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O INDIANISMO ROMÂNTICO, A QUESTÃO INDÍGENA E A ESCRAVIDÃO NEGRA1 David Treece RESUMO O movimento indianista brasileiro do século XIX manteve uma preocupação que, embora pouco comentada, o percorreu por inteiro: as correspondências políticas e éticas entre as condições do escravo negro e do indígena. Partindo do pressuposto de que o indianismo é um fenômeno não apenas de invenção literária, mas também de reflexão política, este artigo busca traçar a evolução da correspondência temática "índio/negro" nos escritos de José Bonifácio, João Francisco Lisboa, Gonçalves Dias e Joaquim Manuel de Macedo, culminando na análise em conjunto dos dramas "abolicionistas" e dos romances indianistas de José de Alencar. Palavras-chave: indianismo; literatura brasileira do século XIX; escravatura. SUMMARY The Brazilian Indianism movement of 19th century kept always present a concern that was seldom commented: the political and ethical correspondences between black slaves and Indians conditions. From the assumption that Indianism was not only a phenomenon of literary invention, but also of political intervention, this article seeks to trace the evolution of thematic correspondence "Indian/black" in the writings of Jose Bonifacio, João Francisco Lisboa, Gon- çalves Dias and Joaquim Manuel de Macedo, culminating in the analyses as a whole of Jose de Alencar's "abolitionist" dramas and Indianist novels. Keywords: Brazilian Indianism; 19th century Brazilian literature; slavery. (1) Texto apresentado no Con- gresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, Sal- vador, julho de 2000. Na última década do Segundo Império, o abolicionista baiano Alexan- dre José de Mello Moraes Filho publicou um ensaio semilírico, semidocu- mental, intitulado Os escravos vermelhos. Contribuição tardia ao indianismo oitocentista, o texto integrava a coleção Pátria Selvagem, que incluía ainda Os escravos negros e Ciganos. Retoma-se ali um cenário conhecido do indianis- mo: a guerra colonial contra os franceses e a chamada Confederação dos Tamoios, que deu nome ao poema épico de Gonçalves de Magalhães. Nessa versão, no entanto, o mito de fundação da colônia do Rio de Janeiro sofre uma revisão radical para que o autor possa acomodar a realidade esquecida da escravidão indígena e denunciar a herança de opressão social em que se assentava o Império. Já na dedicatória Mello Moraes vincula explicitamente a escravidão indígena e a do negro africano: MARÇO DE 2003 141 O INDIANISMO ROMÂNTICO, A QUESTÃO INDÍGENA E A ESCRAVIDÃO NEGRA Debaixo d'este solo repousam duas raças escravisadas./ Arreando o flanco ensanguentado na arena do captiveiro, duas feras ainda se saciam no cadaver do indio e do negro./ A Patria, na corrupção que embriaga, assiste a esse espectaculo de amphiteatro romano; e en- quanto o rei tripudia, ella se esquece de seus maiores homens/ Um dia, porém, tu erguerás com o braço a pedra do teu sepulchro e derreterás a noite que se tem feito em torno de teu nome2. Eu não seria nem de longe o primeiro a sugerir que há uma relação estrutural entre o indianismo literário e a questão da escravatura. Em sua História da literatura brasileira, Nelson Werneck Sodré afirma: O indianismo representa, no processo histórico da literatura brasileira, uma de suas etapas mais características [...]. Está longe de ser falso, conforme parece aos investigadores superficiais. É a manifestação de uma sociedade de senhores de terras, de regime de trabalho servil, em que apenas se esboça a classe intermediária. Nesse sentido, corresponde plenamente aos traços essenciais daquela sociedade. É a sua criação específica3. Mas em que sentido isso será verdade? Vou pressupor aqui a tese, que desenvolvi alhures4, de que o movimento indianista, longe de ser um caso de "evasionismo romântico", mera invenção de uma tradição literária divorciada das realidades prementes do Império, constitui uma reflexão contínua e complexa sobre a formação tanto sociopolítica como simbólica da nação brasileira. Se aceitarmos o pressuposto de que a questão indígena e o movimento indianista são fenômenos inseparáveis para a intelligentsia imperial, não será difícil compreendermos sua relevância para o problema mais