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59 Antônio Augusto Cançado Trindade e a Humanização do Direito Brasileiro – I – Honrado com o convite para participar do Seminário A Função Judicial no Direito Interna- cional e a Humanização do Direito, evento aca- dêmico promovido pela Faculdade de Direito Mil- ton Campos, em Belo Horizonte, nos dias 2, 3 e 4 de maio de 2011, em homenagem ao professor doutor Antônio Augusto Cançado Trindade, juiz da Corte Internacional de Justiça, apresento, em seguida, a comunicação que tive o prazer de expor no painel intitulado “Direito Internacional Públi- co e a Humanização do Direito Brasileiro”. Caríssimo Professor Doutor Antônio Augus- to Cançado Trindade, senhoras e senhores. Preliminarmente, desejo salientar o que é do conhecimento de todos os presentes: é impossí- vel, nos limites desse seminário, apresentar uma completa avaliação da contribuição doutrinária e jurisprudencial do nosso homenageado para o processo de humanização Direito Internacional e, da mesma forma, do Direito Brasileiro. Mestre incomparável, que, por sua obra doutrinária e por sua produção jurisprudencial, se destaca, inter- nacionalmente, como um dos mais importantes construtores do Direito Internacional contem- porâneo, Antônio Augusto Cançado Trindade foi juiz da Corte Interamericana de Direitos Huma- nos, entre 1994 e 2008. Sua atuação nesse Tri- bunal, do qual foi presidente entre 1999 e 2004, foi memorável e fundamental para a construção, consolidação e efetividade do Sistema Interameri- cano de Proteção dos Direitos Humanos.1 Eleito de forma consagradora, em 2008, pela Assembléia Geral e pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, juiz do mais alto tribunal do mundo – a Corte Internacional de Justiça –, Antônio Augus- to Cançado Trindade, a exemplo de sua atuação na Corte Interamericana, prossegue revolucio- nando o Direito Internacional por meio de co- rajosos e substanciosos votos, trazendo novos ares à velha Corte, tradicionalmente acomodada e conservadora, portanto, infensa aos apelos so- ciais da contemporaneidade. Em relação ao que acabamos de afirmar, assevero que, ainda hoje, la- mentavelmente, em diversos Tribunais nacionais e internacionais e, da mesma forma, no âmbito das comunidades acadêmicas do mundo, levados por arraigada filiação ao positivismo voluntarista, magistrados e autores de obras de Direito Interna- cional se mostram, em razão disso, incapazes de entender e acompanhar as mudanças sociais, po- líticas e culturais do nosso tempo. Não percebem a extensão das transformações que se operaram na natureza do Direito Internacional, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da progressiva consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos.2 Em seu voto concordante na Opinião Consultiva 16/99 da Corte Interame- ricana de Direitos Humanos, Cançado Trindade ensina o seguinte: La corriente positivista-voluntarista, con su obsesión con la autonomía de la voluntad de los Estados, al buscar cristalizar las normas de ésta emanadas en un determinado mo- mento histórico, llegó al extremo de concebir el derecho (positivo) independientemente del tiempo: de ahí su manifiesta incapacidad de acompañar los constantes cambios de las es- tructuras sociales (en los planos tanto interno como internacional), por no haber previsto los nuevos supuestos de hecho, no pudiendo, por lo tanto, dar respuesta a ellos; de ahí su incapacidad de explicar la formación histórica de las reglas consuetudinarias del derecho in- ternacional. Las propias emergencia y conso- lidación del corpus juris del Derecho Interna- cional de los Derechos Humanos se deben a la reacción de la conciencia jurídica universal ante los recurrentes abusos cometidos contra ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE E A HUMANIZAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO · · · · · · · · · · · · · · · · · · · Antônio Celso Alves Pereira Professor de Direito Internacional dos Programas de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Gama Filho; Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, v. 12, n. 12, 2012. 60 Antônio Celso Alves Pereira los seres humanos, frecuentemente convali- dados por la ley positiva: con esto, el Derecho vino al encuentro del ser humano, destinata- rio último de sus normas de protección.3 Nesse contexto, devo salientar o fato de que, nos últimos anos, vêm tramitando na Corte Inter- nacional de Justiça casos realmente diversificados, diferentes das matérias que, tradicionalmente, têm sido submetidas pelos Estados ao julgamen- to daquele Tribunal, como se pode observar, por exemplo, entre outros: Declaração Unilateral de Independência do Kosovo; Guiné versus Repúbli- ca Democrática do Gongo – violação de direitos fundamentais; Geórgia versus Rússia – violações da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; Bélgica versus Senegal – demanda por medidas provisórias em matéria de jurisdição universal; Alemanha versus Itália, sobre imunidade de jurisdição do Estado Alemão diante de tribunais italianos, envolvendo Direito Internacional Público Geral e Regional, Direito Internacional Privado e Direito Comuni- tário. Recomendo aos presentes e a todos que se interessam, estudam ou pesquisam Direito Inter- nacional, que procurem conhecer os revolucioná- rios votos exarados nesses casos pelo juiz Antônio Augusto Cançado Trindade, nos quais facilmente se pode identificar a sua preocupação com a dinâ- mica evolutiva e o processo de construção de um novo Direito Internacional, por ele muito bem ca- racterizado como um novo jus gentium, um direi- to verdadeiramente universal, ou seja, “um direito comum da humanidade”, capaz de enfrentar “os desafios contemporâneos, com a crença no poder da consciência humana”.4 Assim, ao percorrer a extensa obra jurídica de Cançado