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A ANALOGIA DOMÉSTICA: UM CAMINHO PARA CONFERIR EFETIVIDADE AO DIREITO INTERNACIONAL?** Bethânia Itagiba Aguiar Arifa* Resumo Os internacionalistas costumam recorrer ao direito interno para decidir questões internacionais. O objetivo do artigo foi perquirir de que maneira a analogia doméstica pode representar um caminho para a efetividade do direito internacional. No primeiro momento, discuti o conceito do instituto, as analogias com o direito privado e público, sua utilização como fonte de direito internacional e os limites territoriais na solução de desafios globais. Em seguida, analisei a relação entre a analogia doméstica, o constitucionalismo global e a efetividade do direito internacional. Concluí que, apesar da fundamentação contrária, a analogia doméstica não pode ser rechaçada; em contrapartida, não deve ser atrelada, de maneira descuidada, às ideias de efetividade e unificação do direito internacional. Palavras-chave: analogia doméstica – direito internacional – constitucionalismo global – efetividade Abstract The Internationalists increasingly resort to domestic law to decide international issues. The aim of the paper was examining how domestic analogy may represent a way to grant the effectiveness of international law. At first, I introduced the concept of the institute, the analogies with private and public law, its use as a source of international law and territorial boundaries in the solution of global chalanges. Then, I analised the relationship between the domestic analogy, global constitutionalism and the effectiveness of international law. I concluded that, despite the opposing arguments, the domestic analogy can't be rejected. However, should not be carelessly linked to the ideas of unification and effectiveness of international law. Key-words: domestic analogy – international law – global constitutionalism – effectiveness ** Artigo científico apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina “Direito Internacional Público”, do programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Brasília (UnB), ministrada pelo Professor Doutor George Rodrigo Bandeira Galindo, Diretor da Faculdade de Direito da UnB. * Mestranda em Direito na UnB. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Pesquisadora do grupo Crítica & Direito Internacional (UnB) e do Centro de Direito Direito Internacional (VIII Anuário). INTRODUÇÃO “Nos últimos anos, as ideias constitucionais têm dirigido, de maneira significativa, a atenção dos estudiosos do direito internacional”1. Além dos debates sobre constituições nacionais e supranacionais específicas, os internacionalistas cada vez mais utilizam analogias constitucionais para discutir as atividades das Nações Unidas e de outras organizações internacionais2, fundamentar suas ideias e atos e proferir as decisões das cortes internacionais. É comum o recurso a regras, conceitos e institutos do direito interno dos Estados com a finalidade de solucionar problemas do direito internacional. O estudo da analogia doméstica é, portanto, crucial para melhor compreender o direito internacional, sobretudo em uma época tão marcada pelo desenvolvimento de teorias e doutrinas unificadoras. Contudo, é necessário perquirir como e em que medida a analogia doméstica pode, de fato, representar um caminho para conferir efetividade ao direito internacional e quais os argumentos contrários e favoráveis à sua aplicação. No presente artigo, essa análise será realizada da seguinte forma. No primeiro momento, será apresentado o conceito de analogia doméstica. Em seguida, serão abordadas as analogias com o direito privado e com o direito público, debatidos os argumentos contrários e favoráveis à sua aplicação no direito internacional e enfrentada a questão dos limites territoriais como obstáculo à solução de questões globais. Expostas as considerações introdutórias, será apresentado um estudo crítico da relação entre a analogia doméstica, o constitucionalismo global e a efetividade do direito internacional. Ao final, verificar-se-á se a analogia doméstica pode ou não ser um caminho para conferir efetividade ao direito internacional. 1 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Constitutionalism Forever. IN: Finnish Yearbook of International Law. Vol. 21, p. 137-170, 2012, p. 137. Tradução da autora feita do seguinte trecho: “In recent years, constitutional ideas have significantly commanded the attention of academics in the field of international law.” 2 DUNOFF, Jeffrey L. Constitutional Conceits: The WTO’s “Constitution” and the Discipline of International Law. European Journal of International Law. Firenze. Vol. 17. Nº 3, 2009, p. 647-675. 1 O QUE É A ANALOGIA DOMÉSTICA? De acordo com Lorimer, o maior desafio para o direito internacional é encontrar equivalentes internacionais para os fatores conhecidos do direito doméstico3 Apesar de ser um desafio, “the application of domestic legal experience to international law is really the main stock in trade of modern international thought”.4 O pensamento internacional é, portanto, fortemente influenciado por aquilo que teóricos de relações internacionais5 e de direito internacional6 denominam analogia doméstica e que pode ser facilmente compreendido, em um primeiro momento, a partir da apresentação de alguns exemplos de institutos, conceitos e princípios do direito internacional e seus correlatos no direito doméstico. A celebração de tratados internacionais remete à teoria geral dos contratos. Toma-se de empréstimo do direito civil a autonomia das vontades, o pacta sunt servanta, as condições e termos dos contratos, dentre outros. A denúncia de um tratado internacional se pauta em regras sobre o distrato do direito civil. A ocupação de terras de um Estado por outro é um tema internacional que remete, no direito civil, à usucapião como meio originário de aquisição da propriedade. A elaboração do conceito de território como elemento formador do Estado soberano remete às noções de propriedade privada. Valendo-se de metodologia semelhante, Lauterpacht também apresenta alguns exemplos do emprego da analogia doméstica. Os direitos e deveres do Estado decorrentes de mudança de soberania, divisão territorial ou formação de um novo Estado busca soluções em regras de sucessões e condomínio. A defesa de um Estado submetido a julgamento por cortes internacionais costuma indicar regras e princípios jurídicos sobre procedimentos e provas advindos do direito doméstico. O atraso na liquidação de indenizações de uma guerra recorre às regras de direito interno sobre juros moratórios. Os danos ambientais internacionais são matéria que, em muito, se pauta nas 3 LORIMER, James. The Institutes of the Law of Nations. Edinburgh: Blackwood, 1884. 4 MORGENTHAU, Hans Joachim. Scientific Man versus Power Politics. Chicago: University of Chicago Press, 1946. 5 Por exemplo: Hidemi Suganami. 6 Por exemplo: Hersch Lauterpacht. regras de responsabilidade civil. Tratados sobre arbitragem adotam os princípios gerais de direito do direito interno.7 Essas são situações práticas que revelam, ainda que de uma maneira bem simples, o que é a analogia doméstica. Por meio desses exemplos, o conceito da temática abordada no presente artigo se torna mais palpável. Permite-se, assim, que, a partir dessa ideia inicial, avancemos na sua definição. Na era da globalização, decisões domésticas têm efeitos que extrapolam o âmbito interno.Diante disso, ouso dizer que a analogia doméstica, além de ser um recurso ao direito privado, constitucional ou administrativo local, ocorre até mesmo em relação a institutos do direito internacional quando interpretados e aplicados pelo direito interno. Ou seja, quando o direito internacional recorre ao que decidido em cortes nacionais acerca de conceitos, institutos ou princípios próprios do direito internacional. Como afirmam Paulus e Weiler, “domestic courts are playing an indispensable role as interpreters and ‘translator’ of international standards and principles into action”8. Para ilustrar essa afirmação convém destacar o recente julgado da Corte Internacional de Justiça (CIJ) no caso “Germany v. Italy: Greece Intervening”, referente a imunidades jurisdicionais dos Estados. O acórdão da CIJ mencionou decisões de diversas cortes domésticas, inclusive do Brasil9, que reconheciam a imunidade de jurisdição dos Estados por atos praticados em territórios de Estado estrangeiro. Ademais, para bem conceituar a analogia doméstica é importante levar em consideração que o seu uso está associado à ideia de efetividade do direito internacional. Partindo do pressuposto de que o direito interno é efetivo, acredita-se na analogia 7 LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 173-212. 8 PAULUS, Andreas e WEILER, J. H. H. The Structure of Change in International Law or Is There a Hierarchy of Norms in International Law. European Journal of International Law. Vol. 8. Nº 4, 1997, p. 545-565, p. 249. 