é o traçoque tem elegância, massim o espaçobrancopor ele contido.Não é o traçoque é pleno, sim o branco. E porquê então? Mais do que a palmeiraou o candeeiro- e o espaçoprecisoondeseinscrevem- serem-nosresti- tuídos,talvezGiacomettiprocuretornarrealidadesen- sível o que antes era apenasausência- ou se quiserem,uniformidadeindeterminada-, istoé, o branco,e comoutraprofundidade,a folhadepapel. Como se uma vezmaisfossemissãosuanobilitar a folha brancaque, semo traçodele, não teria exis- tência. Estareienganado?Provavelmente. 49 E contudo,malafixadiantedesi a folhabranca, ficocoma impressãode elesentira mesmareserva e o mesmorespeitofaceaomistérioda folhae ao objectoa desenharaí. Oáfiz verqueosdesenhosevocamumadisposi- çãotipográfica:«Lancede dados.») Qualquerdasobrasdeesculturaoudesenhopode- ria intitular-se«o objectoinvisível». As estátuasnãosó caminhamaovossoencontro comoseestivessemmuitolonge,aofundo,numhori- zonteextremamenteafastado,mastambém,e onde querquevossituaisrelativamenteaelas,fazemcom queaoolhá-Iasestejaissemprenumplanoinferior. Estãolá longeno horizonte,sobreumaelevação,e vósno sopé.E vêmter convosco,sequiosasdesse encontroe devosultrapassarem. De novoasmulheres,agoraasdebronze(geral- mentedoiradoescurecido):o espaçovibraà volta delas.Nadapermanecequieto.Talvezporquecada ângulo(moldadona argilapelopolegarde Giaco- metti),cadacurva,bossa,cristaoupontaquebrada dometaltambémnãoestejamemrepouso.Decada umcontinuaa emanara sensibilidadequeoscriou. 50 Nenhumaponta,nenhumaarestaquecorteou ras- gueo espaço,nadaestámorto. o dorsodestasmulhereséconcertezamaishumano queo própriorosto.A nuca,osombros,a zonados rins,asnádegas,parecemmoldadosmais«amorosa- mente»quea cara.Vistoa trêsquartosdevesero vaivémdamulherà deusao maisperturbante.Emo- çãoporvezesinsuportável. Nuncaconseguiriaevitaro regressoaestepovode sentinelasdoiradas- pelapintura- que,atentas, imóveis,velam. Comparativamente,asestátuasdeRodinouMail- 101 mostram-seprestesa arrotare ir dormir! Asestátuas(asmulheres)deGiacomettivelamum morto. Filiforme,o homemcaminha.Como pédoirado. Nãopararánunca.Caminhadesempoeiradosobrea terra,querodizer,sobreumaesfera. QuandosesoubequeGiacomettiestavaa pintar o meuretrato(tenhorostolargoe redondo)dis- 51 seram-me:«Ele vai fazer-lhe uma cabeçacomo a lâmina de uma faca.»O bustoem barroaindanão foi acabado,masjulgo saberpor queutilizou elenos váriosquadroslinhasque parecemafastar-sea partir da linha médiado rosto - nariz, boca,queixo- direito às orelhase, tanto quantopossível,à nuca. Pensoque um rostooferecetodaa forçado seusig- nificado quandoestáde frente,e tudo devenascer destecentroe ir alimentar,fortificaro queseencon- tra atrás,escondido.Sinto-meembaraçadoao dizer tão mal o seguinte:tenho a impressãoque o pintor empurraparatrás(atrásda tela)o significadodo rosto (domesmomodoquepuxamoso cabeloparatrásdas orelhas). Os bustosde Diegopodemservistosde qualquer dos lados:a trêsquartos,de perfil, de costas,... mas devemservistosde frente.O significadodo rosto- aprofundaparecença- emvezdeseacumularsobre a face,escapa,mergulhano infinito,num lugarines- perado,atrásdo busto. (Claro que tento determinarsobretudoemoções, descrevê-Ias,e nao explicara técnicado artista.) Uma afirmaçãode Giacometti constantemente repetida: - É precisovalorizar... 