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DIREITO E ARTE: INTERSUBJETIVIDADE E EMANCIPAÇÃO PELA LINGUAGEM Roberto Ernani Porcher Junior * Orientadora: Profa Dra Clarice Söhngen SUMÁRIO: Resumo; 1 Paradigma da contemporaneidade – o complexo; 2 Hermenêutica dos Direitos; 3 Hermenêutica das Artes; 4 Desafios e desafinos – transdisciplinaridade in concretu; 4.1 Recepção emancipativa do Direito em triplo grau; Considerações finais. RESUMO: Este trabalho apresenta o produto de uma pesquisa transdisciplinar desenvolvida com vistas à identificação de aspectos comuns entre as interpretações jurídica e artística. Fundada na contemporânea compreensão da realidade enquanto interconexão de saberes, a presente investigação percorre a trajetória evolutiva das principais tendências hermenêuticas da Arte e do Direito, culminando com a constatação de traços sociais uniformes intrínsecos a ambas as áreas. A relevância do desvelar de dimensões dessa proposta é a de viabilizar um alargamento da percepção fenomenológica do Direito, ressaltando sua contribuição para a emancipação do ser humano e da sociedade. 1 PARADIGMA DA CONTEMPORANEIDADE: O COMPLEXO É patente o entendimento de que a realidade social inclui, além de indivíduos, também a sua produção, suas coisas. E ainda, para além das coisas,1 seus significados. Toda essa gama de sobreposições está em constante diálogo, a * Bacharel em Direito pela PUC/RS. Pesquisador do Grupo Prismas do Direito Civil-Constitucional CNPq/PUCRS. Pesquisador do NEPRADIL (Núcleo de Estudos e Prática das Interfaces entre Direito e Linguagem). Advogado do escritório Ricardo Aronne Advogados Associados – POA/RS. Contato: rporcher@terra.com.br 1 Para uma visão acerca da pluralidade de significados e cargas valorativas que as coisas podem ter, vide CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Para além das coisas (Breve ensaio sobre o direito, a pessoa e o patrimônio mínimo). In: RAMOS, Carmen Lucia Silveira (Coord.). Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 165. consolidar o horizonte2 de nossa existência, perceptível graças à assimilação da linguagem positivamente atuante. Contemporaneamente, falar em ciência é falar no complexo, como retrata o dizer do prêmio Nobel em química, Ilya Prigogine: Assistimos ao surgimento de uma ciência que não mais se limita a situações simplificadas, idealizadas, mas nos põe diante da complexidade do mundo real, uma ciência que permite que se viva a criatividade humana como a expressão singular de um traço fundamental comum a todos os níveis da natureza. 3 Com este pensamento, inaugura-se uma nova fase no entendimento científico das hard sciences, que vai alcançar também as ciências humanas.4 Primeiramente, a elaboração da idéia de sistema e, após, o reconhecimento da inexistência de sistemas herméticos evidenciam importantes paradigmas da atualidade.5 Edgar Morin já salientou que “como nosso modo de conhecimento desune os objetos entre si, precisamos conceber o que os une”.6 Nas palavras de Ian Stewart: Quando tudo o que se está vendo é uma parte mínima de um movimento imensamente complicado, ele parecerá randômico, parecerá desestruturado. (...) Não é possível estudar uma economia real, ou uma nação, ou uma mente, pelo isolamento de uma pequena parte. O subsistema experimental será constantemente perturbado por influências externas inesperadas. 7 2 O termo “horizonte” é usado no sentido gadameriano: “Um horizonte não é uma fronteira rígida, mas algo que se desloca com a pessoa e que convida a que se continue penetrando”. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 4a ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 373. Na mesma obra, à página 452, Gadamer pormenoriza o conceito: “Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. (...) A linguagem filosófica empregou essa palavra, sobretudo desde Nietzsche e Husserl, para caracterizar, com isso, a lei do progresso de ampliação do âmbito visual. Aquele que não tem horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver além disso”. 3 PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: Editora da UEP, 1996. p. 14. 4 Para uma conexão entre hard sciences e Direito, leia-se ARONNE, Ricardo. Direito Civil- Constitucional e Teoria do Caos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 5 De modo preliminar em Ludwig von Bertalanffy (Teoria Geral dos Sistemas, 1973) e com efeitos de pesquisa jurídica em Humberto Maturana Romesín e Francisco J. Varela García (De Máquinas e Seres Vivos – Autopoiese – A Organização do Vivo, 1997, bem como A Ontologia da Realidade, 1997). 6 MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. p. 24. 7 STEWART, Ian. Será que Deus joga dados?: a matemática do caos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1991. pp. 61 e 62. Novos paradigmas reclamam novas interpretações. Essa assertiva atinge de plano a metodologia jurídica. Vislumbra-se uma verdadeira revolução na forma de perceber a realidade, razão pela qual o Direito não deve mais ser encarado com base em modelos sintéticos e pré-concebidos. A noção objetiva dos conceitos jurídicos imputa uma falsa sensação de finitude do sistema, denunciando um esvaziamento de seu conteúdo frente aos fenômenos sociais. Não pode o Direito se furtar a um pensamento ecologizante,8 que leve em consideração também as novas tendências sócio-culturais.9 Há que se abrir espaço às concepções topográficas da realidade, que a partir de Henry Poincaré passaram a determinar leituras otimizadas dos objetos,10 baseadas na matemática contínua, vindo a servir de foyer para a incidência das operações com fractais. O percurso traçado pela evolução dos entendimentos científicos (em especial da física e da matemática) em busca de uma adaptação de suas teorias à realidade do mundo não deve ser sonegado pelo Direito. O esforço em interpretar o mundo em suas minúcias é, também, meta do operador jurídico, reclamando uma sempre atualizada adaptação das concepções normativas aos acontecimentos da vida. Tal noção de Direito evidentemente não encontra abrigo nos ideais formalistas e sistêmicos que se construíram ao longo dos séculos. Configura uma premissa epistemológica a compreensão do Direito como um sistema poroso, apto a consubstanciar sua atuação no ponto de contato com a realidade fenomenológica social, servindo-se, para isso, de uma hermenêutica que integre ao mundo jurídico todos os elementos externos necessários à obtenção da justiça. Se é correto afirmar que “a procura da melhor interpretação é, por assim dizer, a verdade da hermenêutica”,11 então não é aceitável fugir a uma concepção aberta do Direito. Nesse sentido, Arte e Direito estreitam sua relação. A Arte contemporânea apropria-se cada vez mais da interação entre obra e público, transmissor e receptor. 8 MORIN, Edgar. Op. cit. p. 24. 9 “... a questão da atividade prática, inclusive a atividade criativa ou inovadora, de qualquer agente se apresenta da mesma maneira em todas as áreas da vida social e pessoal”. (WOLFF, Janet. A produção social da arte. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p. 14). 10 STEWART, Ian. Op. cit. pp. 71 e segs.. 11 PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e sistema jurídico: uma introdução à interpretaçãosistemática do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. P. 50. São utilizados elementos estéticos abertos, destinados a possibilitar que conteúdos subjetivos vivenciados pelo espectador/receptor sejam incorporados à leitura da obra. O Direito, ao mesmo tempo, redesenha a relação entre norma e operador/intérprete. Está em voga uma remodelação da hermenêutica tradicional: focalizam-se os valores constitucionais como vértice do ordenamento jurídico, conferindo ao jurista uma maleabilidade para a aplicação das regras conforme a incidência principiológica nos casos concretos. Para moldar o decisum à base fática, o operador do Direito vai tratar cada dispositivo legal como um significante submetido à teleologia do sistema. A exemplo da noção de arte contemporânea, em que a obra é tratada como um signo que vai proporcionar um espaço de interação com o intérprete, dando margem a uma criação de sentido calcada na própria bagagem cultural deste,12 o Direito precisa também explorar suas fontes como sendo peças integrantes de uma linguagem capaz de se adaptar às necessidades que irrompem na sociedade. A contemporaneidade traz à tona um novo paradigma de comunicação: uma linguagem munida de sinalizações reticentes. São significantes que exprimem significados mutáveis de acordo com a situação em que se contextualizam. A realidade na qual as informações são inseridas passa a influir no sentido destas conforme a ênfase dada aos problemas propostos e a forma de leitura adotada para compreendê-los. A aplicação desse novo paradigma ao mundo jurídico pode ser pensada a partir da conformação do sustentáculo lingüístico do Direito aos usos da sociedade. Mister atribuir à linguagem e à comunicação importância máxima, haja vista serem o elo que relaciona os sujeitos de direito, os legisladores e os operadores jurídicos às idéias de justiça imanentes a determinada coletividade. 