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Constituição, crise e superação da racionalidade moderna a partir da filosofia da libertação de Enrique Dussel Hugo Allan Matos1 Resumo Este texto mostrará uma forma de como se constituiu a racionalidade moderna, o motivo de sua crise atual e uma possibilidade e necessidade de novas formas de pensamentos. Palavras-chave: modernidade, totalidade, outro, alteridade. Resumen: En este texto voy plantear una forma de cómo surge la racionalidad moderna, el motivo de su crisis y una posibilidad y necesidad de nuevas formas de pensamiento. Palabras-clave: modernidad, totalidad, outro, alteridad. Introdução Em nossa vida cotidiana, não nos questionamos sobre o sentido das coisas, apenas vivemos de forma não crítica, cumprindo tarefas, sem querermos maiores explicações sobre cada coisa que fazemos. Nascemos em um local, em uma classe social, em condições dadas e vivemos a partir delas. O mundo da vida2 é a origem de qualquer pensamento possível. Contrariando a máxima cartesiana: penso, logo existo, 1 Graduado em Filosofia, mestrando em educação, Pós-graduando em Filosofia e História Contemporânea.Blog pessoal: HTTP://hamatos.wordpress.com , email para contato: hugo.allan@gmail.com. *Artigo realizado para a conclusão da disciplina Fundamentos e crise do pensamento moderno do curso de pós-graduação em filosofia e história contemporânea da Universidade Metodista de São Paulo. 2 Lebenswelt enunciado principalmente por Edmund Husserl e Heidegger. qual iremos refletir com mais cuidado, Husserl diz que primeiro existimos e nosso pensamento parte de nossa existência e não o contrário. Uma leitura racional da história criou o mito da modernidade. Que é, portanto, um paradigma3 criado e não um acontecimento natural, ou desenvolvimento histórico como se acostumou ensinar nas escolas inclusive de nossa América Latina. Em poucas linhas expressarei como Enrique Dussel mostra que foi constituído este mito, o motivo de sua crise e um caminho para a superação da crise da racionalidade moderna. Um Mito: a modernidade Em meu trabalho de conclusão de curso trouxe uma tradução inédita ao português da obra que considero4 a melhor para uma introdução ao pensamento de Dussel. Una Introduccion a la Filosofia de la Liberacción Latinoamericana, que na verdade foram seis conferências ditadas num congresso em Córdoba, no ano de 1972. Neste trabalho está explícito de forma simples como o filósofo concebe a constituição da modernidade. Aqui, trarei apenas algumas características que mostram que a modernidade, enquanto paradigma mundial é um mito, uma falácia. Significa dizer que a racionalidade moderna, que se impõe como mundial, não é. Pois justamente por ter que impor-se como tal, desrespeitando a diversidade cultural e racional de outros povos e culturas, esta só é legítima em solos europeus e estadunidenses, ainda com ressalvas, mesmo nestes locais. A partir de uma leitura da América Latina, dela mesma, ou seja, de pensar a partir do mundo da vida5, Enrique Dussel, aponta que o mundo está dividido em centros e periferias6 e que a partir de 1492, com a chegada acidental à América é que a Europa começa a configurar-se como centro do mundo. Pela primeira vez na história, existe a tentativa de apenas um centro que se impõe enquanto tal para o mundo todo. Daqui sai a idéia e possibilidade teórica de um império. Mas para impor-se como único centro do mundo, primeiro os europeus tiveram que convencer-se internamente disso. 3 Conceito de Thomas Kuhn. 4 E Enrique Dussel me disse recentemente que também considera esta obra como a melhor para introdução ao seu pensamento, ainda hoje, em 2010, pelos mesmos motivos que espûs na mesma. 