54 Julgo quenemumaúnicavezna vida eleencarou os seresou ascoisascomolhosde desprezo.Tudo se lhe deparana mais'preciosasolidão. ELE- Nunca conseguireipôr num retratoa força toda duma cabeça.Só o facto de viverexigedesde logo tal vontadee tal energia... Diante dessasestátuas,outro sentimento:todas representampessoaslindíssimas,e apesardissoé como se a tristezae a solidãodelasfossemcomparáveisà tristezae solidãode um homemdisformeque,subi- tamentenu, visseexpostaa deformidade,aomesmo tempooferecidaao mundo paraassinalarsolidãoe glória suas.Inalteráveis. Alguns personagensdeJouhandeautêmestacrua majestade:PrudenceHautechaume. Alegriademeusdedosbastamenteconhecida,sem- prerenovadaaopassá-Ios- olhosfechados- sobre uma estátua. _ Qualquer estátuaem bronze,digo paramim mesmo,devedecertodaraosdedosidênticafelicidade. Tentoretomara experiênciaem casade uns ami- gos que possuemduaspequenascópiasexactasde estátuasde Donatello: e o bronze não responde, mudo, morto. Giacometti,o escultorpara cegos. 55 Já tinhasentidohádezanoso mesmoprazer,nas mãos,nosdedose naspalmas- aotactearosseus lampadários.SãodefactoasmãosdeGiacometti,e nãoosolhos,quefabricamosobjectos,asfiguras. Ele nãoossonha,sente-os. Enamora-sedosmodelos.Adorouo japonês. O zelonotratamentodapáginamostrabemo sen- timentoacimaassinalado:tornarnobresa folhaou a tela. No café.EnquantoGiacomettilê,umárabemuito miserável,quasecego,escandalizatodaa genteao insultarde panascasestee aquele... Um cliente ofendidoolha-ofixamente,comódio,a rangeros dentescomosemascassea raiva.O árabe,magro, algo imbecil,chocacontraumamuralhainvisível massólida.Não compreendenadadestemundo queo temcego,débile idiota,injuria-oa tortoe a direito. - Senãotivessesbengala!,gritaaoárabeo fran- cêsapodadode panasca... Secretamente,achoadmirávelqueumabengala brancapossatornaro cegomaissagradoqueumrei, maisfortequeum atléticomagarefe. Ofereço-lheumcigarro.Apanha-oaoacasocomos dedos.Baixoe magro,sujo,quasebêbado,mastiga 56 aspalavras,baba-se.A barbaralapor fazer.Ninguém conseguiriaimaginar-lhepernasdentrodascalças.Mal setemde pé. Traz'aliançano dedo.Falocomeleem árabe: - És casado? Giacomettiprosseguea leitura, nem me atrevo interrompê-lo.A minha atitude com o árabedeve chateá-lo. - Não... não tenho mulher. Ao mesmotempo, imita com a mão o gestode masturbar-se. - Não... mulhernão... Tenhoa mão... sóa mão... e mais nada, nada, só a toalha... ou os lençóis... Os olhosdelenãopáramde mexer,brancos,des- lavadose sem expressão. - ... e sereipunido... o bomdeusvaicastigar-me... sabeslá o que tenho feito... Giacomettisuspendeua leitura, tirou os óculos partidos,pô-losno bolso,e saímos.Ainda quis tocar no incidente,mas que iria ele dizer, ou eu? Sabe tão bem como eu que esse miserávelconserva, sustenta- comraivae fúria - o pontoqueo torna igual a toda a gentee maispreciosoque o restodo mundo: e isso subsisteao ensimesmar-se,afastan- do-se quanto possível,como o mar abandonaas margens. Citei esteepisódioporquejulgo queasestátuasde Giacomettiseretiraram- abandonandoasmargens - parao tal lugarsecreto,imprecisoe indescritível, quefazo homem,aorefugiar-seaí, maispreciosoque o restodo mundo. 