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I)o P/e/deio _______ RELÓGIO D’ÁGUA JoséGil Metamorfoses do Corpo Rua Sylvio Rebelo, n.° 15 1000 Lisboa Telef.: 847 44 50 Fax: 847 07 75 Tí tulo: Metamorfoses do Corpo Autor: JoséGil Capa: Fernando Mateus sobre foto de António Pedro Ferreira («Expresso») © Relógio D’Água Editores, Dezembro de 1997 Composição e paginação: Relógio D’Água Editores Impressão: Arco-Í ris, Artes Gráficas, Lda. Depósito Legal n.°: 118524/97 Antropos paço de limiar, na interface, no rosto, nos gestos, cava para aquém desse limiar uma linha de fuga infinita. E a linha de fuga éuma linha de movimento. Um rosto éum espaço po tencial de buracos ou linhas de fuga infinitas: uma emoção, um medo que aparece no olhar, e éum mundo infinito que se abre e corre para nós, ou foge de nós — e, nesse movimento, a alma; um pensamento que nos surpreende, um riso — outro mundo, e do fundo infinito, a alma que se aproxima. Tão per to que a adivinhamos logo; e sempre tão distante, que nos resta apenas, para a atingir, a velocidade quase-instantânea do pensamento, que nunca lá chega. Somos um «movimento para»: e conforme a fricção, a resistência, o peso, a leveza, a opacidade dos diferentes suportes, esse movimento adquire ou não uma velocidade expressiva, quer dizer que permite à alma exprimir-se. Velocidade da alma, que torna paradoxal o seu lugar: émóbil, a alma está sempre lá, e pode estar mais ou menos lá. E quanto menos lá está porque mais se desdo bra a linha do infinito em espaços expressivos, mais a alma se aproxima do-Seu lugar. E que o seu lugar está no seu mo vimento, no movimento que para ele próprio tende. E a for ma-movimento dessa velocidade. Por isso, quando olhamos um rosto, não fixamos nenhum ponto preciso do espaço objectivo: nem os lábios, nem os olhos, nem os cabelos; mas se neles nos detemos, épara logo saltarmos para um espaço indefinido, percorrido por movi mentos finí ssimos, sem pontos determinados, uma neblina invisí vel que envolve o rosto do outro; aí esperamos o surgi mento do que buscamos, através de vibrações mí nimas, im perceptí veis, que a anunciam: a alma, disseminada na atmos fera. Por isso não a vemos nunca, mas a sentimos. Está em parte nenhuma, ali. 2. PARA QUE SERVE UM ROSTO? Por que se diz que há «incarnação» do sentido numa ex pressão da cara? Porque se reconhece no traço do rosto a in tenção de significar; mais: esse traço significa, ésentido para nós que o vemos. Cabe perguntar: como épossí vel que um traço fisionómi co, umas maçãs do rosto salientes, uns olhos mais afastados do que éhabitual sign~fiquenj imediatamente, como expres são exterior de um interior? Façamos algumas variações imaginárias, à boa maneira fe nomenológica. Consideremos uma cabeça mas sem rosto, co mo certas figuras de monstros que possuem no lugar da cara um buraco apenas; ou mesmo como aqueles camponeses da última fase de Malevitch, sem rosto, a cabeça em forma de oval de uma ou duas só cores. Imaginemos movimentos da pele que se desencadejam nessa superfí cie lisa: nada indi cam, nada significam, a menos que sugiram dois olhos e uma boca. Mais, se imaginarmos movimentos expressivos nesses corpos sem rosto, verificamos que lhes falta qualquer coisa de essencial para os compreendermos imediatamente: preci samente, só interpretandoos como se interpretam os movi mentos de um autómato, referencjandoos um a um, aos mo vimentos de um corpo vivo, os compreendemos Não épois a mesma coisa o sentido dos movimentos num corpo sem rosto, e o sentido dos mesmos movimentos num corpo com um rosto, quer esses movimentos sejam os dos músculos do lugar da cara, ou do resto do corpo. Que trará o rosto à compreensão dos gestos e dos traços faciais? Traz, primeiro, a recognição. Recognição imediata de um suporte de sentido, a partir do qual gestos e movimentos to mam