5 Uma alternativa seria pensar problemas de outros lugares, tal como fazem muitos pensadores latino- americanos hoje, alienando o conhecimento e legitimando a dominação cultural que se impõe à nosso e outros continentes tidos como sub-desenvolvidos. 6 Principal conceito da teoria sociológica da dependência. Em sua obra Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão, Dussel nos mostra exemplos de como isso ocorreu: Dentre vários autores, como Weber, Descartes, Kant e até críticos ao pensamento da época como Marx, Fuerbach e Nietzsche, nos chamou a atenção a seguinte citação, que mostra bem o auge da constituição do pensamento moderno: O Espírito germânico é o espírito do novo Mundo, cujo fim é a realização da Verdade absoluta (der absoluten Wahrheit), como autodeterminação (Selbsbestimmung) infinita da liberdade, que tem por conteúdo sua própria forma absoluta (die ihre absolute Form selbst).7 A palavra autodeterminação, para Dussel, mostra bem o Espírito germânico e europeu. O pensar ter se constituído como tal, sem dever nada a ninguém. Pensar a História Antiga como antecedente, a Idade Média como preparatória e a Idade Moderna como a Europa centro do mundo e fim da história é “uma organização ideológica e deformante da história”8. O que permite esta leitura? Dussel nos mostra que ainda para Habermas, um filósofo contemporâneo europeu, a modernidade se constitui assim: ...tiene un <<movimiento>> de Sur a Norte, de Este a Oeste de Europa del siglo XV al XVII que es aproximadamente el seguinte: a) del Renacimiento italiano del Cuattrocento (no considerado por Toulmin), b) la Reforma luterana alemana, y c) la Revolución científica del siglo XVII se culmina em d) la Revolución política burguesa inglesa, norteamericana o francesa. Obsérvese la curva del processo: de Itália, a Alemania, a Francia hacia Inglaterra y Estados Unidos9. A filosofia teve papel fundamental neste autoconvencimento de que eram o centro do mundo e fim da história. A instituição de um ethos de conquista e soberania foi necessário para conquistar e subsumir outros povos e culturas. Descartes, tido como o primeiro filósofo moderno, que na verdade, se inspirou em um lógico mexicano: Antonio Rubio, em Francisco Suárez, em Agostinho de 7 Dussel, 2002 apud HEGEL, G.W.F. Werke in zwanzig Bänden. Theorie Werkausgabe, Suhrkamp, Frankfurt, 1971, tomo 12, p.413. 8 Dussel, 2002, p.51. 9 Dussel , 2008, p. 156, referindo-se à Habermas, Jurgen.El discurso filosófico de la modernidad. Taurus: Buenos Aires, 1989.p.15. Hipona, Aristóteles... Apesar de não assumir tais inspirações. Ainda que apenas fruto de discussões presentes em sua época e pensamentos anteriores, por uma série de questões, sobretudo a de ser europeu, ganhou autoria de suas idéias e seu princípio cogito ergo sun, é o princípio fundante do pensamento moderno. O paradigma do ego individual moderno, diz Dussel. Pensar a si mesma como fundamento de toda a realidade permitiu a Europa a autoconfiança necessária para se crer como centro do mundo e com legitimidade para impor-se. O Penso, logo existo é uma retomada do A=A e não pode ser B de Aristóteles, numa dimensão gnoseológica. Este penso é a identidade do ser humano europeu, branco, masculino, ocidental. Os esforços sem medida que Descartes teve para separar corpo e alma, não foram por acaso, na visão de Dussel. É importante dizer isso aqui, pois muitos, em defesa do filósofo moderno, dizem que seu problema era apenas gnoseológico e não antropológico. Se realmente assim, o fosse, para Dussel, não importa, pois a responsabilidade seria a mesma. Porque Descartes fez antropologia, falou da constituição do corpo, da alma e da carne. E se assim o fez, apenas para chegar a uma teoria gnoseológica, tem tanta responsabilidade, quanto se tvesseestudado ou dialogado com antropólogos da época. Pois todo pensamento filosófico só