Trindade, percebe-se, de imediato, a densidade, a sólida fundamentação jurídica e filo- sófica, a erudição, a cultura humanista, enfim, a originalidade de sua vastíssima obra doutrinária, que abarca todos os institutos do Direito Inter- nacional, publicada em várias línguas e expressa em dezenas de decisões jurisprudenciais, livros, monografias, coletâneas, artigos, relatórios, prefá- cios, estudos introdutórios e apresentações de li- vros, cursos ministrados no Brasil e nas principais instituições acadêmicas do mundo, com destaque, entre esses, para Curso Geral que ministrou na Academia de Direito Internacional da Haia, em 2005, sob o título International Law for Hu- mankind: Towards a new Jus Gentium, volume 317 do Recueil, (dois volumes), além de brilhan- tes e numerosos pareceres (em torno de duzentos, emitidos entre 1985 e 1990) exarados ao tempo em que ele foi Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Nessa perspec- tiva, logo identificamos a sua permanente preo- cupação em afirmar e defender a posição do ser humano como sujeito de Direito Internacional, objetivo que se manifesta de forma clara e insofis- mável não somente em sua doutrina, mas, tam- bém, na verdadeira luta a que sempre se dispôs a enfrentar como juiz internacional, como professor e como cidadão a serviço da Humanidade. Nunca será demais destacar a firmeza e a coragem por ele demonstradas para tornar efetivas as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, es- pecialmente dos julgados relativos às violações de direitos humanos perpetradas pela audácia autori- tária do governo do presidente Alberto Fujimore. Este esforço para dar cumprimento às sentenças da Corte Interamericana nos chamados Casos Peruanos foi reconhecido e louvado pelo governo democrático que sucedeu ao regime fujimorista, e, da mesma forma, por membros dos Poderes Judiciário e Legislativo, e porentidades da socie- dade civil do Peru, por ocasião das homenagens que foram prestadas ao então presidente da Cor- te Interamericana de Direitos Humanos, duran- te suas visitas oficiais ao Peru, em 12/09/2001 e 18/011/2003, e nas comemorações relativas ao encerramento, em Lima, do ano judicial de 1983, pelo pleno do Tribunal Constitucional. Não posso deixar de assinalar que na obra doutrinária e nas decisões de Cançado Trindade como magistrado sobrelevam-se as lições, inicia- tivas e esforços para consolidar o novo Direito Internacional em bases verdadeiramente huma- nistas,5 cujos antecedentes estão nas obras dos mestres fundadores do Direito Internacional. Creio que vale, no caso, citar a sua lição: (...) A renovação corrente do ordenamento jurídico internacional, sobre bases humanas, vem tomando por fundamento conceitual câ- nones inteiramente distintos dos do ordena- mento meramente interestatal, como o são os da realização de valores comuns superiores, da titularidade de direitos do próprio ser hu- mano, da garantia coletiva de sua realização, e do caráter objetivo das obrigações de proteção. Por conseguinte, têm-se afirmado, com cres- cente vigor, os direitos humanos universais. Os próprios Estados pareceram dar-se conta, sobretudo ante as catástrofes do século XX, de que necessitavam uma verdadeira comunida- de internacional, fundamentada na solidarie- dade e não mais nas soberanias excludentes. Um novo cenário internacional passou a des- vendar-se, em que não mais se sustentava o monopólio estatal da titularidade de direitos, 61 Antônio Augusto Cançado Trindade e a Humanização do Direito Brasileiro e em que se afigurava esgotado e superado o modelo westphaliano do ordenamento inter- nacional. De certo modo, a própria dinâmica da vida internacional cuidou de desautorizar o entendimento tradicional de que as relações internacionais se regiam por regras derivadas única e inteiramente da livre vontade dos próprios Estados. O positivismo voluntarista mostrou-se incapaz de explicar o processo de formação das normas do direito internacional geral, e se tornou evidente que só se poderia encontrar uma resposta ao problema dos fun- damentos e da validade deste último na cons- ciência jurídica universal, a partir da asserção da idéia de uma justiça objetiva. O ordenamento internacional das soberanias cedeu efetivamente terreno ao da solidarieda- de. Esta profunda transformação do ordena- mento internacional começou a desencadear- -se a partir do reconhecimento da necessidade de reconstrução do direito internacional com atenção aos direitos do ser humano, do que deu eloqüente testemunho a proclamação das Declarações Universal e Americana de Direi- tos Humanos de 1948, seguidas, ao longo de cinco décadas, por mais de 70 tratados de pro- teção hoje vigentes no plano global e regional.6 No Prólogo à obra de Cançado Trindade, El accesso directo del individuo a los Tribunales Internacionales de derechos humanos,7 Juan An- tonio Carrillo Salcedo, chama a atenção para a “apaixonada defesa de Cançado Trindade de duas aspirações: o acesso diret\o das vítimas de viola- ções de direitos humanos a Tribunais Internacio- nais e a jurisdição obrigatória destes”. De fato, são constantes em suas atividades como jusinterna- cionalista, como doutrinador e magistrado inter- nacional os esforços para que seja assegurado ao indivíduo, no exercício de sua subjetividade inter- nacional, o acesso direto à Corte Interamericana de Direitos Humanos. O artigo 61 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao dispor que somente os Estados Partes e a Comissão In- teramericana de Direitos Humanos têm direito de submeter caso à decisão da Corte, interdita, em conseqüência, o acesso direto à Corte Interameri- cana das supostas vítimas, ou de seus familiares. Na medida em que, até agora, não se conseguiu aprovar um Protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos modificando essa situação, como já aconteceu no