9 Eis o trecho da decisão que cita caso da justiça federal do Rio de Janeiro: “Judgments by lower courts in Belgium (Judgment of the Court of First Instance of Ghent in 2000 in Botelberghe v. German State), Serbia (Judgment of the Court of First Instance of Leskovac, 1 November 2001) and Brazil (Barreto v. Federal Republic of Germany, Federal Court, Rio de Janeiro, Judgment of 9 July 2008 holding Germany immune in proceedings regarding the sinking of a Brazilian fishing vessel by a German submarine in Brazilian waters) have also held that Germany was immune in actions for acts of war committed on their territory or in their waters.” CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Jurisdictional Immunities of the State (Germany v. Italy: Greece Intervening). 3 de fev. 2012. Disponível em: <http://www.icj- cij.org/docket/files/143/16883.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2013. doméstica como um mecanismo que pode gerar efetividade também para o sistema internacional.10 Os direitos fundamentais, que tão bons resultados trouxeram para o direito interno, são utilizados como analogias domésticas para tratar, no campo internacional, dos direitos humanos. A supremacia constitucional, que possibilita o controle de constitucionalidade e a segurança jurídica, é adotada como parâmetro para a construção do jus cogens. O mesmo acontece com determinadas instituições internacionais. Por exemplo, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) é lido a partir de elementos do poder executivo e as organizações internacionais, a partir de elementos do poder legislativo. Nessa perspectiva, chega-se a afirmar que o “International Law is private law writ large”.11 É possível, portanto, definir a analogia doméstica como a prática de recorrer a regras e conceitos construídos e aplicados pelo direito interno dos Estados, visando ao desenvolvimento e à efetividade do direito internacional. Definida a analogia doméstica, avançaremos na discussão sobre a sua utilização e a efetividade do direito internacional. Nesse percurso serão realizados alguns questionamentos: qual a importância da analogia doméstica para o direito internacional? Como ela acontece? Qual é o paradigma: o direito público ou o direito privado? A analogia doméstica pode ser utilizada como fonte de direito internacional? O que isso implica? Como os problemas da analogia doméstica refletem no processo de constitucionalização? A analogia doméstica é, de fato, um caminho para conferir efetividade ao direito internacional? 2 A ANALOGIA COM O DIREITO PRIVADO E COM O DIREITO PÚBLICO Quando se fala em analogia doméstica não se deve restringi-la à busca de conceitos e institutos do direito romano. Embora, de fato, o recurso tenha sido 10 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. O uso das analogias domésticas como busca da efetividade do direito internacional. Painel apresentado no 10º Congresso de Direito Internacional da Academia Brasileira de Direito Internacional. Rio de Janeiro, 2012. 11 LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law, p. 173-212. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 206. originalmente aplicado com base nesse direito, a analogia ocorre também com o direito público. Neste capítulo, serão apresentadas, portanto, as duas “formas” de analogia: com o direito privado e com o direito público. Sir Arnold Mc Nair, quando membro da Corte Internacional de Justiça, observou que “[i]nternational law has recruited and continues to recruit many of its rules and institutions from private systems of Law”12. Dentre outras, podemos apontar as seguintes influências do direito privado no direito internacional: servidão, leasing, condomínio, responsabilidade civil, contratos, concepção de território do Estado, teoria e prática de aquisição, modificação e divisão da soberania territorial, liberdade do mar, limites marítimos, soberania no espaço aéreo, sucessão de Estados, responsabilidade dos Estados e suas consequências, medidas de reparação de danos por ilícitos internacionais, tratados internacionais (formação, conclusão, interpretação, condições, efeitos, extinção etc.), provas e procedimentos, arbitragem e liquidação judicial internacionais.13 Todavia, como tem demonstrado a evolução de diversos ramos do direito internacional, a função básica do direito interno não se limita ao direito privado. Em uma perspectiva histórica, a ideia de constituição, embora seja a mais propalada, seria apenas um dos muitos conceitos jurídicos que primeiro tomaram forma no contexto doméstico e, mais tarde, foram aplicados no direito internacional. Tratados e costumes como fontes do direito, a doutrina dos sujeitos de direito, o tribunal como um meio de interpretação da lei e da resolução de litígios, todos são conceitos cujo desenvolvimento precedeu ao conceito de comunidade internacional e, de certo modo, assim como a ideia de constitucionalização, advieram do direito interno14, mas não necessariamente do direito privado ou do direito romano. Na verdade, é essencial que, no emprego das analogias domésticas para solucionar questões de direito internacional, seja possível o recurso tanto ao direito público quanto ao direito privado. Qualquer transação entre Estados soberanos, apesar 12 FASSBENDER, Bardo. The United Nations Charter as the Constitution of the International Community. Leiden: Martinus Nijhoff, 2009, p. 77-115 (Chapter 5: The UN Charter as a Constitution), p. 84. 13 LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law, p. 173-212. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge:Cambridge University Press, 1975. 14 FASSBENDER, Bardo. The United Nations Charter as the Constitution of the International Community. Leiden: Martinus Nijhoff, 2009, p. 77-115 (Chapter 5: The UN Charter as a Constitution). de ser uma relação típica de direito privado, consiste em uma relação de direito internacional público.15 E, nas situações em que os Estados realizam negócios puramente privados, sem referência ao exercício de império, por exemplo, o melhor não seria o recurso ao direito privado? Ao identificar a questão internacional é preciso, portanto, buscar o objeto de comparação mais adequado, sem se limitar a um ou outro ramo do direito. 3 ARGUMENTOS CONTRÁRIOS E FAVORÁVEIS AO USO DA ANALOGIA DOMÉSTICA Apesar de ser um recurso bastante utilizado, a analogia doméstica comporta críticas. A doutrina se divide entre adeptos e contrários à sua aplicação no direito internacional. A seguir, serão estudados argumentos já expostos por juristas e autores de relações internacionais e outros aqui construídos na tentativa de defender ou refutar o recurso a regras e conceitos do direito interno dos Estados para solucionar problemas de direito internacional.16 3.1 ARGUMENTOS CONTRÁRIOS AO USO DA ANALOGIA DOMÉSTICA Segundo Bull, um dos maiores críticos da analogia doméstica17, o recurso deve ser abandonado por completo, não apenas porque a tentativa de entender alguma coisa por meio de outra é um sinal de imaturidade, mas também porque a sociedade 15 LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law, p. 173-212. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975. 16 Veja a sistematização e indicação de autores feita por Suganami a respeito do debate sobre a analogia doméstica: “On the one hand, the opponents of domestic analogy appear to include: Hobbes, Spinoza, Pufendorf, Wolff and Vattel; certain international lawyers of the late nineteenth and the early twentieth century who stressed the specific character of international law; Manning, Bull, and those who follow, or agree with, their basic tenets about the uniqueness of international society. On the other hand, the supporters of the domestic analogy seem to include: Saint-Pierre and Kant; Saint-Simon, Ladd, Lorimer and Bluntschli; Oppenheim, Lauterpacht, and those contemporary writers who follow their paths either in advancing a proposal or in diagnosing the conditions of international life.” SUGANAMI, Hidemi. The Domestic Analogy and World Order Proposals. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 9- 39 (Chapter 1: The Domestic Analogy Debate: A Preliminary Outline e Chapter 2: The Range and Types of the Domestic Analogy), p. 22. 17 Entre os que indicam Hedley Bull como um dos maiores críticos da analogia doméstica está Chiara Bottici. BOTTICI, Chiara (2005). The Domestic Analogy and the Kantian Project of Perpetual Peace. Disponível em: <http://eprints.sifp.it/64/1/BOTTICI.html>. Acesso em: 18 mar. 2013. internacional é única e sua natureza e características estão relacionadas à situação específica dos Estados soberanos.18 Nesse sentido, Bull apresenta diversos argumentos contrários ao uso da analogia doméstica: (i) a confiança no sistema de Estados soberanos para lidar com os vários problemas enfrentados pela humanidade; (ii) a preferência por pequenos ajustes dentro do sistema a alterações radicais de estrutura; (iii) a clara distinção entre relações humanas inter e intra sociedades; (iv) a visão do Estado como um tipo de pessoa diferente da pessoa do indivíduo; (v) a estimativa de que é baixo o grau em que os padrões morais das relações humanas em nível internacional podem ser elevados até os da esfera doméstica; (vi) a desconfiança do legalismo.19 De maneira geral, o primeiro argumento utilizado para refutar o uso da analogia doméstica é que o mecanismo impede a purificação, a independência e o desenvolvimento do direito internacional e das relações internacionais. Suganami diz que C. A. W. Manning, um dos fundadores das Relações Internacionais como disciplina acadêmica na Inglaterra, defende enfaticamente que a sua autonomia só seria possível se houvesse uma dissociação dos fenômenos sociais domésticos.20 Sustenta-se que a analogia doméstica ameaça frustrar, mediante a introdução de aspectos técnicos e complexos do direito interno, qualquer tentativa de se realizar uma atividade científica fecunda e criadora no domínio das relações internacionais e, também, do direito internacional. 