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2016 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE DIREITO PEDRO DE OLIVEIRA ALVES A CONCRETIZAÇÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA PELA DECISÃO JUDICIAL: Estado de Direito, proporcionalidade e eficiência jurídica Natal/RN 2016 PEDRO DE OLIVEIRA ALVES A CONCRETIZAÇÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA PELA DECISÃO JUDICIAL: Estado de Direito, proporcionalidade e eficiência jurídica Monografia apresentada à Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN para obtenção do título de bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Constitucional. Orientador: Prof. Dr. Leonardo Martins. NATAL/RN Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Alves, Pedro de Oliveira. A concretização da liberdade religiosa pela decisão judicial: estado de direito, proporcionalidade e eficiência jurídica/ Pedro de Oliveira Alves. - Natal, RN, 2016. 74f. Orientador: Prof. Dr. Leonardo Martins. Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Departamento de Direito. 1. Direitos Fundamentais – Monografia. 2. Liberdade religiosa - Monografia. 3. Políticas Públicas - Monografia. 4. Eficiência jurídica - Monografia. I. Martins, Leonardo. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 342.7: 2 Aos que tentam melhorar nosso mundo, com entusiasmo e boa fé. Em especial, dedico este estudo ao meu avô Daniel Gomes de Oliveira (in memoriam) por seu bom humor e humildade que tanta falta nos faz. AGRADECIMENTOS Eu nada seria e jamais teria chegado até aqui sem a ajuda, lições e contribuições, de seres maravilhosos que encontrei ao longo da minha breve jornada. Sei que não conseguirei descrever toda minha gratidão nestas poucas palavras e nem pretendo nomear todos aqueles que merecem reconhecimento. Assim, peço desculpas pela minha natural imperfeição. Agradeço a Deus, fonte do mais puro amor e misericórdia, por sempre estar comigo e me mostrar, em cada oração, a beleza de suas criações e o poder de suas bênçãos. Aos meus pais, Pedro e Lúcia, pela imensurável educação, pelo constante acompanhamento e por cada tentativa de me tornarem um grande homem. Por suas narrativas com vitórias árduas que apresentam lições inesquecíveis, pelas honrosas demonstrações de coragem, por cultivarem o valor do respeito e, principalmente, por me amarem intensamente. A todos meus parentes, próximos ou distantes, vivos ou não, especialmente meus irmãos de sangue e coração – Lira, Fabiana, Fabiano, Fábio, Fátima e Paula –, que certamente contribuíram para minha formação humanística e que depositaram confiança no meu futuro. Ao professor Napoleão Maia e ao ex-colega de Ensino Médio Elizeu Xavier, grandes amigos de Limoeiro do Norte-CE, por me estimularem a cursar Direito na UFRN. Aos inesquecíveis amigos, colegas e professores, das instituições escolares limoeirenses em que estive – Escola Sossego da Mamãe, E.E.F. Estefânia Pinheiro, Centro Educacional São Vicente de Paulo (Patronato), Colégio Diocesano Padre Anchieta e Escola Normal Rural de Limoeiro –, pelas lições, oportunidades, premiações e experiências. Aos estimados professores e grandes amigos Dr. Fabiano Mendonça e Dr. Leonardo Martins, pelo incentivo à pesquisa em Direito Constitucional, por suportarem minhas falhas enquanto monitor de suas disciplinas e principalmente pela sempre agradável amizade. Aos excelentes profissionais que orientaram meus estágios jurídicos, o Procurador da Fazenda Nacional Ronaldo Prado e os Juízes Federais e professores Dr. Marco Bruno Clementino e Dr. Walter Nunes, cujas preciosas lições me acompanharão sempre. Aos que me ofereceram água quando tive sede, que me alimentaram quando tive fome, que me deram informações quando estive perdido, que me abrigaram quando estive ao relento, que me socorreram nas aflições e que me corrigiram quando eu errei. Aos bons amigos da Sociedade de Debates da UFRN e dos grupos de pesquisa liderados pelos professores Leonardo Martins, Fabiano Mendonça, Jahyr Bichara e Thiago Moreira. A vocês, minha eterna gratidão e admiração. RESUMO O presente trabalho investiga, a partir do estado da arte jurídico-dogmático, os principais problemas teóricos encontrados pela jurisprudência brasileira na aplicação da proteção e fomento da liberdade religiosa. Propõe-se a contribuir para a fundamentação racional e juridicamente mais adequada de decisões judiciais que tenham como ratio decidendi a liberdade religiosa tutelada pelo texto constitucional. Assim, é preciso compreender a razão de ser de todas as práticas humanas protegidas pela “liberdade religiosa” na Constituição brasileira diante do fenômeno do Estado de Direito. Dado o primeiro passo em busca de conhecer o objeto aqui pesquisado, é preciso enveredar pelas teorias dos direitos fundamentais, especialmente com foco na teoria liberal germânica e suas consequências para a análise da liberdade religiosa nos casos concretos. Posteriormente, pretende examinar as diferentes funções jurídicas da liberdade religiosa e de que forma poderia vincular os atos administrativos envolvidos no planejamento de políticas públicas. A partir dessa análise, será possível construir uma pesquisa muito mais profunda e ampla do significado da liberdade religiosa e sua proteção pelo direito brasileiro, com eventual controle jurídico das despesas públicas. Conclui-se, deste modo, pela necessidade de fundamentação das decisões judiciais em conformidade com as orientações seguidas nesta pesquisa, sendo possível buscar o meio menos oneroso e mais eficiente para concretizar a liberdade religiosa, sem discriminações ou análises meramente retóricas, em prol de um regime jurídico de desenvolvimento nos moldes do federalismo brasileiro. Objetiva enfrentar as dificuldades teóricas sobre a efetivação dos direitos fundamentais, especialmente a liberdade religiosa, através da readequação da decisão judicial como um meio de análises de Políticas Públicas e comportamento do Estado, sem afetar a separação dos poderes e a normalidade institucional. Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Políticas Públicas. Liberdade religiosa. Eficiência. ABSTRACT This research investigates, from the legal state of the art, the main theoretical problems encountered by the Brazilian case law on fundamental rights related to religious freedom. It is proposed to contribute to the rational and legally adequate reasoning of court decisions which have the ratio decidendi as religious liberty safeguarded by the Constitution. Thus, we must understand the legal reason of protecting all human practices of religious freedom in the Brazilian Constitution on the rule of the law. When we know the object researched here, we go through theories of fundamental rights, especially the German liberal theory and its consequences for the analysis of religious freedom in a particular case. Subsequently, intends to examine the different legal functions of religious freedom and how can bind the administrative acts involved in the planning of public policies.From this analysis, it can build a much deeper research and broad meaning of religious freedom and its protection by the Brazilian law, including possible legal control of public expenditure and budget. It concludes that it is necessary to give reasons for judicial decisions in accordance with the guidance followed in this study. Therefore, must be sought the least costly and most efficient means to implement religious freedom, without only rhetorical analysis or discriminations, in favor of a legal system of development along the lines of Brazilian federalism. Focus on cope with the theoretical difficulties on the enforcement of the constitutional rights, especially religious freedom, through the readjustment of the court decision as a way of public policy analysis and state behavior without affecting the separation of powers and institutional normality. Keywords: Constitutional rights. Public policy. Religious freedom. Efficiency. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ......................................................................................................... .07 2. CONCEITOS ESSENCIAIS E A SEDIMENTAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO ..................................................................................................................... 13 2.1. ESTADO DE DIREITO, SEGURANÇA JURÍDICA E DEVIDO PROCESSO LEGAL ..........................................................................................................................15 2.2. AS RELAÇÕES ENTRE ESTADO E RELIGIÃO AO LONGO DO TEMPO .......... .22 2.3. A DIFÍCIL MISSÃO DE JULGAR CASOS DIFÍCEIS .............................................. .31 3. A BUSCA PELO MÉTODO RACIONAL: DA JUSTIFICAÇÃO DE INTERVENÇÕES ESTATAIS EM DIREITOS FUNDAMENTAIS .................... 36 3.1. TEORIAS OBJETIVISTAS E SUBJETIVISTAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ...................................................................................................... 37 3.2. OPÇÃO METODOLÓGICA PELA TEORIA LIBERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ...................................................................................................... 