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CARDOSO O Brasil e a jurisdição do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o esgotamento dos recursos internos face à EC n.45 de 2004

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O BRASIL E A JURISDIÇÃO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS 
HUMANOS: O ESGOTAMENTO DOS RECURSOS INTERNOS FACE À EC nº 45 
DE 2004 
 
 Loni Melillo Cardoso* 
SUMÁRIO: Introdução; 1. A Organização dos Estados Americanos; 1.1 O 
Sistema Interamericano de direitos Humanos; 1.1.1 A Corte Interamericana 
de Direitos Humanos; 1.1.2 A Comissão Interamericana de Direitos 
Humanos; 2. O requisito de esgotamento dos recursos internos em direito 
internacional; 2.1 O requisito de esgotamento dos recursos internos no 
Sistema Interamericano de Direitos Humanos; 3. A Emenda Constitucional nº 
45 e o Incidente de Deslocamento de Competência; Considerações Finais; 
Referências bibliográficas. 
Resumo 
 
A recente integração do Brasil ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos 
Humanos foi celebrada por representar a inclusão formal perante a Comunidade 
Internacional da proteção desta categoria de direitos na agenda política do Estado 
brasileiro. Contudo, em 2004, uma reforma constitucional criou o Incidente de 
Deslocamento de Competência, instrumento processual que permite a transferência de 
processos relativos a grave violação dos direitos humanos para a Justiça Federal 
brasileira. O presente estudo visa analisar os impactos deste instrumento sobre a 
jurisdição que o Sistema Interamericano exerce sobre o Brasil, especialmente 
considerando a exigência do esgotamento de recursos internos, regra geral da proteção 
internacional dos direitos humanos. 
 
Palavras-chave: Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Corte Interamericana 
de Direitos Humanos; direitos humanos; esgotamento de recursos internos; Incidente de 
Deslocamento de Competência; Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos 
Humanos. 
 
* Membro do Centro de Direito Internacional - CEDIN. Bolsista de Iniciação Científica da Fundação de 
Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - FAPEMIG. 
Abstract 
 
Brazil’s recent integration to the Inter-American Human Rights System has been 
celebrated for representing the formal inclusion before the International Community of 
such category of rights in the Brazilian State’s political agenda. However, in 2004, a 
constitutional amendment created the Incident of Jurisdictional Displacement, an 
adjective instrument which allows the transference of grave-human-rights-violation-
related lawsuits to the Brazilian Federal Courts. The hereby presented study aims to 
analyze the impacts of such instrument upon the Inter-American System’s jurisdiction 
over Brazil, especially considering the imperative of exhaustion of local remedies, 
ground rule of the international human rights protection. 
 
Keywords: Inter-American Commission on Human Rights; Inter-American Court of 
Human Rights; human rights; exhaustion of local remedies; Incident of Jurisdictional 
Displacement; Inter-American Human Rights System. 
 
Introdução 
 
O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos surgiu na segunda metade 
do século XX como um desdobramento das propostas de integração regional no 
continente americano, já então consagradas pela Organização dos Estados Americanos 
(OEA). A adesão do Brasil a este sistema abriu a possibilidade de responsabilização 
internacional do Estado brasileiro por crimes relativos a violações dos direitos humanos, 
no âmbito regional. 
Dentre os requisitos de admissibilidade dos casos pelos órgãos do Sistema 
Interamericano, encontra-se o esgotamento de recursos internos, fundado no respeito à 
soberania nacional e sem o qual não se pode instaurar processo de investigação contra 
Estados integrantes daquele sistema. 
Em 2004, sob a égide da Reforma do Judiciário, foi promulgada no Brasil a Emenda 
Constitucional nº 45, que, entre outras modificações, criou no ordenamento jurídico 
brasileiro o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC). Sua instituição 
inaugurou a possibilidade de modificação de competência para julgar crimes de grave 
violação dos direitos humanos. 
Esta nova hipótese no direito processual pátrio resultou da constatação de que 
determinados fatores locais são capazes de influenciar negativamente o funcionamento 
do Poder Judiciário, impedindo que as violações dos direitos humanos dentro do 
território nacional fossem devidamente combatidas. O IDC vem corrigir tal leniência, de 
modo a evitar a possibilidade de o Brasil ser condenado no plano internacional por 
desrespeito aos direitos humanos e a evitar a exposição de uma imagem negativa do 
País internacionalmente. 
O presente estudo visa analisar os impactos da instituição do IDC no Brasil frente à 
efetividade da jurisdição do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Busca-se 
compreender se a criação de um novo instrumento processual no ordenamento brasileiro 
obstaculiza a admissão de casos oriundos do Brasil nos órgãos deste sistema, 
especialmente em face do requisito do esgotamento dos recursos internos. 
Para tanto, serão estudados o surgimento do Sistema Interamericano de Direitos 
Humanos no âmbito da OEA e a forma de julgamento de demandas por este sistema. 
Em seguida, o requisito do esgotamento de recursos internos será estudado em suas 
raízes e premissas básicas, para depois ser contextualizado enquanto condição de 
admissibilidade de julgamentos no Sistema Interamericano. 
Em seguida, passaremos ao exame do próprio Incidente de Deslocamento de 
Competência, seu contexto de criação e seus pressupostos, a fim de avaliar se a natureza 
do IDC afeta a o requisito de esgotamento dos recursos internos no Sistema 
Interamericano. 
Por fim, teceremos algumas considerações sobre os efeitos do Incidente de 
Deslocamento de Competência no âmbito do sistema regional americano de proteção 
aos direitos humanos, a fim de concluir se a instituição do IDC afeta o requisito de 
esgotamento dos recursos internos e, consequentemente, dificulta a admissão de casos 
provenientes do Brasil. 
 