Sistema Eu- ropeu de Proteção dos Direitos Humanos, Can- çado Trindade, quando presidente da Corte Inte- ramericana, promoveu a reforma do artigo 23 do Regulamento da Corte, fato, a partir do qual, as supostas vítimas, seus familiares ou seus repre- sentantes passaram a ter o direito de peticionar e apresentar, de forma autônoma, argumentos e provas durante a tramitação do Caso na Corte. Essa medida constitui inquestionável avanço no processo de humanização e democratização do Sistema Americano de Proteção dos Direitos Hu- manos, enquanto se aguarda a esperada aprovação do Protocolo adicional à Convenção Americana assegurando o acesso direto à Corte. Outro elemento de destaque na doutrina e na produção jurisprudencial de Cançado Trin- dade concentra-se em sua contribuição para a consolidação das normas imperativas em Direito Internacional e na consagração da obrigação erga omnes de proteção. Sem a consolidação dessas obrigações – assinala –, “em meio à incidência das normas de jus cogens, pouco avançaremos na luta contra o poder arbitrário e na proteção do ser humano contra os atos de barbárie e as atro- cidades contemporâneas.(...) Em suma e conclu- são, nosso propósito deve residir em definitivo no desenvolvimento doutrinário e jurispruden- cial das normas peremptórias do direito interna- cional (jus cogens) e das correspondentes obriga- ções erga omnes de proteção do ser humano”.8 Se hoje avançamos para a consagração definitiva das normas de jus congens em matérias que vão além 8do Direito dos Tratados, devemos muito ao esforço de Cançado Trindade nesse domínio. Para um melhor conhecimento do que acabo de afirmar, recomendo a consulta ao voto separado de Cançado Trindade no Caso Ximenes Lopes versus Brasil, parágrafos 38/47. Senhoras e senhores: Na medida em que o tema central desse se- minário é a função judicial e a humanização do Direito Internacional, não posso deixar de trazer à discussão a preocupação de Cançado Trindade com o sofrimento humano e as suas lições em re- lação ao conceito de vítima, no marco do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Entre tantas de suas manifestações nesse sentido, indico o voto em separado que exarou no Caso Ximenes Lopes versus Brasil, no qual, ao descrever o sofrimento da irmã da vítima, Irene Ximenes Lopes Miranda, ex- posto no depoimento que ela prestou na audiência pública promovida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nos dias 30 de novembro e 1º de dezembro de 2005, Cançado Trindade mostra-se profundamente sensibilizado com as declarações da testemunha sobre o sofrimento e o efeito devasta- dor sobre toda a família do assassinato violento do indefeso Damião Ximenes Lopes. Trata-se de um texto judicial pleno de humanismo, que precisa ser 62 Antônio Celso Alves Pereira conhecido por todas as pessoas que se preocupam com a proteção dos direitos humanos e a realização da justiça.9 Assim, com remissão ao seu Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, tomo III, pp. 434-436, parágrafos 48 e 50, acentuando seu afligimento com a projeção do sofrimento hu- mano no tempo e a centralidade das vítimas no Di- reito Internacional dos Direitos Humanos, pondera o seguinte: 15. O Direito Internacional dos Direitos Hu- manos, ao orientar-se essencialmente à con- dição das vítimas, tem em muito contribuído a restituir-lhes a posição central que hoje ocu- pam no mundo do Direito, - o que tem sua razão de ser. A centralidade das vítimas no universo conceitual do Direito Internacional dos Direitos Humanos, insuficientemente analisada pela doutrina jurídica contemporâ- nea até o presente, é da maior relevância e acarreta conseqüências práticas. Na verdade, é da própria essência do Direito Internacional dos Direitos Humanos, porquanto é na prote- çãoestendida às vítimas que este alcança sua plenitude. Mas o rationale de sua normativa de proteção não se esgota no amparo estendi- do a pessoas já vitimadas. O Direito Interna- cional dos Direitos Humanos, por sua própria existência, universalmente reconhecida em nossos dias, protege os seres humanos tam- bém por meio da prevenção da vitimização. O alcance de seu corpus juris deve ser, pois, apreciado também sob esse prisma. (...) O Direito Internacional dos Direitos Hu- manos contribui, assim, decisivamente, ao processo de humanização do Direito Inter- nacional. O tratamento dispensado aos seres humanos pelo poder público não é mais algo estranho ao Direito Internacional. Muito ao contrário, é algo que lhe diz respeito, porque os direitos de que são titulares todos os seres humanos emanam diretamente do Direito In- ternacional. Os indivíduos são, efetivamente, sujeitos do direito tanto interno como interna- cional. E ocupam posição central no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sejam ou não vítimas de violações de seus di- reitos internacionalmente consagrados. Nesse mesmo contexto, cito também os votos separados de Cançado Trindade no julga- mento, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, do Caso Niños de la Calle (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala10 e nas Opiniões Consultivas – O Direito à Informação sobre a As- sistência Consular no Marco das Garantias do De- vido Processo Legal, OC-16/99 de 1º de outubro de 1999 –, Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança – OC-17/02 de 28 de agosto de 2002 –, e Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados – OC-18 de 17 de setembro de 2003, documentos que expressam decisões ju- risprudenciais pioneiras, avançadíssimas e de enorme repercussão internacional. Sublinhando o dever do Estado de proteger a vida de pessoas vulneráveis, indefesas, portanto, mais débeis e em situação de risco, como são os crianças que vivem nas ruas das grandes cidades dos países pobres do mundo, Cançado Trindade, no Caso Niños de la