estrutural da ordem imperial: a escravidão negra. A revisão da história colonial, ao reavaliar a política de extermínio, a doutrinação e exploração dos povos indígenas à luz da Independência e dos princípios modernos do liberalismo, não levaria naturalmente a comparações entre a condição do negro e a do índio, contemplando sua inclusão na sociedade imperial como cidadãos com plenos direitos civis, ou sua relegação na qualidade de órfãos sob a tutela do Estado, ou ainda sua marginalização como alienígenas ao pacto social? Já no início da Independência o estadista (e indianista menor) José Bonifácio de Andrada e Silva lançava as bases de tal especulação comparati- va, mediante dois projetos de lei que apresentou à Assembléia Constituinte de 1823. O primeiro, "Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil", recomendava reformas radicais à política indigenista vigente, visando a integração das comunidades indígenas nas estruturas econômicas e sociais da nova nação. Ao relacionar a questão contemporânea (2) Mello Moraes Filho, Alexan- dre José de. Pátria selvagem: os escravos vermelhos. Rio de Ja- neiro: Faro e Lino, s/d, p. i. (3) Werneck Sodré, Nelson. História da literatura brasilei- ra: seus fundamentos econômi- cos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 269. (4) Treece, David. Exiles, allies, rebels: Brazil 's indianist move- ment, indigenist politics, and the imperial nation-state. Westport/Londres: Greenwood, 2000. 142 NOVOS ESTUDOS N.° 65 DAVID TREECE do índio com as iniqüidades do regime colonial, inclusive a escravidão negra, esse documento já antecipava o argumento do segundo projeto de lei, a "Representação à Assembléia Constituinte sobre a escravatura", que previa uma ligação direta, seqüencial, entre as duas reformas: a "civilização geral dos índios do Brasil", no decorrer do tempo, tornaria redundante a escravi- dão dos africanos. Ambas as propostas foram rejeitadas pela Assembléia conservadora do Primeiro Reinado, mas Bonifácio continuou a desenvolver essa tese em vários textos durante o exílio na Europa entre 1824 e 1831, preconizando a constituição de uma sociedade plenamente mestiça, via casamentos entre índios, brancos e mulatos, e a integração social como alternativa à importação de mão-de-obra africana5. A discussão sobre o vínculo ético e político entre a escravidão negra e a questão indígena permaneceu viva durante a fase inicial do indianismo romântico. Num extraordinário texto em prosa intitulado "Meditação", publi- cado na revista Guanabara em 1849, o poeta Gonçalves Dias elaborou uma visão apocalíptica do sistema político e social do Império, relatando em registro bíblico a ascensão e eventual destruição de uma espécie de babilônia americana. Nessa visão, o índio e o negro ocupam os anéis respectivos de um sistema solar, grupos periféricos e subjugados girando em torno de um centro de poder cuja estabilidade parece ameaçada pelo rompimento desse equilí- brio gravitacional tão frágil. Mas Gonçalves Dias sugere uma distinção fascinante entre as funções desses dois grupos subordinados: à diferença dos "homens de côr preta", que "têm as mãos presas em longas correntes de ferro, cujos aneis vão de uns a outros — eternos como a maldição que passa de pais a filhos", os índios se vêem irmanados numa outra camada social, de homens livres mestiços, pela condição comum de marginalização econômica, política e social. A "ociosidade" ou "indolência" tipicamente atribuídas ao índio como defeitos morais adquirem aqui um significado extremamente interessante, o da redundância ou da liberdade relativa, incapaz de ser exercida no interior das estruturas de um regimeescravocrata exclusivista, mas talvez capaz de desempenhar uma função instrumental, para o bem ou para o mal, nas margens do sistema. Nesse texto Gonçalves Dias manifesta uma compreensão inédita da condição ambígua vivida sob o Império, não apenas pelos próprios índios, mas por toda uma camada social heterogênea simbolizada por eles, de mestiços, tapuias, homens livres, agregados (a qual só começaria a ser levada seriamente como protagonista social um século depois, a partir dos anos 19606), como se nota neste trecho exemplar: E os homens de raça indígena e os de côr mestiça disseram em voz alta: — "E nós que faremos?"