significados. Ao contrário dos gestos do autómato que têm de ser inventariados e referidos a um modelo vivo para serem entendidos, na compreensão imediata dos traços do 162 163 Lucas Valente Lucas Valente rosto ou dos movimentos do corpo, dá-se o contrário: épor que se reconheceu primeiro um rosto que se interpretam ime diatamente os traços que nele surgem e se inscrevem. Tal olhar ou curva do nariz toma sentido porque pertence a um rosto. E os movimentos de um nadador com rosto tomam sentido para nós sem que o questionemos, sem que a mí nima indeterminação venha perturbar a nossa interpretação; mas com verí amos nadar um corpo sem rosto? Podemos avançar que o rosto éo suporte da relação de sig no, digamos da relação significante/significado que nasce do esgueire. E o equí voco necessário, que faz que tomemos o exterior pelo interior, funda-se, antes de mais, no rosto. Não há relação de sentido que não reenvie, de perto ou de longe, a um rosto. Dito de outro modo: o que permite que um traço fisionó mico signifique, éo rosto. Mais: o que permite que um gesto corporal seja imediatamente apreendido como significante, é que o corpo de que emana forma um rosto. Em termos kan tianos poderí amos dizer que o rosto éo «esquema» do senti do de que todo o movimento e todo o traço corporal sensí veis são imagens: o rosto éa regra ou «anagrama» como diz Kant, de desenvolvimento de uma forma da imaginação. E porque «o rosto» se desdobra e se fixa em tal rosto que tal traço (o nariz arrebitado) toma um sentido. Precisemos esta ideia a partir da concepção de Deleuze e Guattari em Mille Plateaux: antes do rosto, afirmam eles, há a «rostoidade» (visagéité) que éuma máquina abstracta, um agenciamento entre dois dispositivos: um muro branco e um buraco negro. Todo o rosto concreto tem o seu muro branco, as suas zonas desérticas imensas (tal como aparecem nos grandes planos do rosto, no cinema), como o seu buraco ne gro (os olhos, o olhar). O muro branco ésuperfí cie de ins crição, o buraco negro reenvia para um processo de subjec tivação. Assim, a máquina abstracta da rostoidade sustém e alimen ta dois processos: um de produção de signos e outro de pro dução de subjectividade. E, para além dos rostos concretos, esta máquina abstracta — e porque o é, e não uma essência, nem apenas uma estrutura singular —, está sempre prestes a marcar (que émais ou menos o que chamámos «esquemati zar») qualquer parte do corpo, qualquer superfí cie natural, não humana: a «rostificação» do corpo inteiro, a representa ção de corpos de olhos, nos tornozelos, nos joelhos, no ven tre, nos ombros, nos braços, éuma tentação geral como o mostram os célebres «rolos terapêuticos» da Etiópia, ou o «monstro de Cracóvia» que surge nos tratados do século XVII de teratologia. Tentação permanente, porque a máquina muro branco/buraco negro suscita os processos de significân cia e de subjectivação: lembremo-nos ainda da personagem de Chesterton que via milhares de caras nas cascas de batata ou simplesmente no quadro deMagritte em que dois olhos, um nariz e uma boca surgem por cima de um vale, entre duas montanhas. Montanhas com olhos como em desenhos de psi cóticos131, não porque haja semelhanças entre formas mas porque há razões determinadas para que ali, a propósito do significante montanha, comece um processo paranóico de subjectivação. Como escreve Deleuze e Guattari, a rostoidade apela para uma máquina de significância porque as significações ver bais — que a fala constrói na lí ngua — não seriam imaginá veis sem um rosto que as profira; com elas não seriam tam bém possí veis sem uma subjectividade que as ancore: não há relação de signo a significado sem a subjectivação do sujeito da enunciação, e sem um reenvio a este como buraco negro. Ora éisto mesmo o que apresenta o rosto. Sem ele não há fundura subjectiva que absorva o excesso de significado dos 131 V. Gisela Pankow, L’Homme et sa psychose. 