59 Muito antesdisto contara-meGiacomettios seus amorespor uma velhavagabunda,divertidíssimae esfarrapada,provavelmenteporca, de cabeçaquase carecae cheiade quistossalientesque ele podia ver quando ela o entretinha. ELE - Gostavabem dela,hãoSedeixavade apa- recerdois ou trêsdias, lá ia eu à rua a versea via... Valia mais que muita belezajunta. Eu - Devia ter casadocom ela e apresentá-Ia como Sr.aGiacometti. Olha-me, sorri levemente: ELE - Acha que sim?Se tivessefeito issoeraum bom tanso,não? EU - Pois. Deveexistirum eloentreessasfigurasseverase soli- táriase o interessede Giacomettipelasputas.Gra- çasa deusnemtudo é explicávele eunãovejomuito claramentea ligação, mas pressinto-a.Um dia disse-me: - O quemeagradanaspêgasé nãoservirempara nada. Estãoali. E é tudo. Não acredito- talvezme engane- queelehaja pintado uma única. Se o tivessefeito colocar-se-ia frentea um sera cujasolidãosejuntououtra,oriunda do desespero,ou do vazio. 60 T Pésestranhos,ou pedestais!Volto à mesma.Tanto quantotransparece.aqui (à primeiravista,em todo o caso),a umaexigênciadasleisdaestatuária(conhe- cimentoe restituiçãodo espaço)respondeGiacometti - que eleme perdoe!- coma observânciade um íntimocultosegundoo qualdaráà estátuabaseauto- ritária,terrena,feudal.O efeitodestabaseéparanós mágico... (Poderãodizerquetodaa figuraé mágica, sim, masa inquietação,o encantamentoqueadvêm dessefabulosopé boto não sãodo calibredo resto. Julgo sinceramentehaveraqui uma rupturano tra- balhode oficinade Giacometti:admirávelemambos ossentidos,sebemquecontraditório.Com a cabeça, osombros,osbraçose a bacia,ilumina-nos.Comos pés enfeitiça-nos.) SeGiacomettipudessereduzir-sea pó,poeira,seria bem feliz! - E as «pêgas»? Dificilmente conseguea poeira conquistar ou obterfavoresdo coraçãodas«pêgas».Talvezse lhes aninhassenos porosda pele tornando-asum pouco sUJas. Visto que Giacomettime dá a escolher- depois deumahesitaçãoapenassolúvelcomamortede um denósdois- decido-mepelaminhacabeçapequena 61 (aqui um parêntesis:eramuito pequena,de facto). Sozinhana tela,nãomediamaisde setecentímetros de alturapor três e meio de largo,tinha poréma força,o pesoe as dimensõesda minha autêntica cabeça.Ao sairdo estúdiocomo quadroe ao olhá- -10 senti certomal-estar,porque estouigualmente dentroe forada tela- e decido-mepor essacabeci- nha(cheiadevida,pesadacomoumabaladechumbo durantea trajectória). ELE - Bom, ofereço-lho.[Olhou para mim.] A sério.É seu.[Olhouo quadroe repetiuenérgicocomo searrancasseumaunha:]É parasi.Podelevá-lo...mais tarde... Faltaacrescentaraí por cimaum bocadode tela. Ao vê-loagorade novo,realmenteimpunha-seessa correcção,maispelaprópriatela,quea cabeçaencurta, do que por estaúltima, assimplenamenterepre- sentada. Estousentado,muito direito, imóvel,rígido (me- xa-meeu e sou logo metido na ordem, silenciado e quieto), num banco de cozinha nada confortá- vel. ELE (COMOLHOSDE ESPANTO)- Como vocêé belo! Dá duasou trêspinceladasnatelae,aoqueparece, não pára de trespassar-mecom os olhos. Depois murmurade si parasi: «Comoé belo!»E acrescenta 62 umaconclusãoqueo espantaaindamais:«Afinal