2 HERMENÊUTICA DOS DIREITOS Pode-se dizer que a forma de interpretar o Direito passou a merecer atenção e estudo especializado a partir de 1804, quando da elaboração do Código Civil 12 “(...) o significado que é completado na leitura, embora limitado pela estrutura do texto, é variável e determinado pela convergência entre texto e leitor”. WOLFF, Janet L.. A produção social da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 124. Napoleônico.13 Trata-se de uma primeira sistematização – dita externa, pois objetivou meramente uma organização esquemática dos conteúdos jurídicos – a partir da qual nasceu o dogma da completude da lei.14 Através do princípio do non liquet, era proibido ao julgador eximir-se de solucionar um caso, mesmo quando verificasse omissões legais. Não se admitia a existência de lacunas, devendo o operador procurar dentro do Code a resposta para as questões controversas (por mais aberrantes que fossem as adaptações). Além disso, no intuito de unificar a aplicação do Direito na França, foi valorizado o dogma da vontade do legislador. Era imperioso ao operador jurídico buscar nas disposições legais o sentido a elas atribuído pelo legislador, a fim de criar identidade jurídica em todo o território francês. Nascia, assim, a Escola da Exegese, fundada na interpretação literal dos dispositivos legais: uma tentativa de evitar a distorção do espírito da lei.15 Em 1934, Hans Kelsen lança a obra Teoria Pura do Direito, na qual defende a autonomia metodológica da Ciência do Direito. No âmbito estrutural, arraigado numa forte tendência formalista, Kelsen cria o conceito da grundnorm para legitimar a validade de todo o ordenamento jurídico, desenvolvendo a noção de hierarquia piramidal. No que diz respeito à hermenêutica, depreende-se um esforço no sentido de vislumbrar uma separação entre valores morais e ordenamento jurídico, posto que à Ciência do Direito apenas caberia o estudo das possibilidades de relação das normas in abstracto. Assim, a questão sócio-pragmática, relativa à aplicação do Direito, fica prejudicada no pensamento kelseniano. Com a classificação do procedimento decisório como “política do Direito” (situada fora da esfera da Ciência do Direito) Kelsen abdica por completo da discussão filosófica acerca da justiça material.16 13 O recorte histórico apresentado neste trabalho, tanto no que diz com o Direito ou com a Arte, atém-se às principais tendências hermenêuticas, sem a pretensão de esgotar o tema. 14 Por se tratar da primeira codificação de relevância, o Código Civil Francês chegou a ser confundido, muitas vezes, com a própria noção de Direito. Assim, “direito era o que o Code ‘dizia’ que era direito”. 15 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 17a Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 252. 16 Excluir da Ciência do Direito o seu rito de aplicação (dotado de posicionamento político, de carga metafísica) visa propiciar que os cientistas jurídicos se preocupem apenas com as formais condições de possibilidade do ordenamento enquanto posto. Kelsen não leva em consideração, entretanto, o procedimento nomogenético, que também é orientado, obrigatoriamente, por inflexões valorativas – seja pela escolha do conteúdo da norma, seja pelos limites de abrangência da norma, ou ainda pela forma de redação da norma. Assim, o resultado da teoria kelseniana é o distanciamento da realidade, levado a cabo pela redução de todo o Direito a um momentum da obtenção do Direito, o que deixa nítida a incompletude dessa percepção fenomenológico-jurídica. A incapacidade do pensamento positivista de exercer um controle sobre as chamadas “referências metafísicas” do julgador fez com que o momento final da realização do Direito – sua efetiva obtenção – permanecesse na senda da subjetividade. O resultado dessa “indiferença” do ordenamento jurídico fez-se notar mundialmente: não obstante as teses que escusam a postura de Kelsen,17 fato inafastável é que sua teoria proporcionou bases para a eclosão de um genocídio “lícito” – a Segunda Guerra Mundial, desenvolvida sem afronta às normas amorais do Reich, ora “arejadas” pela vontade do Führer.18 O Direito não tardaria a oscilar da direita – como o pêndulo de Galileu – consciente, entretanto, dos efeitos do atrito. O Pós-Guerra trouxe, por vias tortas, saldo positivo para a Ciência Jurídica, que veio acompanhar a tendência mundial da opção por valores.19 No dizer de Karl Larenz, a questão da determinação do modo como será possível ao juiz chegar à decisão justa dos casos, com a ajuda da lei ou, porventura, sem ela, ocupa em boa verdade todos os autores modernos da metodologia jurídica. 20 Nesse passo, Josef Esser21 desponta como um dos reconstrutores da ponte entre Direito e Justiça ao descrever com propriedade o processo de reconhecimento dos princípios jurídicos, vinculando-os a valores. Afirma que a descoberta de princípios se dá casuisticamente, para depois, através da reiterada ratificação da jurisprudência, constituir um padrão de adequação. A legitimidade principiológica viria, portanto, da permanente confirmação jurisprudencial de um entendimento. Notadamente, há aqui a atribuição de um papel fundamental à decisão, qual seja: fornecer matéria-prima à criação teórica.22 17 Em especial, LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução José Lamego. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1989. pp. 94 e 95. e também SZYNWELSKI, Cristiane. Teoria Geral do Direito e o fato jurídico processual. Uma proposta preliminar. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 224, 17 fev. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4837>.Acesso em: 30 ago. 2006. 18 Neste sentido, ver SERVILHA, Cláudia Monteiro. Teoria da Argumentação Jurídica e Nova Retórica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. 19 Exemplo significativo foi a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela ONU, em 10 de dezembro de 1948, como forma de reconhecimento de um naipe valorativo incondicional. 20 LARENZ, Karl. Op. cit. p. 161. 21 ESSER, Josef. Apud LARENTZ, Karl. Op. cit. pp. 161 e segs. 22 Há identidade entre o pensamento de Hans-Georg Gadamer (Verdade e Método, 1960) e o de Com um pensamento similar ao de Esser, Theodor Viehweg lança a obra Topik und Jurisprudenz, em 1953.23 A chamada Escola Tópica resgata o dado de que todo o Direito Romano sedimentou-se à base de soluções de casos concretos, tencionando que em cima dessas decisões foi arquitetada a necessidade de vinculação a um sistema generalizador. Viehweg defende que o Direito é tão somente uma técnica de resolução de problemas, que articula uma necessidade aparente de sistema, injustificável na prática.24 Entre as principais críticas que faz ao Direito como sistema estão a arbitrariedade na escolha dos princípios jurídicos25 e a necessidade de adequação do sistema ao caso concreto quando da aplicação do Direito. O pensamento tópico tem como pressuposto a tese de que a solução de uma lide (e a conseqüente justiça no caso concreto) seria apoiada em tópicos26 intersubjetivos que, admitidos, trariam respostas lógicas infalíveis. Esse pressuposto é severamente criticado por Ronald Dworkin27 e leva Menezes Cordeiro a sustentar que a Tópica seria um avanço do pensamento formalista, pois a justeza da decisão seria indiferente à legitimidade ou conveniência das pretensões, bastando estar Josef Esser (Princípio e Norma na Elaboração Jurisprudencial do Direito, 1956). A noção de círculo hermenêutico é perceptível em Esser pela admissão de conceitos pré-conhecidos pelo intérprete-aplicador, que a partir deles irá até a lei colher coerência sistematizante, para finalmente confirmar a aplicabilidade, transformando o pré-entendimento em entendimento. Ver CORDEIRO, Antônio Menezes. Perspectivas Metodológicas na Mudança do Século. In: CANARIS, Claus- Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3a ed. Lisboa: FCG, 2002. pp. LV e LVI. 23 VIEHWEG, Theodor. Apud LARENZ, Karl. Op. cit. pp. 170 e segs. Também em CORDEIRO, Antônio Menezes. Op. cit. p. XLVI e segs. 24 Kierle, outro representante da Tópica, faz uma crítica à vinculação da decisão judicial ao ordenamento jurídico, pois o caracteriza como “presumivelmente” justo. KIERLE, Wilhelm apud LARENZ, Karl. Op. cit. pp. 175 e 176. De fato, pertinente a reflexão quanto à legitimidade do procedimento nomogenético e da vinculação a precedentes. 25 Para uma ampliação da discussão envolvendo arbitrariedade e valores, vide as obras de Friedrich Wilhelm Nietzsche, em especial Aurora (1881); Para Além de Bem e Mal (1886) e A Genealogia da Moral, (1887). 26 O conceito de “tópico” é tão abrangente em Viehweg que abriga todo e qualquer questionamento jurídico relevante à causa. Assim, pode trazer ao mesmo plano o interesse das partes e o postulado da igualdade, o que denuncia a ausência de hierarquização axiológica entre os tópicos. Neste sentido, LARENZ, Karl. Op. cit. pp. 172 e 173. 