Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
RELAÇÕES DE GÊNERO E TRABALHO DOCENTE: JORNADAS E RITMOS NO COTIDIANO DE PROFESSORAS E PROFESSORES Carolina Faria Alvarenga Em minha pesquisa de mestrado, discuto se os significados de gênero definem – ou até que ponto interferem – nas jornadas e ritmos no cotidiano de professoras e professores do Ensino Fundamental II de uma escola municipal de São Paulo. Por meio de questionários e entrevistas, busco apreender como as/os docentes vivem e percebem seu cotidiano: como são suas jornadas e ritmos de trabalho; se trabalham em uma ou mais escolas; se possuem outra atividade remunerada a fim de complementarem a renda; se exercem sozinhas/os o trabalho doméstico e cuidado com os/as filhos/as ou se possuem ajuda de terceiros, dentre outras questões que se referem ao dia-a-dia. Além disso, procuro compreender quais as estratégias – implícitas ou explícitas – utilizadas pelas/os professoras/es para modificarem e darem outros significados aos tempos vividos dentro e fora da escola, rompendo com os valores, regras e modos de ser impostos pela escola, por seus/suas parceiros/as, pelos marcadores do tempo, enfim, por nossa sociedade, principalmente no que tange aos significados de gênero. Tendo como pressuposto que estes significados são intrínsecos dos discursos e das práticas dos sujeitos, recorro à historiadora e feminista norte-americana, Joan Scott (1995, 1998), para entender o conceito de gênero. A autora o define como “o discurso da diferença dos sexos”, ou “a organização social dos sexos” e que “não se refere apenas às idéias, mas também às instituições, às estruturas, às práticas cotidianas, como também aos rituais e a tudo o que constitui as relações sociais” (SCOTT, 1998, p. 115). É também uma das formas de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades masculinas e femininas enquanto uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. Nessa direção, a oposição entre homens e mulheres passa a ser problematizada, como algo que é contextualmente definido, repetidamente construído e não mais vista como pré-determinada naturalmente. Com isso, abandona-se a idéia de uma origem universal para a dominação masculina, enfatizando a complexidade e a heterogeneidade das relações sociais. Scott atenta-se às linguagens e ao papel das diferenças percebidas entre os sexos na construção de todo sistema simbólico e, apoiando-se em Foucault, percebe todas as relações sociais como de poder, entendido como “constelações dispersas de relações desiguais, discursivamente constituídas em ‘campos de forças’ sociais”, e não como algo “unificado, coerente e centralizado” (SCOTT, 1995, p. 86). 2 Noção de tempo: um enfoque sociológico Dentre os autores e as autoras que discutem as questões relativas ao tempo, meu foco principal dirige-se aos trabalhos do sociólogo alemão Norbert Elias (1998) e o do psicólogo e sociólogo italiano Alberto Melucci (1997; 2004). Em seu livro Sobre o Tempo (1998), Elias afirma que o tempo não existe em si, não é “um fluxo objetivo”, como afirmava Newton, nem é uma “síntese a priori”, uma aptidão inata do sujeito, como sustentavam Kant e Descartes. Ao contrário, a noção de tempo não é inata, imanente e nem um a priori do entendimento humano, pois é constituída e aprendida na vida social. E como essa noção foi construída socialmente, ela pode alterar-se, caso modifiquem as cadências dos afazeres sociais. O conceito de tempo, entendido como é hoje, representa um alto nível de generalização e síntese, uma vez que relaciona acontecimentos que ocorrem no fluxo ininterrupto do devir e não se deixam justapor, nem comparar diretamente. Pressupõe um “riquíssimo patrimônio social de saber no que concerne aos métodos de mensuração das seqüências temporais e às regularidades que elas apresentam” (ELIAS, 1998, p. 35). Antigamente, sem um padrão de medida fixo para avaliar a duração dos acontecimentos, não havia como possuir um conceito semelhante ao nosso. Nossos ancestrais pensavam e se comunicavam utilizando conceitos “mais concretos”, como “sono” para se referirem à noite, por exemplo. No entanto, para a noção do tempo tornar-se um fluxo uniforme e contínuo, milhares