é legítimo se parte da antropologia, para Dussel10. Antes disseo, Carlos V, promoveu uma disputa em Valladolid em 1550, para tranqüilizar-se do estatuto ontológico dos índios, pois eram bárbaros diferentes aos da Grecia, China, ou muçulmanos. Estes, Montaigne11 já havia definido como canibais12. Eram bárbaros por não agirem conforme os padrões racionais modernos. Para os índios, recém encontrados, ponderou as ideis de Ginés Sepúlveda: Será siempre justo y conforme al derecho natural que tales gentes [bárbaras] se sometan al império de príncipes y naciones más cultas y humanas, para que por su virtudes y por la prudência de sus leyes, depongan la barbárie y reduzcan a vida más humana y al culto de la virtud13. Dussel chama a atenção de que Sepúlveda apenas faz uma releitura de Aristóteles, para tecer tais afirmações. Mas agora a gravidade é bem maior, pois querem 10 DUSSEL,1968,p.4. 11 DUSSEL,2008,p.164 apud MONTAIGNE, Michel de. Oeuvres completes. Paris: Gallimard- Pléiade,1967,p.208. 12 Caribe e canibal era a mesma coisa, pois os tainos das Antillas não pronunciavam a letra r. cf.Dussel,2008, p.166. 13 DUSSEL,208,p.166 apud SEPÚLVEDA, Ginés de. Tratado sbre lãs justas causas de lãs guerras contra los índios. México: DF: FCE,1951,p.251. validade mundial para elas. Ouçamos mais um pouco do que nos diz o iluminado filósofo moderno: ...Y si rechazan tal império se lês puede imponer por médio de lãs armas, y tal guerra será justa según el derecho natural lo declara [...] Em suma: es justo, conveniente y conforme a la ley natural que los varones probos, inteligentes, virtuosos y humanos dominem sobre todos los que no tienem estas cualidades14 Com estes e muitos outros pensamentos semelhantes, que a Europa se convenceu de que era legítima a conquista, extermínio, subsunção de povos que não pensavam como eles (e muitos acreditam nessa legitimidade ainda hoje). Este é o princípio que Dussel chama de Ego Conquiro, que apenas tem como consequência imediata do ego cogito cartesiano. O interessante são os motivos pelos quais as civilizações aztecas e incas são consideradas por Sepúlveda, como não humanas, incivilizadas: a propriedade privada. O principal motivo que legitima a subsunção destes povos é que não possuem nada. Não olharam suas construções, a complexidade da organização destes povos, a distribuição de terras, de posses por igual.. Sepúlveda diz: Pero mira cuánto se engañan y cuánto disiento yo de semejante opinión, viendo al contrario em esas instituciones [aztecas o incas] uma prueba de la barbárie ruda e innata servidumbre de estos hombres [...] Tienen [ciertamente] um modo institucional de república, pero nadie posee cosa alguna como propia15, ni uma casa, ni um campo de que pueda disponer ni dejar em testamento a sus herederos [...] sujetos a la voluntad y capricho [de sus señores] que no a su liberdad [...]. Todo esto [...] es señal ciertísima del ánimo de siervos y sumiso de estos bárbaros16. Assim, Dussel vai mostrando várias influencias que sofreu Descartes e o contexto em que estava situado que lhe influenciou a pensar o que pensou. Desta forma que se compôs o pensamento moderno, bem anterior a Descartes, mas que criou base para que este pensasse o que pensasse e que depois a modernidade o assumisse como seu primeiro filósofo. 14 Ibdem,p.87. 15 Nota de Dussel: Adelantándose a J. Locke o Hegel, pone la propriedad privada como condición de humanidad. 