21 Na mesma linha, defende-se que a tendência à imitação é lastimável por ignorar a estrutura e o caráter especial das relações internacionais. Os aplicadores do direito, incapazes de compreender o caráter especial e bastante peculiar das relações 18 BULL, Hedley. Society and Anarchy in International Relations. IN: BUTTERFIELD, Herbert and WIGHT, Martin. Diplomatic Investigations: Essays in the Theory of International Politics. London: George Allen and Unwin, 1966, p. 35-50. 19 Para um estudo sistemático dos argumentos expostos por Hedley Bull, c.f. SUGANAMI, Hidemi. The Domestic Analogy and World Order Proposals. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 9-39 (Chapter 1: The Domestic Analogy Debate: A Preliminary Outline e Chapter 2: The Range and Types of the Domestic Analogy), p. 15. 20 SUGANAMI, Hidemi. The Domestic Analogy and World Order Proposals. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 9-39 (Chapter 1: The Domestic Analogy Debate: A Preliminary Outline e Chapter 2: The Range and Types of the Domestic Analogy). 21 Especificamente sobre o argumento em relação ao Direito Internacional, c.f.: FASSBENDER, Bardo. The United Nations Charter as the Constitution of the International Community. Leiden: Martinus Nijhoff, 2009, p. 77-115 (Chapter 5: The UN Charter as a Constitution), p. 83. internacionais, moldam o direito internacional a partir do padrão do direito privado e, ignorando as especificidades das relações internacionais, transformam-no em mera especulação ou filosofia do direito. A respeito da falta de conformidade do direito internacional com o interno, afirma-se que os sujeitos, as matérias e as abordagens do direito internacional e do direito doméstico são distintos.22 As relações entre Estados não podem ser comparadas às relações entre indivíduos. Argumento que, segundo Suganami, é originário de Hobbes, para quem as condições sociais de ordem entre Estados não são as mesmas condições de ordem entre indivíduos.23 A doutrina da soberania dos Estados é considerada portadora dos mais elevados e vitais interesses da nação, que não podem se submeter a padrões ordinários de direito privado, concebidos para cuidar precipuamente da regulação de interesses econômicos. Como afirma Moser, disputas entre nações livres não podem ser resolvidas pela Lei de Justiniano.24 Na mesma linha, Holtzendorff, da escola positivista alemã, preceitua que o direito internacional decide disputas entre Estados soberanos e independentes, logo não pode ter como fonte a analogia com o direito privado25, que cuida de relações privadas entre indivíduos, que são permanentemente sujeitos a leis autoritárias.26 27 Essa corrente ressalta, ainda, que, no âmbito interno, os princípios e conceitos são construídos a partir de um paradigma distinto que, na maioria dos casos, não se adéqua às realidades da esfera internacional, onde não existe uma ordem social, política 22 Nesse sentido, Bynkershoekdefende que regras de direito público não podem ser derivadas do direito civil ou do direito canônico, porque os dois têm objetos diferentes e se submetem a princípios distintos. (BYNKERSHOEK, Cornelius van. De Foro Legatorum Liber Singularis: A Monograph on the Jurisdiction Over Ambassadors in Both Civil and Criminal Cases. Translated by Gordon J. Laing. Oxford: Clarendon Press, 1946). Apesar disso, o autor é apontado por Lauterpacht como um grande admirador do direito romano (LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 173-212, p. 191). 23 SUGANAMI, Hidemi. The Domestic Analogy and World Order Proposals. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 9-39 (Chapter 1: The Domestic Analogy Debate: A Preliminary Outline e Chapter 2: The Range and Types of the Domestic Analogy). 24 MOSER, Johann Jacob. Teutsches Staatsrecht. Parte II, Livro I. Stein, 1738. 25 Na verdade, Holtzendorff rejeita não apenas a analogia com o direito romano, mas com qualquer direito privado em geral. 26 HOLTZENDORFF, Franz von. Handbuch des Völkerrechts: Auf Grundlage europäischer Staatspraxis. German: C. Habel Year, 1885. 27 Para um estudo sistematizado dos argumentos expostos por Moser e Holtzendorff acerca da analogia doméstica, c.f.: LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 173-212, p.192 e 194. e jurídica consolidada. Os valores estabelecidos no direito privado são harmoniosos porque existe um corpo político estruturado. Em contrapartida, no direito internacional, a aplicação desses mesmos valores envolveria a criação de um governo internacional, ainda inexistente e dificilmente consolidável ou, diria, indesejável. Como defende Bull, “anarchy among states is tolerable to a degree to which among individuals is not.”28 O próprio conceito de analogia doméstica construído por Bull é elucidativo desse argumento, por pressupor um poder central: Domestic analogy is the argument from the experience of individual men in domestic society to the experience of states, according to which states, like individuals, are capable of orderly social life only if, to use the Hobbesian expression, they stand in awe of a common power.29 Outro argumento é a inexistência de reconhecimento mútuo entre os ramos. Como o direito internacional não reconhece automaticamente o direito doméstico e vice-versa, não há como procurar, validamente, em um sistema jurídico não reconhecido, a solução para o preenchimento de lacunas existentes. Nessa linha, Grotius cita o caso dos contratos do direito internacional, que, a seu ver, não devem ser interpretados a partir do direito romano, exceto quando for expressamente aceito por aquele, o que, todavia, não se presume.30 31 28 BULL, Hedley. Society and Anarchy in International Relations. IN: BUTTERFIELD, Herbert and WIGHT, Martin. Diplomatic Investigations: Essays in the Theory of International Politics. London: George Allen and Unwin, 1966, p. 35-50, p. 45. 29 BULL, Hedley. The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics. London: Macmillan, 1977, p. 46. 30 GROTIUS, Hugo. O direito da guerra e da paz: (De Jure Belli ac Pacis). Tradução: Ciro Mioranza. Ijuí: Fondazione Cassamarca: Unijui, 2005. 31 Segundo Lauterpacht, Grotius é contraditório no que se refere à analogia doméstica. Para Lauterpacht, o capítulo sobre os tratados de Grotius é como um misto de direito privado romano e direito natural e que a contradição advém da tentativa do autor de conceituar o jus gentium. O que Grotius entende por direito civil não é o direito romano ou o direito privado em si, mas o direito doméstico. Este não é aplicável na solução de controvérsias entre Estados e soberanias, mas, sim, o jus gentium. Para Grotius, o direito natural não é o direito internacional, mas a fonte por meio de que são preenchidas as suas lacunas. A questão é saber quais são as fontes do denominado direito natural. Não seria o direito romano? Lauterpacht afirma, então, que embora Grotius negue aceitar o direito romano como fonte, aceita, com outra nomenclatura, as regras e princípios do direito romano como aplicáveis (LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 173-212). Por fim, o argumento comum à maioria dos autores contrários à analogia doméstica32 é que, embora se fale em analogia doméstica, o que realmente tem lugar no direito internacional e no constitucionalismo global é o desenvolvimento de noções gerais e princípios comuns a todos os direitos ou o recurso à própria noção de moralidade. Lauterpacht sistematiza esse argumento a partir da perspectiva de alguns autores 33, dentre os quais destaco Jellinek, Oppenheim e Triepel.34 Lauterpacht explica que Jellinek defende que a analogia só pode ser empregada quando expressamente reconhecida como uma fonte de direito por um dado sistema jurídico. Assim, em um sistema onde não se admite a analogia doméstica como fonte, a semelhança entre regras contratuais do direito privado e do direito internacional se explica pelo fato de o contrato ser regido por conceitos jurídicos universais. Segundo Jellinek, apesar de o direito privado ter trazido os princípios gerais sobre os contratos para a consciência jurídica universal, esta é que é utilizada como fonte, não o direito interno. Segundo Lauterpacht, essa ideia foi originalmente defendida por Oppenheim, para quem o fato de, no direito internacional, a natureza do contrato não poder ser diferente e a noção de propriedade não poder ser alterada é uma decorrência dos chamados valores universais, não do direito privado. Ou, ainda, conforme a visão de Triepel, também exposta por Lauterpacht, diante do dualismo, não é possível a analogia doméstica. Na verdade, a repercussão do direito romano decorre da influência do direito natural na formação do direito internacional. O recurso empregado é, então, a moralidade e a razão das coisas, de onde emana a solução para os problemas jurídicos. 