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Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB v. 7 n. 1 janeiro/junho 2008 Brasília ISSN – 1518-5494 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização de seus autores.• Disponível também em: <http://www.vis.ida.unb.br/posgraduacao>• - Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte. - v. 7, n1, 2008. - Brasília: Editora PPG - Arte UnB, 2008. 110 p. Semestral ISSN: 1518-5494 1. Artes Visuais. 2. Arte Contemporânea. 3. Interdisci- CDU 7(05) V822 VIS plinaridade. 4. Arte no Brasil. 5. Processos Artísticos UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Reitor Roberto Armando Ramos de Aguiar Vice-Reitor José Carlos Balthazar INSTITUTO DE ARTES Diretora Suzete Venturelli Vice-Diretora Glêsse Maria Collet Araújo PROgRAmA DE PóS-gRADUAçãO Em ARTE Coordenadora Elisa de Souza Martinez VIS Editora Elisa de Souza Martinez Conselho Editorial Ana Maria Tavares (USP), Elisa de Souza Martinez, Elyeser Szturm, Maria de Fátima Burgos, Maria Eurydice de Barros Ribeiro, Sandra Rey (UFRGS), Soraia Maria Silva, Vera Siqueira (UERJ) Capa Regina Silveira Projeto Gráfico Christus Nóbrega Ilustrações das páginas 100, 101 e 105 Christus Nóbrega, a partir dos azulejos criados por Athos Bulcão para o Instituto de Artes (UnB) e para o Instituto Rio Branco (MRE), em Brasília. Revisão - Português Rejane de Meneses Yana Palankof Agradecimentos: Leonardo Rodrigues, Flávio Araújo e Bárbara Duarte ERRATA | v.6 n.1 Página 7 – 3ª. linha: onde se lê “Entrevista com o artista, em seu artista no Rio de Janeiro” leia-se “Entrevista com o artista em seu ateliê no Rio de Janeiro”. Programa de Pós-Graduação em Arte Universidade de Brasília Campus Universitário Darcy Ribeiro Prédio SG-1 Brasília, DF – 70910-900 Telefone: 55 (61) 3307-2656 Fax: 55 (61) 3274-5370 idapos@unb.br EDITORIAL HOMENAGEM Regina Silveira PONTOS DE CONTATO Artificações, Inquietações e Experimenções em Sociologia da Arte João gabriel L. C. Teixeira Que história da arte queremos? maria Amélia Bulhões Ser ao vento Rita de Almeida Castro Entre o ativismo e a macumba: arte e afro-descendência no Brasil contemporâneo Roberto Conduru 10 apontamentos sobre arte contemporânea e pesquisa Sandra Rey Depois do moderno e em plena contemporaneidade, o desafio de pensar a arte brasileira do século XIX Sonia gomes Pereira DESDOBRAMENTOS Athos Bulcão, extramuros e intramuros: artista-capital grace maria machado de Freitas DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PPG-ARTE NO PERÍODO 1/2008 NORMAS PARA COLABORADORES 5 7 22 32 44 55 68 73 96 107 108 SUmÁRIO 5 EDITORIAL Este número especial da VIS marca o início de uma nova etapa do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília a partir da abertura do curso de Doutorado em Arte. Desde o final dos anos 1980, quando um plano estruturador do Instituto de Artes foi elabo- rado, espera-se que a consolidação do espaço para o ensino, a pesquisa e a extensão na UnB seja plena com a oferta de cursos em todos os níveis de formação acadêmica. Em 1994, foi iniciado o curso de Mestrado em Arte com uma única área de concentração: Arte e Tecnologia da Imagem. Após algumas reestruturações, o PPG-Arte hoje é composto por quatro linhas de pesquisa (Arte e Tecnologia, Poéticas Contemporâneas, Processos Composicionais para a Cena e Teoria e História da Arte) vinculadas à área de concentração Arte Contemporânea. Para marcar o início das atividades do Doutorado, realizamos o Seminário Avançado Pers- pectivas para a Investigação da Arte, de 5 de maio a 7 de julho, no qual tivemos o privilégio de receber um diversificado grupo de conferencistas para compor um panorama atual da pesquisa, da prática e da reflexão crítica no país. Reunimos neste número da VIS as contribuições que nos foram enviadas por alguns dos cola- boradores do seminário, com o objetivo de compartilhar o rico conteúdo das palestras com aqueles que não tiveram a oportunidade de assisti-las. A partir do conjunto de textos reunidos, nosso projeto editorial foi ligeiramente alterado para caracterizar o valor que atribuímos à generosa contribuição de nossos colaboradores. Iniciamos nossa edição com uma homenagem a Regina Silveira, que com generosidade e entu- siasmo nos enviou um presente duplo: o projeto da capa e um ensaio visual, ambos inéditos. Consideramos importante reconhecer que a consolidação da pós-graduação em arte no Brasil é resultado do trabalho de muitos outros pesquisadores pioneiros que nos antecederam. Ao homenagear o trabalho da artista Regina Silveira, homenageamos todos os que como ela contribuíram para a ampliação dos espaços de pesquisa e formação de pós-graduandos nas universidades brasileiras. Na seção Pontos de Contato, a diversidade de abordagens reflete a amplitude das pesquisas desenvolvidas no PPG-Arte. Tendo em vista que as fronteiras entre as linhas de pesquisa de nosso programa de pós-graduação não são barreiras intransponíveis, torna-se desnecessário definir vínculos absolutos ou excludentes entre a contribuição de um autor para a nossa revista e uma única linha de pesquisa. De fato, como nos foi possível comprovar nos relató- rios do seminário elaborados pelos alunos do PPG-Arte, pode-se dizer que a diversidade da programação, que se desdobrou nesta publicação, proporcionou o confronto com questões divergentes e a ampliação de perspectivas de pesquisa. Com o texto de João Gabriel L.C. Teixeira temos uma reflexão sobre as relações transdisci- plinares no trabalho experimental em performance, realizadas a partir da articulação entre sociologia da arte e os pressupostos das linguagens cênicas. O texto de Maria Amélia Bulhões nos oferece um amplo contexto para pensar o modo pelo qual ocorre a formação do histo- riador da arte no Brasil em seu campo específico, bem como seus compromissos institucionais. Também sobre o campo das artes cênicas, Rita de Almeida Castro relaciona em seu texto a contribuição das práticas corporais de tradição oriental ao trabalho de formação do ator no Brasil. Roberto Conduru nos confronta com o desafio do historiador da arte, que, na contem- poraneidade, se propõe a classificar um tipo de produção artística cuja única base comum seria a identidade étnica de seus produtores. Nos apontamentos de Sandra Rey temos uma seqü- ência de questões que dão origem a um método do artista como pesquisador profundamente comprometido com a reflexão crítica e os desdobramentos de seu trabalho na formação de novos artistas. O texto de Sonia Gomes Pereira oferece-nos a constatação de que há uma significativa contribuição da pesquisa em história da arte para a revisão de periodizações e de que classificações consolidadas na contemporaneidade não se limitam a uma análise de objetos de arte recentemente produzidos. Na estrutura diferenciada deste número, na seção Desdobramentos, que pode conter um dossiê ou uma documentação histórica do Instituto de Artes ou da produção artística em Brasília, temos o texto de Grace Maria Machado de Freitas sobre a contribuição de Athos Bulcão para a integração das artes no projeto modernista para Brasília. Nossa homenagem pertence ao conjunto de homenagens e pesquisas sobre sua obra que têm sido realizadas em várias ocasiões na UnB. Para realizar o Seminário Avançado Perspectivas para a Investigação da Arte e esta publicação, tivemos a colaboração de algumas pessoas, além dos autores dos trabalhos que aqui publi- camos, que merecem nosso sincero agradecimento. Além dos autores dos textos, tivemos em nossa programação a participação dos conferencistas Martha Tupinambá de Ulhôa, que proferiu a conferência de abertura do Doutorado em Arte, Nivalda Assunção e Ricardo Basbaum. Agra- decemos também ao professor HumbertoAbdalla Júnior, Diretor da Faculdade de Tecnologia da UnB, quem nos cedeu generosamente o auditório no qual realizamos o seminário, à profes- sora Dione Oliveira Moura, que, como Coordenadora de Apoio à Pós-Graduação da UnB, deu apoio irrestrito à realização de nossa atividade, e ao professor Marco Antonio Amato, Decano de Pesquisa e Pós-Graduação da UnB. Finalmente, agradecemos uma vez mais a Comissão de Pós-Graduação, composta pelos profes- sores Elyeser Szturm, Maria de Fátima Burgos, Maria Eurydice Ribeiro, Soraia Maria Silva e Vicente Martínez, sem os quais não teríamos concluído com esta publicação o compromisso que assumimos no início de nosso mandato na Coordenação do PPG-Arte. Elisa de Souza martínez Editora 7HOMENAGEM REgINA SILVEIRA Série Colgantes VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 8 VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 10 Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 11 VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 14 Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 15 VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 18 Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 19 VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 20 Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 21PONTOS DE CONTATO 22 Artificações, inquietações e experimentações em sociologia da arte1 Artifications, inquietudes and experimentations in