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WITTIG, Monique - A Mente Hétero

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1 
 
*Monique Wittig 
 
A mente hétero 
Há alguns anos, em Paris, a linguagem enquanto fenómeno dominou os modernos sistemas 
teóricos e as ciências sociais, e entrou nas discussões políticas das lésbicas e dos movimentos de 
libertação das mulheres. Isto porque se relaciona com um importante campo político onde o que 
está em jogo é o poder, ou mais ainda um campo de poderes, uma vez que existe uma 
multiplicidade de linguagens que agem continuamente sobre a realidade social. A importância 
da linguagem enquanto participação política só recentemente foi percebida.
1
 Mas o gigantesco 
desenvolvimento da linguística, a multiplicação das suas escolas, o advento das ciências da 
comunicação, e o tecnicismo das metalinguagens que estas ciências utilizam, representam a 
importância dos sintomas daquela participação política. A ciência da linguagem invadiu outras 
ciências, como a antropologia através de Lévi-Strauss, a psicanálise, através de Lacan, e todas 
as disciplinas que se desenvolveram a partir da base estruturalista. 
A semiologia inicial de Roland Barthes quase escapou ao domínio linguístico para se tornar 
uma análise política dos diferentes sistemas de signos, para estabelecer uma relação entre este 
ou aquele sistema de signos – por exemplo, os mitos da pequena burguesia – e a luta de classes 
no seio do capitalismo que este sistema tende a conciliar. Quase nos salvámos, pois a 
semiologia política é uma arma (um método) de que precisamos para analisar o que se 
denomina ideologia. Mas o milagre foi de curta duração. Em vez de introduzir na semiologia 
conceitos que lhe são estranhos – neste caso, conceitos marxistas – Barthes rapidamente afirma 
que a semiologia é um ramo da linguística e que a linguagem é o seu único objeto. 
Assim, o mundo inteiro é somente um imenso registo, onde as mais diversas linguagens surgem 
para se gravarem como a linguagem do Inconsciente
2
, a linguagem da moda, a linguagem da 
troca de mulheres, onde os seres humanos são, literalmente, os signos usados para comunicar. 
Estas linguagens, ou antes, estes discursos, encaixam uns nos outros, interpenetram-se, 
sustentam-se, reforçam-se, autoengendram-se e engendram-se uns aos outros. A Linguística 
engendra a Semiologia e a linguística estrutural, a linguística estrutural engendra o 
estruturalismo que engendra o Inconsciente Estrutural. O todo destes discursos produz uma 
confusão para os oprimidos, fazendo-os perder a mira da causa material da sua opressão e os 
mergulha numa espécie de vazio ahistórico. 
Eles produzem uma leitura científica da realidade social na qual os seres humanos são dados 
como invariantes, não tocados pela história nem trabalhados pelos conflitos de classe com uma 
psyche idêntica para cada um deles porque geneticamente programados. Esta psyche igualmente 
intocada pela história e pela luta de classes, fornece aos especialistas, desde o início do século 
XX, todo um arsenal de invariantes: a linguagem simbólica que tem a mais-valia de funcionar 
com poucos elementos, desde os dígitos (0-9), como os símbolos “inconscientemente” 
produzidos pela psyche, não são muito numerosos. Portanto, estes símbolos são muito fáceis de 
 
1 No entanto, os Gregos da época clássica sabiam que não existia poder político sem o domínio da arte da 
retórica, especialmente em Democracia. 
2 Do início ao fim deste paper o uso que Lacan faz do termo “o inconsciente” é referido em maiúsculas, 
seguindo o seu modelo. 
2 
 