32 Dentre os autores que apontam argumentos contrários ao uso da analogia doméstica, estão: Grotius, Selden, Bynkershoek, Moser, Heffter, Holtzendorff, Bulmering, Jellinek, Oppenheim, Nippold, Triepel, Liszt, Bonfilis, Despagnet, Thus Anzilotti e Cavaglieri, Manning, Moorhead Wright, Hedley Bull, Hobbes, Spinoza, Pufendorf, Wolff e Vattel. 33 Lauterpacht indica também Nippold e Liszt como autores que defendem o recurso a noções e princípios gerais, e não a analogia doméstica. Cita, ainda, positivistas italianos, como Anzilotti e Cavaglieri, que repudiam a aplicação do direito privado no direito internacional e defendem a utilização dos princípios gerais (LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 173-212). 34 LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1975, p. 173-212, p. 194-197. Além desses argumentos indicados pela doutrina, vários outros podem ser construídos na tentativa de refutar o uso da analogia doméstica no direito internacional. Um dos possíveis argumentos é o paradoxo de se adotar a analogia doméstica como um mecanismo de efetividade do direito internacional, visto que, muitas vezes, os princípios de direito doméstico invocados não são cumpridos no plano interno. Outro argumento é a falta de efetividade dos mecanismos e institutos domésticos. Busca-se no direito interno solução para desafios do direito internacional, quando, na verdade, os desafios persistem até mesmo na esfera interna. Parece não fazer sentido pretender solucionar o problema de efetividade do direito internacional fechando os olhos para os desafios decorrentes da aplicação desses mesmos institutos, conceitos e construções nos respectivos sistemas de origem. Essa realidade é muito bem retratada no direito administrativo global. Grant e Keohane afirmam que os mecanismos de prestação de contas, essenciais ao desenvolvimento do direito administrativo global, devem ir além dos mecanismos usuais de direito administrativo interno.35 Para Kingsbury, Krisch e Stewart, a abordagem dos dois autores é interessante, na medida em que lança luzes sobre as sérias limitações de uma concepção do direito administrativo global de responsabilização e prestação de contas pautada em modelos internos36 e sobre a possibilidade de a transferência de mecanismos de accountability domésticos para a esfera internacional suscitar problemas. The advantages and disadvantages of such approaches have not yet been fully explored. Nor has the potential more generally of other non-traditional tools of domestic administrative law as sources of ideas for global regimes. For example, public-private networks and economic incentive mechanisms have become 35 GRANT, Ruth; KEOHANE, Robert. Accountability and Abuses of Power in World Politics. IN: American Political Science Review. Vol. 99. Nº 1, fevereiro de 2005, p. 29-43. Disponível em: <http://www.princeton.edu/~rkeohane/publications/apsr_abuses.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2013. 36 Apesar disso, segundo Kingsbury, Krisch e Stewart, os autores Grant e Keohane reconhecem que qualquer sistema baseado na prestação de contas tem suas limitações e que há também seu valor em continuar a trabalhar dentro das limitações específicas da abordagem de direito administrativo, pois, a partir do direito doméstico, são expostos os obstáculos estruturais que devem ser considerados também no âmbito global (KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico; STEWART, Richard B. The Emergence of Global Administrative Law. Law and Contemporary Problems. Durham. Vol. 68. Nº 1, 2005, p. 15-61, p. 57). prominent in domestic administration, and they may be preferable to the classical command and control tools of administrative law in a global setting characterized by a lack of traditional enforcement capacities. Yet challenges confronting these innovations within domestic systems, particularly challenges in establishing accountability to a broader public through prevailing mechanisms of administrative law, are likely to be acute if they are transposed to global administration. Some other proven domestic tools for promoting official accountability, such as requiring agencies to base regulatory decisions on cost benefit analysis, subject to administrative review by a separate body connected with the elected government leaders, or tort law, may be less exposed to these challenges if used in global administration, but would face severe problems of effectiveness.37 O estudo desses argumentos é crucial para a análise da analogia doméstica, pois nos permite enxergar e enfrentar a questão de uma forma muito mais consciente e crítica. Assim, atentos à fundamentação contrária ao uso da analogia doméstica no direito internacional, passo à apresentação dos argumentos favoráveis a fim de que, munido de ambos os argumentos, o leitor possa construir questionamentos ou chegar às suas próprias conclusões. 3.2 ARGUMENTOS FAVORÁVEIS Os positivistas afirmam que a vontade dos Estados é a fonte primeira do direito internacional. Consequentemente, apesar de a analogia doméstica conferir certo grau de confiança e segurança, toda e qualquer fonte além dos costumes e dos tratados deve ser refutada.38 37 KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico; STEWART, Richard B. The Emergence of Global Administrative Law. Law and Contemporary Problems. Durham. Vol. 68. Nº 1, 2005, p. 15-61, p. 59. No entanto, a interpretação do artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, ao prever, no item 4, “os princípios reconhecidos pelas nações civilizadas” como fonte de direito internacional39, acaba permitindo o uso da analogia doméstica, que nada mais é que o recurso a esses princípios, já consolidados no direito interno dos Estados, para o preenchimento de lacunas no direito internacional. De acordo com Gentilis, todos se submetem ao direito civil como uma espécie de jus gentium, pois a Lei de Justiniano não é mera lei privada, mas uma lei geral. Dessa forma, a aplicação do direito romano não é mera questão de imitação, mas uma questão de princípios.40 No mesmo sentido, Taylor afirma ser impossível compreender o direito internacional sem entender o direito romano, que é a base filosófica do jus gentium.41 Também Rivier, ao discutir o significado da expressão “princípios gerais de direito” utilizada em tratados sobre arbitragem, diz ser clara a visão de que, na ausência de declaração de vontade das partes, as regras de direito romano devem ser aplicadas. Para Rivier, desde que com a devida cautela, o direito internacional pode recorrer não apenas ao direito romano, mas às regras do direito civil em geral.42 Na tentativa de impedir o uso da analogia doméstica argumenta-se, ademais, que o mecanismo impede o desenvolvimento e a independência do direito internacional e das relações internacionais. Chega-se a se afirmar que a única forma de entender as relações inter estatais é refutando a analogia doméstica. Linklater, por sua vez, defende que o desenvolvimento progressivo das relações internacionais exige uma transferência dos entendimentos das relações sociais dos seus 38 LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 173-212. Importante fazer a ressalva de que Lauterpacht apenas expõe o argumento, mas com ele não coaduna. Pelo contrário, o autor é um dos adeptos da utilização da analogia doméstica. 39 NAÇÕES UNIDAS. Estatuto da Corte Internacional de Justiça. São Francisco, 26 de junho de 1945. 40 GENTILIS, Alberico. Hispanicae advocationis libri duo. New York: Oxford University Press, 1921. Importante, contudo, destacar, como o faz Lauterpacht, que Gentilis apresenta a ressalva de que o que se aplica a um Estado não pode se estender, indistintamente, para além de suas fronteiras. Também de acordo com Lauterpacht, Selden critica a opinião de Gentilis acerca da força vinculante universal do direito romano. (LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1975, p. 173-212). 41 TAYLOR, Hannis. Treatise on International Public Law. Chicago: Callaghan, 1901. 