1. A Organização dos Estados Americanos1 
 
As propostas de integração regional do continente americano remontam ao século XIX. 
Suas primeiras manifestações pontuais marcantes ocorreram em 1823 e em 1826. A 
primeira data corresponde ao nascimento da Doutrina Monroe, uma declaração 
unilateral originalmente destinada a integrar os Estados Unidos, mas que, 
posteriormente, serviu para justificar intervenções imperialistas norte-americanas nos 
países da América Latina, durante as primeiras décadas do século seguinte. A segunda 
diz respeito ao Congresso do Panamá, idealizado por Simón Bolívar, que reuniu as 
novas repúblicas latino-americanas a fim de discutir medidas para sustentar sua recém-
adquirida independência e regulamentar a defesa e a assistência mútuas. Os trabalhos 
desta conferência produziram o Tratado de União, Liga e Confederação Perpétua, que 
nunca entrou efetivamente em vigor. 
É apenas a partir da Primeira Conferência Internacional Americana, realizada em 
Washington em 1889, que se pode falar do surgimento de um sistema internacional de 
integração americana. Esta reunião fixou as bases do pan-americanismo e estabeleceu 
metas que até hoje orientam o funcionamento da OEA, como manutenção da paz no 
continente americano e a busca conjunta de desenvolvimento. 
Posteriormente, sete outras conferências internacionais americanas desenvolveram as 
discussões iniciadas em Washington2 no sentido da integração dos países americanos. 
Na Oitava Conferência, em Lima, os países reunidos criaram a possibilidade de 
convocação para Reuniões Extraordinárias dos Ministros das Relações Exteriores, com 
a finalidade de tratar temas relativos à Segunda Grande Guerra, já então iminente. 
Em 1945, no México, aconteceua mais importante destas reuniões, com vistas a 
reorganizar, consolidar e fortalecer o Sistema Interamericano no pós-guerra, e que 
resultou na Ata de Chapultepec. 
 
1 Cf. OLIVEIRA, Márcio Luis de (Coord.). O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. 
Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 96-101. 
2 Conferências sediadas no México em 1901; no Rio de Janeiro em 1906; em Buenos Aires em 1910; em 
Santiago do Chile em 1913; em Havana e 1928 e finalmente em Lima em 1938. 
Por fim, a Nona Conferência Internacional dos Estados Americanos, realizada em 
Bogotá em 1948, produziu a Carta da Organização dos Estados Americanos3, o Tratado 
Americano de Soluções Pacíficas, também conhecido como Pacto de Bogotá e a 
Declaração Interamericana de Direitos e Deveres do Homem. 
A Carta de 1948 foi modificada, mediante Protocolos de Reforma, em quatro ocasiões: 
Buenos Aires, 1967; Cartagena das Índias, 1985; Washington, 1992; Manágua, 19934. 
Em sua forma atual, a OEA congrega os trinta e cinco Estados independentes do 
continente americano, a saber: Antígua e Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, 
Belize,Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dominica, El 
Salvador, Equador, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Peru, República 
Dominicana, Saint Kitts e Nevis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Suriname, 
Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. Além destes, a organização concedeu o status 
de observador permanente a 67 Estados e à União Europeia5. 
 
1.1 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos 
 
A Nona Conferência Internacional dos Estados Americanos, em 1948, produziu a 
Declaração Interamericana de Direitos e Deveres do Homem, que antecede em meses a 
Declaração Universal dos Direitos do Homem. Este documento pioneiro no continente 
americano marca o interesse dos países reunidos em defender os direitos humanos 
enquanto valor fundante da comunidade internacional em construção. Nela se encontra 
o embrião para a Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José da 
Costa Rica”), assinada em 1969 e que entrou em vigor em 19786. 
A Convenção Americana de Direitos Humanos, por sua vez, é o principal instrumento 
do sistema americano de proteção aos direitos humanos. Sua instituição marca, 
historicamente, o desenvolvimento de um aparato jurídico internacional americano para 
 
3 Aprovadas pelo Decreto Legislativo n. 64, ratificada em 13 de dezembro de 1951 e promulgada pelo 
Decreto n. 30.544, de 14 de fevereiro de 1952. 
4 Disponível em <http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_historia.asp>, consulta em 15/01/2013. 
5 Disponível em <http://www.oas.org/pt/sobre/quem_somos.asp>, consulta em 03/01/2013. 
6 A Convenção Americana de Direitos Humanos foi tardiamente ratificada pelo governo brasileiro em 25 
de setembro de 1992. 
proteção dos direitos humanos. Funda-se ali um regime jurídico específico para a 
proteção dos direitos humanos no âmbito da OEA 7 , de modo a dividir o sistema 
americano de direitos humanos em dois regimes: um, geral, oriundo da Carta da 
Organização dos Estados Americanos de 1948; outro, mais específico, baseado na 
própria Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969. O regime decorrente da 
Convenção Americana, mais minucioso e mais adequado aos objetivos do presente, será 
o único sobre o qual lançaremos nosso olhar. 
Em sua primeira parte (artigos 1º a 32) a Convenção Americana estabelece os direitos 
que os Estados contratantes se propõem a preservar. Segundo Flávia Piovesan, nota-se 
certa semelhança entre este conjunto de direitos e aquele previsto no Pacto Internacional 
dos Direitos Civis e Políticos8. Deste universo de direitos protegidos, destacam-se: o 
direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito a não ser submetido a 
escravidão, o direito à liberdade, o direito a um julgamento justo, o direito a 
compensação em caso de erro judiciário, o direito a privacidade, o direito a liberdade de 
consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e expressão, o direito à 
resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome, o direito à 
nacionalidade, o direito à liberdade de movimento e residência, o direito de participar 
do governo, o direito à igualdade perante a lei o direito à proteção judicial. 
Tem-se aí um avanço notável na proteção dos direitos humanos, uma vez que o número 
de direitos protegidos pela Convenção é significativamente maior do que o de outros 
dispositivos internacionais. Além disso, o professor e ex-juiz da Corte Internacional de 
Justiça Thomas Buergenthal destaca que a Convenção estabelece dois tipos de 
compromisso para os Estados: o dever negativo de não violar os direitos ali 
estabelecidos paralelo ao dever positivo de promover tais direitos e criar mecanismos 
que permitam zelar por eles, nos termos do “desenvolvimento progressivo” dos direitos 
humanos estabelecidos no artigo 26 da Convenção9. 
 