impor através terapia e teorização, sobre o inconsciente individual e coletivo. Fomos ensinados 
que o inconsciente, com bom gosto, se estrutura através de metáforas, por exemplo, o nome do 
pai, o complexo de Édipo, a castração, o assassínio ou a morte do pai, a troca de mulheres, etc. 
Se o inconsciente, no entanto, é fácil de controlar, não o é por qualquer um. Semelhante às 
aparições místicas, a aparição dos símbolos na psyche exige múltiplas interpretações. Só os 
especialistas conseguem completar a decifração do inconsciente. Só eles, os psicanalistas, estão 
autorizados a organizar e interpretar manifestações psíquicas que exibem o símbolo em todo o 
seu significado. Enquanto a linguagem simbólica é extremamente pobre e essencialmente 
lacunar, as linguagens ou metalinguagens que a interpretam, desenvolvem-se cada uma delas, 
com uma riqueza, um visionamento, que só a exegese lógica igualou (?). 
Quem deu aos psicanalistas o seu conhecimento? Por exemplo, para Lacan, o que ele chama 
“discurso psicanalítico” ou “experiência analítica”, ambos lhe “ensinam” o que ele já sabe. E 
cada um lhe ensina o que o outro lhe ensinou. Mas quem negará que Lacan cientificamente 
conhece, através da “experiência analítica” (de qualquer modo uma experiência) as estruturas do 
Inconsciente? Quem pode ser suficientemente irresponsável para desprezar o discurso das 
pessoas psicanalisadas, deitadas no seu sofá? Na minha opinião, não há dúvida de que Lacan 
encontrou no inconsciente as estruturas que disse lá ter encontrado, uma vez que, previamente, 
as colocou lá. As pessoas que não caíram no poder da instituição psicanalítica podem 
experimentar um sentimento imensurável de tristeza face ao grau de opressão (de manipulação) 
que o discurso psicanalisado mostra. Na experiência analítica há uma pessoa oprimida, o 
psicanalisado, cuja necessidade de comunicação é explorada e que (do mesmo modo que as 
bruxas, podiam sob tortura, repetir a linguagem que os inquisidores queriam ouvir) não tem 
outra escolha, (se ele(a) não quer destruir o contrato implícito que lhe permite comunicar e do 
qual necessita) senão tentar dizer o que é suposto dizer. Dizem que isto pode durar uma vida – 
contrato cruel que constrange um ser humano a mostrar a sua miséria a um opressor que é 
diretamente responsável por ela, que explora económica, política e ideologicamente, e cuja 
interpretação reduz a sua miséria a alguma figuras de estilo. 
Mas pode a necessidade de comunicar que este contrato implica ser somente satisfeita na 
situação psicanalítica, sendo curado ou “experimentando” sê-lo? Se acreditarmos em 
testemunhos recentes de lésbicas, feministas e gay, não é este o caso.
3
 Todos os seus 
testemunhos enfatizam o significado político de impossibilidade que as lésbicas, feministas e 
gay enfrentam, quando tentam comunicar numa sociedade heterossexual, distinta daquela, com 
o psicanalista. Quando o estado geral das coisas é compreendido (alguém não está doente ou 
para ser curado, então tem-se um inimigo) o resultado para a pessoas oprimida é quebrar o 
contrato psicanalítico. É isto que aparece nos testemunhos, juntamente com a aprendizagem de 
que o contrato psicanalítico não é um contrato consentido mas antes forçado. 
Os discursos que particularmente nos oprimem a todos nós, lésbicas, mulheres, e gay, são 
aqueles que tomam por certo que o que funda a sociedade, qualquer sociedade, é a 
heterossexualidade.
4
 Estes discursos falam sobre nós e proclamam dizer a verdade num campo 
apolítico, como se qualquer coisa que aquele nome significa possa escapar ao político neste 
momento da história e como se, no que nos diz respeito, signos politicamente insignificantes 
pudessem existir. Estes discursos de heterossexualidade oprimem-nos no sentido em que no 
 