de anos foram precisos para que a humanidade aprendesse a integrar bem os reguladores temporais, como os relógios e os calendários. Podemos dizer que, nas sociedades contemporâneas, o tempo tornou-se um instrumento de orientação indispensável para realizarmos uma variedade de tarefas e uma evidência que já não suscita interrogações. Além dessa função de orientação exercida pelo tempo, há também uma outra: a de instrumento de regulação da conduta e da sensibilidade humanas. O calendário, o relógio e tantos outros marcadores do tempo nos impõem as durações e os ritmos da vida social: do momento de começar e de terminar, de suspender ou de prosseguir uma atividade, por exemplo. Trazendo essa discussão para as sociedades complexas, nas quais as tecnologias estão cada vez mais desenvolvidas, Melucci (1997; 2004) afirma que, hoje, o tempo é uma experiência múltipla e descontínua. Velocidade e lentidão, movimento e repouso, alternância e ritmo combinam-se em nossas vidas. É um tempo cada vez mais 3 fragmentado, no qual nossos desejos, sonhos, afetos e emoções estão distantes das cadências e regras sociais, reguladas por uma máquina uniforme, mensurável e previsível. Há também uma multiplicidade de âmbitos na vida, na experiência e nas relações dos sujeitos, nos quais: “A mudança é veloz e o campo das possibilidades é infinitamente mais amplo do que aquele que podemos efetivamente experimentar com nossa capacidade de ação” (MELUCCI, 2004, p. 33). Essas características, apontadas por Melucci, acarretam na vida dos sujeitos uma permanente condição de incerteza que, por sua vez, faz com que a realização de escolhas e decisões seja constante. Cria-se, portanto, um paradoxo, pois a escolha e a decisão tornam-se destino, necessidade, e não mais liberdade e autonomia. Assim, nas sociedades complexas, a vida social apresenta-se como um produto das relações, das ações e das decisões. Trabalho e gênero: uma relação necessária No campo da sociologia do trabalho, muitas pesquisas ainda desconsideram a dimensão de gênero quando tratam da divisão social do trabalho e da flexibilização e precarização da mão-de-obra. A tendência a generalizar os resultados é decorrente de estudos de ramos masculinos, nos quais os trabalhadores são tomados como referência. Helena Hirata (2002) caracteriza estes trabalhos como gender-blinded, pois, ao desconsiderarem a dimensão de gênero em suas análises, não percebem a hierarquia existente entre o trabalho masculino sobre o trabalho feminino. No entanto, Hirata (2002) alerta que a divisão sexual do trabalho não pode se referir somente às mulheres, ao trabalho doméstico, à esfera do privado ou da reprodução. Trabalhar com a divisão sexual do trabalho exige que se leve em conta o caráter multidimensional do trabalho, sendo necessária a desconstrução do conceito. Nesta nova definição, o trabalho doméstico, o trabalho não-remunerado e o trabalho informal também são considerados da mesma maneira que o trabalho assalariado. A eles, é conferido o mesmo status, uma vez que exigem tempo, gasto de energia e esforço físico. Cláudio Dedecca (2004) defende que, para se discutir tempo e trabalho nas sociedades capitalistas, a tensão entre o tempo para a reprodução econômica e o tempo para a reprodução social deve ser sempre considerada. Atualmente, há uma subordinação do tempo social ao tempo econômico, sendo a flexibilização da jornada de trabalho um retrocesso da regulação social sobre a máquina econômica do capitalismo.Em consonância com Hirata (2002), Dedecca (2004) afirma que a dimensão de gênero é imprescindível para a análise do uso do tempo no capitalismo. Segundo o autor, 4 ao contrário das mulheres, os homens possuem um tempo econômico mais elevado e tempos não pagos e para a organização familiar menos intensos. Adversamente, elas possuem um tempo econômico menor, mas realizam jornadas mais extensas de trabalho não pago e na organização familiar. Baseando-se em uma pesquisa realizada na Comunidade Européia, Dedecca (2004) supõe que mulheres casadas e com filhos entre 7 e 17 anos apresentam a tendência de realizar uma jornada de trabalho total, isto é, trabalho remunerado mais trabalho em atividades de