164 165 Lucas Valente Lucas Valente signos linguí sticos. O rosto reenvia, ao sujeito que se lhe di rige, a certeza de a linguagem se não perder em excesso de sentido: o alocutório faz convergir os significantes verbais para um só ponto a que eles se referem (ele épolí cia, mulher, etc.). A indeterminação própria da linguagem, a sua equivo cidade e polissemia são reduzidas por absorção do que na fa la não se dirige a um rosto. Como vimos, dirigir-se a uma cabeça sem rosto equivale a dirigir-se a ninguém — porque não haveria já um «lugar» a partir do qual situar o outro como receptor das mensagens verbais (a relação dialógica desapareceria), O rosto oferece esse lugar de que necessita todo o sentido; e, assim, ele cen tra o sentido. De tal modo, que se pode dizer que não há sen tido sem rosto porque há um rosto do sentido. Talvez esta expressão se revele menos metafórica do que parece. A centração das significações étornada possí vel pela superfí cie de inscrição (muro branco) dos significantes da fa la que reenviam para o buraco negro do olhar. O rosto do sentido seria o que, no circuito da fala entre um locutor e um interlocutor, se apresenta como condição primeira do diálo go: que cada um compreende que o outro compreendeu. Ou seja, que se reconhece no outro qualquer coisa que não édito na mensagem mas que écondição da sua recepção: um rosto daquilo que diz, o rosto do sentido. Ora este, que éo reco nhecimento de que o outro possui o suporte inquestionado para a compreensão da mensagem, surge na própria manifes tação do que éo rosto de outrem para mim. Mas o que éo rosto de outrem para mim? E o que éo meu próprio rosto para mim? Comecemos por esta última questão. Para cada sujeito, o espaço onde mais provavelmente situa o seu «eu», éaquele de onde olha, de onde ouve e se ouve a si próprio falar: a boca, os olhos, os ouvidos e, em menor grau (hoje, em que o olfacto se encontra atrofiado), o nariz, formam um complexo de órgãos sensoriais que, pela sua dis posição (simétrica e à volta do hemisfério frontal da cabeça), induzem um «centro» de onde vem e para onde vai o sentido na comunicação. Se éao rosto que me dirijo quando falo, éporque émais do que um simples écran ou superfí cie de inscrição: tem vá rias camadas, possui uma profundidade própria (buraco ne gro). Da mesma maneira o meu rosto recebe a fala do outro protegendo-me ou deixando-a entrar atéàs regiões mais pro fundas (o inconsciente). O rosto éuma superfí cie particular de entrada do exterior para o interior. Vejamos se a descrição éa mesma quando se trata do meu rosto «visto» por mim (do interior). A primeira observação é que o meu rosto não está em parte nenhuma do espaço. Não o vemos, quando olhamos, sorrimos, falamos, ouvimos. Por outro lado tem-se a impressão que o «eu» se situa no interior, por detrás da superfí cie interna da cara que também não ve mos. Que não vemos mas pressentimos pois percepcionamos parte do nariz, das pálpebras, das sobrancelhas ou das maçãs do rosto. De certa maneira habitamos de modo permanente a interface entre o exterior (a que pertencem essas percepções fugazes e fragmentárias da cara) e o interior. Mas se o exte rior éluz, o interior não são trevas, nem sombra. Paradoxal- mente, o inverso do exterior, aquele espaço de onde olhamos para fora não está num interior abissal ou tenebroso, ou ape nas sombrio à semelhança desse écran negro que vemos quando fechamos as pálpebras. O sujeito da percepção — que se situa na zona do rosto, ainda não sabemos bem se atrás se à frente —, não habita a escuridão de um espaço interior cortado do exterior. Está, co mo vimos, no limite, na zona fronteiriça entre o interior e o exterior, mas nem por isso se define como espaço crepuscu 166 167 Lucas Valente lar, no sentido em que