Calle, ao propugnar por uma interpretação do di- reito à vida que compreenda condições mínimas para uma existência digna, chama a atenção para o fato de que o projeto de vida do ser humano se encontra indissoluvelmente vinculado à liberda- de de cada pessoa de eleger seu próprio destino. No voto separado que apresentou na mencionada Opinião Consultiva sobre os Direitos da Criança, Cançado Trindade ressalta que, em consequência dos princípios e normas relativos aos direitos da criança, que se consolidaram ao longo do século XX, tais direitos, finalmente, se desprenderam do velho instituto romano do pátrio poder, enfatizan- do, ainda, que, sob o prisma internacional, o fun- damento jurídico da autoridade paterna passa a ser o interesse superior da criança, fato que deixa, bem claro, o reconhecimento da personalidade interna- cional e da condição jurídica autônoma da crian- ça, no marco do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Completa essas assertivas afirmando: “La concepción kantiana de la persona humana como un fin en sí mismo abarca naturalmente los niños, todos los seres humanos independien- temente de las limitaciones de su capacidad juri- dical (de ejercicio)”.11 Nessa mesma linha, estão os votos separados concordantes na aprovação das Opiniões Consultivas 16 e 18. Sob a presidência de Cançado Trindade, e contando com sua ativa participação, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu, atendendo a uma consulta do México, a Opinião Consultiva OC-16/99. Trata- -se de decisão de cunho jurisprudencial que deixa claro que o artigo 36 da Convenção de Viena so- bre Relações Consulares reconhece ao estrangeiro detido no Estado receptor o direito à informação sobre a assistência consular, circunstância que si- tua o referido artigo 36 no quadro dos dispositivos internacionais de proteção dos Direitos Huma- nos. A OC-16/99 determina também que Estado receptor deverá estender ao estrangeiro detido em seu território garantias judiciais mínimas, como o devido processo legal, os direitos à informação e de entrar em imediato contato com as autoridades 63 Antônio Augusto Cançado Trindade e a Humanização do Direito Brasileiro consulares do seu país e, ainda, o direito de não sofrer discriminação de qualquer espécie. Assim, em seu magnífico voto concordante na aprovação da Oc-16/99, Cançado Trindade expõe o seguinte: En el mundo interdependiente de nuestros días, la relación entre el derecho a la infor- mación sobre la asistencia consular y los de- rechos humanos se impone por aplicación del principio de la no-discriminación, de gran potencial (no suficientemente desarrollado hasta la fecha) y de importancia capital en la protección de los derechos humanos, extensi- va a este aspecto de las relaciones consulares. Tal derecho, situado en la confluencia entre dichas relaciones y los derechos humanos, contribuye a extender el manto protector del Derecho a aquellos que se encuentran en si- tuación de desventaja - los extranjeros deteni- dos - y que, por eso, más necesitan de dicha protección, sobre todo en los medios sociales constantemente amenazados o atemorizados por la violencia policial (párrafo 28).12 Por outro lado, o deslocamento de contingen- tes humanos de um país para o outro, em busca de melhores condições de vida, de oportunidades de trabalho – a migração voluntária - ou para fugir de guerras, perseguições políticas, raciais ou religiosas, bem como de desastres ambientais– a migração forçada - é um fenômeno social sempre presente na história da humanidade. Nas últimas décadas, a questão dos fluxos migratórios figura com destaque na pauta internacional. É do conhecimento geral o fato de que, quase sempre, nos Estados receptores, os emigrantes, principalmente os indocumentados, são submetidos a toda sorte de discriminações, de violações de seus direitos laborais por empregado- res inescrupulosos, enfim de violências e adversi- dades afrontosas à dignidade humana. Em 10 de maio de 2002 o governo do Mé- xico, apreensivo com situação dos seus nacionais que ganham a vida fora do território nacional – em grande parte indocumentados –, com fundamento no artigo 64.1 da Convenção Americana sobre Di- reitos Humanos, solicitou à Corte Interamericana de Direitos Humanos Opinião sobre os direitos trabalhistas que devem ser assegurados aos traba- lhadores imigrantes indocumentados. Atendendo ao pedido, a Corte Interamericana, sob a presidên- cia de Cançado Trindade, emitiu, como já me refe- ri, a Opinião Consultiva 18, documento inovador, de largo alcance jurídico e de inegável conteúdo social, e que, devido a sua força jurisprudencial, constitui considerável avanço no processo de hu- manização do Direito Internacional. Os Estados – esclareceu a Corte – têm a obrigação geral de respeitar e garantir dos direitos fundamentais de todos aqueles que se encontram sob sua jurisdi- ção. Devem também, sob pena de serem respon- sabilizados internacionalmente, evitar ações e suprimir medidas e práticas que limitem ou vio- lem direitos fundamentais. Assim, após destacar a situação de vulnerabilidade em que se encon- tram os migrantes nos Estados receptores, princi- palmente os indocumentados, Cançado Trindade, em seu belíssimo voto concordante lembra que os princípios da igualdade e da não discrimina- ção constituem pilares do Direito Internacional dos Direitos Humanos e integram o Direito Internacio- nal Geral ou Consuetudinário. Prossegue, em seu voto, assinalando que a discriminação é definida nas Convenções setoriais, que têm como objetivo combater e eliminá-la, como “qualquer distinção, exclusão, restrição ou limitação, ou privilégio em detrimento dos direitos humanos nelas consagra- dos. A proibição da discriminação abarcatanto a totalidade destes direitos, no plano substantivo, como as condições de seu exercício no plano pro- cessual”. Completa