16 DUSSEL,208,p.167 apud SEPÚLVEDA, Ginés de. Tratado sbre lãs justas causas de lãs guerras contra los índios. México: DF: FCE,1951,p.110-111.. Mostrei um pouco de como a Europa convenceu-se de que era o centro do mundo. Rapidamente agora, mostrarei como ela conseguiu efetivar-se como tal aos outros povos e culturas. Uma vez que este assunto está frequentemente em voga, não me aterei em detalhes, mas mostrarei algumas principais características e a tese principal de Dussel sobre qual a condição material que deu origem à modernidade. Lembremos que antes de 1492, a posição política da Europa era de periferia do sistema regional anterior, que Dussel chama de sistema inter-regional III que iniciou no séc. IV d.c., foi até 1492 e estava assim organizado: Os centros de conexões comerciais eram a região persa, Turan-tarim e mundo muçulmano. O centro produtivo era a Índia, no extremo oriental, a China, no sul- ocidental a África bantu, no Ocidental o mundo bizantino-russo e no extremo oeste a Europa ocidental. Dussel chama este período de Asiático-afro-mediterrâneo. Foi neste mundo que surgiu a filosofia pós-grega. Portanto, a Europa ocidental era apenas um dos centros, o de menor importância, que estava situada no extremo oeste do centro principal. A Espanha não podia ir até o centro para o oriente, pois Portugal havia antecipado-se e tinha exclusividade neste caminho. Por isso, para chegar ao centro, a Espanha tinha que ir pelo Oceano Atlântico, onde acidentalmente, chegaram à Ameríndia, sem querer, pensando que estavam na Índia. E por isso o nome de índios aos povos americanos. Colombo morreu sem conseguir compreender que havia chego em algo novo. Foi só em 1503 que Américo Vespúcio foi o primeiro moderno, quem primeiro entendeu o que estava ocorrendo. É este acontecimento que permite materialmente que a Europa se imponha como centro, pois aqui, na então Ameríndia, foi onde encontraram riquezas e mão de obra escrava (inicial, pois depois têm os africanos, imigrantes das outras periferias) o suficiente para se desenvolverem. A Europa só é centro do mundo, porque roubou as riquezas da Ameríndia. Mas é a Europa como um todo, que é e se constitui como gestora do sistema mundo? Para Dussel não. Pois, para ele a modernidade pode ser dividida em duas etapas17: Uma modernidade hispânica, humanista, renascentista, ligada ao sistema inter regional da cristandade mediterrânea e muçulmana, que pensa a gestão de sua periferia descoberta por um processo complexo de cultura, língua, presença demográfica, modificação ecológica, etc. Daí o processo evangelizador que a ameríndia sofrerá. Outra modernidade é a do centro da Europa, iniciada por Amsterdã em Flanders. A de conceber toda a Europa como moderna, como gestora e centro do sistema mundo, desconsiderando toda a diversidade cultural existente em seus países. Esta falácia reducionista interna modifica todo o mundo da vida, de milhares de europeus. A primeira modernidade interrogou-se sobre a legitimidade da subsunção dos povos recém 17 DUSSEL, 2002,p.59-67. descobertos. A segunda modernidade executou o projeto do Eurocentrismo, sem escrúpulos. Esta execução promoveu nada menos que: A “racionalização” da vida política (burocratização), da empresa capitalista (administração), da vida cotidiana (ascetismo calvinista ou puritano), a descorporalização da subjetividade (com seus efeitos alienantes tanto do trabalho vivo – criticado por Marx -, como em suas pulsões – analisado por Freud), a não eticidade de toda a gestão econômica ou política ( entendida só como engenharia técnica), a supressão da razão prático-comunicativa substituída pela razão instrumental, a individualidade solipsista que nega a comunidade, etc., (...) Capitalismo, liberalismo, dualismo (sem valorizar a corporalidade), instrumentalismo (o tecnologismo da razão instrumental), etc. são efeitos do manejo desta função que coube à Europa como “centro” do sistema-mundo. Efeitos que se tornam sistemas, que terminam se totalizando.A vida humana, a qualidade por excelência, foi imolada à quantidade. O capitalismo, mediação de exploração e acumulação (efeito do sistema-mundo), depois se