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----------- -----1 D859 Drummond Revisitado / Organizado por Reynaldo Darnazio. São Paulo: Unimarco Editora, 2002. 152 p. Bibliografia IISBN 85-86022-41-1 1. Literatura brasileira L Título CDD 869.9 _______ . J J~IH"~I··;Ji S;'tOMRICO~ :'iYJ~' UNIVERSIDADE SÃD MARCOS CHANCELER:Olavo Drummond REITOR: Ernani Bicudo de Paula UNIMARCO EDITORA PRESIDENTE:Luciane de Paula EDITOR: Reynaldo Damazio EDITOR-ASSISTENTE:Luiz Paulo Rouanet PROJETOGRÁFICOE OIAGRAMAÇÃO: Regina Kashihara CONSELHOEDITORIAL: Álvaro Cardoso Gomes, Carlos Felipe Moisés, Fabio Magalhães, Fernando Novais, IsmaiL Xavier, Marcelo Perine, Paulo Roberto de Almeida, Sérgio Paulo Rouanet AV. NAZARÉ. 900. IPIRANGA .04262-100. SÃO PAULO SP TEL: (11) 3471-5700 R. 5777· FAX: (11) 6163-7345 E-MAIL: unimarco@smarcos.br SITE: www.smarcos.br/editora/editora.htrn IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Palas Athena • TEL: (11) 3209-6288 ISBN: 85-86022-41-1 ©UNIMARCOEDITORA2002 \ .\,Iil,r;[ 1";\':iCl ti Sumário I. Apresentação. Carlos Felipe Moisés , 5 Notas à Margem da Leitura de Drummond • Tarso de Melo ; 9 Melancolia "Gauche" na Vida· Sérgio Alcides l 29 Drummond e a Poética da Interrupção. Eduardo Sterzi ! 49 . . 191Coisas Fora do Tempo: a Poética do Resíduo- Jerônimo Telxelra , Poesia e Humor- Ivone Daré Rabello ! 107 Espaço e Memória em Boitempo • Chantal Castelli 1123 Urna pedra no meio do caminho ou apenas um rastro, não importa. a Cronos. Seu material, como o amor, "é triste como é vário, / e sendo vário é um SÓ"79. A brisa leva e traz o canto, mas fica o seu resíduo de significações. '~º-i...n uietante estranham_~2!,º-d.9s objeI().s_mai§Jamilia- res'~,.es(;reve Agamben, "é o reç~_~le o mEal~<:ól.i~c:pag~ às 2..~!.ências ue custodiam o inacessíy.el"80. Para o fi19sot~it.êli- a~o, o afã do _t~mper~ment~_saturninE_é._~~e~r ~~a~~çar () ir:apr~~p.~ível" -_con"!.~.:dormag~J~sgatar ..osgntªto ~0l;_Ul11 "obj~o .perdi49" imagLnário ejg~~liz'!.c!.2:....~~1..l!l-ªJ2.<:~~ctiya (i~~l9.i.a.l1~,-~.~_!!lO~g.acomo a bi!~~egra f~~j'.l:ye..r9a o ~nico modo ~c:.apropriação. Mas, ara CJ.uemjá gastou ~s retinas·-;ão fatig~d.as,.'<:..Eej~iti'-<::omceticismo ~ ~~ ci-;-;n;is iluminador ::"aceêsp"_"ql}epoder t'<:l!!..2..."iDac~ssível"?.Ef!1 pr~:;-mo~~-=~o ~n~p_reensíyelé_~p~nas o vividoLque foge'~~-sso·d~ lobo" (~~i~ã~]~i~a Ae_~i~d~~i~.~~~~l:J~~~~~::~;:;~'p~~~~i~~·;i~). So~revé~_e~tão.2.. aradoxo: "Ganhei (J~erdi)meu dia "81. A perda. ue reiter~ ..~ma .poSê.eimaginár~- é ; da ---;(,-~~~ riªn_ci~_c:.~~~~aráter tra~~~~ÚC?...c:.i~g~i_~~!l.~bi!jz~i~~~~·· Ihummond e a Poética da Interrupção I \ Eduardo Sterzi 1 Sérgio Alcides é poeta, autor de O ar das cidades (São Paulo: Nankin, 2000) e Nada a ver com a Lua (Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996). Não pretendo ser original ao observar que um mesmo esquema narrativo básico é encontrado em alguns dos mais relevantes e célebres poemas de Carlos Drummond de Andrade. Este esquema pode ser descrito de forma simples: um sujeito desloca-se, literal ou figurativamente, de corpo inteiro ou só por meio do olhar ou da memória, de um ponto a outro; súbito, seu curso é interrompido por um determinado objeto. As con- seqüências desse encontro nel mezzo dei cammin diferem de poema para poema, conforme a natureza particular de cada objeto e a caracterização singular do sujeito em cada uma de suas aparições, embora uma certa tendência geral, que logo mais identificaremos, possa ser discernida e mereça ser inter- pretada. Se alguns críticos! já assinalaram, de modo explíci- to ou alusivo, a recorrência desse esquema e dessa tendência, 79 "Estrambote melancólico". Fazendeiro do ar, p. 407. 80 AGAMBEN, G. Cit., p. 34. 81 "Elegia". Fazendeiro do ar, p. 410. Ver, por exemplo, Davi Arrigucci Jr., Coração partido: uma análise da poesia reflexiva de Drummond (São Paulo: Cosac &Naify, 2002), p. 69 e 76. 49 48 não se esforçaram, no entanto, para apreender seu sentido mais fundo e integral, não se empenharam o suficiente (11;\11 era seu escopo) para compreender, para além de cada poem.i isolado, o porquê dessa imprevista constância, dessa correu te subterrânea que aqui e ali eclode à superfície, ao longo dI' uma obra de resto tão variada. Tampouco se aproximaram ;\ hipótese - a qual procuro desenvolver nas páginas seguintes - de que, extrapolando o esquema narrativo mencionado, embora sempre orientando-se por seu modelo, a interrupção pode ser entendida como princípio ético-estético, ou núcleo significante elementar, do que há de mais próprio e intenso, l' válido para a posteridade, na poesia de Drummond. Podemos iniciar nossa perquirição perguntando-nos se poemas tão diferentes, produzidos em épocas e contextos tão distintos, como "No meio do caminho", "Áporo" e "A máquina do mundo", para nos restringirmos por ora a apenas alguns dos mais conhecidos, podem de fato ser reduzidos a um esquema ou princípio comum. Ou somos vítimas de uma ilusão de ótica? Para os leitores em geral (e mesmo para os não-leitores que conhecem seus versos somente de orelhada), Drummond parece ser sobretudo o poeta do impasse, do bloqueio, da inter- rupção. "No meio do caminho" é provavelmente o principal responsável por esta percepção. Escrito nos últimos meses de 1924 ou nos primeiros de 1925, dentro ainda, portanto, do espírito irreverente e combativo da Semana de Arte Moder- na, não guarda, porém, senão resquícios do gosto modernis- ta pela sátira, pela piada", Embora, como acertadamente nota I 1111. Costa Lima, a referência às "retinas tão fatigadas" possa ,I lida como um momento de "ironia", pela quebra que 1111\>lH: à estrutura permutacional dos versos anteriores, pela 1111 roduçâo da nota subjetiva e emocional na seqüência quase III.\ql1inaP, essa ironia não coincide com o cômico, e o poe- - 4 " 1\1.\, no seu todo, resulta sério, engenhosa concreçao poetlca .l.: 1110notonia e do tédio modernos, mas também de algo Ill.\isque isso. Tal seriedade, argumenta Arnaldo Saraiva, só \ Illltribuiu para a recepção polêmica do poema, desde sua 11IIhlicaçãono livro Alguma poesia, em 1930: os leitores, que 111\ sua ignorância ou preconceito teriam preferido tomá-Io I'H.:osamente, foram compelidos a torná-lo a sério. Inúmeras loram as tolices ditas e escritas sobre seus poucos versos; t.utas amostras foram coligidas pelo próprio Drummond no 1? A chave humorística não é por definição avessa ao fenômeno que1" _. c l'stamOs definindo como interrupção. Comprova-o outro poema produzido na mesma época, "Cota zero" (Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 28): Stop. A vida parou ou foi o automóvel? t':, certo, porém, que este é um poema bem menos rico em sugestó:s, do que "No meio do caminho", Daquele, podemos extrair toda uma etica; deste, apenas um convite a um sorriso irônico. I LIMA, Luiz Costa. "O princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond de Andrade", em Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral, 2" ed. revista (Rio de Janeiro: Topbooks, 1995), p. 136. Haroldo de Campos, um dos inventores da poesia concreta, observa que "No meio do caminho" "pode ~er ~isto - e_é,assi~, que,? vêem os poetas concretos - como uma verdadeira concreçao 11l1gUlStl,Ca.Haroldo de Campos, "Drummond, mestre de coisas", em Metalmguagem & 1sutras metas: ensaios de teoria e crítica literária (SãoPaulo: Perspectiva, 1992), p, 50. Ver Arnaldo Saraiva, "Apresentação", em Carlos Drummond de Andrade (seleção e montagem), Uma pedra 110 meio do caminho: biografia de um poema (Rio de Janeiro: Editora do Autor 1967), , 50 51 divertido volume Uma pedra no meio do caminho: biogral»: de um poema. Mas, afora o pitoresco de algumas reações desinteligentes de primeira hora e por isso mesmo ainda vivn., na lembrança, resta a repercussão invulgar que o poema desdi' sempre obteve. Como observa Saraiva, esta repercussão pode ria justificar-sepela síntese, nele alcançada, de uma "situação limite" numa expressão memorável. Em poucos anos, o verso "No meio do caminho tinha uma pedra" - especialmente em sua reversão quiásmica, "Tinha uma pedra no meio do cami nho", ou na abreviação "uma pedra no meio do caminho" - se incorporou ao repertório coloquial do brasileiro médio, como artifício retórico eficiente para a nomeação de situações de impasse as mais diversas. E, contribuindo para a compreensão pública de Drummond como poeta par excellence do embara- ço, da obstância, outro verso seu, igualmente assimilado ao patrimônio lingüístico comum, desempenha função semelhan- te, embora em formulação interrogativa: "E agora, José?". Talvez nenhuma outra medida da pertinência de um poeta em relação ao povo do qual emergiu seja tão eloqüente quanto a absorção de um ou dois versos seus à linguagem do dia-a-dia. Em momentos como este, o poeta parece retomar uma respon- sabilidade primitiva - esquecida ao longo de séculos de cres- cente desencantamento das relações entre o ser humano e seus instrumentos de intervenção na realidade - quanto à criação c recriação da língua. Todavia, quanto maior o poder de comuni- cação de um verso convertido em lugar-comum, quanto maior sua virtude empática, seu apelo sentimental para o leitor e o falante, menor a chance de conservar sua significação e força originais. Mas é a elas que devemos retomar, sempre de novo. E, nesse retorno, não é inesperado que nos surpreendamos, mais uma vez, como certamente já nos surpreendemos no passado, o 001 \ \ J estranheza liminar e derradeira do poema, com sua dura- o 1"111':1 resistência em ser decifrado. Para começar, "No meio do o uuinho" nos impressiona pela perfeição cristalina da forma, I'o.