seu voto com a seguinte lição: 88. El hecho de que, a pesar de todos los sufri- mientos de las generaciones pasadas, persistan en nuestros días nuevas formas de explotación del hombre por el hombre, - tales como la ex- plotación de la fuerza laboral de los migrantes indocumentados, la prostitución forzada, el tráfico de niños, el trabajo forzado y esclavo, en medio al aumento comprobado de la pobreza y la exclusión y marginación sociales, al desa- rraigo y la desagregación familiar, - no signifi- ca que “falta reglamentación” o que el Derecho no exista. Significa más bien que el Derecho está siendo ostensiva y flagrantemente violado, día a día, en detrimento de millones de seres humanos, entre los cuales los migrantes indo- cumentados en todo el mundo. Al insurgirse contra estas violaciones generalizadas de los derechos de los migrantes indocumentados, que afrentan la conciencia jurídica de la hu- manidad, la presente Opinión Consultiva de la Corte Interamericana contribuye al proceso en curso de la necesaria humanización del Dere- cho Internacional. 89. Al hacerlo, la Corte Interamericana tiene presentes la universalidad y unidad del género humano, que inspiraron, hace más de cuatro siglos y medio, el proceso histórico de forma- ción del derecho de gentes. Al rescatar, en la presente Opinión Consultiva, la visión uni- versalista que marcó los orígenes de la mejor doctrina del Derecho Internacional, la Corte 64 Antônio Celso Alves Pereira Interamericana contribuye para la construcci- ón del nuevo jus gentium del siglo XXI, orien- tado por los principios generales del derecho (entre los cuales el principio fundamental de la igualdad y no-discriminación), caracterizado por la intangibilidad del debido proceso legal en su amplio alcance, sedimentado en el reco- nocimiento del jus cogens e instrumentalizado por las consecuentes obligaciones erga omnes de protección, y erigido, en última instancia, sobre el pleno respeto y la garantía de los dere- chos inherentes a la persona humana. – II – Nos limites do tempo que me foi destinado, apresso-me para apresentar breves notas sobre a inestimável contribuição de Cançado Trindade para a humanização do direito brasileiro. De 1985 a 1990, ele exerceu com brilhantismo as altas fun- ções de Consultor Jurídico do Ministério das Re- lações Exteriores. Nesse período exarou mais de duzentos pareceres, que são, de fato, preciosas li- ções de Direito Internacional.13 Nessa questão há um fato deveras importante, ou seja, sua atuação como Consultor Jurídico do Itamaraty se deu em uma das fases mais marcantes da história política do Brasil contemporâneo, uma vez que coincidiu com início do processo de redemocratização do nosso país e com a Constituinte de 1987/1988. Como se sabe, os governos militares, em matéria de Direitos Humanos, faziam um jogo de esperte- za, ou seja, enviavam delegações às conferências que se sucediam nas esferas global e regional, nas quais nossos delegados, cumprindo competente- mente suas missões, participavam propositiva- mente das mesmas, porém, ao final, não ratifi- cavam os instrumentos aprovados. Foi assim na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos – San José, Costa Rica, 1969 –, na qual o Brasil teve participação ativa nas dis- cussões do projeto que redundou na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Esta, como sabemos, somente seria ratificada após o término do período autoritário. A atuação do Professor Antônio Augusto Cançado Trindade como consultor jurídico do Ita- maraty foi fundamental para a humanização do direito brasileiro. Considero importante seu de- poimento sobre o assunto. Em 1991, escrevia: Tendo sido sempre rigorosamente fiel à causa da consolidação, expansão e fortalecimento da proteção internacional dos direitos huma- nos, tem sido para mim um privilégio grati- ficante poder contribuir para o processo de tomada de decisão de adesão do Brasil aos tratados gerais de proteção internacional dos direitos humanos (os dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Quan- do estes tratados jaziam em inexplicável olvi- do em um país com as dimensões do Brasil, pouquíssimos fomos os que, com paciência e determinação, contribuímos, no exercício de nossas funções e responsabilidades, para sensibilizar os governantes para a premente necessidade de adesão do Brasil àqueles trata- dos. Recordo-me da época em que emiti nesse propósito meu Parecer CJ/01, de 16-8-1985, dos momentos, dos momentos difíceis, nos meses de agosto a outubro de 1985, da to- mada de decisão nesse sentido, que requereu romper resistências e a força da inércia estri- bada em velhos e simplórios dogmatismos, desprovidos de todo e qualquer fundamento jurídico, e sedimentados ao longo de suas dé- cadas de regime militar (reproduzidos, e. g. no parecer externo, de 20-4-1981, que bloqueou na época qualquer iniciativa do Itamaraty de propor a adesão do Brasil aos referidos pactos humanitários).14 Os Pareceres do então Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores demonstra- ram, naquela altura, a necessidade e a premência de uma nova posição do Brasil em matéria de Di- reitos Humanos e fundamentaram, juridicamen- te, as propostas e exposições de motivos do Minis- tério das Relações Exteriores relativas à ratificação dos instrumentos internacionais de proteção e monitoramento dos Direitos Humanos que os go- vernos militares negaram-se a internalizar no Bra- sil. Apoiado no Parecer por ele exarado em 16 de agosto de 1985, sob o titulo O Brasil e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos: Fundamen- tos Jurídicos para o Reexame da Posição do Bra- sil, o Ministério das Relações Exteriores, em 29 de outubro do mesmo ano, encaminhou ao Presi- dente da República a proposta de adesão do Brasil à Convenção Americana de Direitos Humanos e, posteriormente, em 