/ "Qual será o nosso lugar entre os homens que são senhores, e os homens que são escravos?/ "Não queremos quinhoar o pão do escravo, e não nos podemos sentar à meza dos ricos e dos poderosos./ "E no entanto este sólo abençoado produz fructos saborosos em todos os quadros do anno — suas florestas abundam de caça — e os (5) Andrada e Silva, José Boni- fácio de. Projetos para o Brasil. Org. de Miriam Dolhnikoff. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 100. (6) Cf., por exemplo, Carvalho Franco, Maria Sylvia de. Ho- mens livres na ordem escravo- crata. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969; Schwarz, Roberto. "As idéias fora do lugar". In: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1981, pp. 13-28. MARÇO DE 2003 143 O INDIANISMO ROMÂNTICO, A QUESTÃO INDÍGENA E A ESCRAVIDÃO NEGRA seus rios são piscosos./ "Os brancos governam — os negros servem — bem é que nós sejamos livres./ "Vivamos pois na indolência e na ociosidade, pois que não necessitamos trabalhar para viver./ "Separe- mo'-nos, que é força separarmo'-nos, lembremo'-nos porém que somos todos irmãos, e que a nossa causa é a mesma./ "E seremos felizes, porque os indivíduos carecerão do nosso braço para a sua vingança, e os homens políticos para as suas revoluções./ "Deixar-nos-hão no ocio, porque precisarão de nós — e porque a nossa ociosidade lhes será necessaria "7. No clima reformista dos inícios do Segundo Reinado, o debate sobre a questão indigenista assumiu uma importante dimensão econômica. Em 1845 foi proclamado o Regulamento das Missões, que Manuela Carneiro da Cunha descreve como a principal obra de legislação indigenista do Império. Ele substituiu a política de "guerra justa" por um programa conciliatório de aldea- mento, entendido explicitamente como "uma transição no sentido da assimi- lação total dos índios"8. E em 1850 foi baixada a Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico de escravos da África. Para Carlos de Araújo Moreira Neto, essas duas reformas claramente se interligavam, já que a nova política in- digenista seria, ao menos em parte, uma resposta à demanda de mão-de-obra que se antecipava como resultado da cessação de importações de escravos africanos: A rusticidade do índio e sua aceitação de um regime de trabalho em condições servis que se mantinha sem modificações essenciais, nestas áreas, durante todo o decorrer do século, transformavam-no na solu- ção mais adequada à crônica carência de força de trabalho dessas áreas. Todos os esforços de integração do índio à sociedade nacional, acompanhados dos inevitáveis discursos e projetos sobre a redenção do silvícola de seu estado de selvageria e de miséria, subordinavam-se, integralmente, aos propósitos de sua eventual utilização como força de trabalho dócil e barata9. O debate indigenista se concentrava então na questão da utilidade dos índios para a economia e a sociedade imperiais e da sua qualidade de ci- dadãos com determinados direitos. Sem entrarmos nos pormenores desse debate, vale enfatizar que envolveu vários intelectuais e escritores de desta- que, muitos deles indianistas, como Gonçalves Dias, Joaquim Norberto de Sousa Silva e Manuel de Almeida, e os historiadores João Francisco Lisboa e Francisco Adolfo de Varnhagen — o que demole decisivamente o mito de que o indianismo terá sido um fenômeno puramente "literário", divorciado das realidades sociais e políticas. O debate foi desencadeado por Varnhagen, que num ensaio de 1851 na revista Guanabara, e novamente no prefácio de (7) Gonçalves Dias, Antônio. Obras posthumas (3 vols.). São Luiz: Typocraphia de B. de Mattos, 1867-68, vol. III, pp. 93-94. (8) Carneiro da Cunha, Manue- la. "Política indigenista no sé- culo XIX". In: História dos índi- os do Brasil. São Paulo: Com- panhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 139. (9) Moreira Neto, Carlos de Ara- újo. A política indigenista bra- sileira durante o século XIX. Rio Claro, SP: tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Ciênci- as e Letras de Rio Claro, 1971, pp. 68-69. 144 NOVOS ESTUDOS N.