27 Professor de Filosofia Jurídica nos EUA, Dworkin dá atenção especial à discussão acerca da necessidade de vinculação do juiz à principiologia (em detrimento da livre analogia ou discricionaridade) quando do enfrentamento de casos sob a regulação de normas de caráter aberto. DWORKIN, Ronald apud COUTINHO, Kalyani Rubens Muniz. A proposta de Ronald Dworkin na interpretação judicial dos hard cases. avocato.com.br, Brasília, n. 0006, nov. 2003. Disponível em: <http://www.avocato.com.br/doutrina/ed0006.2003.lcn0001.htm>. Acesso em: 6 set. 2006. assentada em uma noção intersubjetiva.28 Também Canaris se pronuncia nesse sentido: É evidente que não está aqui em causa a busca da verdade mas antes o “sucesso retórico” puramente exterior, portanto do triunfo não poucas vezes bastante fácil sobre o parceiro na discussão ou, ainda, apenas do “aplauso da multidão”.29 Muito embora a Tópica tenha alcançado notável expressividade, novos olhares habitam o pensamento jurídico na atualidade. Um grande passo em direção à atual concepção de Direito foi dado em 1983, por Claus-Wilhelm Canaris, quando da publicação da obra Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito.30 Ao demonstrar que o Direito concentra as duas características fundantes do conceito de sistema (unidade e ordenação),31 Canaris defendera a consideração sistemática do fenômeno jurídico como a mais integral das formas de interpretação do Direito até então existentes. Pode-se afirmar que esse pensamento alia as concepções de sistema externo (desenvolvidas a partir da codificação francesa) à emergente consciência da carga valorativa imanente às decisões (trazida à tona pela escola Tópica). A Interpretação Sistemática do Direito traz a compreensão de que a erupção axiológica observada na casuística está onipresente no sistema jurídico, ainda que, muitas vezes, em estado latente, cabendo ao operador/intérprete proceder sempre a uma apreensão integral do Direito, não limitada apenas à contingência do ordenamento jurídico, mas aberta aos costumes, à analogia, à consciência jurídica geral, etc.. Para isso, vem a lume a idéia de sistema jurídico aberto e móvel. Continuando o caminho aberto pelo passo inicial de Canaris, Juarez Freitas percorre alguns quilômetros. Ciente do estudo das relações sígnicas proposto por 28 CORDEIRO, Antônio Menezes. Op. cit. p. LII. 29 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3a ed. Lisboa: FCG, 2002. p. 254. 30 CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit. 31 A unidade do Direito emerge da teleologia do ordenamento jurídico, ou seja, da força entrópica principiológica do sistema. A ordenação, por sua vez, advém da possibilidade de se obter a justiça por meio de uma apreciação racional acerca da adequação do sistema no momento decisório. Nas palavras de Canaris, “não é tarefa do pensamento teleológico (...) encontrar uma qualquer regulação justa, a priori no seu conteúdo (...) mas apenas, uma vez legislado um valor (primário), pensar todas as suas conseqüências até o fim, transpô-lo para casos comparáveis, solucionar contradições com outros valores já legislados e evitar contradições derivadas do aparecimento de novos valores. Garantir a adequação formal é, em conseqüência também a tarefa do sistema teleológico (...)”.(CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit. p. 75). Saussure,32 que evidenciou serem arbitrários os nexos entre significado e significante, Juarez Freitas identifica uma das principais dificuldades na interpretação jurídica: dar conta da diversidade de significados que vem à tona quando da leitura dos significantes legais.33 Com competência, encontra aí um espaço epistemológico para aplicabilidade da Tópica. A consideração casuística, no momento de aplicação do Direito, é responsável por definir o contexto do problema jurídico, e esta condição situacional orientará o intérprete a buscar a melhor dentre as interpretações extraíveis das disposições legais. Conforme suas próprias palavras, a interpretação sistemática deve ser entendida como uma operação que consiste em atribuir, topicamente, a melhor significação, dentre as várias possíveis, aos princípios,às normas estritas (ou regras) e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias em sentido amplo, tendo em vista bem solucionar os casos sob apreciação.34 Fato é que, mesmo após essa operação tópico-lingüístico-jurídica, poderá o intérprete deparar-se com normas orientadas por valores antagônicos, as chamadas antinomias. Para solucionar essa tensão, Juarez Freitas infere o princípio da hierarquização axiológica, o qual permite uma reconstrução incidental da rede axiológica do sistema. Em cada caso concreto são reagrupados hierarquicamente os princípios jurídicos conforme sua incidência, privilegiando apenas circunstancialmente um em favor de outro. Longe de caracterizar uma escalonagem pré-dada e formal dos valores e princípios do ordenamento, a hierarquização axiológica funciona como metacritério de interpretação do Direito, possibilitando uma releitura da concepção piramidal kelseniana, esta sim de bases formais, e operando uma constante adequação da norma preponderantemente incidente. Conforme salienta Aronne, 32 Ferdinand Saussure, mestre genebrino que ministrava o curso de Lingüística Geral, foi o precursor da idéia de língua como sistema. (SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica? São Paulo: Brasiliense, 1995. pp. 76 e segs.; WARAT, Luís Alberto. Op. cit.; ORLANDI, Eni Pulcinelli. Op. cit. pp. 20 e segs.). 33 Desde Saussure, temos já o significado de um termo vinculado a uma inter-relação sígnica no âmbito interno do sistema lingüístico. A língua “se constitui em um sistema de múltiplos signos articulados, onde a significação depende não apenas de uma relação interna do próprio signo, mas também da relação de um signo com os outros”. (WARAT, Luís Alberto. Op. cit. p. 25) A partir de 1953, com a publicação de Investigações Filosóficas, Wittgenstein amplia o processo de significação para abranger, além das relações internas dos signos, também os contextos de uso provenientes da análise dos propósitos do emissor. (Ibidem p. 66). 34 FREITAS, Juarez. Op. cit. p. 80. a hierarquização axiológica do sistema é tópica, de modo que uma mesma regra poderá traduzir conteúdos distintos do tecido axiológico normativo em casos distintos.35 É de se ressaltar a base gadameriana que fundamenta a operacionalização do princípio da hierarquização axiológica. Notadamente, Juarez Freitas trabalha com os conceitos de fusão de horizontes36 e círculo hermenêutico,37 à medida que propõe ao aplicador do Direito “fazer as vezes de catalisador dos melhores princípios e valores num dado horizonte histórico”.38 A tarefa consiste em partir do horizonte particular – estando “orientado por uma apropriada visão sistemática” e “mantendo- se atento à emergência das funções normativas contemporâneas” – em direção ao horizonte sistemático-jurídico para colher os princípios incidentais no caso concreto e realizar uma operação hierarquizadora, a fim de “prevenir ou remediar as antinomias axiológicas”, atingindo assim a melhor solução. O desvelamento deste ciclo hermenêutico-jurídico é a síntese da contribuição de Juarez Freitas para o Direito.39 35 ARONNE, Ricardo. Op. cit. p. 46. 36 (Para apreensão do sentido aplicado ao termo “horizonte”, vide nota 2). O termo “fusão de horizontes” é cunhado por Gadamer para identificar uma ampliação do horizonte de interpretação. Como se percebe em GADAMER, Hans-Georg. Op. cit. p. 452, “a elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição”. Continua (p. 456): “Ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver mais além do próximo e do muito próximo, não para apartá-lo de vista, senão que precisamente para vê-lo melhor, integrando-o em um todo maior e em padrões mais corretos”. Gadamer pondera também que “compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos” (p. 457). Ainda, na mesma obra, o autor reafirma a noção de fusão, ao invés da errônea substituição: “faz parte da verdadeira compreensão o recuperar os conceitos de um passado histórico de maneira que contenham, ao mesmo tempo, o nosso próprio conceber”. (p. 551). 37 O círculo hermenêutico é um conceito elaborado por Heidegger para explicar o processo de compreensão. Gadamer realiza um estudo aprofundado, pormenorizando-o: “Quem quiser compreender um texto realiza sempre um projetar. Tão logo apareça um primeiro sentido no texto, o intérprete prelineia um sentido do todo. Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão do que está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que, obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se avança na penetração do sentido. Essa descrição é, naturalmente, uma abreviação rudimentar: o fato de que toda revisão do projeto prévio está na possibilidade de antecipar um novo projeto de sentido; que projetos rivais possam se colocar lado a lado na elaboração, até que se estabeleça univocamente a unidade do sentido; que a interpretação comece com conceitos prévios que serão substituídos por outros mais adequados. Justamente todo esse constante reprojetar, que perfaz o movimento de sentido do compreender e do interpretar, é o que constitui o processo que Heidegger descreve. Quem procura compreender está exposto a erros de opiniões prévias, as quais não se confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos e adequados às coisas, que como projetos são antecipações que apenas devem ser confirmadas ‘nas coisas’, tal é a tarefa constante da compreensão”. (Ibidem p. 402). Ampliando os vetores do círculo hermenêutico, Gadamer renova o sentido do termo “preconceitos” (pp. 406 e segs.) e desenvolve o conceito de “concepção prévia da perfeição” (pp. 440 e segs.), que diz com a expectativa do intérprete de que a informação transmitida tenha um sentido unitário. 