7 Cf. GOMES, Luiz Flávio. PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos 
Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 29. 
8 Op. cit. p. 30; Pacto Internacional de Direitos Políticos, aprovado pela Assembleia Geral das Nações 
Unidas em 16 de dezembro de 1966, em vigor na ordem internacional desde 1976 e em vigor para o 
Brasil desde 1992. 
9 BUERGENTHAL, Thomas. The inter-american system for the protection of human rights, in MERON, 
Theodor (editor), Human rights in international law - Legal and policy issues. Oxford: Clarendon Press, 
1984. p. 441. 
A segunda parte da Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece o aparato 
jurídico específico para o monitoramento e a implementação dos direitos por ela 
enunciados 10 . Tal aparato compõe-se da Comissão Interamericana de Direitos 
Humanos11 e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos12. 
 
1.1.1 A Corte Interamericana de Direitos Humanos 
 
Órgão propriamente jurisdicional do Sistema Interamericano de proteção dos Direitos 
Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos é composta de sete membros, 
juízes, eleitos a título pessoal pelos Estados-membros da Convenção Americana. Os 
juízes tem o poder de produzir sentenças de caráter obrigatório para os países-membros 
da OEA, em matéria de direitos humanos. 
A competência da Corte Interamericana se apresenta bipartida: é contenciosa ao mesmo 
tempo que consultiva. A função contenciosa, ou jurisdicional se rege pelos artigos 61 a 
63 da Convenção, ao passo que a função consultiva se enquadra ao artigo 64 daquele 
dispositivo. A Corte exerce a primeira quando resolve as controvérsias relativas à 
interpretação ou aplicação da Convenção Americana, ou quando decide disputas 
resultantes de denúncias de violação da Convenção por um Estado-parte. Exerce a 
segunda quando interpreta a Convenção ou outros tratados de direitos humanos 
aplicável aos membros da OEA, sem, contudo, adjudicar para nenhum fim específico13. 
É facultado a qualquer Estado-membro da OEA, independentemente de sua participação 
na Convenção Americana de direitos humanos, solicitar parecer consultivo da Corte 
relativo à interpretação da Convenção ou de qualquer outro tratado relativo aos direitos 
humanos que alcance os Estados Americanos. É mesmo possível que a Corte opine a 
 
10 GOMES, Luiz Flávio. PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos 
Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 32-33. 
11 Criada por resolução da Quinta Reunião de Consulta dos Ministrosdas Relações Exteriores em 
Santiago, Chile, em 1959, reunindo-se pela primeira vez em 1960 e com sede em Washington D.C., 
Estados Unidos da América; a Comissão foi incorporada pelo regime jurídico da Convenção Americana e 
hoje o integra como parte fundamental. 
12 Criada em 1969 e em funcionamento desde 1979 em San José da Costa Rica. 
13 Cf. BUERGENTHAL, Thomas. The inter-american system for the protection of human rights, in 
MERON, Theodor (editor), Human rights in international law - Legal and policy issues. Oxford: 
Clarendon Press, 1984. p. 460. 
respeito da compatibilidade entre preceitos da legislação doméstica e instrumentos 
internacionais. Desde sua fundação, a Corte já proferiu vinte e uma opiniões 
consultivas14 sobre temas importantes para dar maior substância a aspectos essenciais 
da Convenção, a exemplo da possibilidade de se instituir pena de morte em Estados 
Americanos 15 , do habeas corpus e das garantias fundamentais 16 e de exceções ao 
esgotamento dos recursos internos17, para destacar apenas alguns exemplos. 
No plano contencioso, ao revés, a competência da Corte para julgar casos se limita 
àqueles Estados que reconheçam expressamente a Convenção Americana e a ela se 
obriguem. Vale lembrar, também, que a regra do consentimento também se aplica à 
Corte Interamericana de Direitos Humanos: a ratificação da Convenção Americana não 
implica no reconhecimento da competência jurisdicional da Corte. Apenas depois de 
manifestar formalmente que reconhece a jurisdição da Corte Interamericana para casos 
contenciosos poderá o Estado se ver obrigado por decisão daquele órgão18. 
O processo contencioso no âmbito da Corte depende de iniciativa de Estados ou da 
Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Nos termos do artigo 61, 1 da 
Convenção Americana, apenas estes entes têm legitimidade para submeter casos à 
decisão da Corte. Esta, então, fará um juízo de admissibilidade da causa, observando os 
requisitos de competência estabelecidos pela Convenção Americana e, caso seja 
determinada sua competência deliberativa para a questão, a Corte examinará, a denúncia 
de violação dos direitos humanos. Determinada a violação, a Corte terá poder para 
adotar as medidas necessárias para a reparação do direito violado, ou para estipular uma 
compensação justa a ser paga pelo Estado infrator à vítima. 
 