seria povoado de sombras, iluminado por um claro-escuro. O paradoxo éque, sendo um espaço de limiar, essa zona de onde olhamos a paisagem participa na luz da paisagem. Não vemos o nosso próprio rosto, não ve mos a sua superfí cie interna, não vemos o sí tio de onde ve mos o resto do mundo. Mas, da mesma maneira que adivi nhamos as três faces do cubo escondidas por detrás das que percepcionamos, adivinhamos também que estamos aqui, que a infinidade dos pontos da paisagem converge para aqui: vejo-me imaginariamente dali, e o meu rosto esconde-se-me daqui como as três faces do cubo que não visse. Mas estas estão na luz, como o está o meu dorso (neste sentido, o meu rosto é, para mim, como que um dorso que continuasse a sê- -lo mas voltado para a frente). Que o meu rosto esteja na luz e que eu não o veja vai ter consequências múltiplas e decisivas no modo de o apreender e na percepção da paisagem. Em primeiro lugar, nunca visto, percepcionado, o rosto se-lo-á apenas através de uma ima gem (no espelho, e na própria cara dos outros); em segundo lugar, porque nunca se vê mas a partir dele vê-se a paisagem, uma série de relações estabelecem-se entre a paisagem e o rosto: há uma correspondência entre a superfí cie do rosto e o espaço global da paisagem, relação de quase homotetia. A paisagem projecta-se no rosto, este é, por vocação, a superfí cie de inscrição da paisagem — o que bem compreenderam os pintores da Renascença, com a ajuda da perspectiva. Mas esta correspondência édinâmica: a paisagem entra pelo rosto dentro para nele se inscrever (ou, mais fundo, no espaço interior); e, ao contrário, éo rosto com o seu sistema muro-branco/buraco-negro que se projecta e inscreve na pai sagem. Notemos que a superfí cie do meu rosto participa da ocularidade total da paisagem, como se todo o rosto fosse um imenso par de olhos ou apenas uma superfí cie visual no pro longamento da paisagem. Para compreender como épossí vel esta dupla projecção, tem de se recorrer à relação de reflexo entre o meu rosto e o rosto dos outros. Não vejo o meu rosto, mas vejo o dos outros. Como se sa be, a primeira relação «intersubjectiva» do bebéécom o ros to da mãe. E uma relação osmótica, não propriamente sim biótica, como o mostrou Daniel Stern. Osmótica, aqui, signi fica: os investimentos de desejo, de afecto, de necessidade mesmo, do bebésão espelhados, em resposta, nos gestos e, sobretudo, no rosto da mãe. E esta vê no rosto do filho a reacção dele à sua própria resposta. Um sistema complexo de signos e sinais faciais vai permitir a troca entre a mãe e o be bé, sistema de que faz parte um dispositivo central: o interior (instrumentos afectivos) da criança prolonga-se (quer dizer, exprime-se) na cara da mãe; e o interior da mãe (quer dizer, a sua relação à criança) exprime-se na cara da criança. Este dispositivo leva rapidamente a uma relação osmótica na pró pria imitação dos sinais, O espelhamento (por exemplo, a mãe sorri para induzir um sorriso na criança) passa necessa riamente pela osmose afectiva. O que significa que o que se projecta para induzir signos e expressõessão antes de mais forças — entoações de voz, olhares expressivos —, forças que se transmitem através de impressões í nfimas, «per cepções subtis», como diz Françoise Dolto, ou pequenas per cepções. (Aliás, o mimetismo comum dos adultos que adop tam os tiques faciais do interlocutor depende, como facil mente se verifica, do tipo de força que se joga na relação dual.) Assim, o rosto éuma entrada para forças, e o rosto que ad quiro, para mim, é-me significado, antes de mais, pelo rosto dos outros. Não como uma imagem do espelho (em que nem eu nem a imagem chegam a ser «outros»), mas como pólos de indução de forças mais ou menos conscientes que indu zem signos. O meu rosto é-me significado indirectamente, 168 169 através de pequenas percepções