organização domiciliar e familiar, mais elevada que os homens na mesma situação. Para estas mulheres, há a ocorrência de um menor tempo livre1, devido às jornadas mais extensas de trabalho não pago, mesmo tendo um menor tempo econômico pago. Ao contrário, os homens possuem um tempo econômico pago mais elevado e um tempo não pago menos intenso, o que resulta em uma jornada de trabalho total menor do que das mulheres. Nos anos de 1970, um aumento significativo do trabalho feminino possibilitou que mais de 40% da força de trabalho dos países capitalistas ocidentais fosse composta por mulheres. Além disso, acentuava-se a participação da mulher trabalhadora nas lutas políticas e sindicais. Refutava-se o discurso conservador que preconizava o destino social da mulher: ser mãe e esposa. No entanto, devido às diversas mudanças político- econômicas, em especial, a vigência de um novo padrão de acumulação flexível, a ampliação do trabalho feminino foi acompanhada por um significativo processo de precarização, que está diretamente associado à flexibilização da mão-de-obra, à informalização e ao regime de trabalho em tempo parcial e temporário. Nos anos de 1990, os efeitos da mundialização do capital foram diferentes para os empregos femininos e masculinos. Apesar da inserção das novas tecnologias suprimir tanto a mão-de-obra não-qualificada masculina como a feminina, coube aos homens a ocupação das novas funções qualificadas, enquanto as mulheres, se não expulsas do mercado, continuaram a ocupar os postos de trabalho periféricos e secundários. Mesmo com o crescimento da ocupação feminina, tanto no espaço formal quanto no informal, as mulheres permaneceram praticamente ausentes dos postos técnicos e longe dos equipamentos caros e competitivos. As desigualdades salariais não diminuíram, nem as 1 Tempo livre é entendido como “um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais”. (DUMAZEDIER, 1979, p. 20) 5 condições de trabalho e de saúde melhoraram. Além disso, a divisão sexual do trabalho doméstico pouco se modificou, apesar das maiores responsabilidades profissionais das mulheres (HIRATA, 2002; NOGUEIRA, 2004). Bila Sorj (2004) analisa os dados referentes a uma pesquisa sobre a mulher brasileira nos espaços público e privado2, com o foco no trabalho doméstico, compreendido como uma dimensão do trabalho social. A ênfase na articulação entre a esfera produtiva e reprodutiva permitiu reconhecer que as obrigações domésticas impõem limites às oportunidades oferecidas às mulheres no mercado de trabalho. Dessa maneira, são reservadas às mulheres carreiras descontínuas, salários mais baixos e jornadas em tempo parcial. A “ideologia da domesticidade” é mantida devido aos efeitos destes empregos de menor qualidade. Pelo menos duas limitações se impõem ao projeto de emancipação e conquista do mercado de trabalho pelas mulheres. A primeira delas refere-se à desigualdade salarial entre homens e mulheres. Quando a renda da mulher não é significativa para a melhora da condição de vida da família, ela abre mão do trabalho remunerado para se dedicar ao cuidado da família. A segunda está ligada à limitação da oferta pública de creches e pré- escolas. Dessa forma, o cuidado e a educação das crianças pequenas permanecem um assunto privado das famílias, fato este que prejudica não somente as mães, mas também as crianças, visto que a educação é um direito de todos e todas. Diversas pesquisas concordam que a participação masculina nas rotinas domésticas vem aumentando. Entretanto, o ritmo da mudança é extremamente lento. No ano de 2001, em 96% dos domicílios pesquisados, a principal responsável pelas tarefas domésticas era uma mulher. Sorj (2004) mostra que a participação masculina no domínio privado é, além de limitada, seletiva e corresponde às tarefas socialmente mais valorizadas. Segundo a autora, os homens dedicam-se às atividades que envolvem interação, como cuidar das crianças e ajudar nos trabalhos da escola, ou àquelas que representam uma mediação entre a família e o espaço público, como fazer compras no supermercado ou levar as crianças ao consultório médico. 