3 Por exemplo, ver Karla Jay, and Allen Young, eds., Out of the closets (New York: Links Books,1972.) 
4
 Heterossexualidade: uma palavra que aparece pela primeira vez na língua francesa em 1911. 
3 
 
impedem de falar a não ser que falemos naqueles termos. Tudo o que os põe em questão é desde 
logo olhado como elementar. A nossa recusa de uma interpretação psicanalíticatotalitária faz 
com que os teóricos digam que negligenciamos a dimensão simbólica. Estes discursos negam-
nos toda a possibilidade de criarmos as nossas próprias categorias. Mas a sua mais feroz ação é 
a tirania implacável que eles extraem dos nossos próprios eus físicos e mentais. 
Quando usamos o termo geral “ideologia” para designar todos os discursos dos grupos 
dominantes, relegamos estes discursos para o domínio das Ideias Irreais, esquecemos a 
violência material (física) que diretamente provocam aos oprimidos, uma violência produzida 
pelos discursos abstratos e “científicos” tal como pelos discursos da comunicação social. 
Gostaria de insistir na opressão material dos indivíduos pelos discursos, e gostaria de sublinhar 
os seus efeitos imediatos através do exemplo da pornografia. 
Imagens pornográficas, filmes, fotos de revistas, posters publicitários nas paredes das cidades, 
constituem um discurso, e este discurso cobre o nosso mundo com os seus signos e este discurso 
tem um significado: significa que as mulheres são dominadas. Os semióticos podem interpretar 
o sistema deste discurso, descrever a sua disposição. O que eles leem nesse discurso são signos 
cuja disposição não é significar e que não têm razão de ser exceto serem elementos de um certo 
sistema ou disposição. Mas para nós este discurso não está divorciado do real, como o está para 
os semióticos. Não só ele mantém uma relação muito próxima com a realidade social que é a 
nossa opressão (económica e politicamente), mas também é em si própria real uma vez que é 
um dos aspetos da opressão, pois exerce um poder preciso sobre nós. O discurso pornográfico é 
parte das estratégias de violência exercidas sobre nós: humilha, degrada, é um crime contra a 
nossa “humanidade”. Enquanto tática de assédio tem outra função, a de advertência. Ordena-nos 
a mantermo-nos na linha e mantém aqueles que tendem a esquecer-se quem são, a tê-lo 
presente, apela ao medo. Os mesmos especialistas em semiótica, anteriormente referidos, 
censuram-nos por confundirmos, quando nos mostramos contra a pornografia, os discursos com 
a realidade. Não veem que o discurso é realidade para nós, uma das facetas da realidade da 
nossa opressão. Acreditam que estamos erradas no nosso nível de análise. 
Escolhi a pornografia como um exemplo, porque o seu discurso é mais sintomático e mais 
demonstrativo da violência que é realizada contra nós através dos discursos, assim como na 
sociedade em geral. Não há nada de abstrato sobre o poder que as ciências e as teorias têm, para 
agirem material e atualmente sobre os nossos corpos e mentes, mesmo se, o discurso que 
produzem, é abstrato. É uma das formas de dominação, tal como Marx diz. Eu diria antes é um 
dos seus exercícios. Todos os oprimidos conhecem este poder e têm que lidar com ele. É aquele 
que diz: tu não tens direito ao discurso porque o teu discurso não é científico nem teórico, estás 
no nível errado de análise, confundes discurso com realidade, o teu discurso é ingénuo, não 
compreendeste esta ou aquela ciência. 
Se o discurso das modernas ciências teóricas e das ciências sociais exercem poder sobre nós, é 
porque funcionam com conceitos que nos tocam de modo próximo. Em vez do advento histórico 
dos movimentos de libertação lésbico, feminino e gay, cujos procedimentos perturbaram as 
categorias filosóficas e políticas dos discursos das ciências sociais, as suas categorias (embora 
violentamente postas em causa) continuam a ser usadas, sem ser postas em causa, pela ciência 
contemporânea. Funcionam como conceitos primitivos num conglomerado de todo o tipo de 
disciplinas, teorias e ideias correntes a que chamo mente hétero (ver La Pensée Sauvage de 
Lévy-Strauss). Dizem respeito a “mulher”, “homem”, “sexo”, “diferença”, e toda a séria de 
4 
 
