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kÓsmos noetÓs
a aRQUITETURa METaFÍSICa
DE CHaRLES S. PEIRCE
Coleção ENSAIOS FILOSÓFICOS
•	Epicuro e as bases do epicurismo, Miguel Spinelli 
•	Ética e política em Aristóteles: Physis, Ethos, Nomos, Solange Vergnières 
•	Kósmos	Noetós: a Arquitetura Metafísica de Charles S. Peirce, Ivo Assad Ibri
•	Metafísica e assombro: curso de ontologia, Márcio Bolda da Silva 
•	Nietzsche: a fábula ocidental e os cenários filosóficos, Yolanda Gloria Gamboa Muñoz 
•	República de Platão (A): um guia de leitura, Luke Purshouse 
•	Sêneca, uma vida dedicada à filosofia, Luizir de Oliveira
IVo AssAD IBRI
kÓsmos noetÓs
A ARQUItetURA metAFÍsICA 
De CHARLes s. PeIRCe
Direção	editorial:	Claudiano Avelino dos Santos
Assistente	editorial:	Jacqueline Mendes Fontes
Coordenador	de	revisão:	Tiago José Risi Leme
Revisão:	Tiago José Risi Leme
Diagramação:	Dirlene França Nobre da Silva
Capa:	Marcelo Campanhã
Imagem	da	capa:	FreeImages.com/Maria Kaloudi
Indicação	da	imagem	da	capa:	Raquel Ferreira da Ponte
Impressão	e	acabamento:	PAULUS
© PAULUS – 2015
 Rua Francisco Cruz, 229
 04117-091 São Paulo (Brasil)
 Fax (11) 5579-3627
 Tel. (11) 5087-3700
 www.paulus.com.br
 editorial@paulus.com.br
 ISBN 978-85-349-4263-8
1ª edição, 2015
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Ibri,	 Ivo	Assad	/	Kósmos	noetós:	a	arquitetura	metafísica	de	Charles	S.	Peirce	/	 Ivo	
Assad	Ibri.	–	São	Paulo:	Paulus,	2015.	–	(Ensaios	filosóficos)
ISBN 978-85-349-4263-8
1.	Filosofia	2.	Metafísica	3.	Fenomenologia	I.	Título.	II.	Série.
14-09537 CDD-100
Índices	para	catálogo	sistemático:	1.	Filosofia	100
Para meus filhos
Gabriel (que sabia tanto de mim),
Clara e Conrado.
Agradecimentos. 
A Rodrigo Vieira de Almeida, pelas valiosas sugestões, na maioria 
adotadas nesta edição.
Ao Pe. Claudiano Avelino dos santos e a toda a equipe editorial 
da Paulus, meu especial agradecimento pela extraordinária agili-
dade na edição deste livro, mantendo a usual alta qualidade de 
seus trabalhos.
7
APResentAção PeLo AUtoR
A boa filosofia insere-se na história, como a maioria dos 
bons vinhos. Dificilmente ela se torna extemporânea ou perde 
qualidade com o tempo. Pode-se dizer que aspectos notáveis 
prosseguem sendo descobertos nas filosofias que antecederam a 
produção contemporânea, e muitos tópicos delas extraídos mos-
tram-se proverbialmente atuais. em filosofia, talvez caiba apenas 
atualizar os estudos, comentários e interpretações feitos sobre as 
diversas doutrinas que a sua história tem consagrado, sem que 
se possa afirmar que as ideias de seus autores se confinam tão 
somente ao contexto histórico onde elas foram concebidas. Algo 
da filosofia, aparentemente exclusivo da Arte, sobrevoa o tempo 
e o desdenha, desvinculando dele seu sentido mais profundo, 
talvez por permanecer tocando o que sempre é o mais caro para 
os homens: o entendimento da vida, seus genuínos valores, o 
sentido de sua existência e a de um universo no qual a dimensão 
humana ocupa pontos absolutamente anônimos do espaço e do 
tempo. 