transforma num sistema formal, independente que, desde sua própria lógica auto-referencial e autopoiética, pode destruir a vida humana em todo o planeta18. O desencobrimento do Outro: crise moderna Seguindo a mesma lógica que empreendi para mostrar a constituição da modernidade, aqui expressarei a emergencialidade da superação da modernidade e sua crise. A modernidade constituiu-se encobrindo o outro. Convencendo-se de que os seres encontrados na Ameríndia não eram seres humanos, como os europeus, assim, sua subsunção e aniquilação era legítima. O encobrimento do Outro é o que permitiu que a Europa se configurasse como centro do sistema mundo, que iniciou em 1492. É importante ressaltar, que encobriram inclusive sua alteridade interna, toda a diversidade cultural européia foi encoberta e resumida à gestores do novo mundo. Esta violência interna foi bem diferente da praticada contra os povos da Ameríndia. Poderia aqui dar diversos exemplos de narrativas do contato originária, da tamanha barbárie e truculência que cometeram os europeus, racionais, brancos e cristãos ao chegarem em nossas terras. Bartolomé de las Casas ou o Inca Garcilaso de la Vega, narram com maestria muitos relatos assim. Como agora, é necessário que reflitamos 18 DUSSEL, 2002, p.63. sobre os motivos da crise da modernidade, é essencial que o façamos tendo essa violência em mente, para isso, permita-me mais duas citações: ...Luego que los conocieron [a las ovejas, a los indios], como lobos e tigres y leones crudelísimos de muchos días hambrientos, se arrojaron sobre ellos. Y otra cosa no han hecho de cuarenta años [hoy deberíamos decir: de quinientos años] a esta parte, hasta hoy, e hoy en este día lo hacen, sino despedazarlas, matarlas, angustiarlas, afligirlas, atormentarlas y destruirlas por las extrañas y nuevas y varias e nunca otras tales vistas ni leídas ni oídas maneras de crueldad...19 Esta é uma citação de Bartolomé de las Casas, que Dussel expõe em 1992 como o mesmo sentimento que os índios ainda têm hoje, pois em ocasião dos 500 anos de evangelização no México, os índios escreveram: Hemos sido engañados de que el descubrimiento fue Bueno. El día de la raza? (denominación de las fiestas del 12 de Octubre), nos alegramos ahora cuando tenemos claras las consecuencias. Sería Bueno que las comunidades recibieran angún libro o folleto de lo que realmente fue. Para que todos sepamos por qué estamos esclavizados”. “no necesitamos (el 12 de Octubre) ninguna fiesta, pues estamos em um velório. Se comento que el Papa Juan Pablo II habría pedido este novenario para hacer la celebración, a lo que se contesto obervando que él puede escuchar nuestra palabra. El papa está puesto para servir a la Iglesia y nosotros somos Iglesia. Hoy la conquista sigue. Que em nuestra conclusión quede la conquista como algo terrible, como um día de luto. No queremos celebrar uma fiesta si los misioneros llegaron com los españoles a conquistar. No vinieron como hermanos, como dice el Evangelho, sino para esclavizarnos. Sentimos tristeza20. Para falar da crise da modernidade, é necessário antes, retomarmos, o significado de crise. Krineîn em grego significa separar. A crise é quando se separa da cotidianidade, do mundo da vida e se põe a pensá-lo. Krisis é o juízo. Crise é portanto separar-se da cotidianidade, pensá-la (transcendê-la, portanto) e emitir um juízo sobre ela. Processo de ruptura. A modernidade está posta. Impõe-se diariamente como o centro do mundo. Ainda hoje aniquilando e destruindo culturas e pessoas. Mas, quando um povo indígena 19 DUSSEL,1994,p.152 apud CASAS, Bartolomé de las. Brevíssima relación de la destrucción de las Indias. BAE, Madrid, 1957, t.V.p.137. 