Sociology of the Arts JOãO GABRIEL L. C. TEIXEIRA * Resumo Trata-se de reflexão sobre o uso de metodologias experimentais em pesquisas e estudos da performance levadas a cabo na Universidade de Brasília. Procura-se descrever os procedimentos utilizados bem como alguns dos resultados obtidos em experiências desenvolvidas ao longo das duas últimas décadas. Enfoca especialmente a utilização do novo conceito “artificações” na condução de experimento realizado na Universidade de Brasília em 2006 e 2007. Demonstra como o diálogo entre as ciências sociais e as artes pode beneficiar a construção de uma estética cognitiva. Palavras-chave: performance, metodologia, sociologia da arte. Abstract This article reports on experiments about performance studies carried out at the University of Brasília. It describes the procedures utilized as well as some of the results of experiences which have been developed in the last two decades. It focusses especially the new concept of “artification”” used in the conduction of an experiment conducted at that University in 2006 and 2007. It demonstrates how the dialogue between the social sciences and the arts can benefit the construction of a cognitive aesthetics. Keywords: performance. methodology. sociology of the arts. Apresentação Com base nos trabalhos experimentais realizados nos últimos doze anos pelo Laboratório Transdisciplinar de Estudos sobre a Performance (TRANSE) da Universidade de Brasília, cujos relatos podem ser encontrados em outros trabalhos da autoria deste pesquisador (TEIXEIRA, 1998 e 2006), tem-se procurado delinear uma teoria que destaque as múltiplas relações que se podem estabelecer entre sociologia e teatro, na qual o campo dos estudos da performance, conforme desenvolvidos no departamento pertinente da Universidade de Nova York – onde despontam os trabalhos de Richard Schechner (1985, 1988, 1990 e 1993) –, tem-se mostrado extremamente operacional . Eles permitem a abertura de um imenso campo experimental que transcende os limites do conhecimento sociológico, pela absorção de insights e informações proporcionadas pelas diversas contribuições do domínio das ciências sociais, sejam da antropologia, da etnografia, da etnometodologia, do interacionismo simbólico, das artes em geral, da etnomusicologia, da psicanálise e da arquitetura, etc. * Doutor em sociologia pela Universidade de Sussex (1984), Inglaterra e realizou estágios pós-doutorais em sociologia da arte na New School for Social Research (1993/1994), em Nova Iorque e na Maison des Sciences de l´Homme, Paris Nord (2003/2004). Atualmente é coordenador do Laboratório Transdisciplinar de Estudos sobre a Performance (TRANSE) na UnB. limacruz@unb.br Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 23 Essa experimentação, no que se refere particularmente à utilização de locais e à sua exibição para públicos diferenciados, também tem permitido que o trabalho do TRANSE atinja novos patamares de risco e exposição. Recorda-se que essas possibilidades em termos de publici- zação e exposição da performance e dos performáticos fazem parte relevante da linguagem denominada na literatura, genericamente, de arte da performance. Essa experimentação praticamente também definiu as concepções de performance que o TRANSE tem adotado: 1) a concepção de performance como linguagem artística (arte da perfor- mance); 2) como manifestação cultural (performance cultural); e 3) a idéia goffmaniana de perfor- mance no quotidiano (“o mundo é um palco”). Essas três concepções contemplam as variáveis conceituais do campo da performance mais em voga e sua escolha tem-se mostrado operacional para a condução das atividades desenvolvidas pelo/no mesmo. Não obstante, constata-se que essas concepções não são exaustivas nem conclusivas. É preciso que se leve em conta, nesta reflexão, que performance, em última análise, conforme afirma Taylor (2003), é um termo que conota simultaneamente um processo, uma prática, uma episteme, um modo de transmissão, uma realização e uma maneira de intervir no mundo e, portanto, suplanta amplamente as possibilidades de significação encontradas em seus sinônimos: teatralidade, ação, espetáculo e representação. Essa conotação ampliada, por assim dizer, é encontradiça com maior freqüência e nitidez nos experimentos estéticos estimulados por tal teoria. Ou seja, é com base nesses experimentos que se constrói a citada episteme. Nesse intuito, a teoria da performance informa o substrato sociocultural ao mesmo tempo em que utiliza práticas e técnicas artísticas na busca do sensível no real e vice-versa. Argumenta-se que a esse processo dialógico pode-se atribuir a denomi- nação de experiência vivenciada ou vivida. As metodologias experimentais e a sociologia da arte Esta reflexão foi catalisada pela descoberta recente de que na sociologia de língua francesa já se podem identificar pelo menos dois sociólogos da arte que reconhecidamente utilizam metodologias experimentais diferenciadas em suas pesquisas: Hennion (1993, principalmente) e Mervant-Roux (1998, principalmente, e 2004). O primeiro acentua o pragmatismo de certas práticas musicais, considerando que a música mesma é uma sociologia plena de instrumentos, corpos e objetos que nos conduziria a uma mediação com uma dupla ultrapassagem, ou seja, a de um pensar crítico que reduz os objetos musicais ao social e que somente aceita esses mesmos objetos quando extraídos do social. Já a Mervant-Roux (2004) vem cultivando a sobrevivência de formas artísticas em manifesta- ções populares e realizando um escrutínio pormenorizado e recorrente sobre as audiências, os espetáculos e os locais de apresentação (1998). Essa estudiosa dos públicos de teatro tem- se preocupado de forma pormenorizada com a importância destes na representação teatral, procurando responder à questão se eles são – como diriam os grandes diretores – os grandes protagonistas do jogo, os parceiros primordiais do ator, os “terceiros homens”, os quartos cria- dores do espetáculo, ou tudo isso não passa de uma mitologia? Seu trabalho de campo nessa área, desenvolvido entre 1986 e 1994, baseia-se numa série de exemplos variados de espetáculos, profissionais e amadores. Por meio da observação de diversas representações, a pesquisadora (1998) leva também em consideração os discursos VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 24 da gente de teatro sobre seupúblico, abrangendo seus termos, expressões, relatos, metáforas e lendas, além da – o que é digno de nota – análise das gravações sonoras dos silêncios e dos ruídos das casas de espetáculo, em que se desenha e se esclarece a figura do espectador. Segundo a pesquisadora, a assistência, quando diante da cena, torna-se uma rede de visões que se transformam incessantemente, um curioso instrumento vibrante, ou o grande ressonador da ação dramática. Segundo Mervant-Roux (op. cit.), os olhares da audiência, paradoxalmente, se “escutam” mutuamente. Embora esses trabalhos ainda não tenham logrado divulgação suficiente para exercer maior influência no desenvolvimento recente da sociologia da arte francesa, de qualquer forma vale a pena seu registro, tendo em vista que a sociologia mainstream jamais admitiu anteriormente que pudesse vir a tornar-se uma ciência experimental (“gente não é cobaia”) ou que pudesse utilizar-se dos métodos experimentais proporcionados pelas experiências informadas pelos estudos das performances artísticas. O TRANSE e as metodologias experimentais Essa possibilidade encontra-se presente não apenas nas montagens dos espetáculos como nos eventos acadêmicos realizados pelo TRANSE e que geraram várias publicações em que a preo- cupação experimental é marcante. Ora, segundo Vera Zolberg (2006), uma característica que parece definitiva nas metodologias empregadas pelos sociólogos das artes em seus estudos é o uso necessário e ostensivo da observação participante, em que o distanciamento e o antietnocentrismo estejam mesclados e, ao mesmo tempo, limitados pelas características subjetivas próprias dos objetos artísticos, ou seja, que os seus componentes estéticos estejam sempre considerados e explicitados, mesmo quando importando procedimentos de outras disciplinas. Essa necessidade, por sua vez, encontra espaço fértil para seu florescimento no caráter dialó- gico encetado pelo experimentalismo inerente aos estudos da performance. Estes, ao tempo em que proporcionam o substrato intelectual que provoca a reflexão sobre questões socio- culturais concretas, perseguem as linhas artísticas, tornando público o produto alcançado e buscando uma platéia com a qual interagir. Há de se fazer referência também aos experimentos realizados em sala de aula durante o oferecimento de disciplina optativa sobre arte e sociedade aos alunos de graduação da univer- sidade em que textos acadêmicos sobre estudos da performance e da psicanálise são rein- terpretados pelos alunos por meio de encenações e manifestações estéticas variadas. Esses experimentos mais tarde passam a compor colagens de performances apresentadas ao público no final do curso. Artificações¹ No ano de 2006, por exemplo, o Núcleo teve a oportunidade de encetar essa forma de expe- rimentação sob a denominação de “artificações”, segundo um neologismo lançado pela soció- loga francesa Roberta Shapiro no citado Congresso de Sociologia de Língua Francesa (AISLF), realizado na cidade de Tours, na França, em julho de 2004. Transcreve-se aqui, quase na íntegra, o texto produzido para o programa da experiência, apresentada no horário de almoço no Restaurante Universitário da Universidade de Brasília em 27 de julho de 2006. Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 25 Na ocasião, a autora resumia o tema que propôs para discussão no congresso afirmando que começou a refletir sobre essa noção num grupo de trabalho de antropólogos e sociólogos o qual participara e que, em poucas palavras, esse novo conceito busca denominar o processo de transformação da não-arte em arte. Na ocasião afirmava a autora: Em suma, a transformação da não-arte em arte é uma transfiguração das pessoas, dos objetos e da ação... O conjunto desses processos conduz não somente ao deslocamento da fronteira entre arte e não- arte, mas ainda a construir novos mundos sociais, habitados por enti- dades inéditas e em número crescente (SHAPIRO, 2004, p. 2). A seguir, a citada socióloga procurava demonstrar que ele não se refere apenas aos objetos, às pessoas e às ações, mas também à reclassificação destas, ao enobrecimento das pessoas envol- vidas e à edificação de novas fronteiras. Segundo Shapiro (op. cit.), a artificação implica também modificações de conteúdo de formas de atividade e as qualidades psíquicas das pessoas, permi- tindo a reconstrução dos objetos, a criação de novos e, mesmo, o rearranjo dos dispositivos organizacionais. A unificação desses processos, dos quais a nominação e a institucionalização são partes depen- dentes, conduz não somente a um deslocamento da fronteira entre a arte e a não-arte, mas também à construção de novos ambientes sociais, povoados de identidades até então inéditas e em número crescente. Adiante, a aludida pesquisadora passa a ilustrar esses processos com exemplos retirados de seus trabalhos e de seus colegas. Embora colocado sob a forma de hipóteses a serem discutidas naquela ocasião, o experimento desenvolvido na Universidade de Brasília, demonstrou seu caráter alternativo e seminal, pelo menos do ponto de vista da experimentação artística. Existem diversas variantes, nuances e componentes deste conceito-neologismo. Para o Núcleo, ele significou, mesmo inadvertidamente, nesse momento, as experimentações possíveis em sociologia da arte durante um semestre, no, já citado, curso optativo Arte e Sociedade. O pressuposto básico era mostrar mais uma vez como os estudos sobre a performance podem constituir-se numa possibilidade de utilização das metodologias experimentais em sociologia da arte. Insistentemente, obcecadamente, imperiosamente. Shapiro também aduzia, no texto em questão, citando Harold Fromm (2003), que a artificação seria então uma função adaptativa específica do ser humano e que a continuidade e a evolução da espécie dependerão, entre outras, da capacidade artística dos indivíduos. Em inglês, artifi- cação é igualmente um termo técnico com o sentido geral de bonificação e melhoramento. Ele ainda é inexistente na última edição da Enciclopédia Britânica. Sem medo de ser feliz, um alunado de quase trinta alunos de graduação em ciências sociais jogou-se na experiência, sobretudo pela vontade de sair da rotina e experienciar os processos comunicativos das emoções e dos sentidos subjetivos dos textos acadêmicos. Nada de seminários ou aulas expositivas, mas a tentativa despudorada de expor o que Evreinoff (1996), Goffman (2002), Geertz (1978), Barroso (2004), Freud (1901, 1905, 1910 e 1917) e Minois (2003) suscitaram reflexivamente. A promessa era apenas a da confiança mútua e da vontade de aprender ludicamente, divertindo-se muito. O trabalho ora apresentado certamente ficará entranhado no espírito de cada um, artificadamente, artimanhosamente, astuciosamente. VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 26 Inquietações Em 2007, aos alunos da citada disciplina, em número de quarenta, foi oferecida a oportunidade de performatizar temas sugeridos pelos textos (Cohen, 1989; Freud, 1901, 1907, 1908 e 1914, IANNI,1996; LABAN,1978; e VILLAÇA e GÓES, 1998) e questões tratados durante o semestre. Os textos em geral versavam sobre a dança, corpo e movimento, escolhidos de uma bibliografia específica selecionada para leitura e discussão pelo grupo. Neste processo, o grupo experienciou uma série de exercícios sistemáticos em dança contem- porânea, com o auxílio de um coreógrafo e dançarino profissional que teve o objetivo central de preparar tecnicamente o alunado para preparar as cinco miniperformances apresentadas no final. Este apoio profissional facilitou sobremaneira a experiência no que se refere à localização cênica dos alunos na apresentação final, nos seus processos de concentração e relaxamento. O mote do trabalho corporal proposto foi dançar os textos, parafraseando o título do trabalho de Garaudy(1980): Dançar a vida. A apresentação dessas cinco performances no projeto Tubo de Ensaios, em sua sétima edição, intitulada Inquietações, ocorreu durante o intervalo do meio-dia, em toda a extensão sul do prédio do Instituto Central de Ciências (ICC), mais conhecido como Minhocão, na Universidade de Brasília, em 29 de junho de 2007. Ao todo foram apresentadas 18 performances simultâneas, coletivas e individuais, durante cerca de uma hora e meia, ao som de música eletrônica ao vivo, com participação de percussionistas, que ecoava em todo o espaço cênico ocupado. Esses eventos acontecem anualmente e visam a ocupar espaços públicos não convencionais para apresentações performáticas simultâneas. Uma trilha sonora original é composta a cada ano e executada ao vivo por instrumentistas, percussionistas e cantores. O público é induzido a percorrer espontaneamente o espaço envolvendo-se com as performances que se repetem a cada cinco minutos em média. As Inquietações dos performáticos da UnB, inclusive dos estudantes de ciências sociais, causaram um frisson sem precedentes no público presente, cambiante e caminhante, calculado em cerca de mil pessoas, constituído em sua grande maioria por membros da comunidade universitária, ou seja, alunos, professores, funcionários e visitantes. A extensão desse frisson pôde ser avaliada com base nos 120 depoimentos escritos colhidos de membros da audiência em urnas estrategicamente localizadas no espaço cênico utilizado. À guisa de ilustração, listam-se alguns deles: “Compreendo que a humanidade perece”. “Façam isso sempre! Quebrem a monotonia da Universidade”. “Fazer no teto da UnB da próxima vez, o norte...”. “Muito show. Não se sabe quem é ator quem é espectador. Adorei”. “Esse povo é doido”. “Fiquei com medo!” Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 27 “A humanidade é insana!” “Muito bom. As imagens são chocantes. Focam o óbvio que ninguém quer entender”. “As inquietações realmente mexeram com alguns sentimentos íntimos e profundos. É bom ver trabalhos que causem imagem e sensação!” “Interessante até mesmo nas cenas em que utilizaram artifícios melequentos”. “O barulho atrapalha nosso trabalho”. “Achei que a música tem tudo a ver com a proposta de inquietar o público”. “Senti retratada a alma do mundo, o medo de tentar ser, e a ânsia de ter”. Ainda visando a avaliar a recepção ao experimento, a treze alunos da disciplina Arte e Socie- dade foi aplicada uma ficha de avaliação sobre a experiência performática, sua metodologia e os resultados colhidos pela disciplina acadêmica. Vale a pena analisar alguns desses depoimentos, classificados segundo os tópicos do programa do curso: I - Sobre a relação entre arte/sociedade/corpo: “Eu via a arte como sendo uma linguagem, a expressão máxima, a meu ver, da cultura, do meio social em que está inserida. Não achava que a linguagem corporal era tão poderosa para tal: o curso me mostrou isso.” “O que aprendi foi uma relação muito mais próxima entre a arte e os indivíduos e sociedade... Que pode haver arte em coisas cotidianas e banais. O corpo se insere como parte constante, pois através dele podemos nos expressar melhor,” “A arte está intimamente relacionada com o entendimento da socie- dade e da sociologia. O corpo foi muito bem trabalhado, incluindo as noções de domínio do mesmo para a produção artística.” “É uma relação íntima e de referências simultâneas. Não existe um sem a presença do outro. O corpo é objeto para ambos. É possível trabalhar o corpo e compreender melhor as relações entre a arte e a sociedade.” “A arte é uma forma de viver, a liberdade de se pôr no mundo, de estar e transformar o convívio em sociedade. O corpo é o nosso passaporte de entrada nessa brincadeira em que a ação faz o impos- sível existir e o inacreditável acontecer.” “A arte permeia todas as relações sociais, mesmo que à primeira vista não consigamos distinguir. E o corpo é o palco dessas relações.” “Arte e sociedade se relacionam de diversas formas, a arte sendo um importante elemento de integração e comunicação entre os homens. VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 