42 RIVIER, Alphonse. Principes du droit des gens. Vol. 1 e vol. 2. Paris: Arthur Rousseau, 1896. estabelecimentos originais para a área internacional.43 O mesmo raciocínio se aplica ao direito internacional, que, para se desenvolver, precisa dialogar com o direito interno dos Estados que integram a comunidade internacional. Como assevera Morgenthau, a aplicação da experiência jurídica doméstica ao direito internacional é realmente a ação mais importante para o pensamento internacional moderno.44 O argumento da analogia doméstica como obstáculo à independência e ao desenvolvimento do direito internacional também pode ser superado a partir da constatação exposta por Lauterpacht de que o desenvolvimento do direito internacional foi facilitado e teve seu conteúdo moral fortalecido pela sua estreita conexão com o direito privado.45 É interessante perceber, por exemplo, que o caráter patrimonial dos Estados no período de formação do direito internacional foi um fator determinante para explicar a forte ligação com o direito privado e que, mesmo depois de ultrapassada a concepção patrimonialista do Estado, a influência do direito privado continua inabalável. Lauterpacht defende, ainda, que o fato de os sujeitos, os assuntos e as abordagens do direito internacional e do direito doméstico serem distintos e a ausência de reconhecimento mútuo entre os direitos são insuficientes para impedir o uso da analogia, que tem uma força persuasiva própria.46 Quanto aos sujeitos, convém destacar que não são tão distintos quanto se afirma. Na verdade, há semelhanças suficientes que justificam o emprego da analogia. A afirmação de que o sujeito do direito internacional são os Estados e o do direito civil são os particulares não é absoluta. O direito internacional moderno reconhece indivíduos e 43 LINKLATER, Andrew. Men and citizens in the theory of international relations. London: Macmillan, 1982. 44 MORGENTHAU, Hans Joachim. Scientific Man versus Power Politics. Chicago: University of Chicago Press, 1946. 45 LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 173-212. Ao tratar da Carta das Nações Unidas como a constituição global, Fassbender aborda o tema da analogia doméstica e cita Lauterpacht exatamente para dizer que a prática de recorrer a regras e conceitos do direito privado visa a desenvolver o direito internacional. FASSBENDER, Bardo. The United Nations Charter as the Constitution of the International Community. Leiden: Martinus Nijhoff, 2009, p. 77-115 (Chapter 5: The UN Charter as a Constitution), p. 84. 46 LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 173-212. entidades, que não são Estados, como sujeitos e beneficiários diretos dos direitos internacionais. Mesmo quando a entidade personificada do Estado é considerada como sujeito de direitos e deveres internacionais, esses configuram, em última análise, os direitos e deveres dos seres humanos individuais.47 Ademais, no âmbito interno, o direito civil é constantemente utilizado para solucionar demandas entre o Estado e o indivíduo, preenchendo-se lacunas do direito administrativo. Princípios de direito privado, como a equidade, são princípios aplicáveis tanto a indivíduos quanto ao estado. 48 Gardbaum, tratando especificamente das diferenças e semelhanças das constituições domésticas e internacionais de direitos humanos, afirma que, seja qual for o grau geral de analogia ou disanalogia entre o direito internacional e constitucional49, as cartas de direitos humanos nacionais e internacionais desempenham a mesma função básica de afirmar limites sobre o que os governos podem fazer com as pessoas dentro de suas jurisdições.50 Além disso, para o autor, existe uma semelhança clara entre os dois, em termos de idade. Embora seja inegável a existência de importantes precursores e desenvolvimentos subsequentes em cada sistema, ambos foram essencialmente criados depois de 1945, como respostas às violações maciças dos direitos fundamentais ocorridas imediatamente antes e durante a Segunda Guerra Mundial. As limitações impostas, interna e internacionalmente, preencheram, portanto, as principais lacunas em ambos os sistemas jurídicos. Essas semelhanças não podem ser ignoradas.51 47 Para um estudo sobre o indivíduo como sujeito de direito internacional c.f. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Desafios e Conquistas do Direito Internacional dos Direitos Humanos nos Início do Século XXI, p. 207-321. IN: Jornadas de Direito Internacional Público no Itamaraty (2005: Brasília, DF). Desafios do direito internacional contemporâneo/ Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, organizador. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007. 48 “Halleck, who, like Manning, connects the problem of Roman Law with the demand for universal jurisprudence, says: pratical equity, which furnishes principles of universal jurisprudence, applicable alike to individuals and to States.” (LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 173-212). 49 O autor indica a leitura de HELFER, Laurence R. Constitutional Analogies in the International Legal System. Loyola of Los Angeles Law Review, 2003. 50 Gardbaum faz a seguinte ressalva: “I do not intend to suggest in either case that this is the only function or, in the case of international human rights law, the only basic function.” (GARDBAUM, Stephen. Human Rights as International Constitutional Rights. IN: European Journal of International Law. Firenze. Vol. 19. Nº 4, 2008, p. 749-768, p. 750). 51 GARDBAUM, Stephen. Human Rights as International Constitutional Rights. IN: European Journal of International Law. Firenze. Vol. 19. Nº 4, 2008, p. 749-768. Toda analogia é imperfeita. Um caso semelhante, objeto da analogia, não é a mesma coisa que um caso idêntico, senão nem seria analogia. Como afirma Lorimer, a pergunta que deve ser feita não é se as condições dos dois problemas, direito internacional e direito doméstico, são as mesmas. O que se deve perguntar é se eles se assemelham o suficiente para se admitir a aplicação de uma solução anterior do direito interno ao caso em análise.52 Destaco, ainda, que a analogia é um mecanismo de interpretação ou de integração de normas utilizado em diversos ramos do direito. O sistema jurídico constitucional brasileiro, por exemplo, é fortemente influenciado pelo direito da Alemanha e dos Estados Unidos. É corriqueiro o recurso a conceitos e institutos do direito germânico e norte americano para solucionar problemas constitucionais internos. O direito administrativo também recorre frequentemente ao direito civil para o preenchimento de lacunas. Não há razão suficiente para impedir, então, que uma técnica comumente adotada no enfrentamento de problemas jurídicos seja refutada apenas no direito internacional. Ademais, de acordo com Dupuy e Traisbach, o direito internacional não pode ser visto como um sistema jurídico autossuficiente e fechado.Pelo contrário, as diferentes ordens jurídicas devem ser entendidas como ordens interdependentes e que se reforçam mutuamente. Assim, não se deve impedir que o direito internacional busque, no direito interno, soluções para os desafios que enfrenta. A analogia doméstica é um mecanismo que permite o diálogo entre o direito interno e o direito internacional e concretiza a ideia de que um poder ser fundamento do outro. Ao invés de enfraquecer o direito internacional, a analogia doméstica o torna mais robusto, da mesma forma que, ao ser aplicada, reforça também o próprio direito interno. Na verdade, a efetividade somente é alcançada em ordenamentos jurídicos robustos e abertos à interação.53 Muito se fala na ausência de aceitação automática do direito interno pelo direito internacional e vice-versa como argumento para refutar a analogia doméstica. Todavia, como reconhecem Nijman e Nollkaemper, o dualismo tem um poder limitado para 52 LORIMER, James. The Institutes of the Law of Nations. Edinburgh: Blackwood, 1884. 53 DUPUY, Pierre-Marie; TRAISBACH, Knut. Taking International Law Seriously: On the German Approach to International Law. EUI Working Paper Law nº 2007/34. Disponível em <http://cadmus.eui.eu/bitstream/handle/1814/7629/LAW_2007_34.pdf?sequence=3>. Acesso em: 18 mar. 2013. descrever, explicar e prever as múltiplas interações entre a ordem jurídica internacional e as esferas jurídicas domésticas que caracterizam nossa época. Embora seja inegável a distinção entre o direito internacional e o direito doméstico, é preciso questionar se as interações entre os dois sistemas não se tornaram tão multiformes a ponto de minar a natureza autossuficiente de um e outro.54 Os estudiosos de direito internacional não podem ignorar os muitos canais formais e informais de comunicação entre as sociedades nacionais e internacionais. Assim, mesmo que eles não afastem a regra básica de que o direito internacional não tem validade automática na ordem jurídica interna, acabam relativizando essa regra. É nesse sentido que Nijman e Nollkaemper afirmam que a divisão entre o direito internacional e o direito interno está se desgastando. E esse desgaste é que, de fato, deve ser levado em consideração ao se discutir o uso da analogia doméstica.55 Ainda utilizando-se dos ensinamentos de Nijman e Nollkaemper, verifica-se que as normas que protegem os interesses da comunidade internacional como um todo, automaticamente, protegem os interesses das sociedades domésticas.56 Por conseguinte, não há motivos cabais para impedir que conceitos, institutos e decisões dessas sociedades sejam adotadas, em determinadas situações, como paradigma para o enfrentamento de desafios internacionais. 