43 3.3. O PROPORCIONAL E O RAZOÁVEL: FALHAS E CRÍTICAS ............................. 49 4. FUNÇÕES DA LIBERDADE RELIGIOSA E SUA EFICIÊNCIA JURÍDICA NO REGIME JURÍDICO DO DESENVOLVIMENTO .............................................. 54 4.1. PLURIFUNCIONALIDADE DA LIBERDADE RELIGIOSA ................................. 57 4.2. CONTROLE JURÍDICO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E EQUILÍBRIO ORÇAMENTÁRIO ..................................................................................................... 61 4.3. PERSPECTIVAS PARA O CONTROLE DA DESPESA PÚBLICA ........................ 62 5. CONCLUSÃO ............................................................................................................ 65 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 67 7 1. INTRODUÇÃO A liberdade religiosa constantemente é objeto de debates nas mais diversas esferas e sistemas sociais. No entanto, sendo este um trabalho eminentemente jurídico, o recorte metodológico utilizado aqui não pretende desmerecer as demais fontes de conhecimento, mas sim buscar respostas na estrutura jurídica que possam potencializar a concretização da liberdade religiosa, fortalecendo a supremacia das normas constitucionais e permitindo contribuir com a ciência jurídica. Afinal, como garantir, com a máxima eficiência e qualidade, a liberdade religiosa dos indivíduos? É certo que a Constituição brasileira de 1988 positivou, em seu artigo 5º, VI, a inviolabilidade da liberdade de consciência e crença, o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e suas liturgias como garantias fundamentais dos indivíduos frente ao poder estatal, embora com uso de reserva legal como se perceberá ao longo do trabalho. Em seguida, nos incisos VII e VIII do referido artigo, há ainda a previsão da prestação de assistência religiosa nas entidades civis ou militares de internação coletiva e também a garantia de “escusa religiosa” quando, por motivo de crença religiosa, ninguém poderá ser privado de direitos (salvo se for obrigação legal quando deverá ser apresentada uma prestação alternativa). Com a intenção de não permitir qualquer dúvida sobre a configuração de um Estado laico, o constituinte originário também expressou a vedação no art. 19, I, para que nenhum ente federado do Poder Público viesse a estabelecer cultos religiosos ou mesmo manter relações de dependência ou aliança, sendo ressalvada a colaboração de interesse público nos termos da legislação. Por fim, quando se trata do direito à educação no texto constitucional, é certo que o ensino religioso poderá constituir disciplina dos horários normais das escolas públicas do ensino fundamental, desde que com matrícula facultativa, conforme art. 210, § 1º. Nesse sentido, não cabe, no presente trabalho, questionar a importância ou a legitimidade das normas que protegem a liberdade religiosa, mas sim compreender o seu significado jurídico e buscar compreender, com a máxima exatidão, quais os passos hermenêuticos devem ser traçados para que seja alcançado um maior grau de efetividade. Mas o que significa concretizar a liberdade religiosa? Quais são as formas para conseguir tal concretização? De fato, se deve assumir que podem existir diversas atuações judiciais ou extrajudiciais que poderiam garantir a efetividade da liberdade religiosa. Assim, a pesquisa 8 delimita-se apenas quanto às decisões judiciais, não contemplando outras formas estatais ou mesmo no âmbito privado de garantia da liberdade religiosa. Entretanto, quais as características da concretização da liberdade religiosa pela decisão judicial? Em primeiro plano, é preciso revelar qual o sentido dessas normas, seu âmbito de proteção e quais são seus limites. Liberdade religiosa significa não apenas uma relação do indivíduo com o Estado, mas um feixe de relações que precisam ser analisadas com a observância de cada circunstância apresentada na doutrina especializada e na jurisprudência dos tribunais. O cerne do problema encontra-se especialmente nas fundamentações de decisões judiciais que, por falhas metodológicas, acabam por não apresentar qualquer segurança jurídica, ameaçando a liberdade religiosa da comunidade envolvida, gerando efeitos extrajurídicos graves. Dentre os casos mais célebres no cenário internacional, encontram-se a proibição de exposição de crucifixos em sala de aula de escolas públicas porque violaria a liberdade de crença individual1 , a proibição de condenações por crime de proselitismo2, a permissão de sacrifícios e degola de animais em cultos religiosos3 e o casamento homoafetivo4. No caso do Supremo Tribunal Federal do Brasil, se verificam, de forma exemplificativa, também casos de proibição de cultos que adotem os mesmos atos da Igreja Católica Romana por causar “confusão” e contrariar “a ordem pública” 5, constitucionalidade do crime de curandeirismo6, a adequação de serviços públicos aos dias religiosos7 ou a pesquisa científica de células-tronco embrionárias8. Entretanto, não se pretende examinar criticamente cada caso concreto que envolve liberdade religiosa, mas sim buscar uma construção teórica que seja suficiente para apresentar todos os passos para que o intérprete consiga uma resposta adequada, fugindo de propostas arbitrárias. Considera-se a noção difundida por Kelsen (1999, p. 248-250) de que a interpretação é um ato de vontade e sempre existiria uma margem para o intérprete, porém com determinadas 1 Sentença 93,11 (1995) – Tribunal Constitucional Alemão. 2 Caso Kokkinakis v. Grécia (1993). Tribunal Europeu de Direitos Humanos. 3 Sentença 104, 337 (2002) – TCA. Church of Lukumi Balalu Aye v. City of Hialeah (1993) – Suprema Corte EUA. 4 Cf. STAMFORD DA SILVA, Artur. Sociologia da decisão jurídica: aplicação, ao caso da homoafetiviade. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, v. 1, p. 66-87, 2014. 5 MS 1.114/DF (1949), STF. 6 HC 62.240 (2006), STF. 7 Voto do Min. Sepúlveda Pertence na ADI 2.806/RS (2003), STF. 8 ADI 3.510/DF (2009), STF. Voto do Min. Menezes Direito. 9 restrições – a “moldura de decisões corretas”. É preciso, portanto, investigar os limites argumentativos que diferenciam as decisões inadequadas do conjunto de decisões potencialmente corretas9, cuja problemática pesquisa é objeto desta monografia. Assim, é preciso resgatar as afirmações de Hart (2010, p.39) no sentido de que é preciso partir de algumas ideias de Bentham10, porém aperfeiçoando, para que as leis que garantem direitos sejam caracterizadas sempre pela escolha do indivíduo que potencialmente teria o direito ou ainda alguma pessoa autorizada a agir em seu nome. Em termos mais didáticos, e influenciando o método adotado nesta pesquisa, temos que para elucidar o significado de “O indivíduo I possui direito à liberdade religiosa” 11, precisamos verificar as condições de i) se realmente existe um sistema jurídico em vigor; ii) pela(s) norma(s) do sistema jurídico, alguma outra pessoa P está obrigada a fazer ou deixar de fazer algo, em determinadas circunstâncias C; iii) essa obrigação (de fazer ou não fazer), pelo sistema jurídico, depende da escolha do indivíduo I ou alguém autorizado para agir em seu nome, de modo que P está obrigado apenas se X (ou alguém autorizado) assim escolher ou, alternativamente, apenas até que X (ou alguém autorizado) escolha algo diferente; e, finalmente, iv) a declaração do tipo “O indivíduo I possui direito a liberdade religiosa” é usada para extrair alguma conclusão jurídica em um caso particular com previsão nessas normas jurídicas. Ao fim do trabalho, se apresentará respostas a este raciocínio sugerido por Hart. Dessa forma, o Capítulo 02 pretende analisar o campo teórico da tutela da liberdade religiosa no Estado de Direito brasileiro, contemplando a difícil missão de apresentar cada um 9 Embora haja o necessário estudo acerca das decisões judiciais (especialmente para a racionalização desta moldura descrita por Kelsen), a interpretação jurídica, para este autor, seria realizada apenas nos órgãos competentes. As interpretações sugeridas por advogados ou por pesquisadores nas Universidades não poderiam ser intituladas de “interpretações jurídico-científicas” (seriam apenas sugestões de política do direito para a criação deste) e seria uma ficção imaginar que haveria apenas uma única resposta correta (seria apenas um juízo de valor político). Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 250-251. 10 Hart utiliza o pensamento de Bentham para afirmar que não é correto tentar buscar uma definição isolada do direito, mas sim observando pela razão prática. Seria preciso deixar em aberto essa questão em detrimento da análise de todo o sistema de direitos e seus instrumentos de garantia. De qualquer forma, Hart discorda de Bentham por este por caracterizar o direito demasiadamente como punição. Embora seja preferível pensar em “reparação”, Hart prefere deixar a escolha em aberto, isto é, generalizando com “alguém que tem um direito” de fazer com que a obrigação jurídica seja cumprida ou não. Cf. HART, H.L.A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Trad. José Garcez Ghirardi; Lenita Maria Rimoli Esteves. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 37-39. 