 
14 Todas disponíveis em <http://www.corteidh.or.cr/opiniones.cfm>, consulta em 16/01/2013. 
15 Corte IDH. Restricciones a la Pena de Muerte (Arts. 4.2 y 4.4 Convención Americana sobre Derechos 
Humanos). Opinión Consultiva OC-3/83 del 8 de septiembre de 1983. Serie A No. 3. 
16 Corte IDH. El Hábeas Corpus Bajo Suspensión de Garantías (arts. 27.2, 25.1 y 7.6 Convención 
Americana sobre Derechos Humanos). Opinión Consultiva OC-8/87 del 30 de enero de 1987. Serie A No. 
8. 
17 Corte IDH. Excepciones al Agotamiento de los Recursos Internos (arts. 46.1, 46.2.a y 46.2.b, 
Convención Americana sobre Derechos Humanos). Opinión Consultiva OC-11/90 del 10 de agosto de 
1990. Serie A No. 11. 
18 Atualmente, vinte e dois Estados reconhecem a competência jurisdicional da Corte, quais sejam, 
Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, 
Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Trinidad 
e Tobago, Uruguai e Venezuela; o Brasil reconheceu a competência jurisdicional da Corte para julgar 
casos brasileiros apenas em 10 de dezembro de 1998, e casos anteriores a esta data não podem ser objeto 
de deliberação pela Corte. 
1.1.2 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos 
 
Composta por sete membros eleitos a título pessoal pela Assembleia Geral da OEA19, a 
Comissão Interamericana de direitos humanos é órgão de natureza “quase 
jurisdicional” 20 , cuja função precípua é promover a observância e a proteção dos 
direitos humanos na América. Seu perfil de tarefas é destacadamente multifacetado, 
envolvendo-se com vítimas, Estados e organizações, em um espectro pessoal e material 
muito mais amplo. Este caráter permite que a Comissão possa atuar na proteção dos 
direitos humanos em um âmbito muito mais amplo do que aquele da Corte. 
Para tanto, a Comissão se encarrega de fazer recomendações aos Estados-partes, no 
sentido da adoção de medidas que garantam os direitos humanos defendidos não só pela 
Convenção, mas também pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem. 
Ela também se incumbe de preparar estudos e relatórios necessários, requerer 
informações necessárias junto aos governos, no tocante às medidas adotadas para a 
devida aplicação da Convenção e preparar relatórios anuais para a Assembleia Geral da 
Organização dos Estados Americanos. 
Além dessas, merece grande destaque a função da Comissão de examinar as petições 
encaminhadas por indivíduos, grupo de indivíduos ou mesmo entidades não-
governamentais que denunciem violação de direitos consagrados pela Convenção por 
Estados que dela sejam partes 21 . O consentimento à possibilidade de análise das 
petições individuais pela Comissão deriva automaticamente da ratificação da 
Convenção Americana de Direitos Humanos22. 
Neste ponto, importa destacar que o direito de petição individual à Comissão é fator de 
dilatação da proteção conferida aos direitos humanos no sistema americano, uma vez 
que não é necessária a ação estatal para que o indivíduo se faça representar junto às 
 
19 Observe-se que, ao contrário do que ocorre com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, não se 
exige que os Estados participem da Convenção Americana para que possam indicar membros da 
Comissão. 
20 SILVA, Roberto Luiz. A OEA enquanto organização internacional, In: O Sistema Interamericano de 
Proteção dos Direitos Humanos - Interface com o direito constitucional contemporâneo, OLIVEIRA, 
Márcio Luís de (coord.), Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 100. 
21 Cf. Convenção Americana de Direitos Humanos, artigos 41 e 44. 
22 No Brasil, este reconhecimento se deu a 25 de setembro de 1992, quando da ratificação da Convenção 
Americana pelo País. 
instituições do sistema. Conforme leciona Flávia Piovesan, o direito de petição 
individual evita que a solução das demandas fique à mercê de considerações políticas 
estatais que tendam a motivar uma ação ou inação governamental contrárias ao interesse 
de proteção dos direitos humanos23. 
Dessa forma, segundo o magistério de Hector Fix-Zamudio e a classificação de César 
Sepúlveda, identifica-se que a Comissão realiza as funções de natureza conciliadora, 
entre um governo e os grupos sociais que se sintam afetados nos direitos de seus 
membros; assessora, aconselhando aos governos que assim o solicitam a respeito de 
medidas adequadas pra a promoção dos direitos humanos; crítica, na medida em que 
informa sobre a situação dos direitos humanos em um Estado-membro da OEA, após 
receber os argumentos e as observações do governo interessado, havendo persistido as 
violações; legitimadora, quando um governo concorda em reparar as falhas de seus 
processos internos e corrige as violações alegadas, após receber da Comissão informe 
relativo a visita ou exame de caso; promotora, pois que realiza estudos a respeito de 
temas de direitos humanos para promover o respeito a estes; e protetora, quando 
intervém em casos urgentes, pedindo ao governo que venha a ser objeto de uma queixa 
que suspenda sua ação e ofereça informação sobre os fatos alegados24. 
No que tange à admissibilidade de demanda pela Comissão, exige-se a observância dos 
requisitos do artigo 46 da Convenção Americana, a saber: 
a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdiçãointerna, 
de acordo com os princípios de Direito Internacional geralmente 
reconhecidos; 
b) que [a demanda] seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir 
da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido 
notificado da decisão definitiva; 
c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro 
processo de solução internacional; e 
d) que, no caso do artigo 44 [caso de petição de pessoa, grupo de pessoas ou 
entidade não governamental], a petição contenha o nome, a nacionalidade, a 
profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante 
legal da entidade que submeter a petição25. 
 