38 FREITAS, Juarez. Op. cit. p. 171. 39 Vale ressaltar que o princípio da hierarquização axiológica serve como mediador da mobilidade do É justamente sobre a perspectiva Tópico-Sistemática que a corrente hermenêutica contemporânea brasileira vem focalizar, como centro e destinatária de todo o Direito, a pessoa humana. A leitura do Direito como sistema possibilita aos valores constitucionais inundar o ordenamento jurídico por inteiro (independentemente da existência de mecanismos positivados),40 em busca da proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos, redefinindo a noção de ordem pública.41 Eis a repersonalização do Direito: o patrimônio dando lugar ao ser humano.42 Essa mudança de paradigma surge amparada por uma substituição da racionalidade. Conforme bem orienta Aronne,43 amparado em bases habermasianas, a razão deixa de ser objetiva e determinista para ser intersubjetivamente ajustada. A consciência da necessidade de não-determinismo hermenêutico propõe, assim, um rompimento com o pensamento jurídico clássico. Deve-se ter em conta que “os sistema, pois o ato de hierarquizar topicamente servirá para estabelecer as partes rígidas do Direito em cada problematização concreta. Essa construção teórica de Juarez Freitas traz otimização aos atributos sistemáticos inferidos por Canaris, pois serve como legitimação hermenêutico-procedimental. 40 Há juristas que defendam como inovaçãodo Código Civil de 2002 a presença das cláusulas gerais, normas de conteúdo móvel que serviriam como janelas para trazer ao plano do Direito Civil os aspectos constitucionais. Todavia, dada a ampla abrangência dos princípios constitucionais em todos os graus de jurisdição (são auto-aplicáveis, independente de normas permissivas ou regulamentadoras) e tendo-se em conta a abertura do sistema para integrações transdisciplinares, melhor metáfora se poderia usar dizendo que, no Direito, há ausência de paredes. Nesse passo, TEPEDINO, Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil constitucional. In: Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo, nº 65, jul.-set. 1993. e também ARONNE, Ricardo. Código Civil Anotado: Direito das Coisas, disposições finais e legislação complementar selecionada. São Paulo: Thomson, 2005. pp. 17 a 25). 41 Convém salientar que toda essa nova leitura do Direito só se dá em função de viger, no Brasil, desde 1988, uma Constituição Federal instituída sob um Estado Democrático, a qual abriga como valores supremos os direitos sociais e individuais, a liberdade e o bem-estar. (Vide preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil). 42 As Escolas da Exegese e Pandectista, acendidas pela ascensão burguesa, tinham como principal meta salvaguardar os direitos individuais frente às intervenções do Estado-Leviatã (Hobbes). Nasciam os direitos de primeira geração, de cunho protetivo-patrimonialista, tendo como foco principal o resguardo das relações contratuais, da propriedade, e da autonomia intrafamiliar: uma exaltação da esfera Privada. A revolução industrial e seu conseqüente desequilíbrio social evidenciaram a necessidade de reafirmação dos direitos de igualdade. Com a erupção dos direitos de segunda geração o Estado passava a intervir ativamente para realização da justiça no seio da sociedade, buscando proteger da exploração liberal-capitalista as camadas mais carentes da população. O surgimento dos direitos de terceira geração, por sua vez, demonstra o reconhecimento de respeito a especificidades de grupos sociais ou coletividades, englobando a preservação do meio-ambiente e do patrimônio cultural, inclusive possibilitando uma horizontalidade de aplicação dos direitos fundamentais entre particulares, imputando a todos o dever de zelo e fraternidade social. 43 ARONNE, Ricardo. Direito Civil-Constitucional... conceitos pandectistas são estereótipos representacionais dos valores liberais burgueses (...)”.44 Os institutos erigidos no Código Napoleônico, ampliados pelo B.G.B. e mantidos até o Código Civil Brasileiro de 1916, trazem nitidamente uma característica ideológica individualista, descompromissada com a defesa de direitos difusos. A estrutura é reducionista, cega à amplitude dos efeitos das relações jurídicas, que assumem proporções para além dos sujeitos que as polarizam. Reestruturar a base de operacionalização jurídica é um dos objetivos de uma interpretação constitucionalista do Direito Civil; operar uma mudança de paradigma, pela qual se reconstrua o Direito a partir de ideais humanitários. Importa considerar o complexo; admitir que, por trás de toda vertente axiológica constitucional está uma ideologia solidarista. Afinal, ter a consciência de que apenas fractalmente se poderá pisar no instável terreno da decisão prudente. Assim, pode-se dizer que, conforme a hermenêutica jurídica contemporânea, o sistema jurídico (Canaris) é topicamente hierarquizado (Juarez Freitas) para que, face à ponderação intersubjetiva (Habermas) dos dispositivos legais no âmbito interno (Saussure), se possa atribuir significados circunstancialmente incidentes (Wittgenstein), tendo como telos a proteção dos valores fundamentais constitucionais (Perlingieri), extraídos não-deterministicamente das perspectivas da lide (Aronne). Esta perspectiva emancipatória de interpretação do Direito representa o atual estado da arte em termos de hermenêutica jurídica, fruto de aperfeiçoamentos não só doutrinários, mas também adotados pela atual jurisprudência45 e recepcionados pelo ordenamento jurídico.46 A maturidade ora alcançada permite afirmar que “o Direito Civil contemporâneo rompe o casulo conceitual para 44 ARONNE, Ricardo. Por Uma Nova Hermenêutica... p. 33. 45 Dentre as decisões jurisprudenciais pacificadas emergentes ressaltem-se a súmula 286 do STJ (renegociação de contrato bancário não impede discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores), a súmula 302 do STJ (abusividade da limitação de tempo de internação hospitalar para segurados), e a súmula 308 do STJ (garantia dos direitos do promitente-comprador de boa-fé do imóvel, frente à hipoteca feita pela construtora). 46 Exemplos são a relativização da propriedade em confronto com a sua função social (art.170, III da C.F.), a relativização do pacta sunt servanta pela possibilidade de revisão dos contratos abusivos (art. 421 C.C. e art. 6o, V do C.D.C.), e o reconhecimento da união estável como entidade familiar (art. 226, §3o da C.F.) – no que diz respeito aos três pilares do Direito Civil. Com ênfase atual, ainda, no Direito Empresarial (função social da empresa – art. 47 da Lei de Falências), no Processo de Execução Civil (impenhorabilidade do imóvel domiciliar como proteção da dignidade – Lei 8.009/90) e no Direito do Trabalho (proteção do empregado – art. 468, caput da C.L.T.). reencontrar a sociedade...”.47 Um reencontro que volta ao lugar de saída, mas verticalizado, em espiral. Não mais uma força entrópica e abstrata alicerçada em axiomas hermenêuticos. Antes o reconhecimento da importância de vários métodos e critérios de interpretação para construir um todo que valoriza a concretude da vida. 3 HERMENÊUTICA DAS ARTES Direito e Arte sempre andaram afinados no discurso. Estranho seria se assim não sucedesse: produções sócio-culturais que são, vertem das mesmas raízes – o substrato humano. A forma de percepção dessas duas esferas sofre, indiscutivelmente, a influência histórica do pensamento das sociedades, o qual transpassa todas as produções culturais e ciências, deixando verdadeiras impressões digitais a identificar a congruência dos diversos campos do saber. No tocante à hermenêutica das artes, bem ensina Janet Wolff que as teorias da produção artística, inclusive o que foi chamado de ‘estética materialista’, concentram-se com muita freqüência ou na natureza da produção cultural, ou no texto ou na própria obra, ou em ambos, às expensas do outro momento vital do processo – a recepção das obras de arte.48 Quer isso dizer: as teorias artísticas tradicionais excluem da análise da obra o seu contato com o destinatário – o público.49 Com efeito, em se tratando de literatura, na modernidade a crítica concentra-se no pólo da textualidade.50 O motivo é auto-explicável quando o situamos historicamente e identificamos as questões sociológicas e políticas que o orientaram. A poesia edificada durante a ascensão burguesa tem a intenção de promover rupturas com a realidade social então vivenciada; é a forma artística 47 ARONNE, Ricardo. Por Uma Nova Hermenêutica... p. 7. 48 WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 111. 49 Se a função da arte é, realmente, promover uma comunicativa troca de experiências sociais e interligar todos a um imaginário coletivo homogêneo, por óbvio o destinatário da obra de arte não pode ser outro que não o público (a sociedade em geral). 