11 HART, H.L.A. Op. Cit., p.39. Na versão original, Hart utiliza a frase do tipo “X tem um direito”, mas em nota de rodapé, também adverte que essa forma de elucidação pode ser utilizada para casos de “liberdade”, “poder”, “garantia” e “imunidade” e compreender porque, apesar das diferenças, tais termos podem ser enquadrados como direitos. Afinal, em todos os casos, haveria a escolha de um indivíduo (ou não escolha) para que sua escolha não fosse atrapalhada (liberdade, imunidade) ou para dar um efeito legal (reivindicação, poder). Assim, por se ter como foco o caso particular, se raciocinará também assim com a liberdade religiosa, embora esta possa ser vista, inicialmente tanto como “liberdade” no aspecto negativo descrito por Hart como também como “reivindicação” com o aspecto positivo. Objetiva-se, assim, compreender as consequências e conclusão do raciocínio jurídico a serem trabalhadas ao longo deste trabalho. 10 dos conceitos basilares que são utilizados em todo o escopo do trabalho (e, assim, compreender o sistema jurídico vigente seguindo o raciocínio de Hart). Consequentemente, é possível destacar a necessidade de apresentar o que significa a concretização de um direito fundamental através de uma decisão judicial como um dos principais questionamentos tratados no capítulo. Além disso, se a delimitação se restringe à liberdade religiosa, qual seu significado e sua “área de proteção” no ordenamento brasileiro? Que tipo de conduta é realmente protegido pela Constituição brasileira? Para se chegar às primeiras respostas, não foi traçada uma análise teológica ou histórica sobre a matéria, apesar de se reconhecer a importância destas. Em verdade, se faz uma profunda pesquisa acerca dos fundamentos teóricos que garantem a supremacia das normas constitucionais que, de fato, positivaram a liberdade religiosa – em várias vertentes – como direito fundamental. Assim, se passa a examinar o conceito de Estado de Direito e sua amplitude, principalmente investigando conceitos que se relacionam com seu significado como segurança jurídica e o chamado devido processo legal (este principalmente em sua vertente do chamado “devido processo legal substantivo”), pois são justamente tais conceitos que poderão esclarecer o sentido lógico das premissas que serão trabalhadas em toda a pesquisa. A relevância de tal capítulo demonstra-se em diversas observações empíricas – como a existência de posicionamentos doutrinários acerca da inconstitucionalidade de crucifixos em prédios públicos, porém tais objetos permanecem em tais locais. A sociedade está diante de gritantes inconstitucionalidades a serem verificadas em controle de constitucionalidade ou há uma razão jurídica suficiente para justificar tais condutas tomadas pelo Poder Público? Esclarecer o significado de segurança jurídica e a noção de que o Estado cria as próprias regras vinculantes que o limitarão são de grande relevância para o enfrentamento de tais questões. Inevitavelmente, é preciso averiguar as históricas relações entre Estado e as religiões neste capítulo introdutório, apresentando as alterações na evolução histórica das constituições brasileiras e como deve o Estado brasileiro agir de modo que suas ações maximizem a normatividade do Estado de Direito e, assim, passando a enfrentar a complexa querela de apresentar fundamentações jurídicas para resolução dos “casos difíceis” e iniciar as discussões sobre o modo de agir do intérprete, além do significado de sua decisão judicial. Consequentemente, o Capítulo 03 baseia-se nos conceitos e ideias apresentadas no capítulo anterior, de modo que pretende investigar justamente a constante busca do jurista pela 11 melhor exegese. A decisão judicial mais razoável será aquela que consiga seguir orientações mais rígidas e adequadas ao ordenamento jurídico brasileiro, evitando arbitrariedades e imposições, em face do Estadode Direito levado a sério na ordem constitucional. Para atingir seus objetivos, se busca também investigar a hermenêutica aplicada à resolução dos conflitos que envolvem os direitos fundamentais para que estes sejam realmente “levados a sério”. Quais as principais teorias dos direitos fundamentais – e, portanto, da liberdade religiosa – e qual deve ser aplicada? Interpretar corretamente a ordem constitucional de tutela dos direitos fundamentais é um passo relevantíssimo para a compreensão do que pode ser reivindicado em sede de controle de constitucionalidade, tendo como parâmetro os artigos que tutelam a liberdade religiosa. Assim, ao discutir as teorias sobre os direitos fundamentais, é inevitável uma investigação acerca das principais ferramentas lógicas dos principais modelos de resolução de conflitos envolvendo direitos fundamentais no Brasil. Isto é, se deve elaborar uma análise profunda sobre o “princípio” da proporcionalidade e a razoabilidade, especialmente suas distintas origens e modo de aplicação aos casos concretos. No caso da proporcionalidade, ainda cabe registrar que cada um de seus subcritérios ou etapas deve ser obrigatoriamente analisado na pesquisa, principalmente para que seja observado se seu resultado final está completamente de acordo com a tutela da liberdade religiosa no texto constitucional brasileiro, principalmente acerca da aplicação negativa de tal direito. Por fim, o último capítulo aborda as possíveis insuficiências dos métodos utilizados no capítulo anterior, resgatando o debate sobre os deveres do Estado para garantir melhor efetivação do direito fundamental de liberdade religiosa, abordando alguns dos principais temas que começaram a ser discutidos nos últimos anos ou décadas, mas cujo debate ainda não foi totalmente amadurecido. Dessa forma, o Capítulo 04 atua como, provavelmente, uma resposta inovadora às principais demandas oriundas dos objetivos dessa pesquisa, uma vez que são questões ainda não solucionadas totalmente no direito brasileiro. Dentre tais questões, se apresenta a busca por decisões judiciais que não ignorem a liberdade religiosa como um todo, com todas suas funções e características que lhe são peculiares, além da própria possibilidade de “judicialização de políticas públicas” voltadas para a liberdade religiosa dos indivíduos titulares do direito fundamental. Por último, temáticas como a gestão aberta e a cooperação intergovernamental não 12 poderiam ser ignoradas diante da crescente discussão na doutrina pátria e sua pertinência ao objeto de pesquisa deste trabalho. Considerando a possibilidade hipotética de atuação estatal positiva para a liberdade religiosa, hipótese que será abordada no decorrer da pesquisa, é preciso também visualizar o panorama jurídico sobre o controle qualitativo dos gastos públicos, em franco diálogo com o direito administrativo e financeiro, para que o direito fundamental de liberdade religiosa possa ser garantido da melhor forma, podendo ser analisado por qualquer juiz brasileiro diante do controle difuso de constitucionalidade. Com essa metodologia, reitera o objeto central do trabalho: a liberdade religiosa é realmente assegurada no Brasil? Como deve o intérprete agir para assegurar sua máxima efetividade? Primeiro, deve ser compreendido o sistema constitucional brasileiro e o quais os contornos de proteção do direito fundamental em análise. Tendo o jurista adquirido a compreensão da área de proteção da liberdade religiosa e todos os elementos conceituais que envolvem a relação entre o Estado laico e a liberdade dos indivíduos, é preciso analisar quando o Estado deve agir (atuação positiva) e quando ele deve deixar de intervir (atuação negativa) na vida do particular, não sendo analisadas as relações exclusivamente entre os particulares. Que critérios e limites devem orientar o Estado-juiz? A partir da análise proposta no presente trabalho, se busca compreender novas formas de efetivar a liberdade religiosa enquanto direito fundamental, o Estado de Direito e a democracia. 13 2. CONCEITOS ESSENCIAIS E A SEDIMENTAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO Atualmente, é bastante comum encontrar, tanto em pesquisas jurídicas como nos tradicionais meios de comunicação, a ideia de que cada vez mais existe uma “judicialização” sobre tudo, principalmente em matéria de direitos fundamentais12. Sendo o órgão judicial competente para analisar a constitucionalidade dos atos do Poder Público, o Supremo Tribunal Federal (STF) veio a se tornar o principal protagonista deste fenômeno no Brasil, embora não seja o único13. Diversos fatores poderiam ser levados em consideração para compreender esta “supremocracia” 14, dentre eles a necessidade criada pela expansão do sistema de mercado que requer segurança jurídica, estabilidade e previsibilidade, alguma proteção jurídica contra políticas populistas que não atendessem aos limites constitucionais e ainda a própria “retração do sistema representativo e de sua incapacidade de cumprir as promessas de justiça e igualdade” (VILHENA, 2008, p. 443). Dentre as temáticas abarcadas no texto constitucional, é garantida a liberdade religiosa, conforme será exposto no próximo tópico. Assim, pode o Poder Judiciário – inclusive no controle de constitucionalidade dos atos normativos – verificar potenciais distorções ou equívocos praticados pelo Poder Executivo e Poder Legislativo15, de modo que é possível imaginar que leis legitimamente criadas pelos legisladores e amparadas na vontade popular poderiam ser, em tese, anuladas por ferir algum limite jurídico. Quais são estes limites e como deve o juiz agir na compreensão deles? Certamente, são questões fundamentais que precisam ser compreendidas. Porém, antes de partir para os limites de um direito fundamental, é preciso compreender 12 Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. O Controle das Políticas Públicas. In: Revista do Curso de Direito da Faculdadede Humanidades e Direito, v. 7, n. 7, 2010; COSTA, Bruno Andrade. O controle judicial nas políticas públicas: análise das decisões judiciais e seu cumprimento para a realização progressiva dos direitos fundamentais sociais. In: Revista de Informação Legislativa, ano 50, n 199, jul/set 2013. 