este livro foi escrito originalmente quando os estudos sobre 
a filosofia de Peirce estavam ainda em seu início, pouco ou quase 
nada contribuindo para esclarecer aspectos do que tematicamen-
te estava sob seu foco, a saber, a passagem da fenomenologia do 
autor para uma ontologia realista. Desse modo, como dito na 
Introdução original, a estratégia da escritura se desenhou por 
um diálogo íntimo e direto com a obra de Peirce, uma aventura 
prazerosamente heurística por textos originais até então, em sua 
grande maioria, inexplorados pelos estudiosos do autor. esse ca-
8
minho proporcionou resgatar uma rede interativa de conceitos 
que evidenciava subjazer, na obra peirciana, um sistema teórico 
arquitetonicamente pensado, que, da produção mais precoce até 
sua maturidade, se desenhava progressivamente depurativo de 
inadequações de vocabulário. 
na edição anterior deste livro havia, a propósito, um capí-
tulo final inteiramente dedicado a alguns dos principais comen-
tários a respeito de tópicos da obra de Peirce, onde se procurava 
mostrar que muitos conceitos, por não disporem de remissão ao 
sistema teórico que enforma o pensamento de Peirce, eram então 
expostos de um modo que em quase nada colaborava para sua 
elucidação. mais de duas décadas se passaram e a quantidade e 
o nível das análises do pensamento peirciano não poderiam mais 
ser postos de lado. não obstante esse fato, manteve-se nessa edi-
ção o formato original de um diálogo direto com o autor, sem a 
inserção de comentaristas nas diversas passagens em que even-
tualmente isso pudesse caber. Alternativamente, optou-se suges-
tivamente por inserir, na bibliografia final, uma vasta gama de 
literatura de comentários que estaria possivelmente afeita a cada 
um dos capítulos do livro, possibilitando ao leitor interessado na 
pesquisa da obra peirciana examinar tais estudos por si mesmo. 
no diálogo com alguns estudiosos de Peirce, surgiu a ques-
tão sobre a ausência da semiótica como meio para a passagem 
da Fenomenologia para a metafísica de Peirce. De fato, esta obra 
não traz explícita uma exposição da semiótica. todavia, certa-
mente não passará desapercebido ao leitor que a consecução de 
uma teoria da realidade no pensamento do autor faz intenso uso 
do que Peirce denominava processo de investigação, evidenciado 
pelos modos lógicos que aparecem na classificação dos signos 
segundo os interpretantes, a saber, abdução, dedução e indução. 
A metafísica de Peirce é, de fato, um bom exemplo de constru-
ção conceitual que se vale abundantemente desses três modos, 
implicando que a semiótica esteja mediando sua concepção. 
De outro lado, o realce do realismo peirciano, caracterizado 
pelo que tenho denominado, em vários ensaios subsequentes, de 
simetria das categorias, permite pensar a semiótica não apenas 
em sua nuance classificatória, mas de um modo extensivo ao 
9
conceito de linguagem para além de um logocentrismo, em que 
todos os seres do universo, em sua dimensão própria, se expres-
sam significativamente por meio de ações intencionadas. e, para 
assim fazê-lo, processam signos do oceano existencial em que 
estão imersos e com os quais vitalmente têm de se comunicar, 
numa saga interpretativa cujo dizer se consolida na forma de 
conduta. esse modo de se repensar a semiótica lastreia-se na 
ontologia realista de Peirce, para além de um antropocentris-
mo que insiste em assimetrizar homem e natureza sob um táci-
to cartesianismo sustentado em uma relação de estranhamento 
substancial. essa aplicação da semiótica a objetos naturais, qual 
um estetoscópio que dá a palavra a um organismo vivo, não é 
mais numa espécie de aventura especulativa que a suporia ex-
tensível à natureza, mas uma ciência que, ao dar suporte lógico 
à simetria das categorias, pode também e necessariamente ser 
relida à luz dessa simetria. essa circularidade não fundacionista 
é típica da filosofia de Peirce, e é não mais que a consequência do 
imbricamento lógico de uma miríade de doutrinas por ele criada. 