50 Conforme LIMA, Luiz Costa (Org.). A Literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 10. encontrada para rechaçar o status quo absolutistae incentivar uma renovação da visão de mundo. Entre as principais características da arte romântica praticada à época da Revolução Francesa estão: o auto-deleite da subjetividade individual, a necessidade de internalizar modos de conduta que destacavam a prática da privacidade, e a vontade de diferenciação.51 Daí a importância dada à mensagem do pólo textual; por isso a preocupação artística em vislumbrar e valorizar o conteúdo incutido na obra pelo autor.52 Excluir a liberdade do intérprete significava evitar variações de leituras, capazes de diminuir a força da mensagem revolucionária da obra. Nada destoante da hermenêutica jurídica oitocentista, compromissada em descobrir nas normas (por inteiro e tão somente) a vontade do legislador. Hermenêutica jurídica e artística em dueto: concepção sócio-cultural em harmonia. A partir dos estudos lingüísticos de Saussure, no início do séc. XX, Roman Ingarden53 introduz na análise literária uma percepção que dá o passo inicial para a consideração do leitor no procedimento hermenêutico, atribuindo-lhe um papel ativo na experiência estética. Apesar de manter o texto como centro do processo, Ingarden atribui ao pólo receptivo a função de concretização da obra: trata-se de realizar, no ideário individual, as potencialidades pré-determinadas na própria substancialidade do texto.54 Equivale dizer: a obra de arte traz simulada sua completude, esquematicamente, mantendo pontos de indeterminação como limites entre o texto e sua concretização.55 Nesse passo, o valor estético da obra literária é medido em função desses locais de indeterminação imanentes oferecidos para a concretização. Si una obra literaria es una obra de arte valiosa, cada uno de sus estratos debe contener cualidades especiales. Estas cualidades valiosas son de dos tipos, según corresponden a valores artísticos y a valores estéticos. Estos últimos están presentes en la obra misma de arte en un peculiar estado potencial.56 51 Conforme LIMA, Luiz Costa (Org.). Op. cit. p. 17. 52 Como exemplo dessa linha de pensamento está o autor E. D. Hirsch (WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 112 e segs.). 53 Autor polonês, discípulo e Husserl, reconhecido pela publicação de A obra de arte literária (1931) e A cognição da obra de arte literária (1937). 54 A influência de Saussure é percebida pela forma como Ingarden define a metodologia de concretização do texto, qual seja, uma relação interna, entendendo a obra como um sistema que deve ser colmatado com respaldo nos seus próprios signos, totalmente aptos a informar o leitor. 55 Conforme ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: LIMA, Luiz Costa (Org.). Op. cit. p. 96. 56 INGARDEN, Roman. Concreción y reconstrucción. In: WARNING, Rainer (ed.). Estética de la A atividade ora conferida ao leitor, entretanto, não representa uma liberdade para criar. Aliás, como bem ensina Zilberman, Ingarden “faz questão de acentuar que o leitor, bem como o autor, são instâncias exteriores que não interferem na natureza do texto”.57 A obra tem fonte na consciência criativa do autor, mas depois de instituída pode ser apenas acessada intersubjetivamente pelo leitor, nunca modificada. Assim, fica limitado o leitor a proceder à concretização dos lugares de indeterminação com amparo nos vestígios deixados propositalmente58 pelo autor.59 Permanece em jogo a busca da interpretação correta: apesar de admitir-se que a indeterminação pode gerar efeitos diversos no receptor, capazes de desvirtuar uma adequada concretização da unidade da obra, somente será valiosa a experiência estética que realizar a forma e o sentido estipulados pelo texto, antes inacabado e aberto. Essa fase da hermenêutica literária continua sob a influência do conhecimento objetivo e da racionalidade tradicional. Ainda aqui, o texto é uma realidade pré-determinada e exageradamente entrópica: é reconstruído em função das próprias lacunas. A atualização das potências estéticas tem uma direção unilinear do pólo transmissor para o pólo receptor; a noção intersubjetiva aparece apenas enquanto via de acesso da consciência do intérprete à estrutura da obra, sem, no entanto, admitir a contaminação da natureza do texto pela subjetividade do leitor. Com intuito de evitar a transgressão da forma original da obra de arte, Ingarden sugere um estudo analítico detalhado, afirmando que si el lector está preocupado – como en principio debería estarlo – por la reconstrucción y visión de la forma propria de la obra mediante su concreción, no deberá proceder arbitrariamente en la actualización de los aspectos. Puesto que las cosas y las personas no deben ser proyectadas de modo puramente intencional por medios lingüísticos en la obra literaria recepción. Madrid: Visor, 1989. p. 36. 57 ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989. p. 14. 58 “La presencia de lugares de indeterminación no es algo accidental, el resultado de un defecto de composición. Más bien es necesaria in toda obra literaria de arte”. (INGARDEN, Roman. Concreción y reconstrucción. In: WARNING, Rainer (ed.). Estética de la recepción. Madrid: Visor, 1989. p. 37). 59 “O equivalente mais próximo do conceito de Ingarden dos pontos de indeterminação encontra-se na publicidade, principalmente naquela em que o texto e a música agem em conjunto, omitindo-se deliberadamente o nome do produto, para que, pela audição da melodia, o receptor identifique a marca”. (ISER, Wolfgang. Op. cit. p. 101). de arte. Deben mostrarse al lector en los aspectos seleccionados apropriadamente. Y la función del lector consiste en plegarse a las sugestiones y directivas que emanan de la obra, actualizando no cualquier aspecto arbitrario, sino los aspectos que la obra sugiere. 60 Hans Robert Jauss61 seria o primeiro a constatar a necessidade de ampliar os horizontes da hermenêutica das artes, já de muito presa às determinações objetivas. Nas suas palavras: Urgia renovar os estudos literários e superar os impasses da história positivista, os impasses de interpretação (...). Tal propósito não seria alcançável através da panacéia das taxinomias perfeitas, dos sistemas semióticos fechados e dos modelos formalistas de descrição, mas tão só através de uma teoria da história que desse conta do processo dinâmico de produção e recepção e da relação dinâmica entre autor, obra e público, utilizando-se para isso da hermenêutica da pergunta e resposta. 62 A crítica às noções positivistas burguesas nasce sob o entendimento de que “o leitor, o observador ou o público participam ativamente da construção da obra de arte, e, sem o ato de recepção/consumo, o produto cultural fica incompleto”.63 À medida que seu horizonte de expectativa influencia o significado da obra, o intérprete ganha independência, deixando de figurar como alguém que simplesmente segue indicações para concretizar potências do pólo transmissor. A obra mostra-se, agora, mutável; não mais uma essência fixa e alheia aos caminhos (e descaminhos) da sociedade. A partir daí, a relevância da análise da recepção estética passa a ser flagrante, emergindo diversos estudos acerca do tema. No dizer de Janet Wolff, a obra não pode ser compreendida como uma entidade fixa e imutável, nem o pode ser a sua avaliação; ambas, compreensão e avaliação, se modificam em sua variável recepção e percepção por diferentes públicos.64 Da mesma forma se pronuncia Jauss: Uma obra literária não é um objeto com existênciaprópria e que oferece a 60 INGARDEN, Roman. Op. cit. p. 41. 61 Conforme Costa Lima, a obra inaugural de Jauss (A História da Literatura como Provocação, 1967) causou grande impacto por ser a primeira a romper com a tendência imanentista da literatura, deixando de enfocar exclusivamente o pólo textual. (LIMA, Luiz Costa (Org.). Op. cit. p. 11). 62 JAUSS, Hans Robert. Op. cit. pp. 47 e 48. 63 WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 110. 64 Ibidem p. 121. mesma face a cada leitor, em cada época. Não é um momento que revela a sua essência intemporal num monólogo. Assemelha-se muito mais a uma orquestração que faz vibrar sempre novas cordas entre seus leitores e que liberta o texto da substância das palavras, tornando-o significativo para uma época.65 (...) Para a análise da experiência do leitor ou da “sociedade de leitores” de um tempo histórico determinado, necessita-se diferenciar, colocar e estabelecer a comunicação entre os dois lados da relação texto e leitor. Ou seja, entre o efeito, como o momento condicionado pelo texto, e a recepção, como o momento condicionado pelo destinatário, para a concretização do sentido como duplo horizonte – o interno ao literário, implicado pela obra, e o mundivivencial (lebensweltlich), trazido pelo leitor de uma determinada sociedade.66 É de clareza palmar a identificação do pensamento de Gadamer à estética da recepção67 proposta por Jauss, o qual inclusive refere suas bases.68 Tal amálgama teórico resulta no entendimento de que “qualquer significado de uma obra convencionalmente aceito é resultado da história de sua recepção crítica, que começa com seus primeiros leitores”.69 A investigação literária ganha, sob esse paradigma, duas dimensões funcionais: aclarar o processo presente atuante de construção de sentido através da análise da recepção e do efeito estético, e reconstruir a dinâmica histórica pela qual varia a fusão de horizontes entre obra e sociedade em tempos diversos. O juízo estético,70 por conseguinte, emerge de uma razão entre o efeito atual de uma obra de arte e a carga de tradição acumulada pelo desenvolvimento histórico de suas experiências estéticas.71 Essa razão, todavia, ao 65 JAUSS, Hans Robert. Apud WOLFF, Janet L.. Op. cit. pp. 125 e 126. 