conceitos que carregam esta marca inclusive conceitos como “história”, “cultura” e o “real”. E 
ainda que tenha sido aceite, nos últimos anos, que não existe tal coisa como natureza, que tudo é 
cultura, permanece ainda, um núcleo duro de natureza que resiste ao exame, uma relação 
excluída da análise do social – uma relação cuja caraterística está inelutavelmente na cultura, 
como na natureza, e que é a relação heterossexual. Chamar-lhe-ei, a relação obrigatória entre 
“homem” e “mulher”. (aqui refiro-me a Ti-Grace Atkinson e à sua análise da relação de 
penetração como uma instituição
5
). Com a sua inelutabilidade enquanto conhecimento, 
enquanto princípio óbvio, enquanto um dado anterior a qualquer ciência, a mente hétero 
desenvolve uma interpretação totalizante da história, da realidade social, da cultura, da 
linguagem, e de todos os fenómenos subjetivos ao mesmo tempo. Só posso sublinhar o caráter 
opressivo de que a mente hétero está revestida, na sua tendência imediata para universalizar a 
sua produção de conceitos em leis gerais que reivindicam deter a verdade para todas as 
sociedades, épocas, indivíduos. Assim, falamos da troca de mulheres, da diferença entre os 
sexos, da ordem simbólica, do Inconsciente, desejo, prazer, cultura, história, dando um 
significado absoluto àqueles conceitos quando são apenas categorias fundadas segundo a 
heterossexualidade ou o pensamento que produz a diferença entre os sexos como dogmas 
políticos ou filosóficos. 
A consequência desta tendência para a universalidade é que a mente hétero não consegue 
conceber a cultura, a sociedade onde a heterossexualidade não só comanda todas as relações 
humanas mas a sua própria produção de conceitos assim como todos os processos que escapam 
à consciência. Adicionalmente, estes processos inconscientes são historicamente cada vez mais 
imperativos naquilo que nos ensinam sobre nós próprios através da instrumentalização de 
especialistas. A retórica que os expressa (e cuja sedução não subestimo) envolve-os em mitos, 
recorre ao enigma, procede pela acumulação de metáforas, e a sua função é poetizar o cateter 
obrigatório do “serás-hetero-ou-não-serás”. 
Neste pensamento, rejeitar a obrigação do coito e as instituições que esta obrigação produziu 
como necessárias para a constituição de uma sociedade, é simplesmente uma impossibilidade, 
uma vez que fazê-lo significa rejeitar a possibilidade da constituição do outro e rejeitar a 
“ordem simbólica”, tornando impossível a constituição de significado, sem o qual ninguém 
consegue manter uma coerência interna. 
Assim, o lesbianismo, a homossexualidade e as sociedades que formamos, não podem ser 
pensados ou falados ainda que tenham sempre existido. Deste modo a mente hétero continua a 
afirmar que o incesto e não a homossexualidade constitui a maior interdição. 
Sim, a sociedade hétero baseia-se na necessidade do diferente/outro em todos os níveis. Não 
pode funcionar económica, simbólica, linguística ou politicamente sem aquele conceito. Esta 
necessidade do diferente/outro é ontológica para o todo do conglomerado das ciências e 
disciplinas a que chamei mente hétero. Mas o que é o diferente/outro senão o dominado? Pois a 
sociedade heterossexual é a sociedade que não só oprime os gay e lésbicas, ela oprime muitos 
diferentes/outros, oprime as mulheres e muitas categorias de homens, todos aqueles na posição 
de dominados. Para constituir uma diferença e para a controlar existe um “ato de poder, uma vez 
 