comotodaa gente,hã! Nem maisnemmenos.» ELE - Quandoandoporaí nuncapensono tra- balho. Talvezsejaverdade,maslogoqueentrano estú- dio,trabalha.De formacuriosa,aliás.Ficasimulta- neamentetensocoma execuçãoda estátua- isto é:foradaqui,foradoalcance- epresente.Sempre a esculpir. Comodealgumtempoaestaparteasestátuassão muitograndes,de pé diantedelas,os seusdedos sobemedescemsobrea argilacastanhacomodedos dejardineiroa podarouenxertarumaroseirabrava. Vibrandoao longoda estátua.E todo o estúdio vibrae vive.Sensaçãocuriosa,bastaestarele ali, semlhestocar,paraqueasestátuasanteriores,já acabadas,sealteremetransformemsóporqueeletra- balhanumadassuasirmãs.Aliás,o estúdio,norés- -do-chão,vaidesabardeummomentoparao outro. Todoemmadeiracarunchosae poeiracinzenta;as estátuasde barro,comestopa,cordéisou bocados de arameà mostra,astelascinzentas,desprovidas da tranquilidadeque tinhamna loja, tudo sujo e amontoado,precário,prestea desfazer-se,tudo flutuaetendeparaadissolução:poisbem,tudoisto estácomoquesoldadonumrealabsoluto.Sóaodei- xaro estúdio,já narua,meaperceboquenadaera verdadeiro.Possodizer?- Naqueleestúdiomorre 65 lentamenteum homem,consumindo-se,sobosnos- sosolhos metamorfoseia-seem deusas. Giacomettinão trabalhaparaos contemporâneos nemparaasgeraçõesfuturas:eleesculpeasestátuas que arrebatamenfim os mortos. Tê-Io-eidito?Cadaobjectodesenhadoou pintado por Giacomettipropõe-nos,dirige-noso maisfrater- nal e amigávelpensamento.Nunca ele é desconcer- tante ou monstruoso!Pelo contrário, traz-nos de algurescertapaz e amizadeapaziguadoras.E seestas nos inquietam,é por seremextremamentepuras e raras.Concordarcomobjectosassim(maçã,garrafa, candeeiro,mesa,palmeira)exigea recusade todo e qualquercompromisso. Registocomocertaamizadeirradiadosobjectose elesnosdirigemum pensamentoamigável...Seráexa- gero.De Vermeertalvezpudéssemosdizer isso.Gia- comettié outracoisa:nãopor eleser«maishumano» valorabusivamentegastopelohomem- nosemo- ( iona ou apaziguao objectopintadopor Giacometti, 11('111 pelo melhor,maissuavee sensívelda presença hUlIIanao ter moldado,massim por ser«oobjecto» 67 emtodaa suaingênuafrescuradeobjecto.Ele,e nada mais. Ele, numa solidãototal. Não me expliqueibem,poisnão?Vejamos:penso queo olho,e a seguiro lápis,deGiacometti,aoabor- daremosobjectosdespojam-seda mínimapremedi- taçãoservil. A pretextode nobilitar - ou aviltar, conformea moda - Giacomettirecusadepositar sobreo objectoa mais levetinta - delicada,cruel ou tensa- humana. Peranteum candeeiro,diz: «É um candeeiro,ê O candeeiro.»E basta. Estarápidaconstataçãoilumina o pintor. O can- deeiro. No papel, irá existir com ingênua nudez. Que respeitopelosobjectos.Cadaum tembeleza própria porque ê «único»,possui o insubstituível. Mas não se tratade artesocial,a artede Giaco- metti,sópor eleestabelecerlaçossociaisentreobjectos - o homeme assuassecreções-, seráantesuma artede vagabundossuperiores,a talpontopurosque apenaso reconhecimentoda solidãode cadasere de cadaobjectoosuniria. «Estousó,parecedizer-noso objecto,cativodeumanecessidadecontraa qualnada podeis. Se não fosseo que sou, seriaindestrutJ:vel. Sendoo que sou, e sem reservas,a minha solidão reconhecea vossa.» 68