\:t extraordinária economia vocabular e sintática: No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.' Não seria o caso de devassar estatisticamente a engenharia do poema, computando as ocorrências e recorrências de cad~ Idavra ou sintagma (algo, aliás, já feito alhures"). O poem~ e 1:10 conciso que a matemática de sua composição, por aSSIm dizer, pode ser contemplada a olho nu. Destaquemos apenas os .Icitos de construção relevantes para nossa análise. De início, sublinhemos a relação especular entre os três primeiros versos e os três últimos. Essa especularidade ou <imetria convida-nos a uma leitura não-linear, em que come- r.issemcs a percorrer o poema, com duas vozes simultâneas, :'\0 mesmo tempo do princípio para o fim e do fim para o princípio. Teríamos, assim, uma coincidência absoluta en- II'C as vozes, até chegarmos ao quarto e ao sétimo versos. Os sons agora dissentem, apesar de persistir certa tendência à "No meio do caminho", em Alguma poesia (op. cit., p. 16). Ver Arnaldo Saraiva, op. cit., p. 9. 52 53 simetria, pela presença, em ambos os versos, do segmenn, "no meio do caminho", ainda que em posições divergent('~. A disposição estrófica irregular - uma quadra seguida de unm sextilha - não obscurece a centralidade da seqüência "NUlll';J me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas reri nas tão fatigadas". De um ponto de vista semântico, o pOl' ma poderia ser recortado em duas quadras entremeadas _ interrompidas - por um dÍstico. Essa centralidade, realçach pela referida relação especular entre os versos que a anteco. dern e os que a sucedem, não é casual. No meio do caminho de "No meio do caminho", encontra-se, paradoxalmente, () que no poema não é pedra, mas declaração emocional sobre o deparar com a pedra. OLl seja, uma ruptura com a notação referencial e com o tom anteriormente estabelecidos. A pro- pósito desse paradoxo, Costa Lima, como já vimos, falou em "ironia"; em nossos termos, podemos dizer que estamos diante de uma interrupção dentro da interrupção. Contudo, se a primeira interrupção, anunciada insisten- temente desde o primeiro verso (a pedra no meio do cami- nho), atingia somente o sujeito do poema, a segunda inter- rupção atinge também o leitol~ que percebe, de repente, inviabilizar-se a forma de leitura programada desde o início. Este é o momento de máxima tensão da trama poética, cor- respondente - com todas as ressalvas devidas às diferenças de gêneros literários e períodos históricos _ ao que, na des- crição da estrutura da tragédia clássica, designava-se anagnorisis: o momento em que o sentido das ações prece- dentes, e até então relativamente desconexas, se revela, para o personagem e para o espectador (ou leitor), e o desfecho aparece como conseqüência lógica, inevitável. Essa tensão dependendo do grau de autoconsciência do sujeito do poem; 54 li'I' (., ,!llal não coincide necessariamente com o poeta-autor, em- ". '1';1 sua imagem possa com a dele fundir-se, sobretudo na 111 ica), também pode assaltá-lo: como elucida Northrop Frye, ,I .iuagnorisis "é não simplesmente o conhecimento pelo he- loi do que lhe aconteceu [...] mas o reconhecimento ~a forma I,J1dpeJ determinada da vida que ele criou para, SI ,mes.mo, • 11111 uma implícita comparação com a vida potencial incriada I ille ele abandonou"? Sendo assim, o "Nunca me esquec~- .. "equivaleria a uma versão inconformada, porque ati-11 1. •• v.i em sua negatividade, da anagnorisis subentendida no Iristíssimo verso de Manuel Bandeira: "A vida inteira que podia ter sido e que não foi?", "Nunca me esquecerei" tes- icmunha da vida que efetivamente é (e que não pode ser de outro jeito), testemunha do compromisso ético (e trágic,o! do poeta com o obstáculo. Afinal, os aspectos problemáticos do encontro do poeta com a realidade - o encontro com a pedra parece ser uma metáfora desse encontro mais com- preensivo - não podem ser simplesmente elididos, ma~ a~- res devem ser internalizados, transfundidos no cerne srgru- ficante do qual promanam a autoridade (a auctoritas, o ser- autor) e a voz do poeta. Só assim o poema se protege contra a mentira, à qual se arrisca qualquer objeto estético por um vício de origem do seu processo de constituição como tal: a estetização - a ordenação dos elementos materiais de modo a compor um objeto estético - pode facilmente redundar em falsidade, ao representar (re-apresentar) em formas ,I i,/ li! "I I ? FRYE, Northrop. Anatomy of Criticism: Four Essays (Princeton: Princeton University Press, 1990), p. 212. 8 BANDEIRA, Manuel. "Pneumotórax", em Libertinagem (Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996. p. 206). 55 2 apaziguadas o que na realidade se apresenta irresolvido. E .1'. grandes obras de arte, como observa Adorno, "não podcui mentir" 9. Por esse viés, não será exorbitante vincular a seric dade indigitada por Arnaldo Saraiva em "No meio do cami nho" à seriedade - residual, mesclada à ironia cômica - do trágico moderno, talvez a orientação estética mais afim à ver- dade, a essa verdade difícil e inapreensível a que já nos acostu- mamos, na literatura contemporânea. Basta evocarmos, em corroboração, a relevância dos procedimentos de repetição c interrupção em Kafka ou em Beckett. A dramatização da desilusão - isto é, do processo pelo qual a verdade volta a se impor depois de um momento de (auto-)engano - é um procedimento básico do trágico. Em Drurnmond, a interrupção é inseparável da desilusão. Para o sujeito-personagem de "No meio do caminho", aquele que diz "Nunca me esquecerei ... ", o dístico central tem o sentido primeiro de um alívio em relação ao impasse figurado sob a espécie da repetição compulsiva (esse alívio talvez se reproduza no leitor). Ao pronunciar aquela frase, permite-se escapar, mes- mo que por um instante mínimo,à constatação obsessiva da presença do objeto - presença no passado ("tinha"), mas atu- alizada pela memória - para esboçar uma reação mental à situação em que se encontra. O alívio revela-se, porém, mo- mentâneo e ilusório: o pensamento, ao tentar reagir, só reafir- ma a impossibilidade de esquecer o "acontecimento". Mas o que é importante salientarmos agora é que o "Nunca me es- quecerei ... " não decorre de, tampouco implica, um autêntico conhecimento do objeto-realidade para além da mera , "lIstatação de sua existência e presença - constatação que, ,!.- fato, é contrária ao conhecimento, se o compreendemos , ,,1110 penetração intelectual na realidade, avançando além d:1 superfície dos objetos. A palavra "acontecimento", com a qual Drummond ';c refere ao encontro com a pedra, jamais é empregada illgenuamente por ele. É uma palavra de uso reiterado em sua obra por designar com exatidão uma forma de evento muito peculiar de sua "tentativa de exploração e de inter- pretação do estar-no-mundo"lo, podendo mesmo ser en- rendida quase como sinônimo do que estam os denominan- do interrupção. Esta possibilidade de sinonímia já está pre- vista etimologicamente: acontecimento deriva do verbo contingere, por meio do incoativo contingescere (ou, mais precisamente, de sua variação contigescere), "tocar a, em; alcançar, atingir, chegar a; encontrar, topar; suceder; re- sultar de"11. O que importa ao poeta nesta palavra é que sugere a irrupção ou instituição imprevista de uma determi- nada versão da realidade e, por imprevista, dificilmente as- similada, contornada ou solucionada por meio da reflexão ou da inteligência, que, se bem-sucedidas, produziriam co- nhecimento. O acontecimento é uma forma imperfeita de evento - pois que euentus comporta as noções de "saída, 10 Com essa expressão, Drummond intitula uma das seções de sua Antologia poética (Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962), p. 1962. 