20 DUSSEl, 1994, p. 152 apud 500 años de evangelización em México, CENAMI, México, 1987, p.27. se reúne, organiza e chega ao consenso de que a modernidade não é o que diz, a pôs em crise. Por todo o mundo grupos de pessoas não reconhecem a modernidade como legítima. Estão organizando-se e clamando o direito de serem quem são e não submeter- se ao ethos moderno. Vagarosamente, estamos percebendo que é contraditório este paradigma. Percebamos que esta crise, é diferente da crise percebida por Heidegger ou Nietzsche. Que é apenas a crise interna européia. Esta a qual me refiro (com Dussel) é mais grave. Os pós-modernos, não conseguem superar o eurocentrismo, alguns afirmam que a modernidade deve terminar seu processo de expansão, de forma racional, pois a forma racional européia é superior (Habermas, por exemplo), outros negam totalmente a modernidade sem apontar saídas, Nietzsche e Heidegger, por exemplo. Há diversidades como Lévinas ou Marx, que ainda não superam a modernidade. A modernidade é maligna ao promover, sobretudo, a legitimidade da morte dos que são distintos aos do centro. Enrique Dussel assume como projeto de sua filosofia justamente a crítica ética do sistema vigente: a partir da negatividade das vítimas21. Ou seja, é sair da cotidianidade (mundo da vida) da negação da corporalidade (leiblichkeit) das vítimas, denunciar esta negação e apontar caminhos de superação. Fica claro na consciência do povo oprimido, aqui retratada na consciência indígena do México, que os povos da América Latina estão reconhecendo-se como outros, como diferentes, detentores de culturas próprias e que não devem submeter-se à cultura eurocêntrica. A formação da consciência ético-crítica é que põe a modernidade em crise. E pôs a alguns desde o momento da chegada na Ameríndia, sendo que a modernidade, desta forma, já começa em crise. Pois são constatadas desde ali questionamentos sobre a legitimidade do que estavam fazendo. Mas de forma paradigmática na constituição de um sistema verdadeiramente mundial e não eurocêntrico, é necessário que se reconheça a maldade como morte, como negação da corporalidade de bilhões de pessoas. Maldade esta, não natural como disseram alguns pensadores, mas é a impossibilidade de perfeição, que causa a tendência à totalidade. É a possibilidade do erro entre dois extremos inalcansáveis: o conhecimento e a pulsão perfeitos e a negação clara da vida (impossível éticamente). O ocultamento deste mal é a fetichização do sistema vigente. A crítica contra este fetichismo é a descoberta da não verdade e legitimidade deste sistema, se feita a partir das vítimas. O desencobrimento do Outro, se dá justamente quando este rompe o silêncio fetichizado, denunciando este mal: 21 DUSSEL, 2002, p.313. O desvelamento desse “fundamento (Grund)” (que funda a morte das vítimas) é a manifestação do ser. A ética critica essa ontologia com Lévinas. Marx critica o valor que se valoriza, como crítica da economia capitalista. É o trabalho da crítica como um momento da luta pela vida. O abstinar-se em legitimar (racional e pulsionalmente) o cumprimento tradicional do sistema (o “bem”, os valores [Scheler], as leis [Kelsen], as virtudes [MacIntyre], etc.) que produz vítimas, transforma o bem no “mal absoluto” (indicado por Adorno), como efeito do próprio acionar humano possibilitado por sua finitude, mas realizado por sua totalização. É o processo de divinização fetichista do sistema inicialmente indicado por Fuerbach. O re-conhecer re- sponsavelmente a vítima como sujeito autônomo em sua corporalidade sofredora, como outro que o sistema, subverte o “mal” e possibilita como futuro o processo de libertação22. Possibilidadede superação: alteridade À guisa de conclusão, serei breve indicando apenas os resultados recentes que Dussel aponta como caminhos para libertação e superação da modernidade. Nos parágrafos acima já dei