23 GOMES, Luiz Flávio. PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos 
Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 41. 
24 Cf. Hector Fix-Zamudio. Protección jurídica de los derechos humanos. México: Comisión Nacional de 
Derechos Humanos, 1991. P. 152. 
25 Obtido em <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>, 
consultado em 16/01/2013. 
Observados os requisitos acima, bem como as exceções listadas no artigo 46, 2, realiza-
se o juízo de admissibilidade da demanda. Caso não se verifique causa de 
inadmissibilidade da petição, a Comissão solicita ao governo denunciado informações a 
respeito dos fatos, e procede a uma investigação e à oitiva do peticionário e do governo 
demandado. Até este estágio, a Comissão pode reconhecer que os motivos da petição 
não existem ou não subsistem, ou ainda que não se tenha cumprido requisito de 
admissibilidade, por exemplo, o esgotamento dos recursos internos. Neste caso, o 
processo é arquivado. 
Caso subsistam os motivos da ação, contudo, a Comissão procede a um exame apurado 
do assunto e, se necessário, à devida investigação dos fatos. 
Esclarecida a matéria, a primeira tentativa da Comissão é buscar a conciliação entre as 
partes. Caso tenha êxito, a Comissão elabora um informe a ser transmitido ao 
peticionário e aos Estados-partes da Convenção, com uma breve exposição dos fatos e 
da solução alcançada. Este informe será, posteriormente, publicado pela Secretaria da 
Organização dos Estados Americanos. 
No entanto, na possibilidade de se verem frustradas as tentativas de solução amistosa, a 
Comissão escreve um relatório contendo os fatos apurados e as conclusões alcançadas, a 
respeito da existência ou não de violação de direitos humanos pelo Estado demandado. 
Também é possível que o relatório contenha recomendações ao Estado em questão a 
respeito de medidas para solucionar a pendência. 
Decorridos três meses da publicação do relatório, e caso não se tenha alcançado uma 
solução eficaz, as partes podem empreender nova tentativa de solução ou encaminhar a 
questão à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Contudo, se, decorrido aquele 
prazo, não se verificar nenhuma destas duas hipóteses, cabe à Comissão formular, por 
maioria absoluta dos votos, sua própria opinião e suas conclusões sobre o caso. 
Ressalve-se que não há força obrigatória nesta decisão, uma vez que à Comissão não é 
conferido caráter propriamente jurisdicional, senão recomendatório. 
 
 
2. O requisito de esgotamento dos recursos internos em direito internacional26 
 
A exigência de esgotamento dos recursos internos, originalmente relacionada à 
atribuição de responsabilidade internacional a um Estado por danos causados a 
estrangeiros, é princípio clássico de direito internacional. Suas raízes remontam à 
prática de represálias na Idade Média e às intervenções, em tempos mais recentes, e 
autores da estirpe de Francisco de Vitoria, Alberico Gentili, Hugo Grotius, 
Bynkershoek, Wolff e Vattel já se debruçaram sobre o tema27. 
Fundada no respeito à soberania nacional - na medida em que restringe a possibilidade 
de um Estado responder por danos que não teve a oportunidade de reparar valendo-se de 
seu direito interno - a exigência de esgotamento dos recursos internos permitiu, 
historicamente, privilegiar alternativas pacíficas de solução de litígios relativos à 
proteção diplomática em detrimento do uso da força28. De fato, sua cristalização gradual 
por práticas estatais, entre os séculos XIX e XX29, e seu expresso reconhecimento pela 
Corte Internacional de Justiça enquanto costume internacional para casos de proteção 
diplomática 30 foram determinantes para a harmonia e a estabilidade das relações 
diplomáticas como as conhecemos hoje. 
Durante a segunda metade do século XX, o emergente direito internacional de proteção 
aos direitos humanos adotou esta regra, que hoje se encontra integrada aos requisitos de 
admissibilidade da maior parte dos sistemas de proteção aos direitos humanos em vigor. 
De fato, Cançado Trindade observa que esta “transplantação” 31 exige uma interpretação 
diferenciada. A presunção em favor da proteção internacional dos direitos fundamentais 
individuais e a adoção desta regra nos ordenamentos de proteção aos direitos humanos - 
tanto no plano global quanto nos sistemas regionais - implica na aplicação da regra do 
 
26 Para um entendimento exaustivo, vide a célebre obra de A. A. Cançado Trindade, The Application of 
the Rule of Exhaustion of Local Remedies in International Law: Its Rationale in the International 
Protection of Human Rights. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. 
27 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito 
Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1984. p. 23-24. 
28 Para um estudo aprofundado das práticas estatais relativas ao tema, cf. A. A. Cançado Trindade, The 
Rule of Exhaustion of Local Remedies in Internation Law (PhD Thesis), Universidade de Cambridge, 
1977, p. 54-107. 
29 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito 
Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1984. p.44-45. 
30 Cf. Caso Interlandel (Exceções preliminares), ICJ Reports, 1959. P. 27. 
31 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito 
Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1984, p. 112. 
esgotamento dos recursos internos em caráter menos rigoroso que no da proteção 
diplomática; isto porque, nestes sistemas, a proteção de direitos fundamentais é objetivo 
comum à comunidade internacional, ao passo que a proteção diplomática diz respeito 
tão-somente à conveniência do Estado em exercê-la. Assim, a proteção aos direitos 
humanos se configura como núcleo do internacional contemporâneo, mas a proteção 
diplomática permanece em exercício por meio de relações interestatais travadas 
discricionariamente. O imperativo de proteção aos direitos da pessoa humana 
reconhecido pelas vertentes mais avançadas do constitucionalismo e do direito 
internacional determina uma reavaliação da regra no sentido de maximizar a eficácia da 
proteção dos direitos humanos. Assim, se no caso da proteção diplomática a regra tem o 
caráter de objeção substantiva que inviabiliza qualquer ato na esfera internacional, no 
caso da proteção dos direitos humanos sua natureza é meramente processual, uma 
proteção dilatória ou temporal, não obstando (nem podendo obstar) ao exercício tão 
efetivo quanto possível da proteção dos direitos humanos32. 
 