° 65 DAVID TREECE sua História geral do Brasil, de 1854, descartou a defesa liberal do direito indígena à liberdade e à preservação das suas culturas, assim como o postulavam Gonçalves Dias, Joaquim Norberto e Almeida. Varnhagen afir- mava que o "invasor" nômade, indígena, deveria ser considerado um obstá- culo à marcha da civilização, um bárbaro, um proscrito, "uma gente alheia ao pacto social", incapaz de reger a si própria, portanto alvo legítimo de uma guerra de apresamento. Além dessas posições opostas havia uma outra, intermediária, proposta pelo historiador maranhense João Francisco Lisboa. Embora concordasse parcialmente com a avaliação pouco lisonjeadora da cultura indígena por Varnhagen e mostrasse pouca paciência com o que considerava os excessos idealistas dos nacionalistas liberais, Lisboa se atreveu a perguntar-se, na sua Crônica do Brasil colonial, se o progresso do Império não poderia realizar-se sem que os índios fossem despejados à força de suas terras tradicionais: Deveras o Brasil não poderia civilizar-se sem a escravidão dos indíge- nas, conseguida pela força e pela guerra? São com efeito vãos e ilusórios, simples fantasia de cabeças ocas, os meios brandos e persuasivos da catequese? Ou por outra, e generalizando estas idéias, a coação e o terror, a escravidão e a guerra, são os grandes e verdadeiros instrumen- tos de civilização e propaganda religiosa10? Em sua solução intermediária de integração e coexistência pacífica, que previa o aldeamento de colonos europeus e brasileiros ao lado dos índios, Lisboa recorreu a uma citação-chave de Alexis de Tocqueville, que havia discutido em Democracia na América as questões paralelas da escravidão negra e da liberdade do índio. Tanto para Tocqueville como para Lisboa a escravidão despojava o africano de um direito humano fundamental: a posse individual da própria pessoa. E o índio, embora aparentemente livre, ficava também privado da condição autêntica da liberdade enquanto se negasse a reconhecer as obrigações sociais e econômicas da lei e do trabalho, que se- riam a marca da civilização: Os europeus nunca puderam modificar inteiramente o caráter dos índios; e com o poder de destruí-los, jamais tiveram o de policiá-los e submetê-los. O negro se acha colocado nos extremos confins da escravi- dão, o índio nos da liberdade. Decerto, a escravidão não produz no primeiro resultados mais funestos que a independência no segundo. O negro perdeu até a propriedade da sua pessoa, e mal poderia dispor da própria existência sem cometer uma espécie de furto contra o senhor. O índio é senhor de si desde que é capaz de obrar. Pode-se dizer que nunca conheceu a autoridade da família. A sua vontade nunca do- brou-se ante a vontade de nenhum dos seus semelhantes; e ninguém (10) Lisboa, João Francisco. Crônica do Brasil colonial (apontamentos para a história do Maranhão). Petrópolis: Vo- zes, 1976, p. 588. MARÇO DE 2003 145 O INDIANISMO ROMÂNTICO, A QUESTÃO INDÍGENA E A ESCRAVIDÃO NEGRA pôde jamais ensinar-lhe a distinguir a obediência razoada e voluntá- ria duma vergonhosa sujeição. Até o nome de "lei" ignora, e em seuconceito a liberdade é a isenção de todos os vínculos sociais. Nessa bárbara independência se apraz, e mais quisera perecer que sacrificar a mínima parte dela. A civilização pouco ou nada poderá com um homem dessa têmpera11. Embora mais otimista, a análise de Lisboa sobre a possibilidade da civilização indígena ainda dependia da mesma definição da liberdade como a realização social do indivíduo mediante o exercício das responsabilidades jurídicas e da atividade laboral. A integração, além de garantir a coexistência pacífica e proveitosa de índios e colonos, reconciliaria esses princípios libe- rais com as aspirações econômicas daqueles que desejavam abrir o interior para uma exploração agrícola mais intensiva. Assim, a contribuição de Lisboa ao debate indigenista buscava um equilíbrio entre as perspectivas polarizadas pelas afirmações provocadoras de Varnhagen: de um lado, o ideal libertário rousseauniano (tal como se encontra na poesia de Gonçalves Dias) da tribo indígena como um coletivo errante de indivíduos autônomos, auto-suficientes, isentos das obrigações para com o Estado e a sociedade modernos; de outro, a visão reacionária desse estado natural, da liberdade sem lei do bárbaro alheio ao pacto social, que devia ser subjugado ao domínio repressivo, mas