66 JAUSS, Hans Robert. Op. cit. pp. 49 e 50. 67 As bases teóricas de Gadamer e Jauss se sobrepõem, nas palavras de Wolff: “Uma razão pela qual os significados do texto, ou de qualquer outra obra, vão além da mensagem pretendida pelo autor individual é que a própria linguagem e as próprias formas estéticas empregadas já codificam os significados sociais de um público mais amplo. Não ocorre, por exemplo, que, tendo o autor decidido o que quer dizer num romance, tenha livre escolha das palavras e modos de expressão para dizê-lo. (...) De uma maneira ou de outra, a necessidade de utilizar convenções estéticas e lingüísticas existentes já envolve o artista em estruturas extra-individuais do discurso”. (WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 139). 68 “A teoria de Gadamer da experiência hermenêutica, a explicação histórica desta experiência na história dos conceitos humanísticos fundamentais, seu princípio de reconhecer na história do efeito (Wirkungsgeschichte) o acesso a toda a compreensão histórica e a solução do problema da realização controlável da ‘fusão de horizonte’ são os pressupostos metodológicos inquestionáveis, sem os quais o meu projeto seria impensável”. (JAUSS, Hans Robert. Op. cit. p. 55). 69 WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 127. 70 Importante frisar que o juízo estético não neutraliza os atributos técnicos da obra de arte. Conforme Fischer, “a qualidade artística de uma pintura pode ser discutida em termos de estrita objetividade, porém o seu significado permite diferentes leituras” (FISCHER, Ernst. Op. cit. p. 160.). Da mesma forma, a análise da recepção jurídica e de seus efeitos não diz com a qualidade técnica porventura existente em normas positivadas. 71 Uma crítica que se pode fazer a Jauss é que ele reconhece o elemento histórico que há na recepção literária, mas não especifica quais as circunstâncias históricas relevantes a serem examinadas, deixando de descrever um procedimento para a cognição do horizonte histórico- arrepio da tradição modernista, passa a ser prática, nos moldes de Habermas,72 buscando reparar um equívoco secular incessante: das funções vitais da arte, era considerado “apenas o lado produtivo da experiência estética, raramente o receptivo e quase nunca o comunicativo”.73 Bem assevera Jauss que A práxis estética ainda não é de todo determinada quando se iguala a atividade estética produtiva e receptiva com a dialética econômica da produção e do consumo, deixando-se de lado a atividade comunicativa, como momento mediador da experiência estética. (...) Intervém aí, entre produção e consumo, um terceiro momento, dividido em distribuição e troca, que normalmente representa a área de interação (...).74 Segundo Regina Zilberman, “Jauss não acredita que o significado de uma criação artística possa ser alcançado, sem ter sido vivenciado esteticamente”, ou seja, sem prazer estético.75 Partindo dessa consideração, e por meio de uma releitura aristotélica, são postuladas as três fases que, levando em conta a recepção estética, materializam a fruição das artes: poiesis (produção), aisthesis (percepção) e katharsis (transmutação). Jauss define a poiesis como uma faculdade poética; o prazer do indivíduo em criar, sentir-se co-autor, convertendo o mundo em sua própria obra. A aisthesis refere-se à percepção de novos horizontes; ao prazer receptivo básico de colher, pela experiência sensível, dados sobre uma realidade outra e reconhece-la, ou não, em sua plenitude. A katharsis, por sua vez, representa literário de cada intérprete. Ao contrário, Jauss simplesmente supõe um público unificado, uniformemente influenciado pelas tendências de cada época. Nesse sentido, WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 126. Também Regina Zilberman chama a atenção para esse enfoque, quando salienta que Jauss, para evitar uma interpretação subjetiva e variável, volta-se à recepção e ao efeito de uma obra não no indivíduo em sua singularidade, dotada de idiossincrasias, mas enquanto horizonte formado por um sistema objetivo de expectativas literárias, decorrentes da compreensão prévia de gêneros, formas e temáticas artísticas de obras anteriormente conhecidas. Assim, a crítica feita é que “os elementos necessários para medir a recepção de um texto encontram-se no interior do sistema literário” (ZILBERMAN, Regina. Op. cit. pp. 33 e 34). Conclui, então, a autora, que “neste ponto, Jauss não está sendo totalmente fiel ao pensamento de Gadamer. Este entende o horizonte como a perspectiva que abarca e encerra o que pode ser visto a partir de um certo ponto. Jauss, por sua vez (...) assimila ao horizonte as características do código estético (...)”. (p. 35). 72 Vale dizer que o entendimento da Arte enquanto fusão intersubjetiva de horizontes abre as portas para utilização do pensamento habermasiano sem, no entanto, tomá-lo em sua integralidade. Em verdade, uma grande discussão divide opiniões entre Habermas e Gadamer: para Habermas, a ciência social crítica tem a capacidade de situar os signos em seus contextos sociais e ideológicos e, com isso, alcançar uma distância tal do objeto que permita a visão clara do seu real sentido; para Gadamer, a proposta de Habermas de uma crítica da ideologia superestima a competência da reflexão e consciência, pois enfatiza um sociólogo ideal, que ultrapassequalquer limite cognitivo para afastar-se de sua própria perspectiva. Seguindo Gadamer, tem-se que resulta impossível uma total assepsia da leitura. “A autoconsciência sobre isso é preferível ao cientificismo ingênuo”. (WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 120). 73 JAUSS, Hans Robert. Op. cit. p. 44. 74 Ibidem pp. 50 e 51. 75 ZILBERMAN, Regina. Op. cit. p. 53. a principal conseqüência da experiência estética: a liberação da psique do leitor para transformar suas convicções, emancipar-se. Nesses termos, a catarse figura como função social da arte,76 possibilitando ao receptor libertar-se “dos interesses práticos e das implicações de seu cotidiano, a fim de levá-lo, através do prazer de si no outro, para a liberdade estética de sua capacidade de julgar”.77 Esse é o momento em que a experiência subjetiva (horizonte de expectativas individual) se transforma em intersubjetiva (fusão de horizontes), através de um acordo (na verdade, anuência) do intérprete ao juízo exigido pela obra. Daí a importância cabal da contribuição de Habermas para mediar um acordo acerca das possibilidades de sentido por cada agente comunicativo assumidas, nunca determinadas, mas sempre determináveis a partir da respectiva localização histórica e sócio-política. No que tange ao Direito, dificilmente se pode identificar um momento específico que reúna de forma concatenada a poiesis, a aisthesis e a katharsis. Todavia, ainda que dissociadas, essas instâncias podem se fazer perceber, mesmo sem trazer ínsito, necessariamente, o caráter de prazer ou fruição. Trata-se, pois, de proporcionarem um sentimento de evolução da consciência jurídica e, por isso, uma dimensão metafísica de transcendência social. A poiesis pode ser percebida quando há uma interpretação judicial que realize a integração sistemática de lacunas no ordenamento jurídico; ou, também, quando da elaboração de teses que legitimamente ampliam ou aprimoram o sentido de disposições legais para alcançar a singularidade dos fatos em constante erupção na sociedade. A aisthesis se faz presente em casos como: publicação e vigência de uma nova lei, pela qual novas incidências fáticas de dever-ser são dadas a conhecer; surgimento de concepções jurídicas ampliativas ou adversas por meio de paradoxos doutrinários ou dissídios 76 Nesse ponto Jauss demonstra entender que “só é boa a criação que contraria a percepção usual do sujeito”, e situa o valor no elemento móvel da “distância estética, equivalente ao intervalo entre a obra e o horizonte de expectativas do público (...)”. (ZILBERMAN, Regina. Op. cit. p. 35). Para Costa Lima, a prenoção axiológica de Jauss exprime que a qualidade de uma obra é função do seu grau de inovação, o que revela uma hipostasia do caráter questionador da experiência estética. A função social de transgressão de normas assumida pela Arte influencia o pensamento de Jauss, obstaculizando o entendimento da estética da recepção enquanto uma teoria ou lei geral, sob pena de caracterizar uma teoria eivada de carga ideológica. Ao passo que se baseia em um leitor ideal e constante, altamente capacitado, é inviável conferir à recepção estética a constância emancipativa proposta por Jauss. (LIMA, Luiz Costa (Org.). Op. cit. pp. 20 a 22). A compreensão do leitor enquanto individualidade é melhor desenvolvida por Wolfgang Iser, apesar de sua axiologia continuar priorizando, à sombra de Jauss, a distância estética como meta artística. 