28 O corpo se insere nessas relações na medida em que se torna também um elemento de expressão artística.” II - Sobre a relação entre performance e vida concreta: “A performance está presente no cotidiano. Viver é performar. O trabalho com a dança permitiu um contato consciente com a arte da performance que domina a vida.” “Performatizar é criar uma personagem, segurar uma postura. Na dança tenta-se repassar impressões, o movimento é um exercício com o mundo empírico não ego centrado, é, portanto, performance. Na dança se emulam posturas cotidianas, é um rito, uma forma de sublimação.” “O mundo é um palco. Em cima dele estamos performando/atuando. Em diversas situações, a performance perpassa a nossa vida cotidiana. No trabalho com a dança não faltou oportunidade de perceber como nós teatralizamos em forma de dança, a vida. Notamos que movi- mentos dos braços/pernas/cabeça/ etc. vistos (praticados) nas aulas práticas são realizados em diversos contextos do nosso dia-a-dia.” “Foi uma experiência incrível, só que ainda não consegui interpretar e internalizar tudo o que aconteceu nesse evento.” III - Sobre a participação no evento/cognição/desenvolvimento estético: “Que a sociedade está sempre na espera do cumprimento da perfor- mance para a qual fomos preparados e o corpo físico corresponde a essas expectativas.” “O curso serviu para ver o quanto fazer arte é sofrido, mas ao mesmo tempo delicioso.” “Me senti cumprindo minha função social na sociedade, que é a de mostrar que existem diversas formas de se interpretar uma mesma ação e que sempre existiram diversas formas. Exemplos: textos, músicas, ações. Hoje me sinto muito mais livre.” “A apresentação foi o ponto alto da disciplina. Após toda teoria vista e do treinamento corporal, conseguimos montar uma performance. Acredito que o conhecimento dos textos junto com a aplicação de toda essa teoria na apresentação proporcionou um maior domínio da teoria, pois conseguimos sentir como um performático sente, literal- mente sentir na pele o que o texto fala e também foi importante para mostrar o que éramos possíveis em tão pouco tempo.” “Estar em performance é um transe, uma permissão. Provocação e vulnerabilidade. Dar-se à alteridade de si, assumindo os riscos. Buscar Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 29 o óbvio inencontrável. Bater-se no vento à carne viva. A pura cognição da poesia.” “O evento artístico foi uma excelente oportunidade de experienciar a relação entre arte e sociedade de uma forma bem direta. Desde a prepa- ração até a realização foi possível ver cada vez mais claro os elementos que caracterizam a performance, a arte que cutuca, que questiona, perturba, busca respostas e ao mesmo tempo não as quer.” “Compreendi (tomei consciência) de uma nova dimensão do corpo, aprendi a melhor explorá-lo e valorizá-lo. Primeiro li sobre o corpo, depois experimentei, tornando o conhecimento completo.” Considerações finais Culminando os exemplos sobre o que se deseja denominar como experiência vivida menciona-se o recurso metodológico empregado por doutorando em sociologia da Univer- sidade de Brasília em sua pesquisa de tese. Neste caso, o que aconteceu foi a experimentação sentida no próprio corpo do pesquisador da extensão física das técnicas empregadas nas acrobacias ensinadas na Escola Nacional de Circo onde ele se matriculou como estratégia de aproximação entre alunos e professores da Escola. Aqui, o que ficou patente foi o uso da experimentação nas artes circenses como campo de produção social de processos sensoriais, envolvendo os indivíduos em situações-limite nas quais a presença do risco físico é compo-nente fundamental. No caso da análise encetada pelo autor sobre o sonho dos acrobatas, este chega a admitir a possibilidade de se formarem redomas sensoriais oníricas não previstas em seu projeto original, abrindo novas possibilidades de experimentação em determinadas formas artísticas, até então negligenciadas pela tradição sociológica no campo das artes. Veiga de Almeida (2004) finaliza sua obra chegando a admitir que os casos identificados em sua pesquisa de deslocamento sensorial parecem constituir a base tanto da teoria da performance como da própria sociedade atual. Esta reflexão, entre outras conclusões, leva à consideração de que o experimentalismo aqui defendido pode estreitar, como queria Brown (1977) as afinidades existentes entre arte e ciência, ou, mais precisamente, entre arte e sociologia, colaborando na criação de uma estética cognitiva propícia ao desenvolvimento de uma poética para a sociologia, além de arejar suas lógicas de investigação. Em princípio, argumenta-se que o saber sociológico se beneficiaria sobremaneira do empreen- dimento estético no sentido de expandir as possibilidades de previsão e prognóstico sobre as transformações sociais. Nisbet (1977), por exemplo, chama a atenção para a maior capacidade das artes em geral em insinuar certas antecipações e profecias sobre o desenvolvimento das sociedades humanas. Turner (1982), a seu tempo, sugeriu que as performance culturais revelariam o caráter mais profundo, genuíno e individual de cada cultura. Guiado pela crença em sua universalidade e rela- tiva transparência, Turner, ademais, propunha que os povos poderiam compreender-se melhor por meio de suas performances culturais. VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 30 No entanto, é bom que se esclareça que o que se está preconizando é a expansão das possi- bilidades da lógica da descoberta, por oposição à lógica da demonstração, também constitutiva do saber sociológico, mas que necessita de uma abordagem diferenciada para sua consecução. Nesse sentido, as artes beneficiar-se-iam desse diálogo com a sociologia no que ela fornece de rigor no tratamento dos dados e na redução das possibilidades de reducionismo e impressio- nismo (HEINICH, 1998). Bastide (1979, p. 200) esclarece este ponto de vista de forma definitiva ao afirmar que a arte nos dá acesso a setores que o sociólogo interessado pelas instituições não consegue atingir: as metamorfoses da sensibilidade coletiva, os sonhos do imaginário histórico, as variações dos sistemas de classificação, enfim, as visões de mundo dos diversos grupos sociais que constituem a sociedade global e suas hierarquias. Finalmente, este relato tenta demonstrar que já é possível superar os constrangimentos impostos à sociologia pela sua tradição de cunho mais positivista. Nesse intento, espera-se que tenha ficado patente o papel a ser desempenhado pelas metodologias experimentais em sociologia da arte, no qual as possibilidades das práticas em estudos da performance podem desempenhar uma função decisiva. Notas ¹ Artificiar: fazer ou executar com artifício ou ardil; maquinar, urdir, tramar. Artifício (substantivo), conforme o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 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Palavras-chave: história da arte. ensino. pesquisa. Abstract In the same way that an individual is construed by the language, the communities are also construed by the created tales about themselves. Telling the history of art is not an objective issue, is not a naïve task. What do we say or write about art in our region, country or continent? What do we mean by art production? To what extent are we aware of the History of Art that we are construing and teaching at colleges and schools? How can we radically criticize this field of study? Which are the method and processes to do this? These questions will the starting point of our reflections. Keywords: art history. teaching. research. Artes visuais no país nas últimas décadas O que dizemos e escrevemos acerca da arte em nossa região, nosso país, nosso continente? Que idéia temos do que produzimos como arte? Questões como essas afligem constantemente a mente dos pesquisadores e também os dife- rentes atores do sistema da arte. Para tentarmos explorar algumas possíveis respostas (ou abrir, talvez, mais questões), faz-se necessária uma análise da situação atual das artes visuais em nossa realidade. Em uma primeira abordagem, percebemos claramente, nas duas últimas décadas, um grande crescimento, manifesto na diversificação e na ampliação numérica das instituições e dos valores econômicos aplicados na área. No gráfico 1, por exemplo, podemos * Doutora pela USP, professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atua no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais e coordena o grupo de pesquisas Territorialidades e Subjetividade, é pesquisadora do CNPq e vice-presidente da ABCA; organizadora de vários livros da área, publica regularmente artigos em revistas nacionais e internacionais, participa da equipe administradora da plataforma IG.Art. mabulhoes@cpovo.net Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 33 verificar o surgimento de inúmeros museus a partir dos anos 1980, segundo dados obtidos no Observatório Nacional de Museus, os quais abrangem diversas áreas de conhecimento, mas inferimos por observação direta que as artes visuais têm recebido um grande aporte em termos de novas instituições museológicas públicas e privadas. O