legítimo, do governo civilizado. Se a liberdade absoluta do índio era tão abominável quanto a servidão absoluta do escravo, como entendia Tocqueville, a nova interpreta- ção do modelo integracionista por Lisboa representava a solução liberal para tal dilema, um meio-termo ("compromise") ou contrato social entre os inte- resses da liberdade soberana e os ditames do estado civilizado. Essa solução era também a expressão da equação ideológica em que se assentava a po- lítica da Conciliação no auge do Segundo Reinado: a acomodação dos prin- cípios liberais aos interesses do poder escravocrata e latifundiário. À luz desse modelo conciliatório, parece-me longe de acidental que na esteira daquele debate, em 1856, o jovem romancista José de Alencar tenha começado a publicar os primeiros capítulos de O Guarani, que trouxe para o ideário indianista a figura emblemática do herói indígena Peri. Como sabe- mos, a esse romance se seguiu Iracema, de 1865, que representa a mãe in- dígena da nação pós-colonial como a mártir desinteressada que tudo dá, tudo sacrifica pelo futuro do país, vivendo apenas com o suficiente para garantir a sobrevivência de seu filho mestiço. A mitologia indianista alencariana da escravidão voluntária, do auto-sacrifício e das alianças inter-raciais pode ser considerada em certo grau análoga àquela política conciliatória de integra- ção. Mas queria propor nesta análise que talvez fosse também uma forma de racionalizar a prolongada e lenta transição conservadora que separou por 38 anos a supressão do tráfico de escravos da Abolição. Vou pressupor aqui que conhecemos os traços essenciais daqueles romances, porque desejo me concentrar na relação entre eles e dois outros textos de Alencar, as peças (11) Apud ibidem, p. 187. 146 NOVOS ESTUDOS N.° 65 DAVID TREECE dramáticas O Demônio Familiar e Mãe, geralmente denominadas "abolicio- nistas". De fato, a temática do índio que tragicamente se sacrifica em favor da família pós-colonial não era inteiramente inédita. Já em 1852 o escritor abolicionista Joaquim Manuel de Macedo publicara Cobé, drama que iria fazer grande sucesso nos palcos cariocas na década seguinte, no qual explora ao extremo a linguagem metafórica e literal da escravidão. O protagonista indígena, Cobé, que vive escravizado na casa do soldado português Dom Rodrigo, acaba se suicidando para se livrar da "prisão" existencial de sua paixão impossível pela filha do senhor, dona Branca, além de salvar esta da "escravidão" pessoal de um casamento com o tirano colonial Dom Gil. A inovação trazida à temática por Alencar era juntar o princípio do auto- sacrifício a uma interpretação mais complexa das noções de liberdade in- dividual e responsabilidade social. O herói Peri, ao tempo que não descuida de defender seu direito de circular livremente no ambiente natural da floresta, dedica seus poderes especiais, voluntária e fielmente, a servir à comunidade colonial e a opor-se às forças que ameaçam sua sobrevivência de dentro e de fora. O guerreiro guarani era o "escravo ideal", que conseguia reconciliar o princípio liberal da autonomia individual com a noção de responsabilidade social ou a obrigação de defender a civilização. Ele é o "bom rebelde"; como o patriarca colonial Dom Antônio é obrigado a reconhecer, a liberdade e identidade de Peri como marginal, habitando o limbo entre a civilização e a natureza, entre os limites da fortaleza do Paquequer e a floresta, em estado de liberdade "relativa" ou "condicional", é imprescindível para que ele cumpra seu papel de protetor de Cecília e da comunidade branca. Embora em última análise ele se submeta em deferência à autoridade de Dom Antônio, ao desempenhar o dever de garantir a sobrevivência da herdeira da comunidade e levá-la a lugar seguro, sabe que deve defender ciosamente o princípio de autonomia condicional — por exemplo, quando desobedece à ordem de permanecer na fortaleza e sai ao encontro dos aimorés, oferecendo-lhes seu corpo envenenado para ser canibalizado. Mas é apenas na sociedade ideal, perfeitamente integrada, vislumbrada no epílogo do romance — o novo Éden depois do Dilúvio —, que a autonomia relativa, a emancipação de Peri poderá ser reconciliada com a sobrevivência da nova ordem pós-colonial. Apenas ali, depois de