refractadas nos rostos dos outros. Sem os outros eu não teria rosto. Mas o rosto que te nho, e que nunca vejo, depende do processo de significância e de subjectivação que o sistema buraco-negro/muro-branco dos rostos dos outros induzem em mim. Não vejo o meu rosto em mim; e no rosto dos outros vejo a minha relação (de forças, afectiva) que com eles estabeleço; vejo, pois, qualquer coisa como a marca do meu rosto neles, marca que depende do que o rosto deles provoca em mim. Escapo desta sobreposição ameaçadora de caos (caos na mi nha imagem de mim, incapaz de me desembaraçar da ima gem dos outros, caos de identidade), não vendo senão indi rectamente o meu próprio rosto: nas pequenas percepções, entre os traços de rosto que atribuo aos outros. Porque na relação de reflexo eu não tenho nenhuma ima gem directa de mim, adquiro a possibilidade de disseminar traços do meu rosto (invisí veis) fora de mim, no rosto dos outros e na paisagem. E a geografia das forças e dos afectos que se exprime em traços de paisagem que são traços de ros to. Inversamente, o interior do rosto torna-se paisagem por que o olhar capta o exterior em que ele próprio se encontra espalhado, disperso, investido — em toda a luz que éele não se vendo —, e absorve-o para o interior (buraco negro). Co mo diz Leonardo da Vinci, falando enquanto anatomista: «As montanhas são a carne e os músculos, os rios são as veias...», etc. «O rosto éum mapa.’32» Esta porosidade do rosto, deixando entrar a paisagem, dei xando penetrar mais ou menos fundo o olhar do outro, expli ca patologias graves como, por exemplo, o medo de rubori zar em público, como se de repente a cara deixasse de ser um écran protector e se esburacasse inteiramente, como se o olhar do outro irrompesse sem obstáculos e invadisse todo o 132 G. Deleuze, F. Guattari, Milie Plateaux, Ed. Minuit, p. 208. interior. Éque na relação de reflexo, no ver/ser-visto, este úl timo não significa ser visto do exterior, mas ser visto atéao interior, como se a barreira da pele (que funda o esgueire) se desmoronasse, e o olhar do outro visse a «alma» do sujeito. O que mostra que o rosto, mais uma vez, éuma entrada, se não a entrada principal do corpo. Capaz mesmo de codificar todo o corpo próprio, crivando-o de rostos ou tornando-o ros to por completo. Não possuo pois um só rosto, mas múltiplos rostos. Porque o rosto não énem uma figura objectiva desenhada na pele, nem a expressão pura e incondicionada de um interior. Mas é um sistema em equilí brio sempre instável, que se fixa espo radicamente, numa figura ou outra da subjectividade. «Cada um tem o rosto que merece» — isto significa apenas que o processo de subjectivação a que foi submetido resultou ou não, segundo o rosto que mostra. Porque o poder, e os seus diversos sistemas de signos, têm necessidade de produzir cer tos tipos adequados de subjectivação, e, assim, de rostos. O que funda a possibilidade de produzir rostos, éaquela re lação osmótica do afecto e da cara da mãe que faz do rosto próprio, antes de mais uma entrada (buraco negro). Há caras de função (de polí cia, de professor, de esposa, de escravo, de con sumidor, de fruidor da cultura de massa, etc.), que não são ape nas efeitos, mas agem sobre outras caras, induzindo transver salmente processos de subjectivação. Há disciplinas necessá rias do olhar, composturas convenientes do sorriso, inocências da pele que são exigidas e induzidas por sistemas de poder. Não épor acaso que os í cones dos déspotas são tão impor tantes para o poder polí tico: de Hitier a Mao Tsé-tung ou a Estaline, a fotografia gigante fabrica um modelo de rosto que incide sobre um processo de subjectivação determinado. A «imagem pública» dos lí deres em democracia releva, no en tanto, da mesma lógica. Como também todo o sistema de re tratos de stars. 