13 Dentre outros motivos, o controle difuso de constitucionalidade realizado por qualquer juiz ou tribunal brasileiro contribui significativamente para a judicialização da política, das relações civis, dentre outros. 14 VILHENA, Oscar. Supremocracia. In: Revista Direito GV, São Paulo, 4(2), p. 441-464, jul/dez 2008. Para o autor, há dois significados a serem extraídos do termo “supremocracia”: primeiramente, a ideia da autoridade do STF diante os demais tribunais brasileiros (especialmente após a adoção das Súmulas Vinculantes em 2005) e, por outro lado, à própria expansão da autoridade do STF em detrimento dos demais poderes por ser o “último a dar a palavra”. 15 CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Trad. De Igor Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003. Embora seja possível discutir os atos dos indivíduos ao vínculo das regras constitucionais, tal possibilidade não será avaliada no presente trabalho, conforme exposto na introdução. Em parte da doutrina, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais foi chamada de “terceira eficácia”, cf. PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1946. 4. ed. Tomo 4. Rio de Janeiro: Borsoi, 1963, p. 451. 14 o seu significado e todo seu conteúdo de proteção. Para tanto, alguns conceitos preliminares precisam ser verificados. Seguindo o raciocínio de André Puccinelli Júnior (2014, p. 24), constitucionalismo e democracia possuemnatureza e significância distinta. Assim, enquanto o constitucionalismo é fenômeno criado pelos humanos para limitação do poder arbitrário, a democracia seria a forma de governo com fundamentos na decisão da maioria. Com esse entendimento, o constitucionalismo seria um meio de aperfeiçoamento da democracia, uma vez que buscaria afastar o perigo de eventuais regimes ditatoriais ou populistas. Por outro lado, tal “função contramajoritária” do Poder Judiciário apresenta diversos riscos, afinal é uma categoria de profissionais técnicos decidindo se uma decisão majoritária é válida ou não16. Ainda sobre o constitucionalismo, é pertinente notar o imenso avanço teórico acerca do papel do Estado e sobre a força normativa da Constituição nos últimos séculos. Nesse diapasão, Dimoulis (2012, p.184) lembra que, desde o século XIX, em cada país e em cada momento próprio, as Constituições foram sendo criadas baseadas nas experiências americana e francesa e sempre vistas com superioridade normativa frente às leis e aos atos normativos. Aliás, em grande parte, isso se deve ao desempenho do Poder Judiciário no exame de controle de constitucionalidade como no famoso caso americano Marbury vs. Madison17 de 1803, mas também em diversas oportunidades em países como Brasil, Grécia, Suíça e Noruega (DIMOULIS, 2012, p. 185). De todo modo, é relevante observar a história constitucional brasileira, ou “movimentos constitucionais” nos dizeres de Canotilho (2003, p. 51), para compreender o estado da arte atual, assimilando o objetivo das constituições modernas como limitação do Estado com a finalidade de garantir direitos18. Assim, para seguir a orientação de Hart sobre a necessidade de compreensão sistemática antes de buscar um conceito para o direito em espécie, é apresentada a divisão deste capítulo em três seções: as bases do ordenamento jurídico brasileiro (Estado de Direito, segurança jurídica e 16 Sobre a função contramajoritária, cf. DWORKIN, Ronald. Equality, Democracy and Constitution: We the People. Alberta Law Review, v. 28, n. 2, 1990, p. 324-346. 17 Para melhor análise do caso, conferir VALDES SANCHEZ, Clemente. Marbury vs. Madison: Um Ensayo sobre el origen del poder de los jueces en los Estados Unidos. In: Jurídica: Anuario del Departamento de Derecho de la Universidad Iberoamericana, Ciudad de Mexico, n 35, 2005, p. 345-375; MACIEL, Adhemar Ferreira. O acaso, John Marshall e o controle de constitucionalidade. In: Revista de Informação Legislativa, ano 43, n 172, out/dez 2006. 18 Acerca da finalidade das Constituições, cf. BREYER, Stephen. Our Democratic Constitution. New York University Law Review,v. 77, n. 2, maio 2002. Em sentido diverso, cf. POSNER, Richard. The Constitution as an Economic Document. George Washington Law Review, v. 56, n. 1, nov 1987. 15 devido processo legal); As relações entre Estado e religiões ao longo do tempo (histórico constitucional brasileiro e comparação com marcos temporais do Direito Comparado para chegar à atual “área de proteção” da liberdade religiosa); e, finalmente, o julgamento dos juízes brasileiros considerando os tópicos anteriores e o difícil dilema de apresentar uma resposta mais correta ou apropriada. Ao fim do capítulo, será possível obter uma análise segura sobre o atual modo de julgamento sobre os atos do Poder Público que potencialmente atingem a liberdade religiosa das pessoas. 2.1. ESTADO DE DIREITO, SEGURANÇA JURÍDICA E DEVIDO PROCESSO LEGAL Enquanto alguns constitucionalistas se preocupam em apresentar características do “constitucionalismo do porvir” 19, quase que em uma tentativa de tentar adivinhar o futuro, mais pertinente ao presente estudo é compreender que a noção de constitucionalismo como limite ao Estado decorre também da própria ideia de Estado de Direito. Para compreender o sentido do Estado de Direito, é preferível compreender a evolução da limitação do Estado ao direito na história ocidental. Na Inglaterra, a doutrina do rule of law (império do direito; regra do direito) foi fundamental para a adoção de um “processo justo” que fosse regulado pelo direito para o julgamento de cidadãos e para interferências na liberdade e propriedade destes. Está, portanto, intimamente ligada com a Magna Carta de 1215. Por outro lado, também se percebe sua tentativa de restringir a arbitrariedade/discricionariedade do poder real, submetendo este à força dos costumes e das leis produzidas pelos representantes do povo no Parlamento. Ademais, uma característica importante que merece ser destacada é a ideia de direito e igualdade de acesso aos tribunais por qualquer indivíduo perante particulares e órgãos públicos. Tal acesso à justiça pode ser visto como uma garantia de que o direito, que é instrumento que limita o Estado, possa ser garantido pelo Poder Judiciário que detém a última palavra. Outros povos, influenciados pelo direito inglês como os Estados Unidos e a Austrália, também passaram a aperfeiçoar o Estado de Direito ao longo dos anos. Na América do Norte, a 19 DROMI, José Roberto. La Reforma Constitucional: el constitucionalismo del “por-venir”. In: ENTERRÍA, Eduardo García de; ARÉVALO, Manuel Clavero (coord). El derecho público de finales de siglo: una perspectiva iberoamericana. Fundación Banco Bilbao Viscaya/Civitas: Madrid, 1997, p. 113. 16 experiência com uma constituição escrita fundada na defesa das liberdades individuais certamente colaborou para o avanço teórico e prático das instituições estatais com respeito às esferas de privacidade dos indivíduos20. Canotilho (2016, p. 09) ressalta que, além da supremacia da constituição e a regulação do Estado limitada pelos direitos e garantias dos indivíduos, também o poder estatal precisa constantemente justificar sua atuação, apresentando as razões do governo e a demonstração de consentimento popular. Em outros países, também existiu uma evolução semelhante ao Rule of Law. Na França, o État legal ou l’État de Droit (Estado de legalidade) foi crucial para o desenvolvimento do Direito Administrativo, além de sempre enfatizar a necessidade de que as constituições teriam para elencar catálogos de direitos e que deveria haver uma séria separação de poderes em qualquer Estado de legalidade (MORAES, 2012, p. 5), sendo o núcleo de qualquer Constituição. De forma semelhante, também se observa a evolução do Stato di Diritto (Estado de Direito) na Itália, que seria baseado na liberdade individual e na proteção desta pelo Estado, segundo Giuseppino Treves (1960 apud REIS NOVAIS) 21. Na Alemanha, o Rechtsstaat (Estado de Direito; Estado subordinado ao Direito) apresenta tradução literal bem próxima ao termo em português22. Para além das colaborações britânica, francesa e americana, a versão alemã apresenta um “Estado juridicamente vinculado em nome da autonomia individual” 23. Assim, ganha força a ideia de um Estado liberal de Direito, no sentido de dar sempre preferência à liberdade humana em contraposição ao poder de polícia estatal ou abusos regulatórios. Portanto, o Estado é altamente limitado24 e precisa se justificar suas ações, necessitando aprovar leis para intervir em direitos como a liberdade e propriedade, porém ainda assim deveria respeitar limites, pois todos os poderes estatais estão vinculados. De qualquer forma, a legitimidade do poder estatal – em qualquer de suas atuações – se funda na Constituição jurídica, diferenciando de qualquer experiência absolutista e esta mudança de paradigmas seria a “virada de Copérnico” ou “ponto de Arquimedes” do sistema de legalidade estatal25.20 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. “Normas constitucionais são tarefa ao Estado”. 