11 Ver Dicionário Houaiss da língua portuguesa (Rio de Janeiro: Objetiva, 2001), p. 64. ADORNO, Theodor W. Teoria estética, tradução de Artur Morão (Lisboa: Edições 70, s/d), p. 151. 57 56 desenlace, resoluçãov'? - a qual põe à prova, e por fim arru- ína, a capacidade cognitiva do poeta. Por isso, o incipit de "Procura da poesia": "Não faças versos sobre acontecimen- tos" 13. Acontecimentos e versos, a rigor, são incomunicáveis entre si (e logo mais voltaremos ao tema da incornunicabilidade, caro a Drummond). Por isso, também, a ainda escassamente compreendida epígrafe de Claro enigma, extraída de Valéry: "Les éuénements m'ennuient" (em francês, perde-se a distin- ção que traçamos entre acontecimento e evento). O ennui, tal como encarnado neste livro, não é o sentimento da renúncia à intervenção política (e poética) na realidade, mas sim o senti- mento da consciência de que os instrumentos costumeiros da cognição, mobilizados por Drummond, essencialmente poeta e não pensador, fracassam frente à complexidade e inapreensibilidade do real". Felizmente, a desistência da intelecção não redunda na desistência da poesia. Pelo con- trário: a poesia, em Drummond, parece enraizar-se justa- mente na "derrocada do intelecto", para usarmos, com sen- tido um pouco diverso, uma expressão de Breton destacada por Hugo Friedrich em seu estudo sobre a lírica moderna". 12 Idem, p. 1277. 13 "Procura da poesia", em A rosa do povo (op. cit., p. 117). 14 Podemos lembrar urna observação de Décio Pignatari sobre Drummond: "Não a tantos assim cabe tão justamente a famosa tirada de Mallarmé a Degas: poesia não se faz com idéias, mas com palavras. Suas idéias, sobre literatura, política, arte ou cinema, não se elevam acima do repertório culto médio do intelectual brasileiro; chega até a surpreender que a sua retórica esquiva o enleie em lugares tão cornuns. Bastou-lhe, no entanto, uma idéia: a do poema". Décio Pignatari, "Drurnmond: oitentação", em Letras artes midia (São Paulo: Globo, 1995), p. 70. 15 Ver Hugo Friedrich, Estrutura da líricamoderna, tradução de Marise M. Curioni (São Paulo: Duas Cidades, 1991), p. 143-144. ( ) verso crucial do "Poema de sete faces" - "seria uma rima, u.io seria uma solução"16 - ilustra bem a compreensão desi- ludida, embora irresignada, que Drummond tinha dos po- deres da poesia, limitados embora inevitáveis e mesmo im- prescindíveis. De modo um pouco enviesado, mas com a vantagem de aqui mais uma vez recorrer-se à palavra "acon- iccimento" (e já no título), essa compreensão também ani- ma "Em face dos últimos acontecimentos": "Oh! sejamos pornográficos", convocação em que consiste o primeiro verso, síntese do poema, pode ser lida, metaforicamente, como convite a sermos plenamente, vitalmente, poéticos. Pois ser poético - o contraste entre rima e solução leva-nos ;J crer - é trocar, por força do enfrentamento malogrado com a realidade, o dever da razão, o dever do conhecimen- to, pelo investimento na materialidade da linguagem, pelo apelo aos sentidos. Davi Arrigucci Jr. observa que "o que está em jogo", na circularidade de "No meio do caminho", "é sempre o princípio e o fim da criação poética: a pedra será, recorrentemente, a pedra no caminho de toda criação drumrnondiana "!". Para Drummond, a criação fundar-se- ia sempre numa "dificuldade básica", a qual "é fator desencadeante e, simultaneamente, entrave do ato poético". O problema da interpretação de Arrigucci é ter praticamen- te equiparado o ato poético com a reflexão: "A pedra é o que move o poeta à reflexão e à procura da poesia, que ela, entretanto, barra, obrigando-o ao círculo infernal da busca sem fim, a retomar indefinidamente". Essa infinitude, acredi- tamos, não é a Sda reflexão, tal como se encontra formulada 16 "Poema de sete faces", em Alguma poesia (op. cit., p. 5). 17 ARRIGUCCI JR., Davi. Op. cit., p. 72-73. 58 59 Nenhum desejo neste domingo nenhum problema nesta vida o mundo parou de repente os homens ficaram calados domingo sem fim nem começo. Gastei uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever. No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo. Ele está cá dentro e não quer sair. Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira." li!Ili \ '",1, ~i " nos fragmentos de Friedrich Schlegel e de Novalis estuda dos por Walter Benjamin l~, mas sim a da impossibilidade da reflexão, que constitui a poesia. "Poema que aconteceu" é o expressivo título de um po ema que compartilha as páginas de Alguma poesia COlll "No meio do caminho". Nele, poema e acontecimento Se confundem na perspectiva da interrupção: . «nverte-se em forma, poema. O poema, anuncia-o já o tí- lido, torna-se, aos olhos do poeta, um acontecimento. O intervalo entre acontecimento e poesia encontra uma I "I'resentação mais concentrada - com a abolição do aconte- . uncnto externo, ou antes a sua subsunção ao ato da criação pt>ética- em outro poema do mesmo livro: A mão que escreve este poema não sabe que está escrevendo mas é possível que se soubesse nem ligasse." Aqui fica evidente que a interrupção é o movimento, ou, melhor, não-movimento, gerador da verdadeira poesia, cons- riruída por versos idealmente inescritos, perpetuamente la- u-ntes, dos quais os versos efetivamente escritos parecem ser .ipcnas pálida imitação. Pode-se concluir que a aspiração mais .ilra de Drummond para seus poemas é que também sejam, de algum modo, acontecimentos, interrupções, tanto para o 11l"<Ípriopoeta como para o leitor. Só assim, poderiam fixar- ·.e na memória e exigir respostas, preferencialmente em for- l11a de ação - ainda que, como se deu quanto à pedra no meio .lo caminho, essas respostas não se desembaracem da 'Icgatividade fundamental do acontecimento que lhes en- I'. ·ndrou. Drummond, apesar de algumas indicações super- liciais em contrário em sua fase mais explicitamente política, IIUS não somente nesta ("Canção amiga", de Novos poemas, O ennui presidea cena em todos os seus detalhes, a ta I ponto que a negatividade extrema - a extinção do desejo, () silêncio dos homens (e silêncio não de todo voluntário, con- forme indica sutilmente o verbo calar), a anulação do tempo histórico ("domingo sem fim nem começo"), o mundo que "parou de repente" - não parece afetar a sensibilidade ou ;t razão do poeta: "nenhum problema nesta vida". Uma curi- osa inconsciência ou abstenção impregna o ato da escrita do poema representado na segunda estrofe. Desse modo, () ennui, que antes era apenas um sentimento, anterior à poesia, 18 ARRIGUCCI JR., Davi. "Intermezzo romântico", op. cit., p. 42-45, Ver Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemã. >, tradução de Márcio Seligmann-Silva (São Paulo: Iluminuras e Edusp, 1993), 19 "Poema que aconteceu", em Alguma poesia (op. cit., p. 17). '<i "Poesia", em Alguma poesia (op. cit., p. 21). so 61 é disso exemplar"), não parece interessado em esta belecer com o leitor um relacionamento baseado na empatia ou na ident i ficação, e sim, antes, no choque ou em alguma outra modali dade mais branda de estremecimento. "Oficina irritada" é :1 expressão suprema desse intento: " pedicuro", em sua carnalidade ostensiva, não deixa mar- 1',"111 :1 dúvidas: o poema deve ser incorporado - isto é, agrega- .1" ,10 próprio corpo - pelo leitor. Essa ênfase na corporeidade II,I!) é gratuita. Drummond parece estar postulando um novo IIII:,;1r,mais corpóreo, material, para a memória e, por exten- ',:11), para o que no poeta produz poemas. Um lugar além do uuclecto e da reflexão. "Lembras-te, carne?", indaga em '" .scada ", de Fazendeiro do ar": "Oficina irritada", um soneto que se nomeia como so- 111'1'0, um soneto sobre o próprio ato de escrever o soneto .iuora apresentado, exprime um primado da vontade estra- uho à poética do acontecimento e da interrupção tal como a vínhamos delimitando até aqui. O acontecimento, por defi- uiçâo, é o que não pode ser programado, o que se dá sem motivação racional aparente. Se compararmos "Oficina ir- ritada" com "Poema que aconteceu", verificaremos uma discrepância escandalosa entre o ímpeto das expressões voluntaristas "quero" e "há de" e a serena renúncia de "não ,:1be" ou "nem ligasse". Mas nã o parece ha ver genuína con- Iradição entre ambos os comportamentos, do que parece ser mdice a pretensão desmesurada de um poema que "ao mes- 1110 tempo saiba ser, não ser". Passarem-se quase vinte anos entre a composição de um poema e a de outro, algo tinha de mudar, e não seria errôneo concebê-los como duas reações .ilternativas, mas não excludentes, ao desafio da assimilação da realidade, na forma de acontecimento, ao poema - e realida- de, em ambos os casos, impressa apenas em marca d'água no poema, o que dá a medida do desafio. E as duas reações - o poema que aconteceu e o soneto duro - são unifica das por Eu quero compor um soneto duro como poeta algum ousara escrever. Eu quero pintar um soneto escuro, seco, abafado, difícil de ler. Quero que meu soneto, no futuro, não desperte em ninguém nenhum prazer. E que, no seu maligno ar imaturo, ao mesmo tempo saiba ser, não ser. Esse meu verbo antipático e impuro há de pungir, há de fazer sofrer, tendão de Vênus sob o pedicuro. Ninguém o lembrará: tiro no muro, cão mijando no caos, enquanto Arcturo, claro enigma, se deixa surpreenderY "Ninguém o lembrará" é o passo irônico essencial. A esperança de Drummond parece ser precisamente contrária: que, por "difícil de ler" e incapaz de despertar o prazer do leitor, o poema permaneça, como permanecem as coisas in- cômodas, na memória. "Ninguém o lembrará" deve, pois, ser relido o mais literalmente possível: o soneto não precisa- rá, de fato, ser lembrado; só o que foi esquecido pode ser recuperado pela recordação. O símile "tendão de Vênus sob 21 "Canção amiga", em Novos poemas (op. cit., p. 231). 