3.3 OS LIMITES TERRITORIAIS COMO OBSTÁCULO À SOLUÇÃO DE QUESTÕES GLOBAIS Para o constitucionalista alemão Ulrich K Preuss, a ideia de constituição não está intrinsecamente ligada ao conceito de Estados territorialmente delimitados. O autor desconecta a soberania do conceito de território e estabelece uma ligação com o autogoverno coletivo de uma multitude.57 A partir desse pressuposto, embora 54 NIJMAN, Janne; NOLLKAEMPER, André. New perspectives on the divide between National & International Law. New York: Oxford University Press Inc., 2007. 55 NIJMAN, Janne; NOLLKAEMPER, André. New perspectives on the divide between National & International Law. New York: Oxford University Press Inc., 2007. 56 NIJMAN, Janne; NOLLKAEMPER, André. New perspectives on the divide between National & International Law. New York: Oxford University Press Inc., 2007. 57 PREUSS, Ulrich K. Disconnecting Constitutions from Statehood: Is Global Constitutionalism a Viable Concept? IN: DOBNSER, Petra and LOUGHLIN, Martin (ed.). The Twilight of Constitutionalism? Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 23-46. originalmente adotado em um debate diverso do que aqui se apresenta, é perfeitamente aceitável recorrer a regras e conceitos do direito doméstico a fim de que, desapegando- se de limitações territoriais, seja possível buscar o desenvolvimento e a efetividade do direito internacional e o diálogo com o direito interno. Preuss defende que uma constituição, mesmo que pareça estar focada no Estado, é, na verdade, a constituição da sociedade. Para fortalecer sua tese, cita o artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão - frequentemente invocada como a quintessência do conceito de uma constituição - que, ao dizer que uma sociedade onde não há a garantia de direitos nem a separação de poderes não tem constituição, refere-se a “sociedade”, não a “estado”.58 Afirma, ainda, que a liberdade é o fim último de uma associação política. Ou seja, até mesmo a fixação de limites à liberdade natural, através do direito, visa à garantia da própria liberdade.59 Dessa forma, se a constituição é da sociedade, não do estado, e, se a sua finalidade precípua é garantir a liberdade, não há problemas em recorrer à analogia doméstica como um mecanismo de constitucionalização do direito internacional. Para tentar solucionar falhas ou omissões (constitucionais) do direito internacional, não convém impor limites territoriais ou jurisdicionais – da mesma forma que não o convém para fins de delimitação do que seja uma constituição, sobretudo porque o que se pretende é a proteção da liberdade das sociedades e indivíduos ou, como queira, até mesmo, dos estados. O poder supremo pressupõe uma pluralidade de poderes em potencial ou já existentes.60 Trazendo essa afirmação para o contexto do presente artigo, pode-se afirmar que o constitucionalismo global pressupõe ordens constitucionais já existentes. Não há, então, razão para, na tentativa de enfrentar desafios de ordem internacional ou 58 FRANÇA. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. França, 2 de outubro de 1979. 59 PREUSS, Ulrich K. Disconnecting Constitutions from Statehood: Is Global Constitutionalism a Viable Concept? IN: DOBNSER, Petra and LOUGHLIN, Martin (ed.). The Twilight of Constitutionalism? Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 23-46. 60 A afirmação de Preuss é a seguinte: “Supreme power pressuposes a plurality of potential or actual porwers, with one supreme because it is superior to all other.” (PREUSS, Ulrich K. Disconnecting Constitutions from Statehood: Is Global Constitutionalism a Viable Concept? IN: DOBNSER, Petra and LOUGHLIN, Martin (ed.). The Twilight of Constitutionalism? Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 23-46, p. 33). O contexto dessa assertiva é o estudo da relação entre constitucionalismo e territorialidade, oportunidade em que o autor defende, em síntese, que o importante não é a soberania territorial, mas a soberania popular. global, impedir o recurso às decisões, conceitos e princípios das ordens domésticas. Como afirmam Nijman e Nollkaemper, há uma nova ordem jurídica which has traditionally guarded the door between the international and the domestic sphere, has lost its controlling power. (…) In such diverse areas as economic transactions, individual rights, and individual crimes, private persons are more and more drawn into an internationalized order, no longer shielded by, and invisible within, the State.61 No contexto de globalização, a regulação da sociedade, as interações além- fronteiras e o diálogo entre o direito internacional e o direito interno e devem ocorrer por meio de um direito de fontes plurais. O direito, assim como o indivíduo,não pode ser isolado e atomizado. Pelo contrário, deve se inserir em um paradigma de recurso a fontes nacionais e internacionais. De acordo com Suganami, “the term ‘domestic analogy’ or its equivalents has been used more as weapon of debate than as a tool of analysis.”62 Nos capítulos seguintes, será, então, estudada, de forma crítica, a relação da analogia doméstica e do constitucionalismo global e os riscos da utilização dessa prática como arma para os debates sobre a efetividade do direito internacional. 4 A ANALOGIA DOMÉSTICA, O CONSTITUCIONALISMO GLOBAL E A EFETIVIDADE DO DIREITO INTERNACIONAL A relação entre a analogia doméstica e o constitucionalismo global pode ser primeiramente explicada a partir da argumentação de Kant de que os Estados devem se unir em um corpo internacional assim como foi necessário aos indivíduos se unirem sob Estados individualizados.63 Além disso, acredita-se que muitos dos princípios 61 NIJMAN, Janne e NOLLKAEMPER, André. New perspectives on the divide between National & International Law. New York: Oxford University Press Inc., 2007, p. 348. 62 SUGANAMI, Hidemi. The Domestic Analogy and World Order Proposals. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 9-39 (Chapter 1: The Domestic Analogy Debate: A Preliminary Outline e Chapter 2: The Range and Types of the Domestic Analogy), p. 23. 63 SUGANAMI, Hidemi. The Domestic Analogy and World Order Proposals. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 9-39 (Chapter 1: The Domestic Analogy Debate: A Preliminary Outline e Chapter 2: The Range and Types of the Domestic Analogy). domésticos utilizados pelo direito internacional são princípios universais, que governam a conduta humana de uma maneira geral.64 Os Estados e os indivíduos, como membros de uma comunidade mundial, sujeitam-se, em seus diferentes Estados, a regras comuns. O uso da analogia revela, dessa forma, tanto o declínio quanto a assunção de uma comunidade moral universal e, consequentemente, reforça a possibilidade de uma ordem constitucional global. Os defensores do constitucionalismo global rejeitam a afirmação de que as constituições existem apenas no âmbito dos Estados soberanos. Apesar de as teorias do constitucionalismo terem se desenvolvido no contexto de Estados nações, não há uma razão específica para impedir que a noção de constituição possa ser também transplantada para outros contextos. Ademais, a ideia de constituição mundial sequer depende da existência de um Estado mundial. O constitucionalismo global é profundamente baseado na tradição do constitucionalismo no contexto doméstico. Como afirma Werner, o constitucionalismo é “uma tentativa de explicar a evolução existente no direito internacional emprestada, em termos, do constitucionalismo nacional, com o objetivo de promover uma agenda normativa de internacionalismo, integração e controle jurídico de políticas.”65 O “tipo ideal”66 de constituição, que é a base do constitucionalismo global, pauta-se em instituições e processos desenvolvidos no direito interno. Vem, portanto, do constitucionalismo doméstico a noção de constituição como fundamento de uma ordem jurídica hierarquicamente estruturada que unifica a comunidade e limita o exercício do poder político. A própria definição do constitucionalismo global, como um projeto situado entre fatos e normas que explica algumas construções do direito internacional baseado na existência de uma constituição que é válida para toda a comunidade 64 Embora haja entendimento em sentido contrário, conforme exposto no item 3.1., o reconhecimento dos princípios domésticos como princípios universais não implica dizer que não se trata de analogia doméstica. 65 WERNER, Wouter. The Never-Ending Closure: Constitutionalism and International Law. IN: TSAGOURIAS, Nicholas. Transnational Constitutionalism: International and European Models. Cambridge University Press, 2007, p. 329-367, p. 330. 