Como um pó de café suspenso em água fervente que requer 
ser decantado para então ser sorvido, a boa filosofia demanda 
que suas mais promissoras ideias decantem no espírito para que 
assumam sua possibilidade heurística e evidenciem sua ampli-
tude semântica, recompensando a paciência da espera. Peirce 
legou muitas sementes cuja fertilização requer um longo tempo 
de convívio com sua filosofia. sementes que sugerem prosseguir 
pensando as consequências de seu sistema teórico, em diversos 
campos da cultura, como Arte e Psicanálise, por exemplo, muito 
além do confinamento de sua filosofia a embates de interpreta-
ção que primam por uma topologia conceitual cuja fragmenta-
ção impede considerar a rede teórica que subjaz sob ela.Repen-
sar a Arte à luz de uma ontologia realista promete trazer uma 
face bastante original de leitura da experiência estética. De sua 
vez, a Psicanálise, revista sob o nexo semiótico-pragmático entre 
mundos interno e externo, desafia pensar o jogo homeostático 
entre interpretantes lógicos e emocionais. 
em uma dimensão talvez mais macroscópica, Peirce ofere-
ce, com sua filosofia cósmica, os fundamentos para que se possa 
10
reconceituar a relação homem-natureza, numa reconciliação ne-
cessária e inadiável plena de motivação na contemporaneidade. 
o que o romantismo alemão alegava como necessidade de re-
consideração do que seria natureza, Peirce, não à toa inspirado 
em schelling, consolida ao conceber uma filosofia que legitima 
uma igualdade de direitos aos personagens daquela relação. 
malgrado todas essas considerações desenhem uma tarefa 
longa a cumprir, as sementes legadas pela filosofia de Peirce tra-
çam um caminho heurístico que promete um horizonte inesgo-
tável de descobertas. Que a leitura deste livro possa contribuir 
para a visualização desse caminho, trazendo consigo a compre-
ensão das razões pelas quais o pensamento de Peirce se espraia 
por todos os centros mundiais onde se cultivam as boas filoso-
fias. 
 
11
PReFáCIo à 1ª eDIção
Il n’y a de long ouvrage que celui qu’on n’ose 
pas commencer. Il devient cauchemar.
Baudelaire (mon Coeur mis a nu).
Charles sanders Peirce (1839-1914) nunca terminou ou pu-
blicou um livro. sua obra, comparável em volume à de Leibniz, é 
constituída de ensaios publicados em periódicos e, na sua maior 
parte, de manuscritos que se encontram sob os cuidados do De-
partamento de Filosofia da Universidade de Harvard. Reunindo 
aproximadamente quatro mil páginas da obra do autor, essa Uni-
versidade publicou,1 em 1931-35 e 1958, textos que cobrem o 
pensamento peirciano de modo significativo, procurando dividi-
-lo tematicamente da melhor maneira possível.
Configurando-se como obra pioneira, decorridos menos de 
vinte anos da morte do autor, seria uma exigência descabida nela 
encontrar uma organização perfeita dos textos, detectando-se, 
em não poucos capítulos, uma interpenetração de áreas filosó-
ficas que torna particularmente difícil sua leitura. Um exemplo 
marcante que pode ser mencionado é a seleção de textos sob o 
título geral de Fenomenologia,2 em que indevidamente se mes-
clam trabalhos de Lógica e metafísica. em excelente coletânea 
de textos baseada nos Collected Papers e editada por Buchler,3 
encontra-se um indício significativo da má circunscrição da Fe-
nomenologia, devido a problemas de sobreposição temática. Co-
menta o editor:
1 Charles Hartshorne, Paul Weiss e Arthur Burks (org.), Collected Papers of Charles 
Sanders Peirce, Cambridge: massachusetts, Harvard University Press, 1931-35 e 1958, 8 vols.