2 Em 2001, a Fundação Perseu Abramo realizou a pesquisa “A mulher brasileira nos espaços público e privado”, a partir de entrevistas com 2.502 mulheres acima dos 14 anos de idade, residentes nas áreas urbanas e rurais de todo o país. O objetivo do trabalho foi o de conhecer suas percepções, seus anseios e suas expectativas, construindo um mosaico do que pensam as mulheres brasileiras, no início do século XXI, sobre os diversos aspectos de suas vidas. 6 Para finalizar sua discussão, Sorj (2004) propõe que, quanto melhor for a inserção da mulher no mercado de trabalho e quanto mais elevado for o seu nível educacional, maior a capacidade de negociação das tarefas domésticas com seu parceiro. Sandra Unbehaum (2000), em sua dissertação de mestrado, analisa se, diante das modificações socioculturais nas sociedades contemporâneas, como, por exemplo, o advento da pílula anticoncepcional e a entrada da mulher de classe média no mercado de trabalho, a experiência masculina da paternidade tem se alterado e se tais transformações têm, de fato, estimulado processos de negociação por parte dos homens com suas parceiras no que diz respeito ao cuidado com os/as filhos/as pequenos/as e à distribuição de afazeres domésticos. Mesmo com diferentes modos de perceber e vivenciar a paternidade, os entrevistados3 apresentaram aspectos comuns com relação ao “desejo muito presente de ser diferente do que o próprio pai foi em relação ao envolvimento com os filhos, estar mais presente no cotidiano da família e, mais do que isso, ser mais afetivo” (UNBEHAUM, 2000:194). Contudo, essas mudanças parecem, de certo modo, ser mais expressivas no plano das idéias do que na prática cotidiana. A mudança de comportamento expressa no discurso das pessoas soa muitas vezes contraditória com o que observamos no cotidiano das relações parentais. E um dos fatores que dificultam significativas mudanças na estrutura de gênero é a própria organização social, pois, Mulheres ganham menos do que os homens, a licença-maternidade favorece que sejam elas a cuidarem durante mais tempo dos filhos e a optarem por atividades profissionais que permitam conciliar trabalho e família, não há uma política para as famílias que forneça condições para que homens e mulheres possam dedicar-se em condições iguais aos seus projetos profissionais (UNBEHAUM, 2000, p. 195). Assim, é possível dizer que a divisão das tarefas domésticasainda é determinada pelo gênero e a maior parte da rotina doméstica é executada pelas mulheres. No entanto, mesmo com as inúmeras dificuldades para modificar as relações de gênero no âmbito privado, Unbehaum mostra que seus entrevistados vivem um intenso processo de reflexão sobre o seu lugar na família, como pai e marido. Cristina Bruschini (2000) confirma a dupla jornada de trabalho das mulheres e sua situação subordinada no mercado de trabalho. A autora denuncia a enorme sobrecarga das 3 A análise está restrita a um grupo de 10 homens, com escolaridade de nível superior, profissionais qualificados, residentes na cidade de São Paulo, casados e pais de filhos/as com idade até 10 anos. 7 trabalhadoras, devido à sobreposição dos afazeres domésticos e cuidado com os/as filhos/as e da atividade econômica. Desta situação, resulta, para as mulheres, uma posição secundária e discriminada no mercado de trabalho. Como resultado, em algumas atividades majoritariamente femininas, como o magistério e a enfermagem, existia, em 1995, uma desigualdade salarial: 29% dos homens ganhavam até dois salários mínimos, em comparação a 45% das mulheres ali ocupadas. Em um pólo oposto, ocorreram também algumas transformações com relação à participação das mulheres em ocupações de maior prestígio e com maior comando, tais como, a arquitetura, a medicina e a advocacia. Essas mudanças ocorreram, em grande parte, devido aos altos índices de escolarização das mulheres e aos novos padrões demográficos e culturais. Apesar do avanço, pelo menos metade da força de trabalho feminina possui empregos com baixos índices de registro em carteira e de contribuição para a Previdência Social. Ademais, os afazeres domésticos continuam sendo considerados como inatividade econômica, embora mantenham ocupadas boa parte das mulheres (BRUSCHINI, 2000). Ao lado do trabalho doméstico, remunerado