valor simbólico é uma condição que se estabelece no âmbito das relações que cada objeto ou evento necessita ter com o sistema vigente para receber sua legitimação artística. A esté- tica, a história da arte e a crítica de arte são os discursos que manejam os conceitos e as significações que definem essas legitimações, e as instituições museológicas são os locais onde estas se processam. Assim, uma peça exposta para venda em uma feira de artesanato tem uma valoração simbólica bastante aquém de outra exposta em um museu. Desvinculando implica- ções de custo, é possível afirmarmos que a obra apresentada no museu é considerada mais significativa, dentro de padrões culturais, do que a colocada na feira. Isso porque a inserção de um objeto no museu passa a ter uma conexão com todos os demais objetos que ali se encon- tram e que, de alguma forma, constituem a tradição da arte na sociedade. Assim, o significativo crescimento do número de museus no país nas últimas décadas deve ser pensado dentro do seu significado como novas possibilidades que se abrem de valoração dos objetos e das práticas artísticas no contexto nacional. O aumento numérico das instituições museológicas faz-se acompanhar de um incremento de investimentos econômicos nas artes visuais, que se verifica de forma bem objetiva no quadro 1, que mostra a captação de recursos de verbas pela Lei Rouanet e a quantidade de projetos enviados, aprovados e captados na área. O expressivo aumento de recursos para a área signi- fica um maior número de exposições, de publicações e de todo o tipo de projeto envolvendo as artes visuais. Com isso também se amplia a quantidade de pessoas envolvidas nessas ativi- dades e fazendo delas seu trabalho profissional. Esse conjunto de alterações numéricas caracteriza, assim, uma mudança que se faz acompanhar de novas demandas em termos de diferentes atores para as novas funções que se inauguram, tais como produtores, curadores, restauradores, montadores e muitos outros. Também se evidenciam, nesse novo panorama, inovadoras formas de atuação empresariais e os grandes eventos, fugindo à tradicional exposição individual do trabalho do artista. Gráfico 1: Evolução do número de museus nas cinco regiões do país, por ano de fundação VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 34 O que percebemos, entretanto, é que não há ainda um preparo específico para essas diversas atuações na área por meio de cursos que construam uma formação básica, com reflexão crítica destinados aos inúmeros atores do campo artístico. Os cursos de artes visuais espalhados pelo país são específicos para artistas ou professores de arte, sem nenhuma terminalidade ou abordagem mais especializada para as outras tarefas que passaram a integrar esse circuito. Não há cursos de graduação em história da arte, em curadorias, em produção de artes visuais, em restauração, em administração de museus de arte, etc. Conseqüentemente, esses outros atores se formam com a experiência, como auxiliares ou monitores, de forma autodidata vão vivenciando uma prática que, na grande maioria, não vem subsidiada por um suporte teórico e metodológico. Isso ocorre mesmo quando estamos falando de alunos saídos das faculdades de arte, pois, como dissemos, a estrutura dos cursos é dirigida para a formação de artistas e professores. Uma situação de exceção que exemplifica bem esse contexto é a existência de dois únicos cursos de graduação em restauração — um na Bahia e outro no Rio de Janeiro —, o que, certamente, não preenche as necessidades criadas, sobretudo a partir da proliferação de museus e centros culturais entre nós, acompanhando o boom mundial no setor. Apesar da fragilidade do campo de formação, percebemos uma crescente especialização por parte daqueles que executam as diferentes tarefas em sistemas das artes visuais e, conseqüen- temente, uma maior qualificação profissional, mesmo à revelia da inexistência de espaços de formação especializada. Esse processo corresponde a uma organização do trabalho que já se realiza, em geral, nas regiões mais desenvolvidas e que se faz necessária para um enquadra- mento mais eficiente das práticas locais com as exigências da ordem contemporânea inter- nacional. Essa nova organização propicia uma ampliação numérica das pessoas envolvidas nas produções artísticas, superando as limitações e as restrições das tradicionais produções centradas na figura do artista. Novas demandas conceituais também decorrem das grandes mudanças pelas quais passa o segmento das artes visuais atualmente no Brasil. Alterações de conceitos são exigidas para dar conta tanto de uma produção local, cujas referências fogem aos modelos e aos padrões europeus, como do fenômeno da arte contemporânea, com seu questionamento das catego- rias tradicionais e da própria arte. É importante que haja uma reformulação do campo teórico e da pesquisa, criando novos referenciais e ampliando estudos sobre a produção local.3 Essas tarefas têm sido assumidas nos cursos de pós-graduação, cuja estrutura flexível aceita mais facilmente novas dinâmicas, entretanto mudanças mais radicais exigem ser implementadas também nas graduações. Uma importante constatação é que quanto mais frágil se encontra a área reflexiva mais o campo da arte como um todo se empobrece. O fato de hoje, no país,apesar do grande crescimento da área de artes visuais, não contarmos com cursos específicos para a formação na área teórica e de termos ainda muito pouca produção de estudiosos é preocupante. Isso evidencia os limites Quadro 1: Número de projetos enviados, aprovados e captados pela Lei Rouanet Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 35 de pensarmos sobre a arte local assim como de desenvolvermos conceitos para refletir sobre ela. Sabemos que um objeto ou evento se torna uma obra de arte por meio das interlocuções que pode estabelecer com os discursos do campo artístico, conquistando, assim, determinado significado. A Gioconda, de Leonardo da Vinci, por exemplo, tem seu valor definido com base em todos os livros que já se escreveram sobre ela e dos inúmeros estudos que ela oportu- nizou. Não é a peça em si que significa um conteúdo, mas, sim, o conjunto das interpretações que sofre, das citações que possibilita e das relações que com ela podem ser estabelecidas. O Abapuru, obra de Tarsila do Amaral, por sua vez, tem seu valor estético estreitamente ligado ao fato de ser um símbolo da modernidade brasileira e ao que operou naquele momento histórico. Esse significado também se construiu com base nas inúmeras exposições importantes de que essa pintura participou pelas quais se escreveu a história da arte moderna no Brasil. Como observa Arthur Danto, uma obra transforma-se em obra de arte pelo efeito de uma interpretação que instaura seu significado. O autor estabelece o seguinte enunciado: Io = OA. Nessa fórmula, (I) a interpretação de uma (o) obra é igual a sua transformação em (OA) obra de arte. Ele evidencia, assim, o fundamental papel que as interpretações desempenham no sistema da arte. Devemos destacar que essa interpretação não se efetiva de maneira isolada, nem meramente teórica, mas também no âmbito das exposições consagratórias e, portanto, no espaço de museus, bienais e outras importantes instituições museológicas. Assim, o crítico de arte Paulo Herkenhoff, na curadoria da 24ª Bienal Internacional de São Paulo (1998), ao definir como fio condutor da mostra o conceito de antropofagia, estabeleceu uma interpretação que articulava trabalhos tão diversos em termos formais quanto Espaçonave Óvulo, de Ernesto Neto, e Livreiro Saraiva, de Rochele Costi. Nesse caso, as semelhanças visuais não constituem o aspecto de conexão entre os objetos de arte, uma vez que elementos bem mais complexos podem conectar obras aparentemente antagônicas. A crítica com elaboração conceitual constrói o valor simbólico das obras pelas conexões que pode estabelecer entre as propostas das obras e seus processos de instauração. Essa tendência pode ser percebida, por exemplo, na crescente adoção de curadorias artísticas para a realização de exposições temá- ticas, o que demonstra que está sendo fomentado o uso de profissionais especializados para o controle organizacional de eventos e que isso vem estabelecendo novas dinâmicas, fugindo à mera indicação de nomes de artistas. Atividades de curadoria têm realizado experiências de sucesso, evidenciando um cuidado detalhado com a escolha das obras apresentadas, bem como um compromisso reflexivo dos organizadores com uma proposta conceitual, expressa em textos e imagens dos catálogos. Os trabalhos de curadoria envolvendo equipes em que vários técnicos especializados atuam em conjunto apresentam resultados que vão além dos limites pessoais. Algumas vezes, a intenção do artista pode mesmo ser alterada na concepção geral da mostra. Se isso pode ser conside- rado como uma interferência em seu trabalho individual pode ser também pensado como uma superação do individualismo, aproximando-se de tipologias mais coletivas de criação, como se encontra no teatro, na dança ou na música. De qualquer maneira, esse tipo de ordenamento social das artes visuais está se impondo