2 CP, 1.284-572. Usaremos a referência usual a esta obra: CP indica Collected Pa-
pers; o primeiro número corresponde ao volume e o segundo ao parágrafo.
3 Justus Buchler (org.), The Philosophy of Peirce; Selected Writings, nY: Ams Press, 
1978.
12
na fenomenologia emergem numerosas dificuldades relaciona-
das, principalmente, ao delineamento das três categorias. A cate-
goria da Primeiridade sofre de uma considerável ambiguidade e a 
terceiridade de obscuridade.4
transcrevemos literalmente essa passagem apenas para, 
exemplarmente, ilustrar nosso ponto de vista de que os comen-
taristas muitas vezes são levados a atribuir confusões intrínsecas 
à obra do autor, quando, na realidade, elas decorrem do modo de 
organização dos textos. Pudemos distinguir elementos não perti-
nentes ao âmbito fenomenológico, somente quando recorremos 
à classificação e interdependência das diversas disciplinas da Fi-
losofia, sob a ótica do autor. embora essa nossa observação se 
refira à Fenomenologia, poderão ser constatadas dificuldades da 
mesma natureza na leitura de outros temas contidos na principal 
fonte disponível da obra de Peirce, os Collected Papers.
Como a maioria dos estudantes do pensamento do autor, 
adentramos sua obra nos pontos pelos quais ele é mais conheci-
do: a semiótica e o Pragmatismo. Interessava-nos, em especial, 
o desenvolvimento de uma Lógica heurística e suas relações com 
uma Filosofia da matemática. Por esse viés, deparamo-nos não 
só com as dificuldades já acusadas e relativas à organização dos 
textos, mas, sobretudo, com uma miríade de conceitos que pa-
reciam requerer uma abordagem sistêmica. De outro lado, as 
tentativas de enfoque temático dos pontos que, de início, mo-
bilizaram nosso interesse no estudo do autor, pareceram-nos 
insatisfatórias,5 por procurarem fundamentos psicológicos para 
uma questão de substrato essencialmente lógico.
Além disso, verificamos que as dificuldades de abordagem te-
mática do autor não se confinavam tão somente ao âmbito de uma 
Lógica heurística, estendendo-se, em verdade, a uma esfera mais 
geral. Recorrendo a comentadores tidos como clássicos da obra de 
Peirce, observamos que, na sua grande maioria, concluem haver 
4 Justus Buchler, op. cit., “Introduction”, p. XVI. As categorias peircianas serão con-
ceituadas no capítulo 1 do presente ensaio.
5 Destas tentativas tem-se, por exemplo, norwood Russell Hanson, Patterns of Dis-
covery, Cambridge at UP, 1958.
13
pontos lacunares e obscuros no pensamento do autor, acusando, 
frequentemente, posições logicamente contraditórias, como o fato 
de Peirce se declarar simultaneamente realista e idealista. 
o difundido hábito de se iniciar o estudo do pensamento 
peirciano pelas (des)conhecidas doutrinas da semiótica e do 
Pragmatismo conduz, a nosso ver, a um entendimento precário e 
fragmentado da obra de Peirce. Principiar tal estudo pelo exame 
da semiótica, uma teoria geral dos signos, para a qual o autor 
pretende o estatuto de uma Lógica, pode conduzir o leitor a uma 
ciência meramente taxonômica, uma estranha matriz classifica-
tória das representações, desfigurando sua verdadeira função no 
quadro filosófico de Peirce. o Pragmatismo, por sua vez, como 
ponto temático de estudo, desde sua gênese, tem sido objeto de 
equívocos.6 De um lado, interpretam-no como uma regra utilitá-
ria e, de outro, como um princípio transcendental.7
Ao tomarmos contato, pela primeira vez, com a semiótica e 
o Pragmatismo, tivemos a impressão de que estávamos no territó-
rio de uma Filosofia da linguagem em particular, e da significação 
em geral, não obstante as indefinições desenhadas numa varie-
dade de interpretações possíveis. Para ilustrar essa indefinição, 
imaginamos aplicar-se, com estranha precisão, uma metáfora que 
se baseia na tentativa de se traçar uma circunferência por apenas 
dois pontos: obter-se-ão, como se sabe, não uma, mas infinitas fi-
guras possíveis daquele tipo. à semelhança da regra de geometria 
elementar, o entendimento pleno daquelas doutrinas requer um 
terceiro ponto que permita a circunscrição unívoca do pensamen-
to de Peirce, e que se constitui, na realidade, em um ponto focal e 
iluminador de todos os demais: a Metafísica do autor.