aniquilado o antigo regime para dar lugar a uma espécie de utopia democrática, a hierarquia de senhora e escravo poderá ser substituída pela igualdade de irmãos ou amantes: No meio de homens civilizados, era um índio ignorante, nascido de uma raça bárbara, a quem a civilização repelia, e marcava o lugar de cativo. Embora para Cecília e D. Antônio fosse um amigo, era apenas um amigo escravo. MARÇO DE 2003 147 O INDIANISMO ROMÂNTICO, A QUESTÃO INDÍGENA E A ESCRAVIDÃO NEGRA Aqui, porém, todas as distinções desapareciam; o filho das matas, voltando ao seio de sua mãe, recobrava a liberdade; era o rei do deserto, o senhor das florestas, dominando pelo direito da força e da coragem12. Oito anos se passaram entre a publicação d' O Guarani, com essa visão extremamente otimista-idealista da ordem pós-colonial, e o lançamento de Iracema, com seu desfecho mais trágico. Nesse intervalo Alencar produziu duas peças dramáticas que enfocavam, já não a família colonial, mítica, fundadora das raízes históricas da formação brasileira, mas a família burguesa contemporânea do século XIX. Ambos os dramas — O Demônio Familiar (1857) e Mãe (1860) — tratam da problemática de como um "membro" não- branco e não-europeu daquela família (já não o índio, mas o escravo negro) poderia intervir na sua vida com resultados positivos ou negativos. O mero fato de que as quatro obras foram produzidas sucessivamente durante o auge do Segundo Império já levantaria a expectativa de alguma afinidade geral entre elas no plano ideológico; mais que isso, porém, o que se constata é que esses textos, examinados em conjunto, assinalam um complexo único de preocupações, no centro das quais figuram a relação senhor-escravo e a contribuição do não-europeu de cor ao bem-estar da família brasileira pós- colonial. Cada par de textos — O Guarani/O Demônio Familiar e Iracema/Mãe — confere ao servo indígena ou ao africano da comunidade crioula um pa- pel mítico quase idêntico. No caso de O Guarani e O Demônio Familiar (publicados no mesmo ano) há a figura masculina do "anjo da guarda" do lar nacional, cuja tranqüilidade e sobrevivência dependem da sua intervenção; trata-se do índio benfazejo, Peri, e do escravo doméstico malicioso e manipu- lador, Pedro, gênio ou demônio. Em ambos os casos o "prêmio" outorgado ao escravo pelas suas ações é a liberdade, mas o significadoe o efeito dessa emancipação diferem conforme o contexto histórico. Já o modelo comum de Iracema e Mãe (textos separados por apenas três anos) é o da mãe não- européia (Iracema ou Joana) que se sacrifica e morre antes que o filho mestiço possa conhecê-la pelo que é. O herdeiro mestiço ou mulato da ordem pós-colonial deve viver na condição de órfão, e ao sobreviver à mãe e lembrar seu sacrifício tanto reconhece a culpa histórica de suas origens não- européias como se vê desresponsabilizado por ela, livre já para realizar sua própria história. Mas se aceitamos o paralelismo entre os dois pares de textos, qual será a concepção da ordem pós-colonial sugerida pelas figuras-chave que eles têm em comum — o "anjo-da-guarda" da família brasileira, ambiva- lente mas emancipado, e a mãe não-européia que tragicamente se sacrifica? Tem havido amplas divergências sobre a interpretação de O Demônio Familiar e Mãe como obras abolicionistas. Confiando bastante nas afirma- ções do próprio Alencar, João Roberto Faria concorda que elas constituem críticas em chave realista e romântica, respectivamente, da escravidão. Assim, O Demônio Familiar revelaria os efeitos prejudiciais da servidão, em termos sociais e morais, para as suas vítimas (tanto o moleque escravo (12) In: Alencar, José de. Obra completa (4 vols.). Rio de Ja- neiro: Aguilar, 1965, vol. 2, pp. 261-262. 148 NOVOS ESTUDOS N.