70 17’ Lucas Valente Deleuze e Guattari aventam a seguinte hipótese: só há um rosto, o do homem branco. O rosto seria uma invenção do Ocidente, com o rosto de Cristo, nomeadamente. Assim, ve rí amos povos com belí ssimas cabeças, africanos, í ndios, asiá ticos, mas sem rosto. Sem o sistema da rostoidade, muro- -branco/buraco-negro. E éverdade que a representação da fa ce, na iconografia oriental, africana ou amerí ndia não tem a identidade de um rosto. Como invenção ligada ao processo de subjectivação (necessário a sistemas de poder), o rosto se ria especí fico do Ocidente. Qualquer que seja o valor desta hipótese, écerto que uma das caracterí sticas da cultura mundial de massa de hoje, cul tura do capitalismo universal, éa produção de faces sem ros to. Estaremos a realizar actualmente o que toda uma geração, senão um século de arte e literatura moderna, desejou, e que exprimem bem as palavras de Michel Foucault: «Escrevo pa ra deixar de ter um rosto?» Quer dizer, para deixar de ter uma identidade social, um estatuto, um lugar desde sempre imposto; para poder devir, devir-imperceptí vel, devir-outro. Isto, sem dúvida, era o que queria Foucault significar. Ora as faces sem rosto de hoje — ou de um só rosto — são estra nhamente rí gidas, significantes, pregnantes, ostensivas. Ne nhum devir-outro as atravessa, nenhum desejo de desapare cer. Por isso, em reacção, surgem aqui e ali fenómenos insó litos, máscaras-rosto que escondem o rosto-suporte de sub jectivação; maquilhagens ou tatuagens faciais que pervertem a significância dos signos do homem-rosto da cultura de massa; boby-piercing ou face-piercing que arranca à pele a sua disponibilidade para se transformar em sintagma muro- -branco/buraco-negro, negando-lhe toda a possibilidade de se subjectivar. Em nome do corpo, contra a subjectivação do rosto. 3.0 CORPO E O INCONSCIENTE Sabe-se hoje que o corpo tem um papel fundamental na or ganização do inconsciente. Mas qual exactamente esse papel, como o corpo intervém na vida pulsional e imagética incons ciente, éainda tão misterioso como a articulação corpo -psyché. Na verdade, étambém ou, sobretudo, através do in consciente que o corpo age sobre a consciência. As disciplinas e práticas cientí ficas que têm por objecto o corpo não nos ajudam muito. A situação actual da medicina e da cirurgia éparadoxal: à medida que avança o conhecimen to do corpo, mais se faz notar a falta de um progresso corres pondente no conhecimento da psyché, como se o corpo de que se ocupam aquelas práticas nada tivesse a ver com a «al ma» que exploram ou tratam as disciplinas e terapias psicoló gicas. Quanto mais a medicina se especializa, mais se verifi ca a necessidade do médico generalista que tende a desapare cer, ou seja, mais se manifesta a exigência de integrar a pró pria relação médico-doente no tratamento farmacológico ou tecnológico — com toda a carga curativa «psi» que ela im plica. E no plano da cirurgia, quanto mais ela emprega quase exclusivamente a alta tecnologia, mais se descura a ajuda psí quica de que o operado tem tanta necessidade, às vezes, para sobreviver. Por isso em muitos hospitais europeus cria ram-se anexos de «apoio psicológico» — recorrendo-se, sur preendentemente, à sofrologia e outrastécnicas de relaxa mento, ou a psicoterapias várias. Ora não existe articulação teórica ou prática entre a ciência que trata o corpo, e os sabe res que se ocupam da psyché: a sofrologia deriva do ioga, e as diversas formas de psicoterapia supõem imagens do corpo que não se adequam ao corpo anatómico e fisiológico da me dicina e da cirurgia. Não se desenvolveram saberes especí fi cos sobre o «trauma» que constitui uma operação cardiovas cular; ou uma operação ao cancro da mama; ou — no campo 173 img-804151944-0001 Para que serve um rosto - Jose Gil img-804150559-0001 img-804151336-0001
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