21 REIS NOVAIS, Jorge. Contributo para uma Teoria do Estado de Direito: Do Estado de Direito liberal ao Estado social e democrático de Direito. Universidade de Coimbra: Coimbra, 1987. 22 BOCKENFORDE, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el Estado de Derecho y la Democracia. Trad. Rafaelde Agapito Serrano. Madrid: Editorial Trotta, 2000. 23 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Estado de Direito. Disponível em: <http://www.libertarianismo.org/livros/jjgcoedd.pdf>. Consultado em 31 de outubro de 2016. 24 Diferente do que ocorreu na França, a burguesia não buscou conquistar o poder diretamente. Em verdade, buscou diminuir as arbitrariedades do Estado e racionalizar o poder de polícia. Acerca do histórico nos dois países, REIS NOVAIS, Jorge. Op. cit. p. 39-43. 25 QUEIRÓZ, Cristina M.M. Os actos políticos no Estado de Direito – O problema do controle jurídico do poder. 17 Trata-se, portanto, de limitar o Estado através das normas jurídicas26. O contrário do Estado de Direito seria a arbitrariedade, uso da força sem respeito aos limites jurídicos, um regime totalitário ou simplesmente um “Estado de não direito”. Acerca do Estado de não direito, poderia se caracterizá-lo como um regime com leis arbitrárias, cruéis ou desumanas, ou mesmo sem qualquer lei; ser um regime imposto por uma pessoa e pautado por injustiça e desigualdade27. Assim, as normas jurídicas, em um Estado de Direito, limitam as atividades do Poder Público e impõem que o Estado apenas faça o que for previsto na norma enquanto que o particular poderá fazer tudo que não esteja proibido (princípio da legalidade28). Assim, além de limitar as atividades do Poder, também busca garantir a liberdade dos indivíduos, de tal modo que o exercício do poder político passa a ser dividido entre órgãos independentes e autônomos entre si, devendo cada poder controlar os demais29. Afinal, um dos grandes desafios para o Estado de Direito seriam os vícios do uso do poder discricionário, que segundo Hartmut Maurer (1991 apud PALU, 2004), principalmente nas transgressões dos limites ao poder discricionário estatal (Ermessensüberscheireitung), em sua subutilização ou abuso, ou ainda na violação de direitos fundamentais e princípios gerais do direito. O constituinte brasileiro, por sua vez, optou por utilizar a expressão “Estado Democrático de Direito” 30. Isto é, significa dizer que preferiu deixar claro tanto a adoção de um Estado de Direito como também de um Estado democrático, não significando necessariamente um novo paradigma. Porém, deve ser registrado que há posições diferentes que defendem que Estado Democrático de Direito é muito mais do que a mera junção entre Estado de Direito e Democracia, possuindo também um componente revolucionário que transformaria o status quo31 ou ainda porque o Estado Democrático de Direito iria além da proteção da liberdade e do princípio da legalidade, passando a se fundar na defesa da igualdade e no princípio da constitucionalidade32. Coimbra: Almedina, p. 144. 26 Em Kelsen, o Estado seria um conjunto de normas genéricas submetidas às normas superiores como a Constituição e a “norma fundamental”. Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 310. 27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. 28 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 5. 29 Cf. SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. 30 Art. 1º, CF: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitue-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]”. 31 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 16 ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 123. 32 Cf. PALU, Oswaldo. Controle dos atos de governo pela jurisdição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 18 Entretanto, cada vez mais, os pesquisadores de Direito Constitucional no Brasil têm criado e sugerido a adoção de outros termos “pretensamente mais atualizados”, tais como Estado Constitucional de Direito33, Estado Pós-Positivista34, Estado Pós-social35, Estado Neoconstitucional36, Estado Socioambiental de Direito37, Estado Constitucional Ecológico38 ou Estado Sustentável39. Entretanto, se utilizando da premissa de Guilherme de Ockham de que “entidades não devem ser multiplicadas sem necessidade” 40, é preciso admitir que o termo, se não traz algo novo e pretende apenas ser algo simbólico, não tem necessidade de ser aplicado. Assim, é claro que os bens jurídicos tutelados na Constituição – como a questão ambiental ou os direitos sociais41 – devem ser protegidos42, mas isso não justifica uma mudança de paradigmas. Em verdade, a essência ainda é exatamente a mesma da noção do Estado de Direito, com a autolimitação do Estado prevalecendo. Por conseguinte, não se trata apenas de um critério formal para subordinação dos poderes públicos, mas também a subordinação das leis a um rígido limite material estabelecido no vínculo ao texto constitucional43. Ademais, utiliza-se aqui o conceito jurídico da Constituição44, ou seja, é lei fundamental suprema que estrutura o Estado, seus poderes e suas competências, além de reconhecer direitos e deveres dos indivíduos, criando um sistema de garantias de liberdade e também dividindo as funções estatais45. 2004, p. 71. 33 PUCCINELLI JR, André. Curso de Direito Constitucional. Saraiva: São Paulo, 2014, p.28. 34 BALTAZAR, Antonio Henrique Lindemberg. Princípios e regras: uma abordagem evolutiva. In: Lex Humana, n 2, 2009, p. 83. 35 SARMENTO, Daniel. Os direitos fundamentais nos paradigmas Liberal, Social e Pós-Social (Pós-modernidade constitucional?). In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Crise e desafios da Constituição: perspectivas críticas da teoria e das práticas constitucionais brasileiras. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 375-414. 36 PORTALES, Rafael Enrique Aguilera. Las transformaciones del Estado contemporâneo: legitimad del modelo de Estado neoconstitucional. In: Universitas: Revista de filosofia, derecho y política, Madrid, n 15, 2012, p. 3-25. 37 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 38 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado Constitucional Ecológico e democracia sustentada. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org). Direitos Fundamentais Sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 493-508. 39 FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: o direito ao futuro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. 40 JUNGES, Márcia Rosane. Deus e a metafísica em Ockham e Nietzsche. In: Controvérsia. v 1, n 1, 2005, 41 A liberdade religiosa, apesar de não figurar no rol dos direitos sociais de forma expressa, também possui um aspecto positivo, tal como ressalta Pontes de Miranda, ao analisar a educação religiosa em escolas públicas como dever estatal. Cf. PONTES DE MIRANDA, Op. Cit. p. 451. 42 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 21. Afirma o autor que “um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis”. 43 Cf. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Trad. Marco Auréliode Nogueira. 2. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. 44 Não se descarta a importância do exame sociológico iniciada por Ferdinand Lassale, sua análise política feita por Carl Schmitt ou outras análises de ciências afins. Entretanto, o propósito da pesquisa compreende apenas o conceito jurídico da constituição. 45 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2012. 19 Conforme posição de Friederich Müller (2005, p. 47), seria equivocada a interpretação apenas literal dos textos normativos – embora, eles sejam de fundamental importância para a interpretação constitucional. Assim, é preciso “indicar regras para a tarefa da concretização da norma ao sentido abrangente da práxis efetiva”, partindo de uma teoria da norma. O Estado de Direito, porém, não impõe um modelo rígido de interpretação aos juízes – e nem deveria fazê-lo. Porém, é preciso que cada decisão judicial seja fundamentada46 e tal fundamentação não deve ser de qualquer forma, conforme art. 93, IX, do texto constitucional. Nesse sentido, é relevante e necessário, por decorrência também do Estado Democrático de Direito, que os resultados e modos de fundamentação da ciência jurídica continuem sendo discutidos para que possa se aperfeiçoar e concretizar as normas constitucionais (MULLER, 02005, p. 53). Buscar concretizar uma norma de direito fundamental não é buscar reelaborar os valores legislativos, mas garantir dentro dos contornos expostos pelo legislador originário. Para fins de esclarecimento, contudo, se admite que o conceito utilizado no presente trabalho sobre “concretização de normas constitucionais” não se confunde com a teoria estruturante de Friederich Muller, embora haja algum diálogo, principalmente na análise do âmbito da norma e seu conjunto de fatos possíveis47. A discussão sobre os limites da atividade interpretativa do juiz48 decorre também do Estado de Direito. Se admitirmos a premissa de que todo o Poder Público aceitaria ser limitado pelas leis criadas dentro de suas próprias esferas, então temos que admitir que o Poder Judiciário também esteja vinculado às regras constitucionais e legais que foram criadas de forma válida e 46 Art. 93, IX, da Constituição Federal brasileira: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”. 