77 JAUSS, Hans Robert. Op. cit. pp. 79 a 81. jurisprudenciais; ao longo dos ritos judiciais, em que a seqüência de atos processuais das partes e do juízo constantemente trazem argumentações que contradizem ou ampliam os horizontes de expectativas. A katharsis, de igual forma, permeia a experiência jurídica. Ainda que juristas como Hans Kelsen não visualizassem a possibilidade de fusão de horizontes entre sistema jurídico e operador/intérprete como um fato integrante do estudo científico do Direito, a hermenêutica contemporânea se inclina cada vez mais à valorização desse procedimento enquanto mediação emancipativa. A novidade trazida à tona por Jauss veio ao encontro do sentimento pós- moderno de fuga às regras. A compreensão de que a obra de arte alimenta as capacidades criativas do leitor a partir de sua recepção estética propiciou, em alguns casos, uma exagerada desvalorização do horizonte autoral incutido na obra. Para críticos como Barthes, o leitor da obra de arte teria uma licença ilimitada na interpretação, sem qualquer vínculo esquemático com a obra e os matizes autorais nela expressos.78 Esse modo de encarar a recepção estética foi responsável pelas especulações quanto à chamada “morte do autor”, pois pregou a desvinculação do diálogo entre horizonte autoral e horizonte receptor. Conforme ensina Janet Wolff, para essa posição relativista “o significado do autor é irrecuperável e, de qualquer modo, é irrelevante para o leitor comum”.79 Uma breve retrospectiva histórico-social permite entender que, enquanto a burguesia revolucionária implantou uma leitura fechada dos objetos (com a finalidade de potencializar a ruptura com a hegemonia do Estado absolutista), a viragem hermenêutica desencadeada pelas pesquisas de Jauss engrenou-se às aspirações sociais de negação das regras ditadas pela classe burguesa (como reação às pré-determinações e ao individualismo excludente do pensamento moderno). Já a licença ilimitada do leitor, proposta por Barthes, tem relação com a corrente pós-moderna que superestima o relativismo pela desconstrução.80 Não 78 Segundo WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 127 e segs. 79 Ibidem p. 127. 80 Dentre os principais nomes da corrente desconstrutora despontam Nietzsche, com sua crítica à imposição da moral, e Jacques Derrida, que propõe a constante re-interrogação dos significados como forma de legitimação do conhecimento. A idéia de submeter-se à reflexão ininterrupta pode ser ilustrada pela conduta de Derrida em um debate com Karl-Otto Apel, ao afirmar: A comunicação é impossível. Apel respondeu: Concordo. Derrida não deixou por menos: Então eu mais se pretende a ruptura com um conjunto de regras orientado pela ideologia dominante, mas sim a desvinculação a qualquer regra pré-estabelecida. A preocupação, em suma, é pôr em relevo o momento da apropriação da compreensão. Para uma análise com esse enfoque literário, apenas ao pólo receptor recai a experiência estética em si. A obra de arte traz tão somente a provocação, a matéria-prima da qual o leitor irá servir-se para o banquete estético. No dizer de Barthes: (...) um texto não é uma linha de palavras que liberam um significado “teológico” único (a “mensagem” do Autor-Deus), mas um espaço multidimensional no qual vários escritos, nenhum deles original, se fundem e se chocam.81 O confrontamento dessa proposta hermenêutica com o pensamento jurídico de Josef Esser e Theodor Viehweg permite identificar-se-lhes características comuns. O que salta à vista, em primeiro lugar, é o descompromisso de direcionar a interpretação do objeto (obra de arte/ hipótese jurídica) ao encontro de uma estrutura ou meta-estrutura de orientação. Ainda que Esser, em especial, tenha desvendado e descrito o procedimento de intuição e positivação dos princípios jurídicos, nem ele nem Viehweg conferem prioridade de incidência ao sistema jurídico estruturado. Tal qual Barthes, a dupla de juristas deixa a interpretação orientada pela conveniência do sujeito, o que pode servir para lhes opor as mesmas críticas feitas às escolas utilitaristas do Direito, como a Jurisprudência dos Interesses. Quando não há uma guia teleológicasistematicamente estruturada para orientar a interpretação, as recepções estética e jurídica podem vir a se distanciar dos padrões historicamente estabelecidos, entrando em conflito com as tendências intersubjetivamente aceitas. Ainda que, na esfera artística, a supressão de um direcionamento imanente não represente maiores problemas sociais (quando muito, resulta em uma experiência estética não convencional, ou em um erro de percepção), na esfera jurídica acarreta aberrações à tutela dos direitos. Especialmente a partir da constatação da existência de direitos difusos, oponíveis por qualquer membro da sociedade – em uma relação horizontal com outros particulares – é fácil depreender que a aplicação do Direito não pode ficar restringida à subjetividade. Em sede de contratos, por exemplo, não me expressei mal. (WIKIPÉDIA – A enciclopédia livre. Jacques Derrida. Artigo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jacques_Derrida> Acesso em: 30 set. 2006). 81 BARTHES, 1977, p. 146. Apud WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 132. há como conferir exclusividade ao interesse das partes sem, ao mesmo tempo, mediá-lo com a totalidade da ordem jurídica para, assim, adequá-lo à preservação dos direitos de terceiros. Cabe, ainda, identificar outra característica importante entre as hermenêuticas de Barthes e Viehweg: a hiper-valorização do momento de concretização. Barthes foca o momento de interpretação como forma de liberação individual dos significados ilimitados contidos na obra, sendo, por isso, o instante em que a Arte se revela em toda sua essência. Viehweg, por sua vez, desenvolve a escola Tópica sob as bases romanas das decisões de casos concretos, defendendo que só a decisão faz o Direito; só a interpretação particular, caso a caso, define qual a melhor aplicação das normas, pois que a interpretação é, em si, aplicação. O que se percebe, em ambos os autores, é a despreocupação em formar uma unidade de entendimento. Sob esse ponto de vista, a experiência estética/jurídica constrói-se para cada indivíduo em particular, não havendo necessidade de estabelecer padrões de homogeneidade (antes, a necessidade de não se prender a padrões). Em outras palavras: a aplicação hermenêutica em cada caso concreto é, já e por si só, a manifestação da Arte e a tutela do Direito, restando à obra de arte e ao sistema jurídico a função de repositórios argumentativos para a fundamentação das leituras obtidas. A concepção da interpretação livre, desvinculada de paradigmas dogmáticos, tende a desembocar numa teoria cognitiva voluntarista, o que acabaria por abalar as bases científicas de qualquer saber. Wolfgang Iser82 redesenhou a importância da obra de arte, recolocando a análise hermenêutica a caminho de uma apreensão equilibrada da fenomenologia artística (e jurídica). Sem retornar à antiga polarização autor-leitor, o que Iser implantou foi um aprimoramento das funções do pólo transmissor e do pólo receptor, mapeando a repercussão e o percurso do efeito estético durante a fusão de horizontes consolidada no ato da leitura. 82 Colega de Jauss e importante elemento na constituição da constelação da estética da recepção. (ZILBERMAN, Regina. Op. cit. p. 15). Entre as obras de Iser destacam-se A Estrutura Apelativa do Texto (1975) e O Ato da Leitura (1976). 4 DESAFIOS E DESAFINOS: TRANSDISCIPLINARIDADE IN CONCRETU A descrição e explicação dos efeitos da experiência estética propostas por Iser são as portas para olhar a fenomenologia artística sob um ângulo menos determinista, mais aberto às individualidades do leitor e, conseqüentemente, mais real. Essa visão renovada faz ressaltar, na contemporaneidade, a força e importância do caráter transcendental da Arte, demonstrando a viabilidade e utilidade de admitir um maior grau de liberdade ao intérprete, sem que isso importe em desapego à unidade da obra. O conceito de interação, construído pela psicologia social, é o pressuposto essencial dessa hermenêutica.83 Todavia, enquanto a interação humana tem a comunicação impulsionada pela impossibilidade de certeza da experiência alheia, na interação literária a comunicação surge dos vazios84 da obra, que impedem o leitor de extrair um conhecimento completo e obrigam-no a fazer projeções.85 A atividade cognitiva literária tem, ainda, uma característica particular: um dos pólos comunicativos está dado e mantém uma base rígida. Assim, enquanto a interação humana permite que ambos os sujeitos comunicativos possam adaptar seus horizontes, na interação literária a obra está fixada e só ao leitor cabe o papel de se adequar. Na visão de Wolff, o texto oferece, necessariamente, “possibilidades polissemânticas”. Deixa 83 “De importância central para a leitura de qualquer obra literária é a interação de sua estrutura com seu receptor. É por isso que a teoria fenomenológica da arte chamou a atenção, enfaticamente, para o fato de que o estudo de uma obra literária deve ocupar-se não só do texto real, mas também, e nas mesmas proporções, das ações envolvidas na resposta ou reação àquele texto”. (ISER, Wolfgang. Apud WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 123) 84 “Os vazios derivam da indeterminação do texto. Devia-se pois designá-los, como Ingarden, pontos de indeterminação. Mas usamos o termo menos para descrever uma lacuna na determinação do objeto intencional ou dos aspectos esquematizados, do que a ocupação, pela projeção do leitor, de um ponto determinado do sistema textual”. (Ibidem p. 106). 