66 Expressão utilizada por FASSBENDER, Bardo. The United Nations Charter as the Constitution of the International Community. Leiden: Martinus Nijhoff, 2009, p. 77-115 (Chapter 5: The UN Charter as a Constitution). internacional67, demonstra que se trata de um projeto construído com esteio em analogias domésticas.68 Em suma, a relação entre a analogia doméstica, o constitucionalismo global e a efetividade do direito internacional pode ser explicada a partir da seguinte colocação de Galindo: One important question arises for someone who is encountering the literature on international constitutionalism for the first time: why does international law need to pass through a process of constitutionalisation? Or, why does international law need a constitution at all?69 Para comprovar a necessidade de uma constituição ou constitucionalização é preciso construir uma imagem do direito internacional como um direito imperfeito, menos evoluído, ou primitivo, que procura em ordens jurídicas internas, já estruturadas, a efetividade e o preenchimento de suas lacunas.70 Resta, contudo, saber se o constitucionalismo global, e também a analogia doméstica, é ou não capaz de resolver os paradoxos e as limitações do constitucionalismo doméstico e do direito internacional. Permanecendo, por exemplo, as tensões entre a política e a sociedade, visto que há fatores que escapam ao direito, questiona-se: os problemas são remediáveis pela simples remição a institutos, conceitos e decisões do direito interno? A analogia pode ser um caminho para conferir efetividade ao direito internacional? 67 WERNER, Wouter. The Never-Ending Closure: Constitutionalism and International Law. IN: TSAGOURIAS, Nicholas. Transnational Constitutionalism: International and European Models. Cambridge University Press, 2007, p. 329-367. 68 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Constitutionalism Forever. IN: Finnish Yearbook of International Law. Vol. 21, p. 137-170, 2012. 69 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Constitutionalism Forever. IN: Finnish Yearbook of International Law. Vol. 21, p. 137-170, 2012, p. 143. Tradução da autora: Uma questão importante surge para aqueles que estão diante da literatura sobre o constitucionalismo internacional pela primeira vez: por que o direito internacional precisa passar por um processo de constitucionalização? Ou, por que o direito internacional precisa de uma constituição em tudo? 70 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Constitutionalism Forever. IN: Finnish Yearbook of International Law. Vol. 21, p. 137-170, 2012. 4.1 NECESSIDADE (OU DESNECESSIDADE) DO ELEMENTO UNIFICADOR E DA INSTITUCIONALIZAÇÃO A Constitucionalização, o Direito Administrativo Global e o Exercício da Autoridade Pública Internacional71 são modelos teóricos que, cada um à sua maneira, se utilizam do direito interno para que o direito internacional se efetive. O que é unificador se torna importante, na medida em que, a partir da experiência jurídica dos Estados individualmente considerados, assegura efetividade para os sistemas. No Constitucionalismo, o que é unificador é a constituição. Todavia, a mera identificação desse elemento não é suficiente para solucionar os desafios emergentes. Existe uma série de outros questionamentos subjacentes a esse debate: o que é a constituição? Seria a Carta da ONU72, a Declaração Universal dos Direitos Humanos73 ou o jus cogens74? Essa constituição, seja qual for, é de fato necessária para se conferir efetividade ao direito internacional? Por que o direito internacional precisa passarpor um processo de constitucionalização? A análise dessas e de outras perguntas pressupõe o estudo de vários fatores. A apresentação aqui realizada não pretende indicar as respostas para todas elas; pelo contrário, poderá fazer surgir tantas outras indagações. O escopo é lançar luzes sobre a necessidade de se pesquisar e debater, de forma consciente e crítica, o tema proposto. 71 Para uma compreensão da teoria ou projeto do Exercício da Autoridade Pública Internacional c.f. VON BOGDANDY, Armin; DANN, Philipp; GOLDMANN, Matthias (2010). Developing the Publicness of Public International Law: Towards a Legal Framework for Global Governance Activities. 9 Germain Law Journal 1275-1400, at 1381 et seq. Disponível em: <http://www.germanlawjournal.de/pdfs/Vol09No11/PDF_Vol_09_No_11_1375-1400_Articles_von %20Bogdandy_Dann_Goldmann.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2013. 72 Para o estudo do tema, c.f. FASSBENDER, Bardo. The United Nations Charter as the Constitution of the International Community. Leiden: Martinus Nijhoff, 2009, p. 77-115 (Chapter 5: The UN Charter as a Constitution). 73 Para o estudo do tema, c.f. VON BERNSTORFF, Jochen. The Changing Fortunes of the Universal Declaration of Human Rights: Genesis and Symbolic Dimensions of the Turn to Rights in International Law. European Journal of International Law. Firenze. Vol. 19. Nº 5, 2008, p. 903-924 e GARDBAUM, Stephen. Human Rights as International Constitutional Rights. IN: European Journal of International Law. Firenze. Vol. 19. Nº 4, 2008, p. 749-768. 74 Para o estudo do tema, c.f. PAULUS, Andreas. Jus Cogens in a Time of Hegemony and Fragmentation: An Attempt at a Re-appraisal. Nordic Journal of International Law. Lund. Vol. 74. Nº 2, 2005, p. 297- 334; ORAKHELASHVILI, Alexander (2008). Peremptory Norms as an Aspect of Constitutionalisation in the International Legal System. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm? abstract_id=1286926>. Acesso em: 18 mar. 2013; WEIL, Prosper. Towards Relative Normativity in International Law. American Journal of International Law. Washington. Vol. 77. Nº 2, 1983, p. 413-442; e KOSKENNIEMI, Martti. Hierarchy in International Law: A Sketch. European Journal of International Law. Firenze. Vol. 8. Nº 3, 1997, p. 566-582. 4.2 INSTITUCIONALIZAÇÃO, UNIFICAÇÃO, HIERARQUIZAÇÃO E EFETIVIDADE Muitas das analogias feitas com o direito interno, sobretudo as analogias constitucionais, estão permeadas por uma visão hierárquica que, em inúmeros aspectos, nos remete à pirâmide Kelseniana. Parte-se do pressuposto de que um direito institucionalizado e hierarquizado é mais efetivo. É, contudo, necessário questionar a veracidade dessa premissa.75 Será, que, de fato, a hierarquia e o controle de constitucionalidade, existentes no direito constitucional interno, são essenciais para a efetividade do sistema? E, ainda: será que os modelos constitucionais existentes no direito interno são capazes de compreender os “fundamentos morais” do direito internacional? Como afirmam Dupuy e Traisbach, compreender o direito internacional como um sistema jurídico unificado exige também pensar sobre situações em que o conteúdo substantivo de uma norma é considerado contrário a concepções fundamentais de justiça ou a lei parece ser incompleta ou equivocada.76 Nesses casos, a solução pode, sim, ser procurada nos ordenamentos jurídicos internos. Todavia, esse exercício não pode ser feito de qualquer maneira. Deve-se buscar, por meio da analogia doméstica, um significado e conteúdo específico para as questões afetas ao direito internacional, sem perder de vista os seus fundamentos morais e as suas peculiaridades. A analogia, embora seja uma técnica pautada na busca por semelhanças, como mecanismo de solução dos problemas de efetividade do direito internacional, não pode ficar presa a 75 Dupuy e Traisbach, referindo-se especificamente ao direito alemão, reconhecem que: não há surpresa no fato de encontramos muitas analogias à legislação doméstica e organizações federais na doutrina alemã de direito internacional, permeada por uma visão hierárquica que remete à pirâmide Kelseniana. No entanto, os autores ressalvam que Kelsen pode ser considerado como um remanescente bastante distante da percepção contemporânea alemã de direito internacional, que defende que a unidade da ordem jurídica internacional compreende também considerações de moralidade e justiça (DUPUY, Pierre-Marie; TRAISBACH, Knut. Taking International Law Seriously: On the German Approach to International Law. EUI Working Paper Law nº 2007/34. Disponível em: <http://cadmus.eui.eu/bitstream/handle/1814/7629/LAW_2007_34.pdf?sequence=3>. Acesso em: 18 mar. 2013, p. 7). 76 DUPUY, Pierre-Marie; TRAISBACH, Knut. Taking International Law Seriously: On the German Approach to International Law. EUI Working Paper Law nº 2007/34. Disponível em: <http://cadmus.eui.eu/bitstream/handle/1814/7629/LAW_2007_34.pdf?sequence=3>. Acesso em: 18 mar. 2013. conceito prontos e acabados. Pelo contrário, na sua utilização é crucial estar muito mais atento às diferenças que às similitudes. Tocqueville, ao criticar o caráter democrático de um poder soberano irrestrito que poderia advir de uma constituição, falou em tirania da maioria.77 Tomando de empréstimo essa construção, é possível afirmar que, a depender do paradigma adotado, a analogia doméstica, assim como o constitucionalismo global, pode suscitar uma tirania no direito internacional.78 É o que será analisado no capítulo a seguir. 4.3 ANALOGIA DOMÉSTICA, CONSTITUCIONALISMO E EXCLUSÃO: O RISCO DO IMPÉRIO DA UNIFORMIDADE A analogia doméstica e o constitucionalismo, a depender dos paradigmas adotados, correm o risco de, ao invés de auxiliarem na consolidação de um direito internacional efetivo, construírem um “império da uniformidade”, para usar um termo cunhado por James Tully e citado por Galindo.79 É necessário, então, questionar: se o direito doméstico não é efetivo, como pretender que o que é construído a partir de suas bases o seja? Conforme Galindo, a analogia doméstica pode ser enganadora, na medida em que se articula em uma narrativa mítica de progresso sobre a maneira como estruturas constitucionais domésticas têm se desenvolvido. Os Estados nem sempre enfrentam o problema da inclusão/exclusão em suas próprias sociedades, e, quando o fazem, nem sempre conseguem elaborar uma constituição representativa dos interesses dos diferentes segmentos da sociedade. 