Dessas considerações, decorre a hipótese central deste en-
saio. De um viés, ela afirma que os tão frequentes equívocos 
de leitura se originam da inexistência de um sistema de refe-
6 Para a discussão deste aspecto, examinar o capítulo 6.
7 este é um traço que verificamos, de maneira mais acentuada, nos comentadores 
alemães. Verificar, por exemplo, Jürgen Habermas, Conhecimento e Interesse, Rio de Ja-
neiro: Zahar, 1982, tradução de José n. Heck, p. 109-155; e karl-otto Apel, “C. s. Peirce 
and the Post-tarskian Problem of an Adequate explication of the meaning of the truth: 
towards a transcendental – Pragmatic theory of truth”, Transactions of the Charles S. 
Peirce Society, vol. XVIII, n. 1, 1982, p. 3-17.
14
rência que seja a matriz conceitual capaz de permitir a nitidezde abordagens temáticas, tal como, em muitos casos, disponível 
para autores classicamente inseridos na trama de uma História 
da Filosofia. A partir dessa hipótese, por outro viés, buscamos 
resgatar tal sistema, na forma dos fundamentos metafísicos da 
Filosofia peirciana.
Aceitar essa tarefa foi tentar resolver um puzzle.
As primeiras peças foram separadas de um emaranhado 
de textos que constitui o que os editores dos Collected Papers 
denominaram Fenomenologia, com o intuito de fundar a ma-
triz categorial do sistema peirciano e alcançar um delineamento 
translúcido da concepção de experiência que nele se insere. o 
entrelaçamento dessas peças iniciais constitui o capítulo 1.
o capítulo 2, início do que nomearemos segunda parte des-
te ensaio, desenvolve as concepções metafísicas de existência 
e realidade e fundamenta o realismo do autor, preparando um 
contorno adequado ao encaixe das peças referentes às doutrinas 
peircianas do acaso absoluto e do Evolucionismo. essas doutri-
nas constam do capítulo 3.
o capítulo 4 discorre sobre uma das teorias especialmente 
mal entendidas dentro do sistema metafísico do autor – o Idea-
lismo Objetivo. Junto com a Teoria do Continuum, o Idealismo 
de Peirce perfaz um eixo dorsal no corpo daquele sistema, sub-
sidiando o núcleo deste ensaio, a Cosmologia. tida por alguns 
estudiosos como o “elefante branco” da metafísica peirciana,8 ela 
integra o quinto capítulo. na tentativa de montagem do puzzle, 
verificamos, em certo ponto daquele capítulo, não serem suficien-
tes os textos disponíveis nos Collected Papers. As peças restantes 
e necessárias foram encontradas em uma obra9 que coligiu textos 
peircianos no âmbito da matemática e da Filosofia, distintos da-
queles constitutivos da publicação de Harvard. Anunciando uma 
miríade de consequências filosoficamente notáveis, das quais ex-
ploramos apenas algumas no estrito escopo deste ensaio, a Cos-
8 o adjetivo “white elephant” foi empregado, por exemplo, por GALLIe, 1952. 
9 Carolyn eisele (ed.), The New Elements of Mathematics by Charles S. Peirce, the 
Hague: mouton Publishers, 1976, 5 vols; vol. 4. Faremos menção a esta obra na forma 
abreviada NEM, associada à página correspondente do quarto volume da edição citada. 