° 65 DAVID TREECE "inocente" como seus senhores manipulados), apelando ao sentido ético do público, enquanto Mãe falaria ao coração, exaltando a escrava como uma criatura virtuosa e tragicamente explorada que transcende a condição de cativa e personifica a qualidade universal do auto-sacrifício maternal13. Essas são leituras plausíveis, desde que consideremos as personagens escravas apenas como veículos dos valores da malícia (Pedro) e do materna- lismo (Joana), mas não chegam a explicar o desfecho que lhes é reservado: a libertação e a morte, respectivamente. Como asseverou o crítico contemporâ- neo Paula Brito, se para um abolicionista o maior prêmio que se poderia conceder a um escravo era a liberdade, então como a emancipação de Pedro poderia constituir um castigo, como pretende Eduardo, o senhor, na peça? E se o jovem protagonista moderno, Jorge, pode reconhecer a escrava Joana como sua mãe (já forçando os limites da plausibilidade histórica), por que Alencar insiste no suicídio desta como o auto-sacrifício necessário para que Jorge "não deixe de fazer parte da sociedade dos brancos"14? Nenhum desses desfechos pode ser traduzido convincentemente numa posição claramente abolicionista, ou seja, de defesa da emancipação univer- sal imediata, por mais que os dramas denunciem os males sociais originados pela escravidão. Apontam, sim, para uma espécie de reformismo muito mais conservador, que deixaria intacto, por enquanto, o núcleo econômico da instituição — a exploração da mão-de-obra escrava nas fazendas e engenhos — enquanto amenizaria os aspectos mais desagradáveis e gritantes da escravidão quando expostos ao olhar sensível da população burguesa das cidades. Assim, o ato que visa deixar o lar burguês a salvo da infiltração malevolente do demônio familiar é a opção da manumissão individual para o escravo doméstico, tomada não como o direito legítimo e tardio do escravo, mas como uma medida educativo-corretiva a fim de transformar a criança irresponsável num cidadão que cumpra as obrigações edificantes do trabalho e da lei: Eduardo: Eu o corrijo, fazendo do autômato um homem; restituo-o à sociedade, porém expulso-o do seio de minha família e fecho-lhe para sempre a porta de minha casa. (A Pedro) Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes15. Em Mãe, de igual modo, o suicídio de Joana serve para reabilitar o estatuto moral do escravo e ao mesmo tempo para promover um mito que terá sido extremamente atraente aos olhos de uma elite escravocrata ansiosa, para a qual a abolição não poderia ser postergada por tempo indefinido. Por que Jorge decide emancipar Joana — que, embora o ignore, é na realidade sua mãe (e que ele, de resto, "nunca considerava ser [minha] escrava") — (13) Faria, João Roberto. José de Alencar e o teatro. São Pau- lo: Perspectiva/Edusp, 1987, pp. 107-108. (14) Ibidem, p. 98. (15) In: Alencar, op. cit., vol. 4, pp. 135-136. MARÇO DE 2003 149 O INDIANISMO ROMÂNTICO, A QUESTÃO INDÍGENA E A ESCRAVIDÃO NEGRA quando ela não só insiste em manter as aparências como também o convence a hipotecá-la para que possa pagar as dívidas urgentes? Afinal, a inteira razão de ser de Joana, enquanto mãe e protetora inconfessa de Jorge, se resume na sua condição de escrava doméstica, um papel que ela reluta a todo custo em abandonar: Joana: Nhonhô não há de obrigar... Não sou forra!... Não quero ser!... Não quero!... Sou escrava de meu senhor!... E ele não há de padecer necessidades!... Tinha que ver agora uma mulher em casa sem fazer nada, sem prestar para coisa alguma16... Quando finalmente a verdade se revela e a respeitabilidade pública de Jorge se vê ameaçada pelas suas origens sociais e raciais, o suicídio de Joana sur- ge como a extensão lógica da sua dedicação servil ao bem-estar dele, com a supressão voluntária de sua própria imagem e de seus interesses. Portanto, ao contrário de implicar o apoio de Alencar a uma reforma estrutural de longo alcance, sem falar da própria abolição da instituição socioeconômica básica do Brasil imperial, as fórmulas centrais desses dois dramas prestavam-se a neutralizar a urgência das reformas sociais universais por meio de atos individuais de manumissão e auto-sacrifício, com a domes- ticação do perigoso "inimigo interno" mediante os efeitos civilizadores da emancipação e da auto-aniquilação. Não se tratava, nem de longe, de mera fantasia artística — e é bem conhecido que antes e depois da Abolição muitos ex-escravos emancipados permaneceram nas plantações como "agregados" fiéis, já que isso não raramente significava a única esperança de acesso à terra e à proteção17. As estreitas correspondências entre esses dramas e O Guarani e Iracema sugerem ainda que Alencar teria visto no cenário colonial do romance indianista o espaço ideal, em