85 Resta significativamente ampliado o entendimento de Ingarden, pois o leitor passa a ser compreendido em sua particularidade, como intérprete sempre situado em seu meio circundante, a partir do qual sofrerá influências no processo de construção de suas representações do real sentido da obra. Essa evolução teórica alcançada por Iser tem, em certa medida, uma correlação com o estruturalismo tcheco. “Vodicka parte do conceito de concretização, entendido numa acepção diferente de Ingarden (...). Para Ingarden, a concretização corresponde à realização, por parte do leitor, dos aspectos esquematizados, resultantes do modo (...) como o mundo ficcional se apresenta a ele. Vodicka pensa que a concretização depende antes do código introjetado pelo recebedor, sendo, pois, uma categoria semiótica e estando sujeita a mudanças, por variar entre épocas, classes, situações diferentes”. (ZILBERMAN, Regina. Op. cit. p. 23). lacunas que o leitor preenche ao ler. Como os textos são compostos apenas de frases e enunciados, só podem estabelecer perspectivas várias. (...) Os textos literários encerram uma certa “indeterminação” que os torna passíveis de diferentes leituras. O leitor, portanto, fixa o significado no ato de ler.86 O processo pensado por Iser assemelha-se ao círculo hermenêutico, de Gadamer, pois consiste num constante devir entre antecipação e retrospecção, no qual o leitor oscila entre a estrutura do texto e a sua própria imaginação, suas leituras e releituras. É essa fusão de horizontes que forma o horizonte de referência da situação, o qual ganha papel próprio ao definir os contornos intersubjetivos que permitem ao leitor corrigir ele mesmo suas pré-concepções.87 Conforme Iser, só assim o intérprete “se torna capaz de experimentar algo que não se encontrava em seu horizonte”,88 pois quando há uma adequação exitosa à obra, lhe é possível discernir, à distância, aquilo que antes se mostrava encoberto, bem como perceber a si mesmo,agora livre do contexto das ações pragmáticas. Tatiana Matzenbacher reafirma esse entendimento: “quando dizemos que a leitura é uma revelação daquilo que não sabemos de nós mesmos, inferimos um sentido que ultrapassa a esfera da simples compreensão de um texto ficcional”.89 O que evita uma interpretação arbitrária por parte do leitor é a estrutura de apelo do texto, a qual abrange os complexos de controle e suas inter-relações. No decorrer da experiência estética, as perspectivas formadas pela obra de arte naturalmente forçarão a substituição de alguns conteúdos recorridos pelo leitor, que virá a contrariar seus próprios produtos, criar imagens que colidem entre si, as quais não seriam concebíveis dentro de nossa determinação habitual. Essa freqüente alteridade que se estabelece “se faz através do constante realce de certas parcelas do texto à condição de tema, e outras à condição de horizonte”.90 86 WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 124. 87 “A atividade de leitura pode caracterizar-se como uma espécie de caleidoscópio de perspectivas, pretensões, lembranças. Cada frase encerra uma previsão da frase seguinte e forma uma espécie de visor daquilo que está por vir. Isso, por sua vez, modifica a ‘previsão’ e também se transforma no ‘visor’ do que foi lido”. (ISER, Wolfgang. Apud WOLFF, Janet L.. Op. cit. p. 124) 88 ISER, Wolfgang. Op. cit. p. 89. 89 MATZENBACHER, T. G. L.; OLIVEIRA, R. P. Estética da recepção e a literatura infanto-juvenil. Porto Alegre, 2005. (texto ainda não publicado). Para outra fonte da mesma autora, vide MATZENBACHER, T. G. L. . Leitura Literária e Efeito Estético. In: SEPesq - VII Jornada de Iniciação Científica UniRitter, 2005, Porto Alegre. CD de resumos da SEPesq. Porto Alegre : UniRitter, 2005. 90 LIMA, Luiz Costa (Org.). Op. cit. p. 27. A estrutura de apelo garante uma unidade de sentido à obra, ainda que previamente indeterminada. Segundo Iser, a obra “projeta um mundo concorrente (...) e adquire sua função, não pela comparação ruinosa com a realidade, mas sim pela mediação de uma realidade que se organiza por ela”.91 A tarefa de adequação proposta aproxima-se muito de uma “hierarquização axiológica” das informações imanentes à obra de arte. Esse conceito da arejada hermenêutica jurídica serve para ilustrar a realização da experiência estética, à medida que refere uma metodologia para a identificação da estrutura de apelo da obra. Afinal, assim como o sistema jurídico não pode enfraquecer seus limites frente à subjetividade do intérprete, sob pena de ser considerado, juntamente com o dilema da opção entre valores morais, como irracional, (conforme defendem alguns desconstrutores, em especial Nietzsche e Derrida), também a obra de arte deve manter uma estrutura rígida, ainda que mínima. Daí resulta a relevância de hierarquizar as informações.92 Cumpre, nesses termos, salientar que a meta do aprimoramento hermenêutico é fixar a atenção exclusivamente no feixe de liberdade existente entre o intérprete e o objeto, salvaguardando de relativização os aspectos sedimentados e imutáveis que se caracterizam sob o emblema de núcleo duro da obra de arte e do ordenamento jurídico. Tanto a Arte quanto o Direito vão trabalhar com um sistema de significantes organizados de forma a passar uma mensagem primeira, uma diretriz guia. A obra artística, por assim dizer, ao passo que limita o horizonte de expectativas estéticas do seu observador, na medida do conteúdo que traz explícito ou implícito, também reserva um espaço para construções circunspectas ao tema proposto. Da mesma forma, o ordenamento jurídico se conserva substancialmente poroso e elástico, para abraçar a infinidade de casos concretos que possam surgir, ao passo que traz dispositivos com caráter de balizas para suas respectivas sociedades, conforme os valores por estas aspirados: são as chamadas cláusulas pétreas, dotadas de uma tenacidade que, quando ignorada, faz abalar, a partir da desconstituição de categorias do direito subjetivo, todo o sentimento de justiça de um povo. Trata-se, 91 ISER, Wolfgang. Op. cit. p. 104. 92 “... a expressividade existe no todo porque está em seus detalhes, ou seja, se todos os elementos de uma música têm o poder de significar, é preciso que o olhar frio se ocupe de cada um deles. O resultado é um exercício em busca de unidade e clareza”. (RAMIL, Vitor. A Estética do Frio: Conferência de Genebra. Porto Alegre: Satolep, 2004. p. 27). tanto na Arte como no Direito, não de um percurso determinístico, mas de um direcionamento instituído com o objetivo de concretizar os principais matizes de uma dada realidade. Quanto à proposta hermenêutico-literária de Iser, pode-se dizer que está situada num meio termo entre Ingarden e Barthes: ao mesmo tempo em que liberta o leitor para realizar a estética aludida pelos vazios da obra com base em conteúdos de um horizonte de expectativas particularizado, evita que haja uma livre associação de idéias subjetivas e disformes sem relação com a unidade da obra. Em verdade, quando o intérprete dá vida aos vazios do sistema-obra, não faz isso através de um acoplamento sistêmico; não há simplesmente troca de informações subjetivas do seu horizonte individual com o horizonte da obra. Ao proceder à atualização da obra de arte, o intérprete utiliza informações intersubjetivas mediadas pelo seu horizonte em contraste com o horizonte histórico-social. Sob esse ponto de vista, forçoso reconhecer que, tomar os sistemas em sua totalidade, considerando-os abertos e móveis, alarga a noção de experiência estética, pois encara a realidade como um todo. Nessa linha ensina Zilberman: Cada leitor pode reagir individualmente ao texto, mas a recepção é um fato social – uma medida comum localizada entre as reações particulares; este é o horizonte que marca os limites dentro dos quais uma obra é compreendida em seu tempo e que, sendo “trans-subjetivo”, “condiciona a ação do texto”.93 O conceito de imaginário,94 aplicado no estudo dos espaços turísticos, auxilia na percepção da força vinculante da estrutura de apelo e de sua repercussão na esfera social. Assim explicita Laura Nedel: Usando como exemplo o Rio de Janeiro, verificamos a imensa quantidade de canções em sua homenagem. Só Tom Jobim e Vinícius de Moraes compuseram inúmeras – para citar algumas, temos “Samba do Avião” e “Garota de Ipanema”. Ambas traduzem um imaginário que durante anos foi o que vendeu o Rio de Janeiro, um imaginário de belezas naturais, praias e sensualidade inocente (Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela menina que vem e que passa, num doce balanço a caminho do mar). 93 ZILBERMAN, Regina. Op. cit. p. 34. 94 Imaginário é a “fantasia que criamos sobre certos destinos; (...) tudo o que vemos e, principalmente, ouvimos falar sobre uma localidade...”. (NEDEL, Laura Porcher. “Porto Alegre é demais!”: uma análise da música de Porto Alegre. 2003. 65 f. Trabalho de Conclusão de Curso. Graduação em Turismo – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. p. 15). Ambos os compositores foram tão importantes na construção de uma imagem para o Rio de Janeiro, que ao ouvirmos simplesmente o ritmo tocado por eles, ou seja, a Bossa Nova, já lembramos da cidade e da imagem positiva criada sobe ela. Da mesma maneira, o reggae lembra a Jamaica, o samba o Brasil, o tango a Argentina.95 A influência exercida pelo núcleo duro do objeto estético é extensiva também às artes plásticas, como se pode notar na obra de Patrícia Winkler:96
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