indícios desta superação que é metodológica e de conteúdo. É filosófica e material, constituindo um novo tipo de racionalidade. As vítimas, ao negarem sua dominação, fazem o novo histórico. Sempre foi assim e sempre será. Os filósofos pós-modernos, como eurocêntricos, negam o sujeito completamente, se opondo ao indivíduo moderno. Mas Dussel, propõe uma outra concepção antropológica: Ante os pós-modernos, que em sua crítica do “sujeito moderno” ultrapassam o “limite” e pretendem negar todo sujeito (o que deixa as vítimas sem possibilidade de organização intersubjetiva estratégica ou tática) e, além disso, o tornam incomensurável (de maneira que o dominador já não deve prestar conta a ninguém de sua dominação, nem pode ser recriminado ético-racionalmente por argumentação alguma), afirmamos, por nossa vez, a necessidade de reconhecer concreta e positivamente o sujeito ético vivente e comunitário; com maior razão é necessário reconhecê-lo como sujeito quando irrompe como as vítimas de um sistema auto-re-ferencial que as nega (material e formalmente); reconhecimento histórico e social da diversidade intersubjetiva de comunidades sócio-históricas, especialmente das vítimas, quando descobrem e lutam por seus novos direitos; diversidade que não nega a universalidade da razão material e discursiva, mas que a concretiza, enriquece, descobrindo os diversos e invisíveis “rostos” do outro, os quais é necessário saber articular “transversalmente” em sua natureza alterativa (o que, há anos, temos denominado de momento analético do método dialético, que parte da 22 Ibid. p.377-378. possibilidade “dis-tinta”, a diversidade alterativa, para encontrar a universalidade na profundidade de cada diversidade, na qual se reflete a particularidade da alteridade dos outros sujeitos sócio-históricos).23 Percebamos que esta concepção antropológica é política e ética. A meu ver, toda a produção teórica de Enrique Dussel, inclusive a atual, pode ser considerada como introdução à filosofia, antropologia filosófica, portanto, como já enunciamos. É o fundamento de uma nova forma de pensar, que supera a moderna. A transmodernidade, é necessária para um convencimento mundial de que só continuará existindo a humanidade se a alteridade for respeitada. E a partir desta concepção, novas teorias de conhecimento (gnoseologia), estéticas, éticas, políticas, economias, etc... poderão ser pensadas. Referências: DUSSEL, Enrique D. Hipotesis para el Estudio de La Latinoamerica em La Historia Universal. 1966. _________________. Lecciones de Introducción a la Filosofia de Antropología Filosofica. Inédito e inconcluso.Mendoza, 1968. _________________. Historia de La Filosofia Latinoamericana y Filosofia de La Liberacion. Editorial Nueva America. Bogotá, 1994-I. _________________. 1492: El Encubrimiento del Otro: hacia el origen del “mito de la modernidad. Plural Editores. La Paz, 1994. _________________. Filosofía de La Liberación. 4ª Ed. Nueva América. Bogotá, 1996. _________________. Ética da Libertação: na Idade da Globalização e da Exclusão. Vozes, 2002. Todas as obras e artigo acima estão acessíveis no endereço eletrônico: http://www.ifil.org/dussel/. Útimo acesso: 04/2010. DUSSEL, Enrique D. Meditaciones Anti-cartesianas. Sobre el origen del anti- discurso filosófico de la modernidad. Revista Tabula Rasa, nº9, p.153-197. Bogotá, 2008. 23 Ibid,p.567-568. MATOS, H. A. Uma introdução à Filosofia da Libertação Latino-americana de Enrique Dussel. Trabalho de Conclusão de Curso da graduação em Filosofia, 2008. Acessível em: http://hamatos.wordpress.com/artigos-cientificos-meus/ PANSARELLI, Daniel. Enrique Dussel e a modernidade. Vídeo acessível em: http://www.youtube.com/watch?v=w8iPzKZsArI. Último acesso: 04/2010.
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