15
mologia prepara o terreno conceitual para uma reconstrução do 
Pragmatismo visto sob as luzes ontológicas da metafísica, dis-
tanciando a doutrina de interpretações estreitas e reducionistas. 
Como terceira e última parte do ensaio, seu sexto capítulo, o Prag-
matismo anuncia-se como um método lógico que permeia toda 
metafísica, no interior do qual estão implicados os três modos de 
argumento que Peirce denomina abdução, Dedução e Indução. 
Deste ponto de reconstrução do Pragmatismo, o capítulo inicia a 
exposição da Lógica Objetiva do autor, que se traduz numa Ló-
gica ontológica estruturada naqueles três modos de argumento.
Por não ter encontrado nos comentadores qualquer auxílio 
para a remontagem do sistema metafísico de Peirce,10 o traba-
lho, como o leitor irá perceber, centra-se diretamente na leitura 
e análise dos textos do autor. 
Peirce é um desconhecido e mal conhecido autor. Por esse 
motivo, de início, decidimos transcrever literalmente passagens 
de sua obra, objetivando, sobretudo, inserir diretamente seus ar-
gumentos no corpo do trabalho, conscientes de que os originais 
editados de seus escritos raramente integram as bibliotecas pes-
soais ou das universidades brasileiras. não obstante, esse proce-
dimento acarretou, posteriormente, um vínculo estrutural entre 
os textos do autor e nossa própria escritura que, se rompido, 
metamorfosearia sobremaneira a unidade que pretendemos dar 
a este ensaio. o próprio leitor poderá comprovar o que afirma-
mos, imaginando, ao longo do exame dos capítulos que se se-
guem, a supressão de grande parte das transcrições.
Familiarizados que estávamos com o estilo bastante pessoal 
do autor, optamos por apresentar as passagens de sua obra, tradu-
zindo-as para o português, não apenas porque buscamos pensá-lo 
em nossa língua, mas também para facilitar o contato do leitor 
com as idiossincrasias da escritura do filósofo norte-americano, 
embora, à primeira vista, lhe seja negada a leitura do texto original.
Com o objetivo de elucidar mais alguns pontos para o es-
tudioso interessado no exame deste ensaio, convém observar 
10 De fato, quando da primeira edição deste livro, a literatura referente à metafísica 
de Peirce era constituída por comentários esparsos e sem dispor do sistema teórico que 
se propôs então reconstruir. 
16
que se tornou procedimento corrente, entre os especialistas em 
Peirce, fazer referência às datas em que os textos originais do 
autor foram concebidos. A razão dessa prática mantém, fre-
quentemente, um vínculo estreito com o que havíamos anterior-
mente comentado sobre a quase invariavelmente malsucedida 
abordagem temática do pensamento peirciano. em muitos ca-
sos, pretende-se, na verdade, atribuir as aparentes contradições 
no entrelaçamento lógico das teorias do autor às suas eventuais 
mudanças de posição filosófica durante o decorrer de sua vida, 
procurando encontrar, na fragmentação da obra, a justificativa 
para certos problemas que, em realidade, são de caráter interpre-
tativo. esse hábito de datar os textos peircianos, aparentemente, 
poderá ser realimentado com a reorganização de sua obra de 
forma cronológica, num projeto previsto para uma edição em 
vinte volumes.11 Louvável sob uma série de aspectos, essa ini-
ciativa parece estar compromissada com a corrente que, falsa-
mente, tem encontrado no jovem Peirce um filósofo e no Peirce 
da maturidade, outro completamente diferenciado por posições 
substantivamente opostas.
não por descuido omitimos as datas dos textos citados, em-
bora conscientes de que eles se vinculam às mais diferentes etapas 
da vida do autor. Conquanto reconheçamos que, em certas formas 
de abordagem temática, seja interessante evidenciar ao leitor a 
evolução do pensamento peirciano na construção de determina-
dos conceitos, a datação dos textos não se mostrou importante no 
âmbito do que nos propusemos pesquisar. Além disso, ao longo 
da execução deste ensaio, não encontramos dois ou mais autores, 
mas, muito pelo contrário, deparamo-nos com um pensamento 
cuja consistência lógica convidamos o leitor a pôr à prova.