22 de novembro de 1985, aos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas. Transformadas em mensagens do poder Executivo ao Congresso Nacional, que reprodu- ziam trechos completos do Parecer do Consultor Jurídico do Itamaraty, foram os citados instru- mentos ratificados em 1992. Nas palavras finais desse Parecer, Cançado Trindade ressalta que a adesão do Brasil representaria, naqueles primeiros tempos do processo de redemocratização do país, uma retomada das nossas melhores tradições ju- 65 Antônio Augusto Cançado Trindade e a Humanização do Direito Brasileiro rídico-diplomáticas, além da real possibilidade de projeção da imagem do Brasil como país respeita- dor e garantidor dos direitos humanos no plano internacional; “mais significativamente – conclui –, a adesão do Brasil aos mencionados tratados humanitários constitui compromisso ou garantia adicional, no plano já não só nacional como tam- bém internacional, para as gerações presentes e futuras de brasileiros, de efetiva proteção contra a violação dos direitos fundamentais do ser hu- mano, a qual repugna a índole, a consciência e os mais caros valores dos brasileiros”.15 No Parecer nominado O Brasil e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos (Instrumen- tos e Cláusulas Facultativas): Fundamentos Jurí- dicos para a Consolidação da Nova Posição do Bra- sil, de 18 de outubro de 1989,16 Cançado Trindade oferece os fundamentos jurídicos para a adesão do Brasil a uma série de instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, entre os quais, os dois Protocolos às Convenções de Genebra de 1949, às duas convenções das Nações Unidas contra o Apartheid de 1973 e 1985 e ao Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanosem matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Nesse contexto, devo mencio- nar, também, as sugestões de Cançado Trindade para a retirada das reservas à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, à qual o Brasil aderiu em 1984. De passagem menciono que essa convenção foi importante fonte do parágrafo 8º do artigo 226 da Constituição Federal e, posteriormente, da Lei Maria da Penha. Peço licença para voltar ao pa- recer de 16 de agosto de 1985, o primeiro, como já me referi, redigido por Cançado Trindade como Consultor Jurídico do Itamaraty. Recomendo a leitura desse texto a todos que se interessam por uma excelente lição de Direito Internacional e, em muitos aspectos, de Direito Público Interno. Trata-se de um extenso e completo estudo sobre as questões mais atuais do Direito Internacional Geral e, especialmente, do Direito Internacional dos Direitos Humanos, abarcando, por exem- plo, a dialética entre soberania e direitos huma- nos, questões relativas à interpretação, reservas, cláusulas de exceções e outros temas pertinentes ao direito dos tratados, conflitos entre as jurisdi- ções nacional e internacional, bem como salva- guardas dos Estados, instrumentos de proteção, mecanismos de solução pacífica de controvérsias e uma esclarecedora análise da tradição e da prá- tica brasileiras em matéria de direitos humanos. Nesse Parecer, como também em outras de suas obras17, são claras e definitivas suas lições sobre as relações entre os direitos interno e internacio- nal. Salientando que essas relações não podem ser compreendidas “à luz de uma visão estática e ul- trapassada do direito internacional e a fortiori das relações deste com o direito interno, escreve: Nos dias de hoje, dificilmente, se poderia sus- tentar que a proteção dos direitos humanos recairia sob o domínio reservado dos Estados. Em nada surpreende que a interpretação dos atuais sistemas de proteção internacional dos direitos humanos, orientada para a respon- sabilidade do Estado pelo tratamento do ser humano, se conforme aos próprios objetivos daqueles sistemas voltados não aos chamados direitos dos Estados, mas aos direitos das su- postas vitimas, dos mais fracos, em situação de flagrante desigualdade fática vis-à-vis o po- der público.18 Como mencionamos anteriormente, Cança- do Trindade ocupou as altas funções de Consul- tor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores de 1985 a 1990. Entretanto, em 15 de abril de 1994, a Chancelaria brasileira, considerando sua condição de jusinternacionalista de reconhecido prestígio internacional e, no caso, sua expertise em Direito Internacional dos Direitos Humanos, solicitou-lhe Parecer sobre os fundamentos jurídi- cos para a assinatura, pelo Brasil, do Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos referente à Abolição da Pena de Morte, de 1990, e a sua compatibilidade com a Constituição Federal de 1988.19 Este Parecer levou o Brasil a ratificar o citado Protocolo, em 13 de agosto de 1996, cujo artigo 1º expressa que “os Estados Partes não aplicarão em seu território a pena de morte a nenhuma pessoa submetida a sua jurisdição”. Do ponto de vista in- terno, o Parecer de Cançado Trindade esclareceu as autoridades brasileiras e o público em geral sobre a impossibilidade de sucesso, por claras proibições de ordem legal, das pretensas propostas de inclu- são na legislação brasileira da pena capital. Nesta linha o documento rebate, de forma definitiva, os argumentos que, de quando em quando, apare- cem na imprensa brasileira sobre a implantação desse tipo de pena no Brasil. Em artigo publicado na Folha de São Paulo, edição de 15 de março de 1993, Cançado Trindade, com toda razão, afirma que esse debate no Brasil “é extemporâneo, ocioso e pernicioso, se não patético”. Após demonstrar a evolução limitativa e abolicionista da pena de morte sob o Direito In- ternacional, numa tendência proibitiva universal, como se depara, além do que dispõe o II Protocolo 66 Antônio Celso Alves Pereira à Convenção Americana, as restrições e proibi- ções constantes no II Protocolo ao Pacto de Di- reitos Civis