2.1 O requisito de esgotamento dos recursos internos no Sistema Interamericano 
de Direitos Humanos 
 
Nos termos do artigo 46, a) da Convenção Americana de Direitos Humanos, para que 
uma petição ou comunicação seja admitida pela Comissão, “será necessário que hajam 
sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo comos 
princípios de direito internacional geralmente reconhecidos”. Neste dispositivo, a 
Convenção Americana proclama a exigência de esgotamento dos recursos internos para 
que se ingresse com demandas no sistema. Uma vez que a Comissão é responsável pela 
totalidade dos casos decididos pela Corte até hoje, a imposição de tal requisito é, 
certamente, um fator essencial para que a jurisdição interamericana de direitos humanos 
alcance os Estados. 
Recursos internos devem ser entendidos, no âmbito do sistema jurídico internacional 
americano, como os recursos legais que sejam acessíveis para indivíduos ou grupos 
 
32 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito 
Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1984. p. 244-245. 
perante juízes e tribunais nacionais33. Quando preenche o formulário de denúncia junto 
à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o peticionário deve demonstrar que o 
caso tenha passado por todas as instâncias judiciais do direito interno. Assim, deve-se 
informar, no formulário, todas as medidas tentadas até então junto ao poder judiciário 
ou a órgãos administrativos do Estado responsável a fim de denunciar e reparar as 
violações alegadas, e anexar as respectivas decisões. Se houve impedimento para o 
esgotamento dos recursos internos, tal como impedimento ao uso da justiça, falta de 
recurso cabível ou demora na decisão, deve-se indicar o motivo e explicá-lo. Caso não 
se demonstre o esgotamento dos recursos internos, a demanda em questão poderá ser 
rejeitada pela Comissão durante a apreciação preliminar da denúncia (cf. supra). 
Neste ponto, contudo, importa observar que o Estado não pode valer-se da regra do 
esgotamento dos recursos internos em má-fé, com o propósito único de impedir o 
acesso da vítima à jurisdição internacional. Conforme os artigos 30, §§ 4 e 7; artigo 37, 
§3; e artigo 38 do Regulamento da Convenção Interamericana de Direitos Humanos34, o 
ônus de demonstrar quais recursos internos deveriam ter sido esgotados recai sobre o 
Estado nos casos em que a vítima alegue não ter meios de provar tal esgotamento. Além 
disso, caso o Estado não alegue em sua defesa que não houve o esgotamento dos 
recursos internos, a Comissão pode interpretar a renúncia tácita a este requisito, não 
podendo o Estado vir posteriormente a alegá-lo em seu benefício35. 
Também não basta a existência de recursos internos meramente formais. Os recursos 
levantados devem ser eficazes conforme estabelecem os artigos 8 e 25 da Convenção 
Americana. Quando os recursos internos em questão não se apresentarem dotados de tal 
eficácia para impedir violação aos direitos humanos, a possibilidade de valer-se deles 
não permitirá que a Comissão rejeite o caso em questão. Observe-se que o Estado que 
não garante recursos eficazes e efetivos incide em violação da Convenção Americana e 
é passível de responsabilização internacional por não garantir o devido processo legal à 
vítima. Tal situação afronta diretamente o que estabelecem os artigos 1.1, 8 e 25 da 
 
33 GOMES, Luiz Flávio. PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos 
Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 71-72. 
34 Disponível em <http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/u.Regulamento.CIDH.htm>, consulta em 
19/01/2013. 
35 Cf. Relatório 11/92, Caso 10.284, contra El Salvador, de 04/02/1992, Relatório Anual da Comissão 
Interamericana de Direitos Humanos, 1991, Washington D.C, 1992, p. 139; também Corte Interamericana 
de Direitos Humanos, caso Gangaram Panday, exceções preliminares, sentença de 04/12/1991, §§ 39 e 
40. 
Convenção Americana, e atinge a proteção concedida ao exercício de direitos da vítima, 
não sendo tolerada no Sistema Interamericano. 
Naturalmente, quando se questionar o exaurimento dos recursos internos, é possível 
defrontar-se com certas exceções. Cançado Trindade oferece como exemplos gerais os 
casos de denegação da justiça, atrasos indevidos e irregularidades processuais graves36. 
A Convenção Americana define as possibilidades de exceção à regra dos recursos 
internos em seu artigo 46, § 2, que estabelece: 
 
2. As disposições das alíneas a e b do inciso 1 deste artigo [exigência de 
esgotamento de recursos internos e ausência de litispendência internacional, 
respectivamente] não se aplicarão quando: 
a. não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido 
processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido 
violados; 
b. não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o 
acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de 
esgotá-los; e 
c. houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos. 
 