na esfera internacional globalizada e também em termos de Brasil, sem, com isso, se enfraquecerem os resultados da produção em termos de qualidade artística. Essa profissionalização das tarefas vem responder às demandas de especia- lização típicas do desenvolvimento da sociedade contemporânea. Devemos destacar, ainda, que a ampla divulgação de uma história da arte internacional faz com que o público identifique artistas e obras que nunca viram como dignos de mérito, rele- VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 36 gando a produção local a um limbo que advém de seu desconhecimento. Enquanto a história internacional se difunde por meio de publicações para especialistas e de coletâneas para o grande público, nossa produção permanece desconhecida e pouco compreendida. Existe uma demanda para o conhecimento dessa história da arte que não está sendo suprida, nem com publicações destinadas ao grande público, nem com aquelas destinadas a um público mais interessado. Embora a atividade analítica de arte se tenha aperfeiçoado, encontrando espaço de desenvolvimento em revistas especializadas (principalmente ligadas aos cursos de pós- graduação), estas, em sua maioria, têm vida curta. Mesmo proliferando de forma significativa nos últimos anos e evidenciando em geral um excelente nível analítico, essas publicações não chegam a cumprir realmente uma função de difusão mais ampla. As novas possibilidades de trabalho no campo das artes visuais têm atraído indivíduos oriundos de diferentes formações acadêmicas. Isso pode caracterizar um significativo aporte em termos de dinamização e ampliação de perspectivas de enfoque, superando as formações tradicional- mente conservadoras do sistema das belas artes. Em países desenvolvidos, isso pode ser criti- cado como tendência a uma excessiva hierarquização e rigidez; no caso do Brasil, no entanto, podemos pensar na possibilidade de tornar mais ampla e efetiva a significação social dessas práticas, fugindo, assim, ao seu caráter meramente decorativo, tão ao gosto das elites locais. Dentro desse panorama complexo que acabamos de esboçar, devemos nos perguntar: que história da arte estamos construindo e ensinando nas escolas e universidades? Como realizar a crítica radical desse campo de estudos? Quais os processos e os métodos para essa ação? Em que medida cada um de nós está comprometido com essas tarefas? Essas são algumas das premissas de nossa reflexão. A posição da história da arte Apesar de termos apresentado, neste sucinto levantamento das problemáticas do campo artís- tico, inúmeras questões, centramos nossa análise na história da arte pelo contexto desta no Seminário Avançado A Fragmentação da Arte: Narrativas Excêntricas Para o Estudo da Arte no Centro-Oeste. Gostaríamos de observar que não estamos deixando de lado, nesta análise, nem a estética, nem a teoria, nem a crítica, uma vez que a conexão entre essas disciplinas, que sempre existiu, tem hoje uma imbricação muito mais intensa, Inicialmente, a inquietação que nos parece mais importante compartilhar é a da necessidade premente e atual que percebemos no país de consolidar o campo de reflexão da área de história, teoria e crítica. Isso não significa a defesa de ampliação de seu espaço por inte- resses pessoais ou corporativos. Partimos da clara evidência de que a consolidação da área de reflexão reverte no fortalecimento do campo da arte como um todo. O indivíduo estrutura- se pela fala; também as comunidades se constroem por meio dos “relatos” que, de alguma maneira, inventam sobre si. Narrar a história da arte não é algo inocente ou objetivo. Segundo vários autores, dentre os quais destacamos Anne Cauquelin (2005), constata-se que a arte contemporânea introduziu a circunstância de que todos os participantes da rede são criadores da arte, e não só o artista. Com isso, tomam novo impulso os papéis do crítico, do curador, do colecionador e do marchand na produção artística e na suarepercussão social. A importância de desenvolvermos uma história da plástica local está em darmos a essa produção uma visibilidade, um sentido, um significado, uma interpretação. Georges Didi- Huberman afirma que Vassari criou o conceito de arte e sua história porque queria salvar as Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 37 obras de uma segunda morte, da morte pelo esquecimento. Muito da produção simbólica no país está morta pelo esquecimento, portanto temos de lhe dar uma nova vida pela sua docu- mentação e análise. Dessa forma, o público poderá reconhecer e identificar essa produção e sua história como legítimas. O que propomos é o desafio da construção de uma história da arte local, crítica e reflexiva, e também sua divulgação e sua difusão, por meio de material (imagens e textos) acessível e amplamente distribuído. Hoje, o próprio conceito de história está sendo repensado de forma crítica, conseqüente- mente, urge que adotemos novas maneiras de abordar de história da arte. Ao pensarmos uma crítica da disciplina, estamos pensando em outras leituras que dêem conta de outros fenô- menos na orientação da nova história, que permite que cada objeto ou evento seja visto na sua circunstância, em sua perspectiva; uma história que não seja construída como um relato único e hegemônico, em que toda a produção que foge à linha estilística dominante fica esquecida e marginal. Na revisão crítica, vamos encontrar suporte teórico para enfrentar os desafios propostos. É com novos conceitos que podemos pensar as diferentes produções artísticas em sua realidade e salvá-las do esquecimento. A história da arte que queremos passa fundamentalmente pela crítica radical da disciplina e pela alteração de seus objetos de estudo, por meio de novas estruturas de ensino. A partir dos dois desafios que consideramos decisivos para o estabelecimento de um novo patamar nos estudos da disciplina no Brasil, propomos algumas estratégias de ação para serem discutidas e, se possível, implementadas a partir de experiências inovadoras e corajosas. São propostas objetivas que não pretendem em si mesmas reverter o quadro complexo das fragilidades de reflexão teórica no campo das artes visuais, mas, sim, focar o problema e atuar no sentido de sua superação. A desconstrução ideológica da disciplina passa pelo questionamento de sua linearidade e de suas hegemonias simbólicas, apostando na diversidade, no hibridismo e nas pequenas memórias, o que podemos fazer somente com revisões historiográficas e com importantes alterações dos objetos de estudo, estimulando e desenvolvendo estudos regionais que recuperem uma historiografia local e seus conceitos operacionais. A bagagem da história da arte interfere no ideário dos estudiosos da cultura ocidental, que tratam de analisar a atual produção artística de forma marcante e, muitas vezes, contraditória. No Brasil, onde não há uma tradição analítica em razão da inexistência de cursos de graduação nessa disciplina, os cursos de pós-graduação têm se evidenciado como espaços para desen- volver e difundir corpos teóricos e ferramentais específicos da área. Cumprem uma tarefa difícil, uma vez que faltam muitos conhecimentos específicos para seus alunos, a maioria deles oriunda de diferentes áreas e carentes de uma fundamentação básica. Além disso, ainda se encontram em disputa duas posições acerca do tipo de base teórica a utilizar nos estudos e nas pesquisas da área. Uma delas suscita adesões incondicionais daqueles que tentam de forma impositiva abordar toda e qualquer produção com base em critérios e classificações tradicionais, omitindo o caráter arbitrário destas. Escamoteiam que a história da arte é uma disciplina recente, fundada sob as imposições do gosto neoclássico europeu, e que a maioria de seus conceitos deriva dessa condição. Em posição oposta, estão aqueles que negam completamente a tradição dessa disciplina e todo o ferramental analítico ardua- mente construído por seus estudiosos, buscando estabelecer possibilidades totalmente novas de apreensão de diferentes produções artísticas. Essa tendência procura corresponder de forma quase ortodoxa ao fato de que a arte contemporânea se propõe a romper com toda a tradição ocidental, caracterizando o que Athur Danto denomina o “fim da arte”, devendo, VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 38 portanto, dispensar em sua análise conceitos e metodologias anteriormente utilizadas. Nesse caso, muitos ferramentais e recursos conceituais são desvalorizados e desaproveitados. Uma séria revisão crítica dessas posturas antagônicas necessita ser desenvolvida pelos pesquisa- dores com vistas à formação de um substrato capaz de fomentar estudos competentes e apro- fundados no campo da arte. Projetos em que se evidencie o uso de metodologias e conceitos específicos necessitam ser publicados a fim de consolidar melhor essa linha de trabalho e, ao reatualizá-la, fortalecerem a área das artes visuais como um campo de conhecimento funda- mental para o mundo contemporâneo. Se alguns conceitos básicos, tais como beleza, gênio, imanência, transcendência, originalidade, permanência, e muitos outros que constituíam o arca- bouço teórico da história