e Políticos das Nações Unidas sobre a Abolição da Pena de Morte e, da mesma forma, no Protocolo VI à Convenção Européia de Direi- tos Humanos sobre a Abolição da Pena de Morte, Cançado Trindade, em seu Parecer, assinala que o “Brasil é Parte na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, cujo artigo 4 consagra o di- reito à vida como um direito inderrogável. Como tal, este direito, e suas garantias, não admitem suspensão ou qualquer tipo de restrições (artigo 27 (2) da Convenção). O artigo 4 (3), que trata do direito à vida, determina o seguinte: “Não se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido”. Cançado Trindade lembra que o Brasil, ao tornar-se Parte da Convenção Ameri- cana sobre Direitos Humanos, em 25/09/1992, não apresentou, no momento oportuno, reservas ou quaisquer declarações interpretativas ao refe- rido dispositivo da dita Convenção, e não pode mais fazê-lo. Obriga-se, portanto, ao pleno cum- primento desta obrigação internacional. Além do mais, argumenta: (...) Impõe-se uma interpretação do artigo 4 da Convenção Americana em seu conjunto, o qual revela uma inequívoca tendência restri- tiva do âmbito de aplicação da pena de morte mesmo nos países em que esta subsiste, de modo que continue se reduzindo até sua su- pressão final.Enquanto o artigo 4 (4) da Con- venção busca suprimir a pena de morte para determinados delitos (políticos e comuns co- nexos), o artigo 4 (2) estabelece a proibição absoluta de estender no futuro a aplicação da pena de morte (para toda classe de delito). Há, pois, como assinalou a Corte Interamericana de Direitos Humanos (em parecer sobre Res- trições à Pena de Morte, de 8 de setembro de 1983), uma proibição absoluta, ipso jure, não só do restabelecimento da pena capital (arti- go 4 (3)), como também da extensão de sua aplicação (ou de legislação a posteriori nesse propósito) a delitos para os quais não estava contemplada anteriormente pelo direito in- terno dos Estados Partes.20 Ainda com referência à normativa inter- nacional sobre a questão da abolição da pena de morte, Cançado Trindade chama a atenção nesse Parecer para o fato de que, além do que já foi dito, deve-se considerar que proibições e restrições à pena capital figuram nas quatro Convenções de Genebra sobre Direito Internacional Humanitá- rio, de 1949, bem como de seus dois Protocolos Adicionais datados de 1977, instrumentos dos quais o Brasil é Parte. Evocando o direito interno brasileiro, ao destacar o artigo 5º (XLVII, letra a) da Constitui- ção Federal de 1988, cujo texto dispõe que não haverá pena de morte no Brasil, salvo em caso de guerra declarada e visando delitos sumamente graves de natureza militar, e ainda, o artigo 60 (4) da mesma Constituição, que estabelece que não será objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir direitos e garan- tias individuais, Cançado Trindade deixa claro em seu Parecer que a questão da pena de morte no Brasil é matéria superada. Lembra, ainda, o ilustre mestre, que a questão foi tratada de forma definitiva pelo Estado brasileiro, uma vez que foi objeto de apreciação e deliberação de poder cons- tituinte originário. E conclui: (...) a partir do momento em que o Brasil, pela adesão à Convenção Americana sobre os Di- reitos Humanos, se comprometeu a não mais sequer cogitar da aplicação da pena de morte no país, no futuro nenhum poder constituin- te, nem mesmo originário, estaria facultado a proceder a uma revisão tomada -, exceto se se ousasse cogitar de uma denúncia bizarra da Convenção Americana, o que exporia o país ao opróbrio da comunidade internacional.A Constituição de 1988, ao dispor que a Re- pública Federativa do Brasil tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa huma- na e que, nas relações internacionais, nosso país rege-se pela prevalência dos direitos humanos, estabeleceu definitivamente as bases do processo de humanização do direito brasileiro. Convida- do a oferecer subsídios à redação do capítulo da futura Constituição relativo aos direitos e garan- tias fundamentais, Cançado Trindade apresentou proposta, que foi aceita, e hoje faz parte da nossa atual Carta Constitucional, de inclusão no arti- go 5º do parágrafo 2º, que agrega aos direitos e garantias expressos na Constituição os direitos e garantias fundamentais decorrentes dos tratados, em que a República Federativa do Brasil seja parte. Portanto, em decorrência desse dispositivo cons- titucional a Constituição de 1988 incorpora, com hierarquia constitucional, os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Sobre assunto, escreve Cançado Trindade: O disposto no artigo 5(2) da Constituição Brasileira de 1988, (...) além de inserir-se na nova tendência de recentes Constituições latino-americanas de conceder um tratamen- 67 Antônio Augusto Cançado Trindade e a Humanização do Direito Brasileiro to especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias in- dividuais internacionalmente consagrados. A especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos direitos huma- nos encontram-se, com efeito, reconhecidos e sancionados pela Constituição Brasileira de 1988: se, para os tratados em geral, se tem exigido a intermediação pelo Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, dis- tintamente no caso dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos em que o Brasil é Parte os direitos neles garantidos pas- sam, consoante os artigos 5 (2) e 5 (1) da Cons- tituição Brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno.21 Não vou, neste momento, discutir a polêmi- ca desnecessária que se instalou na doutrina e na jurisprudência sobre esse tema. Basta-me a certe- za de que o § 2º do artigo 5º da Constituição de 1988 é um dispositivo aberto, que confere hierar- quia constitucional aos tratados de direitos huma- nos ratificados pelo Brasil. Portanto, a inclusão