47 MULLER, Friederich. Teoria Estruturante da Norma. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. Em sua teoria estruturante, Muller distingue dois grupos de elementos de concretização da norma: um para o tratamento tradicional do texto da norma e um segundo corresponderia “passos de concretização” com discussões de casos concretos e baseados na análise do âmbito da norma e os elementos do conjunto de fatos. 48 Ainda sobre a teoria de Muller, cabe destacar a posição dele para a limitação da atividade do intérprete ao descrever que “âmbito normativo e programa normativo não são meios para encontrar, à maneira do direito natural, verdadeiros enunciados de validade geral; tampouco ajudam a averiguar o “verdadeiro sentido” dos textos normativos em termos do tipo definido e juridicamente correto do uso da língua no respectivo contexto normativo. Normatividade marcada pelos dados reais, em vez de deixa-la de lado em prol de um sociologismo avesso à norma” (Op, cit., p.245). Assim, em sua teoria estruturante, a dogmática jurídica é de fundamental importância, mas precisa ser dialogada com dados empíricos sobre a realidade. Em posição diversa, o capítulo 03 deste trabalho pretende também reforçar esta intrínseca ligação entre o positivismo lógico-normativo e o exame de dados empíricos do mundo real que culminará em análises técnicas que não deverão ser afastadas da apreciação do juiz-intérprete competente, porém sem recorrer a esta teoria de Muller. 20 legítima49. Outra razão para maior vinculação e autocontenção do Poder Judiciário reside na ideia de segurança jurídica. Afinal, como afirma Kant (1958 apud REIS NOVAIS, 1985, p. 61), o Estado se afirma como Estado de Direito não porque teve sua origem no direito, mas porque encontra no direito a sua justificação e seu limite racional. Racionalizar o sistema jurídico é necessário para garantir alguma previsibilidade aos indivíduos, garantindo paz social e estabilidade nas relações humanas. Assim, segurança jurídica e proteção da confiança podem ser formuladas, no dizer de Canotilho (1995, p. 373) 50, pela confiança nas decisões públicas que versam sobre seus direitos estarão em conformidade com as normas jurídicas vigentes, havendo efeitos jurídicos duradouros, com previsão nessas normas. É, portanto, a garantia de que o indivíduo pode se planejar e saber previamente quais seus direitos e deveres. Em decorrência dessas premissas, temos a proibição de leis retroativas (salvo se for para beneficiar o indivíduo na seara criminal51) e a regra de inalterabilidade da coisa julgada52, do direito adquirido53 e do ato jurídico perfeito54. Relembrando o “nobre sonho de Hart” 55, a previsibilidade do direito cria um espaço saudável que garante o desenvolvimento da civilização, dos negócios jurídicos e das relações sociais, uma vez que cada indivíduo possui uma compreensão prévia das suas obrigações, proibições ou permissões em determinado lugar, em determinado momento. Este entendimento está ainda intimamente relacionado com a ideia de devido processo 49 Cf. CAPELLETTI, Mauro. Os juízes legislam? Trad. de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1990. 50 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Almedina: Coimbra, 1995. 51 Art. 5º, XL, Constituição Federal: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. 52 Inclusive a possibilidade de coisa julgada administrativa. Cf. MENDES, Gilmar. Estado de Direito e Jurisdição constitucional: Decisões relevantes em 9 anos de atuação no STF – 2002-2010. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 2160. 53 Cf. PONTES DE MIRANDA, Op. Cit. p. 389-391. 54 Ato jurídico perfeito é aquele que “está consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”. Cf. FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Direito Constitucional. 38. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 341 55 HART, H.L.A. Ensaio 4 - A Teoria do Direito norte-americana pelos olhos ingleses: o pesadelo e o nobre sonho. In: HART, H.L.A. Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 137-161. Hart, neste ensaio, examina o sistema jurídico dos Estados Unidos e sua oscilação em dois extremos criados pelo intenso ativismo judicial com fulcro no pensamento “realista” de que os tribunais criam o direito. O “nobre sonho”, antítese do “pesadelo”, representa a crença, apesar dos erros judiciais, de que os juízes aplicarão o direito existente às partes, sem criar novas regras jurídicas. O “nobre sonho” não seria uma postura de enrijecimento ou manutenção do status quo, pois o overruling (mudança de entendimento dos juízes e tribunais) seria oportunidade apenas de corrigir erros de interpretação do passado, passando então a dizer o que o direito sempre foi. Assim, mesmo que o direito positivo fosse aparentemente indeterminado sobre determinada questão, os juízes encontrariam alguma lei conhecida previamente que poderia ser aplicada – sem recorrer ao direito natural ou ao realismo jurídico. Em sentido semelhante e descrito por Hart como “o mais nobre sonhador de todos”, conferir o pensamento de Dworkinsobre a existência de uma decisão correta e a desnecessidade de que os juízes utilizem argumentos de política (papel dos legisladores). 21 legal. Embora muitos pesquisadores brasileiros tenham sempre enfatizado o devido processo legal no processo legislativo ou no direito processual, é de grande relevância a compreensão do que ficou conhecido na doutrina americana como “substantive due process” ou devido processo legal substantivo. Hart (2010, p. 139) assinala que uma das causas para a valorização da Suprema Corte dos Estados Unidos foi justamente a ideia de que, para garantir o Rule of Law e a segurança jurídica, não bastava o mero exame lógico-formal dos atos normativos, mas sim seria necessário também examinar seu conteúdo. Sua doutrina teria iniciado com a Quinta Emenda à Constituição Americana e, posteriormente, pela Décima-quarta Emenda. De acordo com tal ideia, ninguém poderia ser privado de seus direitos fundamentais como a vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal56. Reafirma-se não apenas observando a forma ou o procedimento, mas adentrando no mérito da escolha do Poder Público. Como decorrência fática da adoção da teoria do devido processo legal “material” ou “substantivo”, o poder de revisão dos tribunais ganhou maior autoridade e, com isso, também abriu espaço para muitos juízos de valor que seriam próprios de outros poderes 57, uma vez que o legislador teria ampla liberdade de conformação, porém essa liberdade não seria absoluta58. Esclarecida a compreensão sobre o ordenamento jurídico brasileiro enquanto Estado de Direito (limites racionais ao Estado) e que necessita garantir segurança jurídica ao indivíduo, sem desrespeitar o devido processo legal substantivo, é possível examinar agora o direito específico em si e seus contornos de proteção para compreender seus limites e, assim, avaliar o atual trabalho realizado pelo Poder Judiciário em suas decisões judiciais. Antes de adentrar na tutela jurídica atual da liberdade religiosa, porém, se deve examinar toda sua evolução na história constitucional brasileira para compreender sua dimensão atual. Afinal, não se desconsidera aqui o direito enquanto categoria histórica e subproduto cultural de uma sociedade ou, como afirmara Kelsen (1996, p. 33), norma jurídica busca regular a conduta humana. 56 Na jurisprudência norte-americana, a liberdade contratual tem sido um direito bastante protegido em face do devido processo legal substantivo. Como exemplo, os casos Lochner v. New York, 198 U.S. 45 (1905) que proibiu o Estado de regular o máximo de horas de trabalho diário ou semanal que um empregado de padaria poderia trabalhar; Adkins v. Children’s Hosp., 261 U.S. 525 (1923) em que se proibiu o Distrito de Columbia de estabelecer salário mínimo para mulheres. 57 Hart diz que, no mínimo, um jurista inglês ficaria assombrado com essa prática americana e que seria algo muito difícil de se justificar em uma democracia. HART, H.L.A. Op.Cit. p. 139-140. 58 MENDES, Gilmar. A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Repertório IOB de jurisprudência 23/1994, dez 1994. 