22 "Oficina irritada", em Claro enigma iop. cit., p. 261). .'1 "Escada", em Fazendeiro do ar iop, cit. p. 409), 62 63 sua disposição numa régua de gradação progressiva que V;II da estudada indiferença até a afronta enfática ao leitor (' seus hábitos prazenteiros. Em suma, o que estamos propondo é que Drummond arma uma teia de correspondências entre o modo como autor e po· ema relacionam-se com a realidade e o esquema narrativo (.l, interrupção; secundariamente, também entra nesse jogo o modo como ele ambiciona que o leitor se relacione com o poema. O movimento do poeta em direção à realidade é um movi mento essencialmente frustrado, impedido não apenas pela dificuldade ou impossibilidade de apreensão do real- "o im- pério do real, que não existe" _24, mas sobretudo pelo impe- rativo ético de não escamotear essa inapreensibilidade, ou, antes, de expô-Ia às claras. Em outros termos: a interrupção pode ser uma metáfora ou, mais precisamente, uma alego- ria do modo singular de Drummond ir ao encontro da rea- lidade e anexá-Ia ao poema na forma de acontecimento. 3 A realidade com que Drummond se preocupa e ocupa é sempre radicalmente histórica. Com a sagacidade habitual, Antonio Candido interpreta "No meio do caminho" nos se- guintes termos: "a sociedade oferece obstáculos que impedem a plenitude dos atos e dos sentimentos'f". (Que atos e senti- mentos são estes, é o que pretendemos investigar.) Mesmo quando Drummond se refere à natureza ou a alguma forma de 24 "Procura", em A vida passada a limpo (op. cit., p. 427). 25 CANDIDO, Antonio. "Inquietudes na poesia de Drummond", em Vários escritos (São Paulo: Duas Cidades, 1995), p. 121. 64 Ir.\nscendência, estas são de pronto rebaixadas ao chão da his- ruria, embora às vezes de forma tão sutil que leitores desaten- ItlS não o percebem. A compreensão mais funda de um livro I·,tjllivo como Claro enigma passa pelo rastreamento paciencioso •. perspicaz dos dados da realidade histórica obscurecidos pelo ';1,/,1110 sublimis adotado na maioria dos poemas. Ainda há mui- I() a fazer nesse sentido, e a tarefa é imensa: a sutileza do poeta demanda uma correlativa sutileza do crítico. Sérgio Buarque dt: Holanda já ressaltava a persistência da preocupação histó- rica nessa fase de Drummond: "Há de iludir-se [... ] quem veja nesse aparente desapego ao 'acontecimento' o reverso neces- s.irio de alguma noção transcendental da poesia: poesia enten- dida como essência inefável, contraposta ao mundo das coisas fugazes e finitas":". Porém, no mais das vezes, Drummond não esconde sua adesão à história - e história não somente como coleção de antigualhas, ao menos não nos seus melho- res poemas, mas como processo a desenrolar-se no presente e :\0 qual o poeta, dado seu compromisso moral e político com os "homens presentes", não pode ficar alheio. Essa adesão é enunciada enfaticamente em "Mãos dadas": Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. !(, HOLANDA, Sérgio Buarque de. "Rebelião e convenção - I", em O espírito e a letra: estudos de crítica literária, v. 2, organização, introdução e notas de Antonio Arnoni Prado (São Paulo: Companhia das Letras, 1996), p. 502. 65 Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida , não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, [os homens presentes, I irummond sublinha a perda da função comunicativa da lin- ,·.II:lgem como sintoma de tais sentimentos e ressentimentos: j .1 (Na solidão de indivíduo desaprendi a linguagem com que homens se comunicam.)" a vida presente." Como veremosadiante com mais clareza, essa ênfase na linguagem não é circunstancial: o insucesso da linguagem \ omunicativa é especialmente revelador do malogro da ,ognição e pode ser considerado o ponto de partida da ins- i.ruraçâo de uma linguagem outra, essencialmente intransitiva, entranhadamente poética. Talvez seja o momento, agora, de assinalarmos as seme- lhanças e diferenças iluminadoras entre o esquema da inter- rupção na poesia de Drummond e a estrutura do sublime tal corno descrita por Kant na Crítica do juizo. Para Kant, o su- l-lime produz-se "por meio do sentimento de uma suspensão momentânea das faculdades vitais, seguida imediatamente por 11m transbordamento tanto mais forte das mesmas't". Esse xcntimento de suspensão se dá quando o sujeito depara com 11111objeto propício a isso, seja por sua grandeza ou por sua força excepcionais. Frente a esse objeto, o espírito percebe-se simultaneamente - ou alternada mente - atraído e repelido. Quando é a grandeza que impressiona o sujeito, temos o que Kant chama "sublime matemático"; quando é a força, o "subli- rue dinâmico". A "enorme realidade" referida por Drummond parece configurar uma cena da primeira modalidade de su- l-lime, para a qual Kant oferece uma explicação elegante. ;j i IIII·! I' I Devemos destacar, neste poema, inicialmente, a decla- ração peremptória de recusa ao episódico, que é também, não sem paradoxo, devido exatamente a essa recusa, uma declaração implícita de apego ao episódico como figura elementar da temporalidade histórica mais abrangente. Ou seja, o acontecimento só vale para o poeta em sua insuperá- vel insuficiência, por meio da qual alude sem mentira à rea- lidade histórica como um todo, ou ao menos à parte do todo acessível à sua percepção. Mas devemos sobretudo sa- lientar a conseqüente definição da realidade do "tempo pre- sente" como "enorme realidade". O compromisso com os "homens presentes", assim convertidos em "companheiros", decorre precisamente da urgência em enfrentar essa enor- midade, demasiada para um só homem: "O presente é tão grande, não nos afastemos". Não por acaso, em outro poe- ma de Sentimento do mundo, Drummond corrige a compa- ração que fizera entre seu vasto coração e o vasto mundo no "P d f ""N-oema e sete aces: ao, meu coração não é maior que o mundo". Por sua vastidão ser menor que a do mun- do, é que ele precisa conectar-se a outros corações. No entan- to, a desilusão e o ennui dela resultante pungem mesmo na hora da expressão do compromisso - e, significativamente, 27 "Mãos dadas", em Sentimento do mundo (op. cit., p. 80). 's "Mundo grande", em Sentimento do mundo iop. cit., p. 87). "/ KANT, Immanuel. Crítica dei juicio, traducción de Manuel García rvtorente (Madrid: Espasa, 1997), p. 184. 66 67 A imaginação dividir-se-ia em duas atividades complemen- tares: a apreensão e a compreensão. A apreensão é poten- cialmente infinita. Por maior ou mais numeroso que seja um objeto ou grupo de objetos, a intuição sensível (respou- sável pela apreensão) é capaz de percorrê-I o por inteiro, desmontá-lo em fragmentos menores e carregá-I o para os do- mínios do espírito. A compreensão, no entanto, torna-se tão mais difícil quanto mais distante vá a apreensão. O sublime assoma quando a compreensão atingse o "máximo quaniunt estético de apreciação't ". A apreensão chega tão longe que as primeiras "representações parciais" fornecidas pela in- tuição começam já a apagar-se da imaginação, exigindo, por- tanto, que o espírito retroceda para retomar o que perdeu - o que, mais uma vez, deixa a descoberto o que ele possuía antes desse retorno ao passado. É então que a imaginação vê des- pontar uma faculdade supra-sensível, a qual, substituindo a compreensão humilhada, apresenta para o espírito, a partir dos dados oferecidos pela intuição, uma idéia de infinitude. Envaidecido com a capacidade de superar as próprias limi- tações, o espírito sente-se invadir pelo sublime. Assim em Kant. Em Drummond, a situação é mais complexa, pois a pas- sagem do jogo entre apreensão e compreensão para o triunfo da imaginação é quase sempre bloqueada. Arrigucci, com