da arte acadêmica, encontram-se realmente superados pelo desen- volvimento criativo ante as novas condições de vida que o mundo globalizado impõe, muitos referenciais analíticos, metodológicos e conceituais ainda podem ter vigência e decisiva utilidade ferramental. Estudiosos como Didi-Huberman, Annatereza Fabris, Mario Perniola, Maria Lucia Kern e outros estão relendo autores clássicos — e também aqueles marginalizados pela histo- riografia da arte oficial — em busca dos vários suportes que podem, ainda hoje, contribuir para o difícil exercício de compreensão das imagens no universo simbólico. A retomada dessa tradição dos estudos teóricos da produção artística também necessita ser mais valorizada. Em termos internacionais, a presença da história da arte na análise de obras da atualidade pode ser observada em duas vertentes conceituais. Uma busca estabelecer diálogos com a tradição, identificando interlocuções com posturas, interesses ou orientações semelhantes. Esse é o caso de todas as análises na linha da pós-modernidade, que recuperam na produção contemporânea os elementos do passado intencionalmente reutilizado pelos artistas hoje. Ao dialogar com a bagagem formal e conceitual de um passado recente, ou mesmo distante, críticos e artistas evidenciam que a visão evolucionista da arte calcada nos ideais positivistas, que marcou o início da modernidade, está superada e que os anacronismos e as retomadas do passado dão testemunho de uma temporalidade bem mais complexa. Alguns estudiosos também procuram, de forma mais sutil, a presença, nas imagens, de elementos de um conjunto de memórias, persistentes através dos tempos e reutilizados de forma incons- ciente pelos artistas. Nesse caso, interessam a sobrevivência de determinadas formas e o signi- ficado que isso evidencia em termos da sociedade em que o artista se insere. Vale aqui a idéia de um certo anacronismo e mesmo atemporalidade das imagens, que seriam responsáveis por sua vitalidade peculiar. Seja como for, é preciso termos sempre em mente, ao utilizarmos os conceitos da disciplina, que estamos tratando com uma tradição que, em muitos casos, se opõe aos princípios que estruturaram a disciplina em sua origem. Portanto, devemos ter muito cuidado para não nos orientarmos por leituras apressadas ou generalistas que alteram e deturpam as idéias originais dos artistas. Mas também não podemos abandonar toda uma herança de análises, como se os questionamentos dos artistas inviabilizassem essa área de estudos e se iniciasse do zero, recriando todos os conceitos a partir das próprias obras, como postulam alguns críticos mais superficiais.Destacamos como básicos dois desafios específicos para a história da arte no Brasil, hoje. O primeiro é a realização de um amplo e diversificado levantamento da produção plástica local, considerando estudos que contemplem as diversidades regionais em termos tanto históricos como contemporâneos. O segundo é o desenvolvimento de uma crítica da sua tradição posi- tivista e classificatória para repensar novas possibilidades de sua construção. Articulados entre Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 39 si esses dois desafios apontam a necessidade de dar visibilidade à produção local, pelo levanta- mento empírico e documental sustentado em uma ampla discussão conceitual. Esses desafios já eram sinalizados por Aracy Amaral (1993, p. 10) quando afirmava que “A arte dos artistas dos países da América Latina sempre foi considerada pelos europeus como arte de segunda classe, uma arte periférica que segue de longe ou de mais perto as tendências artísticas da Europa e, neste século, dos Estados Unidos”. Era a visibilidade e a legitimidade que ela estava exigindo. Uma legitimidade que necessita ser construída aqui dentro, por estudiosos locais. Para Amaral, Não basta rever as fontes da pintura brasileira, seria importante ao nosso ver tentar encontrar uma nomenclatura mais condizente com o que elas realmente são, do ponto de vista visual......uma necessidade de encarar nossa própria contribuição artística de acordo não mais com cânones importados, porém de acordo com nossa circunstância e nossa produção plástica (1993, p. 11-12). A revisão conceitual que se coloca em paralelo e articulada a esse levantamento documental, Aracy Amaral também já indicava, quando dizia da necessidade de novas nomenclaturas e cânones próprios. Nos tradicionais, todas as obras devem entrar em gavetas que foram criadas a partir de outro contexto que não o nosso. Faz-se, pois, necessária, cada vez mais, a discussão conceitual da própria disciplina, pois estamos num momento em que mesmo no âmbito inter- nacional a história positivista, linear e classificatória está sendo questionada. Nesse sentido, temos de nos engajar nesse questionamento que nos favorece, pois abre brechas no discurso fechado de uma arte europeizante e evolucionista da qual somos meros apêndices. A história da arte que aprendemos e que ainda hoje se ensina em todos os níveis de ensino foi cons- truída na Europa e para a Europa. Nossa produção é periférica, é marginal aos grandes centros. Nela, só vamos entrar em compartimentos já existentes. Responder à necessidade que temos de conhecer mais a produção local e dar visibilidade a essa plástica seria um desafio que se encontra articulado ao de desenvolver uma história da arte que articule as diferentes produ- ções das diversas regiões com uma estrutura conceitual dinâmica e adequada a essa realidade. São exatamente os necessários conceitos e suportes reflexivos que nos tornam capazes de dar conta dessa visualidade específica que somos desafiados a construir pelo seu conhecimento. Questões ainda em aberto Alguns aspectos ainda se encontram a exigir atuações para propor alterações mais radicais. O estudo das questões conceituais demanda cruzamentos para poder abarcar produções que, mesmo elaborando-se dentro de um quadro internacional (afinal nossa realidade se inaugura com a descoberta do Brasil no marco da expansão européia), detêm especifici- dades que a história da arte tradicional não consegue abordar devidamente. Revisões histo- riográficas e questionamento dos tradicionais conceitos europeizantes pedem a formação de especialistas com sólida bagagem de conhecimento e práticas reflexivas criativas e autô- nomas. Esse tipo de mudança faz parte de um processo de ruptura com o ciclo reprodutivo com que estamos acostumados a trabalhar, não é fácil, nem natural, exige posicionamentos conscientes e muito trabalho. Vale lembrar que a Arte é uma categoria que instaura um valor e que este é arbitrado por meio de um sistema de relações que não é estabelecido aprioristicamente. Pelo contrário, VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 40 constrói-se historicamente, modificando-se em conseqüência de lutas internas que se travam, articuladas às necessidades da sociedade em que se inserem. As disputas pelo poder simbólico envolvem valores estéticos, mas também interesses políticos, econômicos e sociais. Segundo o sociólogo Pierre Bourdieu (1982), os indivíduos que estão estabelecidos no sistema lutam para garantir seus privilégios e o valor de seu capital cultural. Os que estão fora lutam para entrar e também para alterar os mecanismos de valoração simbólica. Dessa forma, processaram-se as transformações que levaram à passagem do sistema acadêmico ao moderno e contemporâneo. Essa seqüência de mudanças, entretanto, não pressupõe o desaparecimento consecutivo de cada um dos sistemas anteriores. Embora os novos passem a deter certa hegemonia, vestígios dos demais persistem. Além disso, os circuitos local, nacional e internacional também estabe- lecem disputas pela dominação simbólica, articuladas às relações entre centro e periferia e integradas a uma gama de diferentes interesses e poderes. Por isso, é importante a atuação crítica por parte dos atores e das instituições envolvidas na produção, na difusão e no ensino de arte para garantir um equilíbrio de forças que possibilite a realização das suas funções sociais. Uma atuação que efetive a promoção de eventos, a publi- cação de materiais documentais, a integração com outras instituições na construção de uma história da arte comprometida com os valores humanos locais e internacionalmente integrada. Nesse labirinto de espelhos que a cultura contemporânea constrói, elaboram-se possibilidades de reconhecimento, dizendo de um descompasso local com uma ordem internacional estabe- lecida, desde o início, à revelia dos interesses daqueles que não compõem o bloco hegemô- nico, em uma busca estéril de padrões homogeneizadores, autênticos ou originais, que servem muito mais aos interesses mercadológicos de uma ordem internacional interessada em objetos exóticos. Autenticidade e originalidade não existem aqui da maneira como são solicitadas, uma vez que a nossa própria história é fragmentada, cheia de mestiçagem, de dominações étnicas e de resistências dolorosas. Talvez por isso mesmo a fragmentação e o hibridismo sejam as temáticas mais presentes no universo das artes visuais. É sempre bom lembrar que a internacionalização, nessa região, se faz em um caminho de duas