22 2.2. AS RELAÇÕES ENTRE ESTADO E RELIGIÃO AO LONGO DO TEMPO Considerando que a crença humana em um “poder invisível e inteligente” tem sido amplamente difundida em quase todos os lugares e períodos da história59, é extremamente difícil que as relações humanas que têm como base a religiosidade não venham a ser, de alguma forma, protegidas pelo sistema jurídico60. O direito, por sua necessária interação com a cultura e com os fatos sociais, ao ser criado dificilmente não apresentaria alguma regulação, pelo menos permissiva, sobre a liberdade religiosa61. Nesse sentido, Jellinek já afirmava que a liberdade religiosa foi pioneira enquanto direito a ser reivindicado juridicamente e foi ela quem deu origem à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão62. Embora não seja objeto deste estudo, é pertinente notar que o sentimento religioso parece não derivar de um instinto original ou impressão primária da natureza humana como ocorreria com o amor próprio, o amor aos filhos, a atração sexual, a gratidão e outras formas sentimentais do homem (HUME, 2005, p. 22). A origem da religião provavelmente surgiu, segundo Hume (2005, p. 31), em culturas politeístas que não apenas contemplavam as obras da natureza, mas sim pela preocupação63 dos indivíduos com os acontecimentos da vida e pela incessante esperança e medo próprio do espírito humano. Assim, o sentimento religioso primitivo dificilmente seria originado pelas paixões agradáveis, pela ideia de gratidão. Para Hume (2005, p. 39), seria muito mais comum ver o homem ajoelhando-se por melancolia e angústia, pois inicialmente não haveria motivo para se questionar sobre sua felicidade, prosperidade, entusiasmo e alegria. Seriam, por outro lado, os “acidentes funestos que teriam despertado o ser humano e fazê-lo refletir” sobre sua origem e sua razão de existir (HUME, 2005, p. 39). Não se duvida, por outro lado, da importância do fenômeno religioso64, embora haja 59 HUME, David. História natural da religião. Trad. Jaimir Conte. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 21. 60 Se alguém ataca uma religião, este alguém estaria atacando todas as religiões. Neste sentido, TOCQUEVILLE, Alexis de. La democracia em América. Trad. Luis R. Cuéllar. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1957, p. 314. 61 Nesse sentido, ver ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. Dissertação de Doutoramento em Direito Público, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Coimbra: Almedina, 2002. Para o autor, “a religião é tão antiga quanto o próprio ser humano” e, portanto, “seria difícil sustentar que o Estado Constitucional possa ignorar a religião” (p. 13). 62 JELLINEK, Georg. La Declaración de los derechos del hombre y del ciudadano. 2. ed., 1903. Disponível em: << https://archivos.juridicas.unam.mx/www/bjv/libros/2/976/5.pdf>>. Acesso em 10 de outubro de 2016, p. 150-151. No mesmo sentido, v. CARBONELL, Miguel. Laicidad y Libertad religiosa en Mexico. Instituto de Investigaciones jurídicas, n 22, Universidad Autonoma de Madrid, Mexico, 2013. 63 Ainda segundo Hume (2005, p. 35), essa preocupação humana decorreria da existência de causas desconhecidas que geravam ansiedade, incerteza e curiosidade. 64 “A religião dirige os costumes” afirmou Alexis de Tocqueville ao conhecer a realidade dos Estados Unidos. Para 23 quem veja possibilidade de que algumas religiões levariam a uma desordem moral65. Para Max Weber (2004, p.33), no entanto, teria sido justamente a peculiaridade espiritual inculcada pela educação, influenciada também pela região de origem e pela tradição familiar, que determinaria a escolha da profissão e seu destino profissional. Ao influenciar nas escolhas de vida e na filosofia de vida do indivíduo, a religião, por consequência, seria um fator que influenciaria também o progresso financeiro dos indivíduos, de sua família, da comunidade e consequentemente também de nações inteiras. Assim, a célebre ascese dos mosteiros teria sido transferida para a vida profissional, de modo que dominou a moralidade intramundana e influenciou toda a ordem econômica (WEBER, 2004, p. 165). Porém, a questão da religião não ficou apenas nas relações privadas (direito ao proselitismo religioso e o direito de não perseguição/discriminação), passando também a influenciar nas relações públicas66. E, destaque-se, mesmo que regimes constitucionais democráticos viessem a destacar o “Estado laico” e a defesa da pluralidade religiosa67, Paulo Adragão (2002, p.15)nota que nunca houve uma obrigação de haver pluralidade, pois pluralidade religiosa não é um dever estatal e não pode ser imposta. Assim, o que existiria nas principais democracias seria apenas uma “possibilidade de pluralismo”. Antes, contudo, de adentrar na evolução da liberdade religiosa no Brasil, o questionamento sobre o que é religião apresenta relevância crucial. Entretanto, se percebe, desde já, que um conceito objetivo de religião poderia vir a apresentar uma postura excessivamente inquisitorial ao não considerar pontos de vista dos indivíduos. Por outro lado, um conceito apenas subjetivo teria o efeito de desprestigiar o fenômeno religioso, uma vez que seria “tudo aquilo que designassem com esse nome” (ADRAGÃO, 2002, p. 17) e isso poderia trazer uma situação de crescente indiferença ao fenômeno religioso68. Assim, preliminarmente, parece mais salutar adotar um conceito aberto de religião, ele, a América seria o lugar do mundo em que a religião cristã mais alcançou poder e influência na vida dos indivíduos, de modo que seria o país com maior império, mas também o mais livre. Assim, Tocqueville chega a afirmar que a religião funcionava como a primeira das instituições políticas dos Estados Unidos. Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. Op. Cit., p. 312-313. 65 HUME, David. Op. Cit. 66 Para os jusnaturalistas mais religiosos, a existência de Deus seria a “base principal do Direito com razões físicas, metafísicas e morais”. Cf. GONZAGA, Tomás Antônio. Op. Cit. p. 15. 67 Interessante notar que, embora os Estados Unidos tenha forte presença de protestantes cristãos, seria, para muitos estudiosos, justamente a defesa do pluralismo religioso naquele país que seria o principal fator de manutenção da república democrática desde o início. Nesse sentido, TOCQUEVILLE, Alexis de. La democracia em América. Trad. Luis R. Cuéllar. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1957, p. 309. 68 TOCQUEVILLE, Alexis de. Op. Cit. Para o autor, as duas principais causas que enfraquecem as religiões são a cisão e a indiferença (p. 319). 24 destacando alguns elementos69 como a crença em uma realidade transcendente/divina, concepção própria de mundo e da vida e com a possibilidade de manifestações externas de homenagem à divindade (cultuais ou litúrgicas) (ADRAGÃO, 2002, p. 16), porém também assumindo, prima facie, a possibilidade de ser exercida tanto em sua modalidade positiva (direito de crer e direito de mudar de crença) como também de forma negativa (o direito de não crer70) e que poderia ser exercida tanto pelo indivíduo, como pelas famílias e pelas instituições. Entretanto, esta é uma forma de se enxergar a religião no plano dos fatos. Resta agora a necessidade de exame da religião aos olhos do mundo jurídico. Afinal, determinada conduta interpretada como elemento da religião no plano dos fatos poderia vir a não ser reconhecida no plano jurídico. Antes do Brasil se tornar país independente, diversos conflitos, lutas sangrentas e revoluções ocorreram nas mais diversas partes do mundo71 para que fosse garantida a liberdade religiosa. Por muitas vezes, em suas primitivas conquistas no espaço jurídico, o que havia era simplesmente um armistício, um pacto de não agressão (um tratado de paz) entre duas religiões principais, sendo que onde uma preponderava dificilmente iria desconsiderar seu prestígio (PONTES DE MIRANDA, 1963, p.447). Até mesmo a doutrina jurídica utilizava termos como “religião dominante” ou ainda trabalhava com o conceito de “tolerância religiosa” que, em muitas vezes, significava simplesmente uma “falsificação da intolerância” 72. Após a independência, os calorosos embates travados na Assembleia Constituinte de 1823 sobre o papel do Estado brasileiro na proteção da religiosidade dos indivíduos influenciou significativamente a postura da Constituição outorgada de 1824, conforme narra criticamente Pontes de Miranda (1963, p. 447). O resultado positivado no texto constitucional daquele ano foi uma postura “meio termo”, diante da grande dúvida em seguir uma religião de Estado ou a ideia de religião livre. No artigo 5º da Constituição de 182473, já havia a expressa adoção da religião católica apostólica romana como a religião oficial do Império brasileiro, porém com a ressalva de que 69 A ideia de que a liberdade religiosa seria algo secundário (não no sentido de importância, mas de decorrer de alguma norma primária) está presente em Walber Agra que apresenta que liberdade de pensamento seria o direito primário e ele alicerçaria direitos secundários como a expressão de pensamento, a liberdade de consciência, a liberdade de crença, a escusa de consciência e outros. Cf. AGRA, Walber. 2014, p.194. 70 Sobre a liberdade de não crer, ver PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1946. Tomo IV. 4. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1963, p. 445. 71 PONTES DE MIRANDA. Op. Cit. p. 446-447. 72 Conferir crítica em PONTES DE MIRANDA, Op. Cit., p. 448. 73 Art. 5º, Constituição de 1824: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo”. (grafia da época) 25 todas as outras religiões seriam permitidas em seu culto doméstico ou em locais destinados ao culto religioso. Assim, estabeleceu a garantia de que ninguém seria perseguido por possuir determinada religião, porém vetou a prática do culto e proselitismo fora destes locais. A propósito, interessante notar a técnica de redação do constituinte com o termo “continuará a ser a Religião do Império”, denotando um respeito à tradição do Brasil com a religião católica que já era oficial. Na sequência, o constituinte optou por deixar clara sua cordialidade com os estrangeiros, deixando expresso que os estrangeiros naturalizados, “qualquer que seja sua religião”, seriam considerados brasileiros, evitando qualquer ato de discriminação ou inquisição74. Porém, no art. 95, III75, o constituinte brasileiro optou por excluir quaisquer pessoas que não professavam a “Religião do Estado” da condição de eleitores nomeáveis ao cargo de deputado. Mesmo ao elencar no rol de direitos fundamentais, o constituinte de 1824 criou reservas e condições para o direito de não ser perseguido por motivos religiosos, adotando que se o religioso estivesse desrespeitando a religião oficial do Estado ou ainda ofendendo a “moral pública”, então poderia haver perseguição76. Posteriormente, a Constituição de 1891, apesar de ter sido promulgada por um Congresso e inspirada na Constituição sintética dos Estados Unidos, adotou uma radical laicidade que desconsiderou totalmente a realidade do país77, talvez pelo desgaste gerado pela chamada “questão religiosa” que, segundo alguns historiadores78, teria sido um dos fatores para a queda do Império brasileiro. Foi a primeira constituição brasileira a trazer uma vedação de estabelecimento, subvenções ou embaraço ao exercício de cultos religiosos79 e foi além ao 74 Art. 6º, Constituição de 1824: “São Cidadãos Brazileiros: [...] V. Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas para se obter a Carta de naturalisação.” (grafia da época) 75 Art. 95, Constituição de 1824: “Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se: [...] II. Os Estrangeiros naturalisados II. Os que não professarem a Religião do Estado.” (grafiada época) 76 Art. 179, Constituição de 1824: “A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. [...] V. Ninguém póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a Moral Pública” (grafia da época). Embora a redação não seja tão direta, por interpretação, verifica-se que se não forem atendidas as condições de i) respeitar a (religião) do Estado e ii) não ofender a moral pública, então está garantida a não perseguição. 77 CAVALCANTI, Themístocles Brandão. A Constituição Federal Comentada. V. 4. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1949, p. 199. Não só pela proibição de educação religiosa (mesmo em sua modalidade facultativa), mas porque a laicidade absoluta naquele momento foi uma grave intervenção que “formaria um espírito leigo e hostil a qualquer manifestação religiosa”. 78 Cf. GUERRA, Flávio. A questão religiosa do Segundo Império brasileiro: fundamentos históricos. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1952. 79 Art. 11, Constituição de 1891: “É vedado aos Estados, como à União: [...] 2º) estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos”. (grafia da época) 26 proibir o alistamento de religiosos como eleitores80. Com a Emenda Constitucional de 03 de setembro de 1926, única emenda àquela constituição, pouco se alterou em relação às garantias da liberdade religiosa. Garantiu-se que todos poderiam realizar cultos religiosos publicamente81, podendo haver associação e adquirir bens, retirando aparentemente as reservas da constituição pioneira. Ademais, também se garantiu que os cemitérios seriam administrados por autoridades municipais e que eles seriam livres a todos os cultos religiosos, porém desde que não ofendessem a moral pública e as leis82. Dessa forma, a antiga reserva da Constituição Imperial também está aqui presente, ainda que tenha, de fato, restringido mais a interpretação para a análise da moral pública quando os cultos se dão em cemitérios. Por último, não poderia passar despercebida a real punição contra todos os que, com o objetivo de serem isentos de qualquer ônus legal, venham a alegar motivo de crença religiosa com a sanção de perda de todos os direitos políticos83. Difícil imaginar que essa sanção jurídica duraria apenas enquanto a obrigação legal estivesse sido descumprida por convicções religiosas, mais parecendo uma sanção definitiva para o sujeito. Com esta atitude, o constituinte de 1891, e referendado pelo constituinte reformador de 1926, decidiu buscar afastar, ao máximo, os religiosos do meio político, inclusive não reconhecendo o chamado “direito de escusa religiosa”, provando ser ainda mais restritivo que o constituinte de 1824. Inaugurando a menção a Deus em seu preâmbulo84, a Constituição de 1934 inaugurou algumas mudanças. Manteve a vedação de auxílio ou embaraço do Poder Público aos cultos religiosos85 e também a perda dos direitos políticos para aqueles que alegam convicção religiosa para não cumprir com obrigação legal86, sendo esta a única possibilidade de sanção jurídica 80 Art. 70, Constituição de 1891: “São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei. §1º Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados: [...] 4º) os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade individual.” (grafia da época) 81 Art. 72, Constituição de 1891: “A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: [...] §3º Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito commum” (grafia da época) 82 Art. 72, Constituição de 1891: [...] §5º “Os cemitérios terão caracter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a pratica dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral publica e as leis” (redação da época) 83 Art. 72, Constituição de 1891: [...] §29 “Os que alegarem por motivo de crença religiosa com o fim de se isentarem de qualquer ônus que as leis da Republica imponham aos cidadãos e os que aceitarem condecorações ou títulos nobiliarchicos estrangeiros perderão todos os direitos políticos” (grafia da época) 84 Trecho inicial do preâmbulo: “Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, [...]”. 85 Art. 17, Constituição de 1934: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] II – estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” (grafia da época) 86 Art. 111, Constituição de 1934: “Perdem-se os direitos políticos: [...] b) pela isenção do ônus ou serviço que a lei 27 permitida no ordenamento jurídico por conta de convicções religiosas87. Entretanto, a própria história88 mostra que o Governo de Getúlio Vargas perseguiu qualquer judeu ainda que, sob a vigência da Constituição de 1934, sem qualquer fundamento jurídico-constitucional. Porém, o sistema constitucional iniciado em 1934 retomou as reservas legais para o livre exercício dos cultos religiosos89, embora com técnica de redação mais otimista, passando a exigir que eles não fossem contrários à ordem pública e aos bons costumes. Por outro lado, acrescentou a permissão à assistência religiosa em expedições militares, porém desde que exercida por brasileiros natos90 e com a condição de que não haveria qualquer ônus ao erário público. Ademais, o texto constitucional de 1934 foi o primeiro a expressamente garantir o ensino religioso facultativo e em acordo com os princípios religiosos do aluno, vinculando todos os tipos de ensino público da época91. Com viés autoritário, a Constituição brasileira de 1937 não trouxe nenhuma inovação substancial para a tutela da liberdade religiosa, porém retirando a menção a Deus em seu preâmbulo. De forma expressa, apenas manteve a vedação de “estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos” 92, a perda dos direitos políticos quando houver recusa de encargo legal em razão de suas convicções religiosas93 e ainda a mesma reserva legal para a liberdade de culto religioso de qualquer indivíduo e confissão religiosa94. Também foi mantida a possibilidade de ensino religioso, desde que não fosse frequência obrigatória para os alunos e professores95. imponha aos brasileiros, quando obtida por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política” (grafia da época) 87 Art. 113, Constituição de 1934: “A Constituição assegura aos brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] 4) Por motivo de convicções filosófica, políticas ou religiosas, ninguém será privado de qualquer dos seus direitos, salvo o caso do art. 111, letra b.” (grafia da época) 88 Cf. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O anti-semitismo na era Vargas: fantasmas de uma geração (1930-1945). São Paulo: Brasiliense, 1988, 600 p. 89 Art. 113, Constituição de 1934: “[...] 5) É inviolável a liberdade de consciência e crença e garantido o livre exercício dos
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