acer- to, detecta, em "No meio do caminho", "um complexo sen- timento de não-poder do Eu"3!. Não é uma imaginação jubilosa que amarra os cacos da vida na forma da "enorme realidade", mas antes uma imaginação - a serviço do conhe- cimento e da ação - profundamente cônscia de seus limites. fi. consciência do aspecto limítrofe da imaginação e, por ex- 1l:I1São, da representação da realidade está flagrante num poema de A vida passada a limpo em que Drummond revisa I) que escrevera em "Mãos dadas", quase vinte anos antes: Não cantarei amores que não tenho, e, quando tive, nunca celebrei. Não cantarei o riso que não rira e que, se risse, oferta ria a pobres. Minha matéria é o nada." Proclama-se assim, de certo modo, a equivalência entre o "tempo presente" e o "nada". O "nada'" pode ser entendi- do na leitura cruzada de ambos os poemas, como cifra do, "tempo presente" em sua impossibilidade de imaginação, reflexão, representação, ação. O silêncio, mais uma vez, é o horizonte do poema, e mais uma vez está vinculado ao fracasso da cognição: "Não canto, pois não sei". Esse flerte com o nada é também um flerte com a morte, de que nada é eufemismo: "não cantarei o morto: é o próprio can- to" diz-se no mesmo poema; "poesia, canção suicida", "poe-, . sia, morte secreta", reitera-se noutro. De fato, nos poemas mais significativos de Drummond, não há recuperação exultante das faculdades vitais depois da suspensão inicial, como previa Kant na descrição do sublime, mas sim anulação, ao menos retórica, dessas faculdades e da própria vida, como se vê exemplarmente em "O enterrado vivo" 33 • Vem daí a afinidade com o mundo dos mortos que Drummond está sempre a confessar: aliás, a sua família, à consideração da qual retoma em inúmeros poemas, só tem cidadania em sua obra como catálogo de defuntos ou, ! I!: Ilrl I1 30 Idem, p. 192. 31 ARRIGUCCI JR., Davi. Op. cit., p. 71. 12 "Nudez", em A vida passada a limpo (op. cit., p. 419). 13 "O enterrado vivo", em Fazendeiro do ar (op. cit., p. 404). 68 69 melhor, "álbum de fotografias intoleráveis, / alto de muin» metros e velho de infinitos minutos", como se lê em "( h mortos de sobrecasaca":". A expansão hiperbólica no esl'oI ço e no tempo dá conta da força sublime agônica, da força di interrupção, da imagem de sua família como figuração di uma certa abordagem da realidade pelo ângulo da mitologi.. pessoal, da tentativa de compreensão da situação presente por meio de seus vínculos com o passado. É legítimo qll" alguns se espantem com que um poeta tão voltado par" ,I recordação do passado familiar identifique o "tempo prescn te" como sua matéria; mas não há contradição: o tempo d.1 memória é o presente, a partir do qual ela lança suas redes ao passado, para apanhar resíduos. "O Drummond autobio gráfico é antes autográfico: escreve-se a si mesmo para ser", sugere Décio Pigna tari". O vértice de significação desses rc síduos é o hic et nunc: eles valem pelo que depõem do passa- do como elucidação do presente. Como se a pedra, com que se topou no meio do caminho no passado, devesse ser carrc- gada como souuenir e talismã (e o é na memória), o obstáculo tornando-se parte do sujeito. Em "Tarde de maio", Drummond diz levar consigo a lembrança do momento que dá título ao poema, "Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos". Porém, se "os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva" e outros "portentos", o poeta só pede à sua tarde que continue, (...] no tempo e fora dele, irreversível, sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém que, precisamente, volve o rosto, e passa...36 Mais uma vez, o engano e a posteriordesilusão: o "sinal .lc derrota" transmuta-se em "sinal de beleza", mas num rosto que, logo após responder ao olhar do poeta, "passa". "A máquina do mundo", do ponto de vista da compre- cnsâo da realidade como realidade histórica e do paralelo com o sublime, é um poema especialmente ilustrativo. Com- partilha com "No meio do caminho" o esquema narrativo básico da interrupção. Entretanto, em vez de uma mera pe- dra o que o sujeito-personagem encontra em seu caminho, . " _ agora especificado como "uma estrada de Mll1~S ',~v~- cando a paisagem mítico-familiar da terra natal - e a ma- quina do mundo", que diante dele se abre, oferece~do-lhe, aparentemente, o conhecimento absoluto da realidade, a "total explicação da vida". A renúncia de Drummond p~- rante a máquina é provavelmente seu passo mais desterni- do no rumo da negatividade cognitiva, ético-estética ou, numa palavra, poética: 'I A treva mais estrita já pousara sobre a estrada de Minas, pedregosa, e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo, enquanto eu, avaliando o que perdera, d - 37seguia vagaroso, e maos pensas. ! I, i \1 34 "Osmortosde sobrecasaca",em Sentimento do mundo (op. cit., p. 73). 35 PIGNATARI,Décio. "A situação atual da poesia no Brasil", em Contracomunicação (SãoPaulo: Perspectiva,1971), p. 100. Cf. Luiz Costa Lima, "Carlos Drummond de Andrade:memória e ficção", em Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria (Rio de Janeiro: FranciscoAlves,1981), p. 159-175. .16 "Tarde de maio", em Claro enigma (op. cit., p. 264). \7 "A máquina do mundo", em Claro enigma (op. cit., p. 304). 71 70 Mas falar em negatividade, a propósito deste pOCIII.!., falar ainda muito pouco. Alfreclo Bosi, com razão, encoun.: um precedente da imagem da "máquina do mundo" 11.1 "Grande Máquina" que aparece em "Elegia 1938". Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer. Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquin.i e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.P o horizonte de pensamento tangencia a kantiana coi- sa em si, o nôurneno, incognoscível, além daqueles fenô- menos que são, no poema, as imagens do mundo apenas csboçadas no rosto do mistério. Ou no abismo (abyssos: sem fundo) .'10 Agora, é a própria relação do eu com o mundo exte- rior que vem enfrentada de modo imediato e em um discurso de tensão máxima. Sobe ao primeiro plano da consciência a busca de um sentido que o sujeito empreen- deu, e que forma a pré-história da sua narrativa. As pupi- las gastas e a mente exausta de mental' (o pleonasmo diz da intensidade do processo) são o remate de uma an- gústia cognitiva que se debateu em vão contra o muro de pedra da realidade. Lembremos, antes de mais nada, que as expressões frisa- .I:ISpor Bosi neste poema encontram correspondência em "No meio do caminho" ("retinas tão fatigadas") e em "Áporo" (nt:xausto"), de que logo nos ocuparemos. Devemos também .lcstacar a preciosa expressão "angústia cognitiva", muito .idcquada à caracterização de "A máquina do mundo" e da poesia de Drummond como um todo. Entretanto, temos de ';cr cautelosos com a identificação do incognoscíve1, em Iirummond, com o nôumeno kantiano. O incognoscível, aqui, ~ ainda a realidade histórica, como um exame do poema dei- xa claro, e seu lugar não coincide com o da máquina, situado que está além dela e de suas cavilações. Não podemos confundir o que a máquina oferece ao poeta com o que é o verdadeiro objeto de sua busca. O dis- curso da máquina, ao interpor-se ao caminhante, é ostensi- vamente falso, conversa de vendedor; atribui ao caminhante uma procura que não é a dele, com a intenção de fazê-lo mudar de rumo e meta: Atentemos, nesta estrofe, para a representação do SII jeito "pequenino" frente às "indecifráveis palmeiras" c .\ "Grande Máquina" de que elas são desdobramento, a COII duzir-nos novamente às proximidades do sublime. Mas repu- remos sobretudo no adjetivo "indecifráveis", denotativo li;\ incognoscibilidade do real. A máquina, em "Elegia 1938", poderia ser entendida, segundo Bosi, como "a figura metonímica da sociedade"!". Em "A máquina do mundo", seu significado mudaria: 38 "El . 1938" S'egia ,em enttmento do mundo (op. cit., p. 86). 39 B~SI, ~fredo. "'A máquina do mundo' entre o símbolo e a alegoria", ~m Ceu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica (São Paulo: Atica, 1988), p. 88. e nem desejaria recobrá-los, se em vão e para sempre repetimos os mesmos sem roteiro tristes périplos, Abriu-se em calma pura, e convidando quantos sentidos e intuições restavam a quem de os ter usado os já perdera 40 BOSI, Alfredo. Idem, p. 88. 