mãos que mantém e estimula fortes heterogeneidades e relações desiguais de poder. Mas nesse caminho de duas mãos o outro está dentro, e as questões de identidade tornam-se muito mais complexas. Os parâmetros de interno ou externo já não servem para análise. E essa premissa torna-se mais presente quando se trata da contemporaneidade. É necessário trabalharmos com novos enfoques que abordem essa cultura que se instaura sobre as dife- rentes regionalidades, como uma rede articuladora, e, dentro dela, percebermos o papel que a arte desempenha. Para construir referenciais eficientes, é preciso, em muitos casos, recorrermos a subsídios de outras áreas do conhecimento, pois os problemas complexos da contemporaneidade não se explicam somente com base no campo das artes visuais. Encontramos aqui um sério problema: o grande desconhecimento teórico por parte da maioria dos integrantes do meio de arte. Temos como tônica desse campo uma postura romântica, que desacredita das considerações de ordem sociológica e louva um espontaneísmo ingênuo. Esse tipo de posição tem sido responsável por muitos dos numerosos enganos cometidos por artistas e críticos, que, desprovidos de referenciais teóricos sólidos e adequados, tateiam, realizando seqüências de ensaio e erro lentas e dolorosas. Experiências muito ricas ficam soltasao sabor de circunstâncias momentâneas, não contribuindo verdadeiramente para a fertili- zação do campo. Trabalha-se com modelos importados, sem o domínio de instrumental reflexivo capaz de fazê-los passar pelo crivo de uma crítica que desmonte suas estruturas Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB 41 e evidencie suas condições de vigência e de validade na realidade local. Assim, quando procuramos pensar as novas condições dos países periféricos dentro da ordem globali- zante e dos sistemas comunicacionais em rede, não encontramos parâmetros específicos que permitam fugir à tradição das teorias construídas fora dessas realidades que queremos explicar. As artes visuais, desprovidas de referenciais críticos, permanecem como mero instrumento de distinção das elites da região, que pretendem participar, de alguma forma, da cultura internacional. No entanto, é impossível pensar a arte no Brasil fora de uma internacionalização que se dá sob o signo da dominação cultural desde o período colonial, e que não pode ser diminuída dentro desse debate. É necessário pensá-la como mecanismo interno de uma megaestrutura que se expande. A dominação ideológica no campo das artes visuais introduziu o barroco como prática simbólica, em oposição à visualidade indígena e africana, cujos objetos foram destruídos ou relegados à categoria de artesanato. Posteriormente, o academicismo, trazido por escolas européias, impôs-se sobre os regionalismos nascentes, criando uma sistema de arte e estabele- cendo hierarquizações. Sempre em ondas de atualização, foram-se construindo novos modelos artísticos, buscando seus referenciais na Europa e, posteriormente, nos Estados Unidos, nos mesmos pólos onde o país busca também seus modelos econômicos; introjetando concepções de subalternidade e dependência. Esquecemos, muito facilmente, que a modernidade européia se alimentou de modelos pré-colombianos e africanos e que a presença de latino-americanos, como Torres Garcia, Thomas Maldonado ou Julio Le Parc, foi fundamental para o desenvolvi- mento das correntes abstratas em nível internacional. Assim, uma fundamental alteração na estrutura da área de história da arte no País parte de uma revisão radical das práticas e das estruturas de ensino, buscando romper com a linea- ridade fictícia de uma história ocidental para dar conta do que se processou em termos de produção artístico-visual. Esse tipo de reforma curricular deve abranger o ensino de primeiro e segundo graus, mas principalmente o das escolas de arte, pois é ali que se formam os profes- sores dessa área. Temáticas como a das manifestações imagéticas da pré-história local, com ênfase na arte rupestre, que se apresenta rica e diversificada em todas as regiões do país, deve ser incluída ao lado dos estudos sobre as produções coloniais. Os diferentes barrocos com suas manifestações regionais devem ser concatenados com a introdução do academicismo e do sistema da arte, a partir da atuação da Missão Francesa no século XIX. O Modernismo e sua conexão com os ideais da modernidade nacional e seu questionamento pela globalização e a emergência de uma arte contemporânea internacionalizada em seus circuitos. Essas propostas de alterações curriculares não pretendem fomentar xenofobismo nem propor leituras nacio- nalistas, mas apontar a necessidade de voltarmos nossos olhares para uma produção local que se encontra há muito relegada a um segundo plano, sem difusão e sem suportes conceituais para sua legitimação. Um importante indicador de que essas mudanças de foco em termos temáticos já se estão implementando pode ser observado no programa do Colóquio Nacional do Comitê Brasi- leiro de História da Arte em 2008.4 Primeiramente, podemos verificar uma predominância de comunicações que abordam pesquisas relativas a produções artísticas nacionais e regionais. Segundo, as comunicações agrupam-se em torno dos seguintes temas: historiografia da arte, arte colonial, academicismo, modernismo e arte contemporânea. Os focos das comunicações correspondem às temáticas das pesquisas que se desenvolvem nos cursos de pós-graduação do país, demonstrando que, nesse nível de formação, já se evidencia o interesse por novos objetos de pesquisa e bases conceituais. Entretanto, em geral, os resultados dessas investiga- VIS | Janeiro/Junho de 2008 Ano 7 nº 1 42 ções ficam restritos ao âmbito específico da universidade, sem uma efetiva disseminação pela sociedade e pelos diferentes segmentos do circuito artístico. Para podermos desenvolver um tipo de programa mais voltado à produção local, é necessária a existência de novos materiais didáticos para o professor utilizar em aula e também meios para sua atualização pessoal. Na produção desse tipo de insumo, tais como revistas, livros e todo tipo de material visual, os cursos de pós-graduação e as editoras universitárias podem ser importantes colaboradores. Afinal, é ali que se processam os projetos de pesquisa que estão estudando esta realidade e que podem e devem fazer sua divulgação, seja em termos de exposições com interpretações de curadorias especializadas, seja na produção de materiais didáticos. Vale lembrarmos ainda a possibilidade que detêm de produzir e distribuir materiais para ensino a distância. Esse é um recurso importante, uma vez que nesse imenso território geográfico as comunicações por meios tradicionais nem sempre são as mais efetivas, e as novas tecnologias de comunicação podem ser importantes aliadas. As propostas de ampliação das bases sociais das artes visuais passam sempre por um fator determinante, que é o da significação que se estabelece pela difusão de informações. Não podemos esperar adesão a práticas simbólicas que trabalham com códigos não socializados. E socialização é um tema muito mais amplo do que os limites das artes visuais, pois perpassa todo tipo de relação e envolve questionamentos que muitos não desejam ampliar. Se a ordem hegemônica, principalmente por meio da publicidade, tenta impor um universo simbólico universal esvaziado de significação, a arte deve propor sua inserção nas conjunturas locais, desenvolvendo formas de refletir sobre a realidade. O desenvolvimento de estudos sobre a arte local e sua ampla divulgação são tarefas importantes, uma vez que revertem também na ampliação de público. Enquanto existe a popularização de uma história da arte interna- cional por meio de diversas publicações, inclusive de coletâneas para o grande público, nossa produção é desconhecida. Mesmo especialistas surpreendem-se com algumas publicações e exposições que mostram uma realidade pouco divulgada e difundida. O desenvolvimento dos estudos na área de história, teoria e crítica, assim como sua ampla difusão, é decisivo na legitimação da produção local. Essa arte de diferentes épocas e origens necessita de uma reflexão que lhe dê suporte. Uma reflexão que não pode ser feita só pelos artistas, que trabalham dentro do contexto conceitual do campo artístico. Os críticos e os curadores com uma formação sólida em história e teoria da arte capacitam-se com compe- tências específicas para essa tarefa. Fortalecer a área de pesquisa e reflexão teórica tem conseqüências na legitimação da arte e implicações diretas na ampliação do público. Devemos perguntar-nos em que medida estamos comprometidos com essas tarefas. Notas ¹ Gráfico apresentado na dissertação de mestrado de Nei Vargas da Rosa, Estruturas emergentes:institui- ções culturais bancárias, produtores e curadores. Defendida em 2008, no PPGAVI da UFRGS, sob minha orientação. ² Quadro igualmente apresentado na já citada dissertação de mestrado de Nei Vargas da Rosa. ³ O estudo de Almerinda Lopez (2006) sobre a formação do historiador de arte no Brasil apresenta alguns exemplos mais recentes de integração da universidade
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