5
 Ti-Grace Atkinson, Amazon odyssey (New York: Links Books, 1974) pp. 13-23 
5 
 
que é essencialmente um ato normativo. Todos tentam mostrar o outro como diferente. Mas 
nem todos conseguem fazê-lo. Tem que se ser socialmente dominante para o conseguir fazer.”6 
Por exemplo, o conceito de diferença entre os sexos constitui ontologicamente as mulheres 
como diferentes/outros. Os homens nãosão diferentes, os brancos não são diferentes, nem os 
senhores. Mas os negros, tal como os escravos, são-no. Esta caraterística ontológica da 
diferença entre os sexos afeta todos os conceitos que são parte do mesmo conglomerado. Mas 
para nós não existe essa coisa de ser uma mulher ou ser um homem. “homem” e “mulher” são 
conceitos políticos de oposição, e a cópula que dialeticamente os une, é, ao mesmo tempo a que 
a elimina
7
. É a luta de classes entre mulheres e homens que abolirá mulheres e homens
8
. O 
conceito de diferença não tem nada de ontológico. É somente o modo segundo o qual os 
senhores interpretam uma situação histórica de domínio. A função da diferença é mascarar em 
todos os níveis os conflitos de interesses, incluindo os ideológicos. 
Por outras palavras, para nós, isto significa que não se pode mais ser mulher e homem e que, 
enquanto classes e categorias de pensamento ou linguagem têm que desaparecer, política, 
económica e ideologicamente. Se, enquanto mulheres lésbicas e homens gay, continuamos a 
falar de nós próprios e a concebermo-nos a nós próprios enquanto mulheres e enquanto homens, 
somos instrumentalizados na manutenção da heterossexualidade. Estou segura que uma 
transformação económica e política não desdramatiza estas categorias da linguagem. Podemos 
redimir escravo? Podemos redimir preto ou preta? De que modo mulher é diferente? 
Continuaremos a escrever branco, senhor, homem? A transformação das relações económica 
não é suficiente. Temos que produzir uma transformação política dos conceitos chave, isto é, 
dos conceitos que são estratégicos para nós. Pois existe outra ordem de materialidade, a da 
linguagem, e a linguagem é trabalhada a partir do interior por estes conceitos estratégicos. Ao 
mesmo tempo está intimamente ligada ao campo político onde tudo o que diz respeito à 
linguagem, ciência e pensamento se refere à pessoa enquanto subjetividade e à sua (dela/dele) 
relação com a sociedade.
9
 Não podemos deixar isto dentro do poder da mente hétero ou 
pensamento de dominação. 
Se, dentre todas as produções da mente hétero, desafio especialmente o estruturalismo e o 
Inconsciente estrutural, é porque: até agora, na história, a dominação de grupos sociais não pode 
aparecer mais como uma necessidade lógica para os dominados, porque eles revoltam-se, 
porque eles questionam as diferenças, Lévy-Strauss, Lacan e os seus epígonos, falam de 
necessidades que escapam ao controlo da consciência e assim, à responsabilidade dos 
indivíduos. 
Eles invocam processos inconscientes, por exemplo, que requerem a troca de mulheres como 
uma condição necessária a todas as sociedades. Segundo eles, é o que o inconsciente nos diz 
com autoridade, e a ordem simbólica, sem a qual não há significado, linguagem ou sociedade, 
depende disso. Mas o que significa as mulheres serem trocadas, senão que são dominadas? Não 
 
6
 Claude Faugeron, e Philippe Robert, la justice et son public et les representations socials du système 
penal (Paris: Masson, 1978) 
7 Ver a definição de “sexo social” de Nicole-Claude Mathieu, “Notes pour une définition sociologique des 
categories de sexe,” Epistemologie Sociologique 11(1971) 
8 Do mesmo modo para qualquer outra luta de classes onde as categorias de oposição são “reconciliadas” 
pela luta cuja finalidade é fazê-las desaparecer. 
9 Ver Christine Delphy, “Pour un Féminisme Matérialiste,” L’Arc 6, Simone de Beauvoir et la lute des 
femmes. 
6 
 