Em geral, a maioria das denúncias apresentadas à Comissão fundamenta-se em tais 
possibilidades, tendo em vista que o processo histórico de transição democrática nos 
países da América Latina deixou falhas estruturais graves no acesso dos indivíduos aos 
sistemas judiciais, dando azo a ampla impunidade nos casos de violação dos direitos 
humanos. A morosidade judicial, por exemplo, é um dos principais motivos de violação 
impune dos direitos humanos na América Latina. Por esta razão o processo judicial 
extremamente longo, ainda que não concluído, é encarado como violação, pelo Estado, 
das suas obrigações internacionais e dos direitos consagrados na Convenção Americana, 
sujeitando o Estado a responsabilização internacional e não podendo este alegar 
 
36 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito 
Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1984, p. 23-25. 
inadmissibilidade da demanda por não-esgotamento de esgotamento dos recursos 
internos37. 
 
3. A Emenda Constitucional nº 45 e o Incidente de Deslocamento de 
Competência 
 
A ratificação da Convenção Americana, em 1992, e a aceitação da jurisdição 
compulsória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 1998, marcam um 
processo de integração plena do Brasil ao regime jurídico do Sistema Interamericano de 
Proteção dos Direitos Humanos, cuja consequência última será a possibilidade de o 
Estado brasileiro se ver processado e julgado internacionalmente por crimes contra os 
aqueles direitos. 
A responsabilização internacional que decorre da condenação por crime contra os 
direitos humanos, recai sobre o Estado, compreendendo a União, os Estados federados, 
o Distrito Federal e os municípios. Na prática, contudo, o ônus da responsabilidade 
internacional sempre recai sobre a União38, nas formas da compensação designada para 
o violado e do desprestígio internacional que decorre de condenação por violar direitos 
humanos. O prejuízo será da União, ainda que o ato violador dos direitos humanos seja 
de exclusiva competência judiciária dos Estados da federação, dos municípios ou do 
Distrito Federal, nos moldes que estabelece a Constituição brasileira. 
Neste ponto, importa destacar que o direito internacional não admite que arranjos 
relativos à ordem interna eximam o Estado de cumprir suas obrigações internacionais. 
Temos tal disposição no artigo 27 da Convenção de Viena de 1969 e no artigo 28 da 
Convenção Americana de Direitos Humanos. Assim, no Sistema Interamericano, a 
punição por desrespeito aos direitos humanos recairá invariavelmente sobre a totalidade 
 
37 A jurisprudência do Sistema Interamericano vem trabalhando o conceitode prazo razoável para solução 
do caso por meios de direito interno. O grau de efetividade destes meios e a possibilidade de excessiva 
demora processual dependem de critérios como a complexidade do assunto, a atividade processual da 
parte interessada e a conduta das autoridades judiciais responsáveis pelo procedimento, seja ele judicial 
ou administrativo. Para desenvolvimento do tema, vide caso Genie Lacayo, Corte Interamericana de 
Direitos Humanos, sentença de 20/01/1997. 
38 PIOVESAN, Flávia. Federalização dos Crimes contra os direitos humanos, p. 80. 
do Estado, qualquer que seja a origem da violação e não importando a repartição de 
competências interna adotada ele39. 
Assim, até 2004, a situação da União no Brasil era paradoxal: estava impedida 
constitucionalmente de investigar e julgar crimes relativos a violações de direitos 
humanos, mas estava sujeita, internacionalmente, a responsabilização por eles. O 
movimento de reforma do judiciário, que culminaria com a edição da Emenda 
Constitucional nº 45/2004, fez uma primeira tentativa de sanar esta controvérsia em 
2002, quando a Lei nº 10.446/200240 foi editada, dispondo que: 
 
Art. 1º: Na forma do inciso I do § 1o do art. 144 da Constituição, quando 
houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão 
uniforme, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, 
sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados 
no art. 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis 
dos Estados, proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações 
penais: 
(...) 
III – relativas à violação a direitos humanos, que a República 
Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados 
internacionais de que seja parte; 
 
Fica aí consagrada a possibilidade de a Polícia Federal interferir em investigações 
relativas a violação de direitos humanos, um primeiro esforço em coibir violações dos 
direitos humanos e evitar responsabilização internacional. Trata-se de um primeiro 
esforço do Estado brasileiro em se adequar às disposições do sistema americano, de 
modo a combater com mais efetividade as agressões aos direitos humanos. 
 O advento da Lei nº 10.446, contudo, ainda não foi suficiente para conferir proteção 
desejável aos direitos humanos, uma vez que, não raro, o trabalho concreto de órgãos de 
investigação e de aplicação da justiça é obstruído. O infeliz arcabouço social do Brasil 
permite que, especialmente no interior do país, as funções do Judiciário sejam barradas 
pela força de agentes de poder locais cuja influência negativa se consolidou 
 
39 Para explicação exaustiva dentro da jurisprudência do Sistema Interamericano, vide CORTE IDH. La 
Ultima Tentación de Cristo (Olmedo Bustos y otros vs. Chile). 5.2.2001, série C, §§ 22 e 23, voto do Juiz 
Cançado Trindade. 
40 Publicada no Diário Oficial da União em 8 de maio de 2002. 
historicamente e cujo controle sobre os recursos em suas regiões é capaz de acobertar 
crimes dos mais diversos. 
Dada a importância da proteção aos direitos humanos, percebeu-se que seria desejável 
uma intervenção federal não apenas na investigação, mas também na execução do 
processo judicial. A Justiça Federal brasileira, diferentemente das Justiças Estaduais, 
não depende de recursos oriundos do próprio Estado federado - e que podem ser 
dificultados por lideranças regionais -, e é composta por pessoas que vem de partes 
diversas do país. Esta configuração torna mais difícil que se intimide ou que se obstrua 
o trabalho de um juiz federal no Brasil, o que, por sua vez, torna muito mais efetiva a 
proteção dos direitos humanos exercida por esta categoria de magistrado. 
Assim, com o interesse de fortalecer a responsabilidade interna da União para com os os 
direitos humanos, bem como no intuito de equilibrar a responsabilidade interna da 
União com a sua responsabilidade internacional, foi aprovada a Emenda Constitucional 
n. 45, de 2004, que, entre outras coisas, modifica o artigo 109 da Constituição Federal 
de modo a criar o Incidente de Deslocamento de Competência. Dita a nova redação do 
artigo 109: 
 
Art. 109. Aos juízes federais cabe processar e julgar: 
(..) 
V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo; 
(...) 
§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-
Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de 
obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos 
quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de 
Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de 
deslocamento de competência para a Justiça Federal. 
 