ou não, o magistério é outra das ocupações que agrega um grande número de mulheres. No entanto, diferentemente das mulheres de outras categorias profissionais, as professoras inserem-se em uma atividade nem sempre tão marcada pela precarização e flexibilização. Contudo, essas características já estão presentes no trabalho docente, marcado também pela dupla jornada, uma vez que além do trabalho na escola, há os serviços escolares realizados em casa. Inês Teixeira (1998) acrescenta que as professoras possuem tripla jornada, e não dupla, uma vez que além do trabalho na escola, há os serviços escolares realizados em casa e o trabalho doméstico. Mesmo quando não executam os serviços domésticos, ou seja, quando recebem ajuda de terceiros, como as empregadas domésticas, elas são as responsáveis pela administração destes serviços. Nesse sentido, é preciso “discutir aspectos como o desempenho de tarefas concomitantes, o lazer interrompido, a administração de relações e dinâmica familiar que dão qualidade aos tempos [das professoras], tornando seus ritmos mais intensos” (TEIXEIRA, 1998, p. 202). Segundo Marília Carvalho (1996), a discussão sobre o trabalho docente ainda apresenta esta lacuna, uma vez que a maioria dos trabalhos desconsidera a composição majoritária de mulheres no magistério. Por ser uma profissão considerada feminina, não somente pelo maior número de mulheres, mas também pelas características tidas como femininas – docilidade, amabilidade, paciência, cuidado –, a organização do trabalho 8 docente sofre mudanças, pois, até o início do século XX, o magistério ainda era uma profissão masculina. Portanto, ao se discutir o trabalho docente, o trabalho doméstico, exercido pela maioria das mulheres, deve ser levado em consideração. Diante destas considerações, interrogo-me se há diferenças entre o uso dos tempos por professores e professoras? Somente elas possuem dupla ou tripla jornada? Posso dizer que as professoras possuem maior jornada total de trabalho, pois além do trabalho docente, são as responsáveis pelo trabalho doméstico e pelo cuidado e educação dos/as filhos/as? Para compor este artigo, selecionei os questionários de três professores e três professoras, que me possibilitaram discutir questões consoantes e divergentes dos estudos já realizados. É importante ressaltar que, por se tratar de pesquisa em andamento, apresento esboços de análises, uma vez que as entrevistas com as/os docentes ainda estão sendo realizadas. Cotidiano docente: significados de gênero nas jornadas e ritmos Pedro4, 32 anos, branco5, casado, mora com a esposa e o filho de 3 anos. Sua rotina diária, além estar todas as manhãs e noites na escola – uma municipal e outra estadual –, inclui buscar o filho na escola, cuidar da casa e das plantas, colocar o filho para dormir, preparar aulas, navegar na internet, fazer o serviço de banco, dentre outras atividades domésticas. Aos sábados, freqüenta um curso de formação continuada durante a manhã e a tarde e, aos domingos, dedica-se à família e à preparação de atividades escolares. Marcelo, 32 anos, branco, solteiro, mora com a família (pai e mãe). No período da manhã, trabalha na escola municipal e, à tarde, na área de projetos educacionais em uma ONG. Freqüenta, à noite, duas vezes por semana, um curso de especialização na USP. Nos finais de semana, faz passeios com amigos, vai às compras, navega na internet, dedica-se à família e à leitura. A atividade física está presente em todos os dias, incluindo o fim de semana. Renato, 38 anos, branco, casado, mora com a esposa e a filha de 11 anos. Além de trabalhar em duas escolas – uma municipal e outra estadual – nos turnos da manhã e da noite, exerce outra atividade fora do magistério. Nos finais de semana, passeia com a família, faz compras, assiste televisão, pratica exercícios físicos, navega na internet e dedica-se às atividades escolares – preparação de aula e correção de exercícios. 4 Todos os nomes são fictícios. 5 Todos/as os/as professores/as se auto-classificaram. 