relação ao palco social mais imediato das peças teatrais, para articular em grande escala a mitologia da reconcilia- ção e sacrifício das raças de cor aos interesses da ordem pós-colonial. O escravo indígena heróico e fiel, Peri, é a alternativa ideal ao demônio familiar moderno, Pedro, exercendo uma influência benigna e protetora sobre a família brasileira embrionária. À diferença da emancipação de Pedro, que constitui seu castigo, a libertação de Peri é um prêmio, mas sob a condição de que ele cumpra suas obrigações sociais — o servilismo voluntário e a autonomia relativa ficam aqui reconciliados numa espécie de equilíbrio ideal. Os filhos mestiços de Iracema e Joana, ao sobreviver a estas, se vêem liberados para enfrentar o futuro com a lembrança romântica de suas origens maternas, mas sem a inconveniência e vergonha da permanência maternal (escura e primitiva, Deus nos livre!) dentro de casa — ou, por outras palavras, desobrigados de enfrentar a questão de "o que fazer" com o índio ou o brasileiro negro na era pós-colonial, pós-escravocrata. (16) In: ibidem, p. 325. 150 NOVOS ESTUDOS N.° 65 (17) Cf. Graham, Richard. Pa- tronage and politics in Ninete- enth-Century Brazil. Stanford, CA: Stanford University Press, 1990, pp. 26-27. DAVID TREECE A manumissão individual e o servilismo voluntário; a reconciliação das liberdades democráticas com as obrigações sociais; a emancipação como ato educativo e civilizador para o ex-escravo;a mãe não-branca que se sacrifica pelo filho mestiço — esses mitos assinalam uma relação estrutural profunda entre o imaginário indianista de Alencar e sua atitude para com a questão da escravidão. O que têm em comum é uma política de procrastinação disfarça- da de prudência, de complacência culpada disfarçada de gratidão, de irres- ponsabilidade social disfarçada de conciliação democrática. Não deveria surpreender, então, a posição prática de Alencar quanto à escravidão e sua abolição, que era essencialmente, como a de muitos da sua geração, uma posição gradualista, aliás extremamente gradualista. Alencar considerava a abolição total e imediata um prelúdio ao colapso econômico e à guerra civil. Tal passo constituiria uma precipitação perigosa da evolução natural — gradual — da sociedade brasileira no sentido da emancipação universal18. Assim, se elogiava a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, Alencar se opôs à Lei do Ventre Livre, de 1871, que anunciava o fim da escravatura no Brasil. As condições da escravidão poderiam ser melhoradas e se tornar "humanitárias", perspectiva que ele implementou durante seu período no Ministério da Justiça, quando acabou com a prática dos leilões públicos de escravos no mercado de Valongo. Mas quanto à própria institui- ção, "precisamente porque é uma instituição condenada pela moral, uma instituição ultrapassada, não pode ser modificada: será extinta um dia, mas não pode ser alterada"19. Como sabemos, a Lei Áurea se seguiu à Lei Eusébio de Queirós após um intervalo de 38 anos, o que tornou o Brasil o último país das Américas a abolir a escravidão. Embora não fossem fatores decisivos para determinar o curso da história brasileira nesse particular, o movimento indianista e sobre- tudo a obra de Alencar contribuíram de modo significativo para legitimar ideologicamente o gradualismo lentíssimo desse caso de transição conserva- dora, tornando o impensável não apenas pensável, mas também romântico e civilizado. (18) Cf. Magalhães Júnior, Rai- mundo. José de Alencar e sua época. Rio de Janeiro: Civiliza- ção Brasileira, 1977, p. 279. So- bre as representações das rela- ções senhor—escravo na ficção alencariana depois da Lei do Ventre Livre, ver Alonso, Cláu- dia P. "The uses and implicati- ons of the master/slave image in Alencar's novel Senhora". Ipotesi. Revista de Estudos Lite- rários, nº 1, 1997, pp. 25-36. (19) Viana Filho, Luis. A vida de José de Alencar. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1979, p. 228. Recebido para publicação em 22 de janeiro de 2003. David Treece é professor do Departamento de Estudos Por- tugueses e Brasileiros do King's College (Londres). Novos Estudos CEBRAP N.° 65, março 2003 pp. 141-151 MARÇO DE 2003 151
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