De pronto, observa-se que são requisitos do IDC: a) existência de grave violação de 
direitos humanos; b) a necessidade de dar efetividade a obrigações assumidas pelo 
Brasil mediante tratados internacionais de direitos humanos; c) incapacidade (oriunda 
de inércia, negligência, falta de vontade política, de condições materiais e pessoais) de o 
Estado federado, por suas instituições a autoridades, levar a cabo, em toda a sua 
extensão, a persecução pena 41 . Ressalta-se ainda que, para o Superior Tribunal de 
Justiça, o incidente é medida subsidiária, somente se evidenciando sua interposição na 
hipótese de inércia da autoridade judiciária estadual, a justificar a excepcionalidade da 
transferência do julgamento de um Juízo para outro. 
A legitimidade para propositura de IDC é sempre do Procurador Geral da República, 
chefe do Ministério Público da União, e pode ser exercida em qualquer fase da 
investigação ou do processo, inclusive após o trânsito em julgado da sentença. 
Ressalva-se que o IDC não pode ser a primeira medida tomada em relação a uma 
violação dos direitos humanos, senão que ele depende de negligência ou de 
descumprimento das formas processuais ordinárias42. 
O julgamento se dará pela 3ª Seção do Supremo Tribunal de Justiça, compreendendo os 
ministros da 5ª e da 6ª turmas daquele tribunal, conforme Resolução n. 06/05 da 
Presidência do STJ. 
Importante ressaltar a dupla natureza jurídica e política do IDC: jurídica na medida em 
que modifica o processo penal brasileiro, entre instituições de mesma instância (justiça 
estadual e justiça federal, ambas na primeira instância); política porque pretende evitar 
que o Estado passe pelo constrangimento de se ver julgado pela Comunidade 
Internacional em matéria de desrespeito aos direitos humanos. 
 
4. Considerações finais 
 
A atuação mais recente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e de seu 
órgão irmão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, permite identificar 
tendências positivas na proteção aos direitos humanos na América. Ainda que recente, o 
Sistema Interamericano se encontra em franca consolidação, e, conforme se amplia o 
reconhecimento a suas instituições, também se consolida a possibilidade de obter 
reparação por violação dos direitos humanos no âmbito internacional, quando houver 
 
41 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção, IDC n. 00001. Relator Ministro Arnaldo Esteves 
Lima, julgado em 8 de junho de 2005. 
42 GOMES. Federalização dos crimes graves: o que é isso? Mundo Legal, 2006. 
omissão ou erro das autoridades nacionais, abrindo considerável espaço para avanços 
futuros. 
Neste quesito, o compromisso recente do Brasil com o Sistema Interamericano é 
positivo para os cidadãos, na medida em que consagra o objetivo do Estado republicano 
brasileiro de primar pela observância dos direitos humanos, conforme estabelece a 
Constituição;este mesmo compromisso, contudo, representa a possibilidade de 
responsabilização internacional do Estado, desvantajosa do ponto de vista diplomático. 
Tendo em vista a desvantagem de se ver processado internacionalmente, o Estado 
brasileiro buscou, com a Lei nº 10.446/2002 e com a Emenda Constitucional nº 
45/2004, criar novos recursos internos de proteção aos direitos humanos, de modo a 
evitar a imagem negativa que seria atribuída ao Estado caso fosse ele sujeito de 
sucessivas demandas internacionais por violação dos direitos humanos. Dado o requisito 
de esgotamento dos recursos internos para admissão do caso na Comissão 
Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil, por meio das reformas implementadas 
por estas novas normas, visa, sobretudo, impedir que casos cheguem à Comissão pela 
criação de novas possibilidades processuais internas. 
O escopo do Incidente de Deslocamento de Competência, portanto, é o de criar uma 
nova possibilidade de julgamento para os crimes contra os direitos humanos, a fim de 
que tais casos sejam julgados pelos recursos jurisdicionais internos, e não pelos 
organismos internacionais. Uma vez que o direito internacional dos direitos humanos 
prima pela subsidiariedade aos recursos internos eficazes, o IDC, ao criar uma nova 
possibilidade de recurso interno eficaz, reduz a possibilidade de responsabilização 
internacional para o Estado brasileiro. 
Isto não quer dizer que a instituição do IDC seja negativa: a existência de um 
instrumento processual excepcional certamente vale de estímulo à atuação das 
autoridades estaduais brasileiras e, quando estas venham a falhar, garante que os 
cidadãos não estejam desprotegidos, pois lhes garante a possibilidade de transferir o 
caso para a Justiça Federal, processo certamente mais ágil do que acionar organismos 
internacionais. De fato, ao se propor a solucionar casos de ofensa aos direitos humanos 
na ordem interna, o Brasil marca a história de seu processo democrático, por meio do 
dever autoimposto pelo Estado de zelar, presentemente e no futuro, pela observância 
dos direitos humanos, bem como de evitar que a violação destes direitos fique de tal 
forma impune que se faça necessária intervenção internacional. 
 
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