73 72 tudo se apresentou nesse relance e me chamou para seu reino augusto, afinal submetido à vista humana.f assim me disse, embora voz alguma ou sopro ou eco ou simples percussão atestasse que alguém, sobre a montanha, impondo seu próprio discurso, em que vai pouco a pouco nome- .indo os dados da realidade histórica, objetos de sua busca frus- Irada, a partir justamente da imagem metafísica oferecida pela máquina, sem, ao menos de início, confrontá-Ia abertamente: convidando-os a todos, em coorte, a se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas, a outro alguém, noturno e miserável, em colóquio se estava dirigindo: "O que procuraste em ti ou fora de As mais soberbas pontes e edifícios, o que nas oficinas se elabora, o que pensado foi e logo atinge teu ser restrito e nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou se rendendo, e a cada instante mais se retraindo, distância superior ao pensamento, os recursos da terra dominados, e as paixões e os impulsos e os tormentos olha, repara, ausculta: essa riqueza sobrante a toda pérola, essa ciência sublime e formidável, mas hermética, e tudo o que define o ser terrestre ou se prolonga até nos animais e chega às plantas para se embeber essa total explicação da vida, esse nexo primeiro e singular, que nem concebes mais, pois tão esquivo no sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar na estranha ordem geométrica de tudo, se revelou ante a pesquisa ardente em que te consumiste ... vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo" .41 e o absurdo original e seus enigmas, suas verdades altas mais que tantos monumentos erguidos à verdade; o último pedido da máquina é, a rigor, supérfluo; sugere-o o silêncio ("embora voz alguma ... ") de seu discurso. É silencioso porque provém, provavelmente, do interior do próprio poeta, como segunda voz que a sociedade, a "Grande Máquina", incul- cou-lhe, para refrear seus impulsos de insubmissão. Ou seja, o que Marx designaria "ideologia". Mas o poeta, com uma mano- bra astuta, consegue resguardar-se dessa voz capciosa e acaba e a memória dos deuses, e o solene sentimento de morte, que floresce no caule da existência mais gloriosa, A "natureza mítica das coisas", "essa total explicação da vida", "esse nexo primeiro e singular", bem poderiam conter 41 "A máquina do mundo", em Claro enigma (op. cit., p. 301-302). 42 Idem (op. cit., p. 302-303). 74 75 4 "o absurdo original e seus enigmas" ou "a memória dos deuses", mas dificilmente "o que nas oficinas se elabora" ou "os recurso', da terra dominados". Aqueles pomposos convites a um conhc cimento etéreo e imaterial são, como diz o poeta mais adiante, "defumas crenças convocadas" para as quais ele já não tem ;1 "fé" necessária - o que, aliás, sua obra toda atesta. Aos poucos, a voz própria do poeta, que ainda encabulada começava a fazer frente à segunda voz, a da máquina, vai-se encorajando, até () ponto em que se desembaraça definitivamente dessa voz l' mesmo do falso ser que, na interioridade dele, ela animara: 1\ negatividade do poema se amplia pela imagem das "mãos pensas", em posição decisivano último verso da última -strofe. É preciso lê-Ia como revisão da imagem das "mãos .l.idas'' de Sentimento do mundo. Pendem, sobre a estrada de Minas, mãos incomunicáveis, como a mão que, por imunda, deve ser cortada em "A mão suja", de JOSé45, e como se outro ser, não mais aquele habitante de mim há tantos anos, Em "Opaco", de Claro enigma, Drurnmond dramatiza o processo de descoberta, por parte do sujeito do poema, de que :\ interrupção lhe é interna, bloqueio psicológico-cognitivo, c não realmente externa, como figurada a princípio: passasse a comandar minha vontade que, já de si solúvel, se cerrava semelhante a essas flores reticentes Noite. Certo muitos são os astros. Mas o edifício barra-me a vista.em si mesmas abertas e fechadas" Bosi diagnostica acídia - que define, seguindo a Summa Theologica, como "torpor espiritual" a impedir a busca do bem e da verdade - na recusa à máquina do mundo". Pelo contrário, a meu ver, a recusa é expressão do desejo perseve- rante da verdade (e do bem) - não da "verdade" propagandeada pela máquina, mas a verdade da realidade histórica, perdição do poeta. Não é a esta que ele renuncia, embora de qualquer modo não a alcance. O que importa é que a caminhada do poeta no encalço da verdade histórica recomeça ao fim, ain- da que na "treva mais estrita" e ainda que só lhe reste reto- mar os "mesmos sem roteiro tristes périplos" de sempre. Quis interpretá-to. Valeu? Hoje barra-me (há luar) a vista. Nada escrito no céu, sei. Mas queria vê-Ia. O edifício barra-me a vista. Zumbido de besouro. Motor arfando. O edifício barra-me a vista. 43 Idem iop, cit., p. 303). 44 BOSI, Alfredo. Op. cit., p. 93. 1\ "A mão suja", em José iop, cit., p. 108-109). 76 77 Assim ao luar é mais humilde. Por ele é que sei do luar. Não, não me barra a vista. A vista se barra a si mesma." rcprisá-Ia pela perspectiva da pedra. O ser humano, esfinge mais monstruosa que a esfinge tebana, é que agora intercepta I) percurso. O homem é o obstáculo supremo do universo: Sem a perícia formal de "No meio do caminho", usa-se também aqui a técnica da repetição para conotar o incômodo implacável do obstáculo sempre presente. "Quis interpretá-Ia", referindo-se ao edifício, é uma passagem-chave, deixando à mostra o impulso cognitivo que percorre a poesia de Drummond do primeiro ao último verso. É interessante veri- ficar como esse impulso dirige-se idealmente ao céu, nos quais os astros insinuam talvez uma escrita, da qual o poeta de pronto descrê, mas, se calha de o edifício barrar-lhe (ou pare- cer barrar-lhe) a vista, a vontade de conhecer detém-se nele. Interpretar o obstáculo talvez seja, de fato, a melhor maneira de lidar com ele, embora não o elimine; afinal, é o obstáculo, e não o que está além dele, que simboliza a realidade histórica, meta da cognição. Poderíamos, agora, reler "A máquina do mundo" à luz dessa consideração e notar que, embora a má- quina oferte ao poeta a visão de uma realidade mirífica e abstrata, ela mesmo, máquina, confundindo sua voz com a ideologia, é signo da realidade histórica no processo de ocultamento de suas bases materiais. No poema em prosa "O enigma", a internalização do obstáculo é mais violenta do que em "Opaco", e as bases materiais da realidade - na forma do sofrimento da natureza sob o domínio humano - não são sonegadas. Nele, Drummond retoma à cena originária de "No meio do caminho", para As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o caminho. Elas se interrogam, e à sua experiência mais particular. Conheciam outras formas deambulantes, e o perigo de cada objeto em circulação na terra. Aquele, todavia, em nada se assemelha às imagens trituradas pela experiência, prisioneiras do hábito ou doma- das pelo instinto imemorial das pedras. As pedras detêm-se. No esforço de compreender, chegam a imobilizar-se de todo. E na contenção desse instante, fixam-se as pedras - para sempre - no chão, compondo montanhas colossais, ou sim- ples e estupefatos e pobres seixos desgarrados. Mas a coisa sombria - desmesurada, por sua vez - aí está, à maneira dos enigmas que zombam da tentativa de interpretação. É mal de enigmas não se decifrarem a si próprios. Carecem de argúcia alheia, que os liberte de sua confusão amaldiçoada. E repelem-na ao mesmo tem- po, tal é a condição dos enigmas. Esse travou o avanço das pedras, rebanho desprevenido, e amanhã fixará por igual às árvores, enquanto não chega o dia dos ventos, e o dos pássaros, e o do ar pululante de insetos e vibrações, e o de toda vida, e o da mesma capacidade universal de se corresponder e se completar, que sobrevive à consciência. O enigma tende a paralisar o mundo. Talvez que a enorme Coisa sofra na intimidade de suas fibras, mas não se compadece nem de si nem daqueles que reduz à congelada expectação. Ai! de que serve a inteligência - lastimam-se as pedras. Nós éramos inteligentes; contudo, pensar a ameaça não é removê-Ia; é criá-la. Ai! de que serve a sensibilidade - choram as pedras. Nós éramos sensíveis, e o dom de misericórdia se volta 46 "Opaco", em Claro enigma iop, cit., p. 261-262). 78 79 contra nós, quando contávamos aplicá-lo a espécies me- nos favorecidas. Anoitece, e o luar, modulado de dolenres canções que preexistem aos instrumentos de música, espalha no côn- cavo, já pleno de serras abruptas e de ignoradas jazidas, melancólica moleza. Mas a Coisa interceptante não se resolve. Barra o caminho e medita, obscura." o trecho crucial de "O enigma" consiste num breve mas luminoso apontamento sobre pensamento e ação, ou antes sobre o fracasso do pensamento frente à realidade: "pensar a ameaça não é removê-Ia; é criá-Ia". Um dos mais perfeitos poemas de Drummond, "Áporo" traz no seu cerne significante a admissão desse fracasso e a busca de uma sa- ída para o impasse dele decorrente. E isso desde o título: áporo é sinônimo de aporia, além de nomear um inseto e uma orquídea:". A saída não passa pelo pensamento racio- nal, lógico, mas pelo que lhe é radicalmente outro, a poesia em sua nudez extrema, no osso da palavra. O poema inicia- se com uma metáfora do pensamento sob a forma de uma escavação aparentemente sem fim: Uma atmosfera de medo envolve a cena, medo decorren- te da irrupção brutal da realidade humana - histórica - no seio da natureza, realidade pré-humana ("canções que preexistem aos instrumentos de música"). Atravessa o poe- ma a nostalgia dessa realidade natural cujo conhecimento - sensível, não intelectual- era e, residualmente, ainda é possí- vel, pelo menos a um observador não-humano, pela "capaci- dade universal de se corresponder e se completar, que sobre- vive à consciência". O homem põe tudo a percler: ao nomear a natureza "natureza" e a peclra "pedra", já interrompe as correspondances naturais. Se à natureza ele submete sem piedade, o que não fará com outros homens ... Um inseto cava cava sem alarme perfurando a terra sem achar escape. 