11 Writings of Charles Sanders Peirce: A Chronological edition. edited by max Fisch, 
edward C. moore, Christian kloesel, nathan Houser, André De tienne, et al., 8 vols., 
Bloomington: Indiana University Press, 1982-2010. Faremos menção a essa obra na for-
ma abreviada W, seguida do número do volume e do número da página. mencione-se 
também a obra the essential Peirce, organizada em dois volumes e também em ordem 
cronológica: the essential Peirce: selected philosophical writings, v. 1. HoUseR, na-
than; kLoeseL, Christian (eds.). Bloomington: Indiana University Press, 1992c. the 
essential Peirce: selected philosophical writings, v. 2. the Peirce edition Project (ed.). 
Bloomington: Indiana University Press, 1998. Faremos menção a essa obra na forma 
abreviada eP, seguida do número do volume e do número da página.
17
Há que se reconhecer, não obstante, que no princípio de sua 
carreira filosófica, o agudo interesse do autor pela Psicologia e a 
forte influência do pensamento de kant levaram-no a utilizar, de 
um lado, uma terminologia por vezes psicológica e subjetiva12 e, 
de outro, a considerar a divisão kantiana dos juízos nas primeiras 
formulações sobre os três modos de argumento, realçando o ca-
ráter sintético e heurístico da abdução e da indução.13 sua desco-
berta de uma “álgebra Geral da Lógica” aplicável aos Relativos, 
que se dá entre 1885 e 1890,14 parece-nos ser um momento-cha-
ve em seu pensamento que se vai tornando tendencialmente mais 
objetivo, no sentido ontológico do termo.Acrescente-se ainda 
que, ao se autoacusar de “nominalista” devido ao teor de certos 
ensaios de sua juventude, entendemo-lo, na verdade, como ape-
nas “menos realista”, uma vez que o realismo ontológico foi sua 
posição cabal desde os primórdios de seu pensamento.
Finalizando, gostaríamos de frisar que a par de constituir um 
sistema de fundamentos, o qual, em nossa hipótese de trabalho, é 
condição necessária de possibilidade para abordagens temáticas, a 
metafísica de Peirce é, em si mesma, uma arquitetura lógica, cuja 
solidez forma um dueto admirável com seu conteúdo.
Reconhecemos ser ambicioso o projeto deste ensaio. tal 
ambição, porém, decorre unicamente de não termos encontrado 
outro caminho lógico senão o de tentar a reconstrução de um sis-
tema de fundamentos que viesse servir de rede conceitual, num 
futuro ensaio, para os pontos que, de princípio, nos moveram 
em direção ao autor.
Convidando o leitor a constatar por si que Peirce é um autor 
profundo e de grande interesse à pesquisa filosófica, esperamos 
ter contribuído para sua inadiável divulgação.
12 Verificar, por exemplo, textos da juventude como “Questions Concerning Certain Fac-
ulties Claimed For man” (CP, 5.213-263; EP, 1.11-27; W, 2.193-211) e “some Consequences 
of Four Incapacities” (CP, 5.264-317; EP, 1.28-55; W, 2.211-242), ambos de 1868.
13 Distanciando-se do pensamento de kant de maneira radical na maturidade, embo-
ra nunca tenha sido um transcendentalista, Peirce revê suas considerações sobre os três 
modos de argumento. examinar sua autocrítica em NEM, p. 22-23.
14 Cf. Pierre thibaud, La Logique de Charles Sanders Peirce. De l’algèbre aux 
Graphes, Aix-en-Provence: editions de l’Université de Provence, 1975, p. 84-85.

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