do § 3º no citado artigo 5º pela Emenda Constitucio- nal 45 foi, entendo, uma medida desnecessária e claramente inoportuna. Um desserviço à clareza do disposto no § 2º. – III – Senhoras e senhores, colegas professores, prezados estudantes. Concluindo estas notas, desejo, mais uma vez, manifestar minha satisfação pela oportuni- dade de participar desse evento em homenagem a este grande brasileiro, Professor Doutor Antônio Augusto Cançado Trindade, jusinternacionalista a serviço da Humanidade, que, em sua cátedra, na magistratura internacional e em sua extensa e importantíssima obra jurídica vem, de forma incansável e corajosa, trabalhando para construir o novo Direito Internacional em bases realmente humanas e torná-lo, de fato, instrumento de pro- teção do ser humano contra as arbitrariedades, as discriminações de qualquer espécie e as violações de seus direitos e garantias imprescindíveis à vida com dignidade. 68 Antônio Celso Alves Pereira 1. Para um melhor conhecimento da contribui- ção jurisprudencial de Antônio Augusto Can- çado Trindade para a construção do Direito Internacional dos Direitos Humanos, consul- tar, de sua autoria, El Ejercicio de la función judicial internacional – Memorias de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2011 e, da mesma for- ma, Derecho Internacional de los Derechos Humanos – Esencia y trascendencia (Votos en la Corte Interamericana de Derechos Hu- manos, 1991-2006). México: Editorial Porrúa, 2007. Sobre a Corte Interamericana de Direi- tos Humanos, ver: Cançado Trindade, A. A. e Ventura Robles, Manuel E. El Futuro de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. 3ª edição. San José, C.R: Alto Comisionado de Naciones Unidas para los Refugiados. 2005. 2. Ver Cançado Trindade, Antônio Augusto. Tra- tado de Direito Internacional dos Direitos Hu- manos. Volume I. Porto Alegre: Sergio Anto- nio Fabris Editor, 1999, pp. 7/118. 3. Corte IDH. El Derecho a la Información so- bre la Asistencia Consular en el Marco de las Garantías del Debido Proceso Legal. Opini- ón Consultiva OC-16/99 del 1 de octubre de 1999. Serie A No. 16. Cançado Trindade, Antônio Augusto. O Direito Internacional em um Mundo em Transforma- ção. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 1086. 5. Ver, Cançado Trindade, Antônio Augusto. A Humanização do Direito do Direito Interna- cional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 6. Cançado Trindade, Antônio Augusto. O Direi- to Internacional em um Mundo em Transfor- mação. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002, 1.163 pp., especialmente pp. 1.076/1.077. Ver também, do autor, o ensaio A Personalidade e Capacidade Jurídicas do Indivíduo como Su- jeito de Direito Internacional. In: Os Novos Conceitos do Novo Direito Internacional – Ci- dadania, democracia e direitos humanos. Da- nielle Annoni – Organizadora. Rio de Janeiro: América Jurídica Editora, 2002, pp. 1/32. 7. Bilbao: Universidad de Deusto, 2001, pp. 11/17. 8. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, V. II, pp. 417/419. 9. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Ximenes Lopes versus Brasil. Sentença de 4 de julho de 2006 (Mérito, Reparações e Custas). 10. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso “Niños de la Calle” (Villagrán Morales y otros) Vs. Guatemala. Sentencia de 19 de no- viembre 199 (Fondo). 11. Corte Interamericana de Direitos Humanos – Opinião Consultiva 17 de 28 de agosto de 2002. 12. “Em seu décimo-sexto Parecer, a Corte vincu- lou o direito à informação sobre a assistência consular às garantias do devido processo le- gal em evolução, e acrescentou que sua não- -observância em caso imposição e execução de pena de morte acarreta um privação arbitrária do próprio direito à vida (nos termos do arti- go 4 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e do artigo 6 do Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas, com to- das a conseqüências jurídicas inerentes a uma violação desse gênero”. Cançado Trindade, Antônio Augusto Tratado de Direito Interna- cional dos Direitos Humanos, v. III, p. 64 13. Os Pareceres estão reunidos na publicação or- ganizada por Antônio Paulo Cachapuz de Me- deiros – Pareceres dos Consultores Jurídicos do Itamaraty, volume VIII (1985-1990). Brasília: Senado Federal, 2004, 680 páginas. 14. Cançado Trindade. Antônio Augusto. A Pro- teção Internacional dos Direitos Humanos – Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Bási- cos. São Paulo: Saraiva, 1991, pp.621/622. 15. Para consulta ao texto completo deste impor- tante e histórico Parecer ver Cançado Trinda- de, Antônio Augusto. A Proteção Internacio- nal dos Direitos Humanos – Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos. São Paulo: Editora Saraiva, 1991, pp. 520/563 e, da mes- ma forma, ver também Pareceres do Consul- tor Jurídico do Itamaraty, volume VIII, pp. 104/105. 16. Ibidem, pp. 543/616. 17. Ver, por exemplo, o capítulo X – A Interação entre o Direito Internacional e o Direito In- terno na Proteção dos Direitos Humanos, do volume II do Tratado de Direito Internacional NOTAS 69 Antônio Augusto Cançado Trindade e a Humanização do Direito Brasileiro dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, pp.401/448. 18. Cançado Trindade, Antônio Augusto. Parecer– O Brasil e Proteção Internacional dos Direi- tos humanos: Fundamentos Jurídicos para o Reexame da Posição do Brasil. In: Pareceres dos Consultores Jurídicos do Itamaraty, p. 59. 19. O texto deste Parecer pode ser consultado na Revista da Faculdade de Direito da Uerj, nº 2, Rio de Janeiro: Editora Renovar/Uerj, 1994, pp. 115/122. 20. Revista da Faculdade de Direito da Uerj, nº 2, 1994, p. 117. 21. A Proteção Internacional dos Direitos Huma- nos – Fundamentos Jurídicos e Instrumentos Básicos, pp. 632/632.
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