49 O que interrompe o caminho do inseto é a própria terra que até determinado momento foi apenas seu caminho. O que determina a conversão do caminho em obstáculo é o cansaço, assinalado na estrofe seguinte. Nesta, formula-se uma per- gunta, para a qual o poeta não chega propriamente a uma resposta, mas antes a uma não-resposta, proveniente de uma região inóspita cio espírito que está simultaneamente aquém e além, definitivamente fora, de qualquer reflexão: ·18 O texto fundamental sobre" Ãporo ", mesmo quando dele discordamos, é ainda o de Décio Pignatari, "Áporo: um inseto semiótico", em Contracomunicaçáo (São Paulo: Perspectiva, 1971), p. 131-137. Ver também Davi Arrigucci ]r., "Sem saída", op, cit., p. 75-105. -19 "Aporo", em A rosa do povo (op. cit., p. 142). 47 "O enigma", em Novos poemas (op. cit., p. 242-243). Semelhante reversão do olhar, que passa a dirigir-se do inumano para o humano, encontra-se em "Um boivê os homens", de Claro enigma (op. cit., p. 252). Ali os homens também são contemplados como enigma, mas, destituídos pelo discurso bovino de sua pretensa superioridade sobre as demais criaturas, não como ameaça, senão para si mesmos. Embora, é certo, seus "sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme", despedaçando-se e tombando ao solo na forma de "pedras aflitas" (note- se a ressurgência do símbolo dileto), torne difícil, ao boi, a ruminação de sua verdade. Numa interpretação ligeira: os desejos humanos, concretizando-se em ações, perturbam a contigüidade primitiva dos seres naturais com sua verdade. Não será abusivo detectar alguma influência da doutrina do pecado original nessa consideração. 80 81 Que fazer, exausto, em país bloqueado, enlace de noite, raiz e minério? 1101' dizer" 51 • Antes, corrigiríamos, do que ficou por pensar. I)isso podemos deduzir que a intransitividade da poesia mo- derna e contemporânea - aqui resumida pela obra de um de seus maiores artífices em nível universal - não é fruto de um mero capricho de seus inventores, mas nasce dessa epistemologia desiludida implícita no ato criativo. A chave do entendimento de por que o impensável é de fato impensável provavelmente encontra-se no desvelamento, por meio da interpretação e da fantasia crítica (imprescindível ante uma lírica tão enigmática), da consistência histórica concreta da figura do "país bloqueado". Teríamos de nos deixar guiar, nessa direção, por Pignatari, que chamou a atenção para a pre- sença em marca d'água da realidade histórica no poema, sobre- tudo mediante a expressão destacada: "país bloqueado" repor- taria, a um só tempo, ao Estado Novo brasileiro e ao nazifascismo europeu, ambos agonizantes naquele ano de 194552• Agonizan- tes, porém marcados pelo poeta com o selo do "Nunca me es- quecerei desse acontecimento", expressão de um dever ético impreterível frente à face catastrófica da história". Pignatari e Arrigucci recorrem à noção de metamorfose para definir a relação entre o inseto e a orquídea, entre o pri- meiro áporo do poema e o último. Contudo, se observarmos Eis que o labirinto (oh razão mistério) presto se desata: em verde, sozinha, antieuclidiana, uma orquídea forma-se. A orquídea que se forma ao fim, como resposta à ques .. tão formulada, deve ser compreendida como metáfora do próprio poema em formação. (Não esqueçamos que uma "flor-poema", para falarmos como Pignatari, desabrocha em outro poema de A rosa do povo, o conhecido" A flor l' a náusea". Nele, a indagação que interrompe "Áporo" é apenas pressentida: "Quarenta anos e nenhum problema / resolvido, sequer colocado vw.) O poema, como orquídea, é aparição sensível, palavra como matéria e como coisa, a ganhar consistência ali mesmo onde o pensamento já não chega (daí "antieuclidiana"), por não achar escape em suas exaustivas perfurações do real. O poema nasce precisa- mente do impensável, como tropo complexo a este alusi- vo. O impensável é refratário à representação, sem a qual não há conhecimento; o impensável só encontra lugar na linguagem por meio da figuração, aqui concebida como gesto suplementar à representação obstruída. João Ale- xandre Barbosa, a propósito de Drummond, cogita do poema como "possibilidade de instauração do que ficou 51 BARBOSA, João Alexandre. "Silêncio & palavra em Carlos Drummond de Anclrade", em A metáfora crítica (São Paulo: Perspectiva, 1974), p. 108. 52 PIGNATARI, Décio. "Áporo: um inseto semiótico", op, cit., p. 137. Para Pignatari, "presto se desata" pode conter uma alusão à libertação de Luís Carlos Prestes, complementando assim o enraizamento do poema no tempo já efetuado por "país bloqueado". 5.1 Cf. Harald Weinrich, Lete: arte e crítica do esquecimento, tradução de Lya Luft (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001). 82 83 i i i 50 "A fi '" A dar e a nausea , em. rosa o povo (op. cit., p. 119). o poema de perto e com atenção, não identificaremos sequer um vocábulo que indique ou mesmo que apenas sugira a 111l' tamorfose do inseto do início na orquídea do final. Temos, na verdade, duas formas - a do inseto e a da orquídea - iso ladas ("sozinha", diz-se da orquídea), ligadas apenas pelo frágil liame da homonímia. A detenção nesse pormenor pod« parecer bizantina, mas é fundamental para a justa interprern ção do poema. Poderíamos tentar desmontar a noção de me. tamorfose por meio de uma analogia. Imaginemos qu« estarnos usando uma palavra inadequada para nos referir. mos a determinado objeto. De repente, damo-nos conta do equívoco e passamos a utilizar a palavra correta. Diremos que o primeiro objeto rnetamorfoseou-se no segundo? Essa tendência à correção do olhar ou da nomeação é freqüenr« em Drummond - recorde-se o verso exemplar "O amor IH I escuro, não, no claro", de "Não se mate"54 - e, acreditamos, está ativa em "Aporo". Essa hesitação é só outro sintomn das dificuldades do pensamento perante o real. Se houvesse de fato, como querem Pignatari e Arrigucci, metamorfose, continuidade ontológica entre formas diversas, o poema se apresentaria como produto resultante das investidos do poeta sobre a realidade, como decorrência direta do SCII esforço para conhecê-Ia, Assim sendo, teríamos de afiançar que o poema é, para Drummond, a forma final do trabalho d;1 cognição, teríamos de consentir que o poema alcança aprecn der uma imagem da realidade e a dá a conhecer sem maion-. impedimentos ou perturbações. Todavia, se não houver rnern morfose, só indiretamente, só tropicamente (de tropas, desvio), o poema remete ao esforço cognitivo que está em sua origem, 54 "N- "B . d AI ( .ao se mate, em rejo as mas op, at., p. 58). 84 IZecorrendo aos termos de outro famoso poema de Drurnmond, poderíamos dizer que, para ele, o poema pode até iniciar-se com uma luta com a realidade, mas só se encaminha para seu desfecho - recordemos a anagnorisis trágica - a partir de uma luta com as palavras». Que essa seja "a luta mais vã" não subtrai o poeta - de início "lúcido e frio", mas logo "exaspe- rado" - do seu caminho pedregoso e em treva. Antonio Candido .idverte que, para Drummond, "tudo existe antes de mais nada como paJavra".I6, Décio Pignatari, vinculando essa atitude ao. legado de Mallarrné, chega a proposição ainda mais cabal: "tudo em Drummond é palavra "57, O que podemos acrescen- lar é que a palavra, nessa obra, é a instância por excelência da interrupção. Pignatari, num ensaio crítico que é uma verda- deira tomografia sensível de "Áporo", demonstra exaustiva- mente como o pensamento encarna - e se interrompe - na palavra, constituindo percursos de letras e fonemas a replicar, gráfica e sonoramente, a escavação do inseto-reflexão e a lloraçâo da orquídea-poema. Em "Consideração do poema", Drummond caracteriza as palavras como "indevassáveis":". I':, em "Procura da poesia", ouvimos a palavra perguntar :10 poeta: "Trouxeste a chaver ">". Não há, pois, propriamente, em Drummond, "lira fi- losófica", como quer Merquior'", ou "poesia reflexiva", como ",),. II Ver "O lutador", em José (op. cit., p. 99-101). Ih CANDIDO, Antonio. Op. cit., p. 139. PIGNATARI, Décio. "A situação atual da poesia no Brasil", op, .it., p. 100. ',S "Consideração do poema", em A rosa do povo iop. cit., p. 115). ,., "Procura da poesia", em A rosa do povo (op. cit., p. 118). ,." MERQUIOR, José Guilherme. "Nosso clássico moderno", em Critica 1964-1,989 (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990), p. 307. 