80 Não é uma coincidência que muitos sistemas jurídicos nacionais enfrentam sérios problemas em reconhecer as minorias religiosas, étnicas ou estrangeiras dentro de suas fronteiras. Nem mesmo a aplicação das atuais regras de direitos humanos é capaz 77 TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracy in America. New York: Vintage Books, 1990. 78 Segundo Preuss, “as we know, the Founders of the US constitution were sceptical about the democratic version of unrestricted sovereign power, which Tocqueville, two generations later, famously labelled the tyranny of the majority.” (PREUSS, Ulrich K. Disconnecting Constitutions from Statehood: Is Global Constitutionalism a Viable Concept? IN: DOBNSER, Petra and LOUGHLIN, Martin (ed.). The Twilight of Constitutionalism? Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 23-46., p. 24). 79 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Constitutionalism Forever. IN: Finnish Yearbook of International Law. Vol. 21, p. 137-170, 2012. 80 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Constitutionalism Forever. IN: Finnish Yearbook of International Law. Vol. 21, p. 137-170, 2012.de resolver ou, pelo menos, diminuir as tensões. Segundo Galindo, há possivelmente muitas razões para isso, mas grande parcela se deve à incapacidade do discurso constitucional atual para lidar com a diferença.81 Assim, o constitucionalismo moderno corre o risco de ser visto como o "império de uniformidade". Como se vê, o constitucionalismo global parece não mostrar alternativas plausíveis para lidar com as diferenças82. Na verdade, necessita desenvolver ferramentas para o diálogo com aqueles que são diferentes. Com efeito, é possível pressupor que os mesmos erros cometidos nas ordens internas sejam repetidos na esfera internacional. 83 Utilizar cegamente a analogia doméstica para resolver o desafio da efetividade do direito internacional pode ser extremamente perigoso para a humanidade. O mecanismo, assim como os projetos ou teorias correlatas, pode implicar o desrespeito a questões relacionadas à igualdade e, mais em geral, à distribuição social.84 Diante disso, indaga-se: como deve ser realizada a analogia doméstica? Há uma diferença entre (i) invocar uma norma de direito interno para a solução de um caso específico, de maneira isolada, e (ii) buscar instituições comuns a um grande número de sistemas jurídicos nacionais a fim de explicar fatos e condições no direito internacional que já existem como uma questão de fato, mas ainda não são adequadamente compreendidos. A primeira forma de analogia doméstica, embora aceita, deve ser vista com reservas. Em contrapartida, a segunda, certamente, não pode ser criticada como um dificultador de uma atividade científica frutífera e criativa no direito internacional, pois pressupõe que seja uma análise a revelar diferenças e, assim, a 81 Galindo ressalta que, de fato, não é possível generalizar, pois existem inúmeros constitucionalistas domésticos que desenvolveram teorias para lidar com as diferenças. Cita, por exemplo, James Tully, Strange Multiplicity: Constitutionalism in an Age of Diversity (Cambridge University Press, 1995) e Michel Rosenfeld, The Identity of the Constitutional Subject: Selfhood, Citizenship, Culture, and Community (Routledge: Oxford, 2009). Em seguida, destaca que a sua afirmação, contudo, é no sentido de que a forma como muitos constitucionalistas internacionais veem o constitucionalismo doméstico ignora a complexa questão da diferença. (GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Constitutionalism Forever. IN: Finnish Yearbook of International Law. Vol. 21, p. 137-170, 2012). 82Anne Peters, defensora do constitucionalismo internacional, tenta refutar a acusação de que o constitucionalismo internacional é antipluralista. (PETERS, Anne. Conclusions. IN: KLABBERS, Jan; PETERS, Anne; ULFSTEIN, Geir. The Constitutionalization of International Law. Oxford: Oxford University Press, 2011, p. 342-352). 83 GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Constitutionalism Forever. IN: Finnish Yearbook of International Law. Vol. 21, p. 137-170, 2012. 84 Conclusão a que chega Galindo especificamente em relação ao Constitucionalismo (GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Constitutionalism Forever. IN: Finnish Yearbook of International Law. Vol. 21, p. 137-170, 2012, p. 161). particularidade da ordem constitucional global. Como afirma Allott, a constituição de cada sociedade é única, em função de sua própria história, realizações e sociedade, e o mesmo deve ser dito em relação ao constitucionalismo global.85 Desse modo, a analogia doméstica permitirá a construção de uma ideia constitucional autônoma no direito internacional, e não mera extensão do direito de determinado Estado ou de um grupo de Estados dominantes. Um direito internacional atento às diferenças, ainda que recorra a institutos, conceitos e princípios do direito doméstico, acabará por se emancipar de suas origens, e, então, já não será necessário voltar ao seu histórico e teórico ponto de partida.86 CONCLUSÃO Conforme Suganami, “'domestic analogy’ has not been delineated with sufficient precision in the ‘debate’ about it”87. O tema não pode, portanto, continuar a ser encarado como algo simples ou de somenos importância. Pelo contrário, necessita ser estudado como algo que perpassa diversas outras questões relacionados ao desenvolvimento e à efetividade do direito internacional. É crucial lançar luzes sobre a analogia doméstica em si, mas também sobre todas essas questões e desafios que lhes são subjacentes e pensar em maneiras e possibilidades de enfrentá-los. Mesmo depois de todos os argumentos contrários ao uso da analogia, conceitos de direito interno se integraram ao direito internacional de tal forma que é impossível eliminá-los ou modificá-los. Então se questiona: se é tão refutável a analogia doméstica, por que as correntes contrárias não conseguem eliminar os conceitos advindos do direito doméstico?88 Será que os críticos da utilização do direito doméstico como fonte de 85 ALLOTT, Philip. Eunomia: New order for a new word. Oxford: Oxford University Press, 1990. 86 FASSBENDER, Bardo. The United Nations Charter as the Constitution of the International Community. Leiden: Martinus Nijhoff, 2009, p. 77-115 (Chapter 5: The UN Charter as a Constitution). 87 SUGANAMI, Hidemi. The Domestic Analogy and World Order Proposals. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 9-39 (Chapter 1: The Domestic Analogy Debate: A Preliminary Outline e Chapter 2: The Range and Types of the Domestic Analogy), p. 23. 88 Eis a indagação de Lauterpacht: “how, after all, do conceptions of private Law enter into the corpus of international public law and remain embedded there while even the most sweeping positivism is unable to eliminate them?” (LAUTERPACHT, Hersch. Private Law Sources and Analogies of International Law. IN: LAUTERPACHT, Elihu (ed.). International Law: Being the Collected Papers of Hersch Lauterpacht. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 173-212, p. 194). direito internacional são realmente capazes de escrever ou decidir questões internacionais sem fazer menção a institutos do direito doméstico? A analogia doméstica, sem dúvida, é um recurso lógico. Todavia, exatamente pelo seu grau de complexidade, não deve ser atrelada, de maneira descuidada, às ideias de efetividade e unificação do direito internacional. Um direito constitucional único para o mundo inteiro corre o risco de ser um direito internacional que não dê espaço a diferenças. A depender do paradigma adotado, a analogia doméstica, assim como o constitucionalismo global, pode suscitar uma tirania no direito internacional. Não se pretende com isso rechaçar o uso desse recurso, mas propor que seja realizado levando-se em conta não apenas às semelhanças, mas às particularidades do interno e do internacional, pois é a partir das diferenças que se constroem sistemas, quer internos quer internacionais, de fato, efetivos. Desse modo, a analogia doméstica poderá, sim, ser um caminho para conferir efetividade ao direito internacional. REFERÊNCIAS ALLOTT, Philip. Eunomia: New order for a new word. Oxford: Oxford University Press, 1990. BYNKERSHOEK, Cornelius van. De Foro Legatorum Liber Singularis: A Monograph on the Jurisdiction Over Ambassadors in Both Civil and Criminal Cases. Translated by Gordon J. Laing. Oxford: Clarendon Press, 1946. BOTTICI, Chiara (2005). The Domestic Analogy and the Kantian Project of Perpetual Peace. Disponível em: <http://eprints.sifp.it/64/1/BOTTICI.html>. Acesso em: 18 mar. 2013. BULL, Hedley. The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics. London: Macmillan,
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