é surpreendente, então, que só exista um inconsciente, e que seja heterossexual. É um 
inconsciente que cuida muito conscientemente dos interesses do senhor, em que vive para que 
seja desapossado tão facilmente dos seus conceitos.
10
 Ademais, a dominação é negada; não 
existe escravatura feminina, existe diferença. A estes, respondo com esta afirmação, feita por 
uma camponesa Romena numa reunião pública em 1848: “Porque dizem os senhores que não é 
escravatura, pois nós sabemos que é escravatura, esta mágoa que nos magoa.” Sim, nós 
sabemos, e esta ciência da opressão não pode ser retirada de nós. 
É desta ciência que temos que rastrear o “que se passa sem ser dito” heterossexual, e 
(parafraseando o Roland Barthes inicial) não devemos suportar “ver a Natureza e a História 
sempre confundidas”11 Devemos torná-lo brutalmente claro que o estruturalismo, a psicanálise e 
particularmente Lacan, tornaram os seus rígidos conceitos em mitos – Diferença, Desejo, o-
Nome-do-pai, etc. Inclusive, “sobre mitificaram” os mitos, uma operação, para eles necessária, 
de modo a sistematicamente heterossexualizarem aquela dimensão pessoal que subitamente 
emergiu dos indivíduos dominados no campo histórico, particularmente através das mulheres, 
que começaram a sua luta há dois séculos. E foi feito sistematicamente, numa concertação 
interdisciplinar nunca tão harmoniosa como desde que os mitos heterossexuais começaram 
facilmente a circular de um sistema formal para outro, como valores seguros que podem ser 
investidos, na antropologia, como na psicanálise e em todas as ciências sociais. 
Este conjunto de mitos heterossexuais é um sistema de signos que usa as figuras do discurso, e 
assim pode ser politicamente estudado através do interior da ciência da nossa opressão; “pois-
“nós-sabemos-que-foi-escravatura” é a dinâmica que introduz o diacronismo da história no 
discurso “fixado” das essências eternas. Este empreendimento deverá de qualquer modo, ser 
uma semiologia política, embora com “esta mágoa que nos magoa” trabalhemos ao nível da 
linguagem/manifesto, da linguagem/ação, que transforma, que faz história. 
Entretanto, nos sistemas que pareciam tão eternos e universais, que as leis podiam deles ser 
extraídas, leis que podiam ser introduzidas nos computadores, e em qualquer caso, preencher a 
maquinaria consciente, nestes sistemas, graças à nossa ação e linguagem, as mudanças estão a 
acontecer. Tal modelo, como por exemplo, a troca de mulheres, re-engole a história de um 
modo tão violento e brutal que todo o sistema, que se acreditou ser formal, ruiu sobre uma outra 
dimensão de conhecimento. Esta dimensão pertence-nos pois, de algum modo, fomos 
designados, como Lévy-Strauss disse, nós falamos, deixem-nos dizer que quebrámos o contrato 
heterossexual. 
Isto é o que dizem as lésbicas em todo o lado neste país e noutros, se não em teorias, pelo 
menos através da sua prática social, cujas repercussões sobre a cultura e a sociedade hétero 
ainda não é visível. Um antropólogo pode dizer que teremos que esperar cinquenta anos. Sim, se 
queremos universalizar o funcionamento destas sociedades e fazer com que as invariantes 
surjam. Entretanto os conceitos hétero estão debilitados. O que é mulher? Pânico, alarme geral 
para uma defesa ativa. Francamente, é um problema que as lésbicas não têm devido à mudança 
de perspetiva, e seria incorreto dizer que as lésbicas se associam, fazem amor, vivem com 
 
10 Serão os milhões de dólares por ano conseguidos por psicanalistas simbólicos? 
11
 Roland Barthes, Mythologies (New York: Hill and Wang, 1972), p. 11. 
7 
 
mulheres, pois “mulher” tem significado somente nos sistemas de pensamento heterossexuais e 
nos sistemas económicos heterossexuais. As lésbicas não são mulheres.
12
 
Tradução da versão inglesa 
Em Out There: Marginalization and Contemporary Cultures 
 
Rosa Vieira Guedes 
Olhão, 1 de Agosto de 2014 
 
 
12
 Não é mais uma mulher pois não está numa relação de dependência pessoal em relação a um homem.

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