85 quer Arrigucci - embora este introduza uma importante mil dl!lação ao falar de "reflexão rítmica" a propósito dI' "Aparo" e ilumine nossa investigação quando indica "o n:lo saber" C01110 horizonte da reflexão em "Mineração do outro", ou ainda quando, sobre o mesmo poema, conjetura acen., do "caráter incognoscível extremo daquilo mesmo que nr», atrai com o fascínio do inexplicável "61, Há, sim, a impossi bilidade da filosofia, a ruínada reflexão, O trágico moder no, em Druml11ond, aparece exatamente como a coincidên cia entre a consciência histórica e a inter1'llpção do ethos 011 pathos reflexivo: a realidade histórica, o "tempo presente", revela-se, como já dissemos, impensável e incognoscível. Como a Sua é uma poesia que incessantemente coloca a si mesma em questão, uma poesia que existe somente a partir de uma refle- xão matriz sobre o que é e o que não é poesia, sobre quais seus limites, razões e fidelidades, mais dramático se torna esse movimento pelo qual a reflexão se anula para que o poema possa existir, A reflexão sobre a poesia já é reflexão sobre a realidade histórica, que inevitavelmente a abarca, Disso de- corre que, a rigor, o poema seja desconhecido de si mesmo , quanto mais do poeta, Por isso, talvez, Drummond supo- nha que "a poesia mais rica I é um sinal de menos"62, A singularidade de Drummond consiste, em larga medida, na arte de insular na palavra poética essa negatividade, sem no entanto romper os laços com o presumÍvel leitor. Drummond nunca dá o salto final no silêncio ou na palavra absoluta- mente oclusa que nos assombra, por exemplo, num Paul Celan. "A poesia é incomunicável", escreve ele em "Segredo", (il- Brejo das A1111as63• Essa incomunicação se estabelece, num r.r.iu mais elevado do que entre poema e leitor, entre poema e .calidade e, no interior desta, entre o poema que efetivamente se lorrnou e o poema que poderia ter sido, se a reflexão e a cognição 11:10 fracassassem. Como se esclarece na "Confidência do irabirano", essa incomunicabilidade pode nascer da própria per- sonalidade do poeta, de seu "alheamento do que na vida é porosidade e comunicação't'". Mas o que importa ressaltar é que essa incomunicação implica também o fracasso da ação sobre :l realidade, de que a solidão do poeta, solidão ou prisão em sua "classe" e em algumas "roupas", tal como figurada em tantos poemas, é i1ustrativa: "Para onde vai o operário? Teria vergo- nha de charná-lo meu irmão"65. Vergonha, culpa e remorso são inseparáveis do ennui e da incomunicação inerentes ao poema. Em "Procura da poesia", integrante de A rosa do povo assim como "Aporo", vê-se isso de modo exemplar, embora, como em todo poema que realmente interessa, por fim, como veremos, se supere a própria exemplaridade. O momento de engajamento político mais explícito é também o da mais aguda ciência das limitações do poema em sua relação com qualquer realidade exterior ou interior. O poema se estrutura inicial- mente como uma seqüência de imperativos negativos dirigidos pelo poeta a si mesmo. Em meio a, e, principalmente, depois de, uma enumeração de dados da realidade - os "acontecimentos" - vedados à poesia, Drummond conclui: "O que pensas e sen- tes, isso ainda não é poesia"66. Mas mais relevante ainda, 63 "Segredo", em Brejo das Almas iop, cit. p. 59). 64 "Confidência do itabirano", em Sentimento do mundo (op. cit., p. 68). 65 "O operário no mar", em Sentimento do mundo (op. cit., p. 72). 66 "Procura da poesia", em A rosa do povo (op. cit., p. 117). 61 ARRIGUCCI ]R., Davi. Op. cit., p. 85, 126 e 144, 62 "Poema-orelha", em A vida passada a limpo (op. cit., p. 418). 86 87 de nosso ponto de vista, é a afirmação de que a poesia "eli.lo sujeito e objeto". Anula-se, assim, a condição sine qua non do conhecimento. Resta, como campo de ação (ou de batalha, como no já citado "O lutador"), somente a palavra: Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos." Contudo, um pouco adiante, chega-se a uma formulação capital, pareando palavra e silêncio na consumação do poema: Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio." Poderíamos evocar, em paralelo, o fecho de "Canto esponjoso": Vontade de cantar. Mas tão absoluta que me calo, repleto.f" Mas o encerramento de "Procura da poesia" é ainda mais significativo: Repara: ermas de melodia e conceito elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono, rolam num rio difícil e se transformam em desprezo. 70 67 Idem (op. cit., p. 117). 68 Idem (op. cit., p. 118). 69 "Canto esponjoso", em Novos poemas iop. cit., p. 239). 70 "Procura da poesia", em A rosa do povo iop. cit., p. 118). 88 Aqui, O "poder de silêncio" sobrepujou o "poder de pala- vra" ("ermas de melodia e conceito"), mas não o suficiente, e as palavras persistem como fantasmas, reminiscências de uma potência abortada, e, como tal, expressões concentradas de um desprezo absoluto, impermeável, no limite, à paráfrase ou interpretação. Na continuação do trecho citado de "O operário no mar", Drummond escreve: "Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza ... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos "71. Contudo, seria ingênuo reduzir o desprezo de "Procura da poesia" ao desprezo do outro poema. Talvez apenas uma célebre sentença de Nietzsche fizesse justiça à significação abissal de "desprezo" no verso final: "Aquilo para o que temos palavras, já o deixamos de lado. Em todo discurso há um grão de desprezo". Somente a total aniqui- lação da poesia suplantaria esse desprezo, e Drummond não é insensível a essa exigência: '.I!II1", I1 I I ' Impossível compor um poema a essa altura da evolução [da humanidade. Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de [verdadeira poesia. 72 Mas não tenhamos dúvida: é precisamente nessa abissalidade , nessa interrupção que impõe à atividade hermenêutica e à reflexão crítica, que a poesia de Drummond mostra-se, de modo mais inequívoco, marcada pelo tempo <:111 que foi concebida. Continua valendo, para esses instan- tes, o que de sua obra disse Mário Faustino: "no futuro, I Ir II 71 "O operário no mar", em Sentimento do mundo iop. cit., p. 72). -2 "O sobrevivente", em Alguma poesia. (op. cit., p. 26). 89 Coisas Fora do Tempo: a Poética do Resíduo --------------------l , I Jerônimo Teixeira quem quiser conhecer o 'Geist' brasileiro, pelo menos de entre 1930 e 1945, terá que recorrer muito mais a Drummond que a certos historiadores, sociólogos, antropólogos e 'filósofos' nossos .. .'>73. Que pintura mais fiel de um "país bloqueado" podemos desejar do que uma poesia bloqueada? Eduardo Sterzi é poeta e crítico literário. Publicou Prosa (IELjCORAG), em 2001. Mestre em Teoria da Literatura (PUCRS) com dissertação sobro Murilo Mendes, cursa doutorado em Teoria e História Literária na Unicamp. Edita, com Tarso de Melo, revista de poesia Cacto e o zine Nasdaq. Carlos Drummond de Andrade é o oeta da tralha. Tudo ()que n~~Le~~a p~ra nadase transfigura emseus versos - e, em contrapartida, o que julgávamos duradouro e precioso revela sua iace mais frágil e contingente. Mesmo quando Drummond parte em direção ao vazio, ao nada mallarmeano, não deixa de carregar seus restos, as sobras do extinto mun- do rural de Itabira e os refugos da metrópole moderna por onde ele perambula entre melancolias e mercadorias. É o que constatamos no final de "Campo de flores": Para Jerônimo Teixeira, a quem devo ter roubado umas tantas idéias Para fora do tempo arrasto meus despojos e estou vivo na luz que baixa e me confunde. I Tomados isoladamente, mal dá para acreditar que estes versos pertençam a um poema de amor. Não é costumeiro associar esse sentimento a despojos de qualquer tipo - pelo 73 FAUST1NO,Mário. "Poesia-experiência", em Sônia Brayner (org.), Carlos Drummond de Andrade: fortuna crítica (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 90. De Claro enigma. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e "rosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. p. 219. Todos os poemas são citados a partirdessa edição. Doravante, serão indicados apenas o número da página e, quando não constar no texto, o título do livro original a que o poema pertence. 90 91
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