9 Fernanda, 35 anos, branca, solteira, mora com a mãe e um filho de 16 anos. Trabalha durante a manhã em uma escola municipal e, nos períodos da tarde e da noite, é professora e zeladora de uma escola estadual em uma cidade próxima a São Paulo. Gasta, aproximadamente, 6 horas diárias com o deslocamento entre sua casa e as escolas em que trabalha. Entre um turno e outro, faz algumas atividades domésticas. Nos sábados, faz a faxina da casa, lava e passa as roupas acumuladas durante a semana. Nos momentos em que não está ocupada com as atividades escolares e domésticas, gosta de ler, dormir e assistir a filmes. Adriana, 43 anos, branca, solteira, mora sozinha. Dedica boa parte dos seus dias da semana às aulas em uma escola municipal e em outra estadual. Além disso, tanto nos dias da semana quanto nos finais de semana, prepara atividades pedagógicas e faz alguns serviços domésticos, como lavar louça e roupa, arrumar a casa, ir ao banco e ao supermercado. Em seu tempo livre, assiste à televisão, lê e ouve músicas. Nos finais de semana, visita amigos e familiares, vai ao cinema, ao shopping e a exposições de arte. Amanda, 55 anos, parda, viúva, tem duas filhas, mora com uma delas e com sua mãe. Aposentada em um dos cargos, leciona na escola municipal de manhã e, durante as tardes, dedica-se a atividades pedagógicas e domésticas. Atualmente, com mais tempo livre, faz ginástica e preza pelos momentos de prazer e convívio com a família. Três homens, três mulheres, mesma profissão – docente – e seis vidas bastante diferentes. Do ponto de vista do trabalho para a reprodução econômica, há algumas questõesa considerar. A responsabilidade de ser o provedor da casa, no caso de Pedro e Renato, é dividida com a esposa e, no caso de Marcelo, é inteiramente dos pais, uma vez que todo seu orçamento destina-se às suas despesas pessoais. Fernanda e Adriana possuem inteira responsabilidade pelas despesas e Amanda contribui com grande parte de seu orçamento. Segundo Marília Carvalho e Cláudia Vianna (1994), o dualismo entre público e privado foi uma característica social criada a partir do discurso liberal, quando surgiram novas formas de organização da vida social. Não estava presente em todas as sociedades e em todos os tempos. A partir de então, houve uma forte polarização entre as identidades masculinas e femininas, articuladas com a diferenciação entre o público e o privado que acompanhou a emergência do capitalismo, articulando também uma compreensão binária do corpo e seus processos. As mulheres são associadas à alimentação, ao cuidado, à maternidade e os homens são vistos como provedores e relacionados ao uso do poder. No 10 entanto, em nossa sociedade, por exemplo, esta polaridade não é rígida: o público e o privado se opõem, se excluem e combinam de diferentes maneiras. Assim, ainda carregando a responsabilidade de serem os provedores, muitos homens são ajudados pelas mulheres nesta tarefa, sendo muitas delas as únicas responsáveis pelo sustento da família, como é o caso das professoras pesquisadas. As esposas de Pedro e Marcelo trabalham fora de casa, contribuem no orçamento familiar – ainda que com uma porcentagem menor – e possuem responsabilidades pelos serviços domésticos, em graus variados. Com relação ao trabalho para a reprodução social, ao contrário do que apontou Sorj (2004), a participação de Pedro parece não ser limitada e tampouco seletiva. Além de fazer as tarefas mais valorizadas socialmente, aquelas que exigem contato com o mundo público, como fazer compras, levar os/as filhos/as à escola, ao consultório médico e dentário, Pedro também cuida da limpeza da casa e do filho pequeno, atividades que o ocupam por volta de 20 horas semanais. A rotina de Renato, no entanto, é bem diferente. Em sua casa, as responsabilidades pelo trabalho doméstico são delegadas à sua esposa e a uma empregada, fato que corrobora com a tradicional divisão sexual do trabalho. Ou seja, sua esposa, mesmo trabalhando fora de casa e contribuindo com o orçamento doméstico, executa parte dos serviços e administra o restante, que é feito pela empregada doméstica. Marcelo gasta 3 horas semanais com trabalho doméstico, que inclui arrumação da casa, tarefas de banco, compras, entre outras. O fato de morar com os pais, responsáveis pelo sustento da casa e pelas tarefas domésticas, permite que seu tempo livre, incluindo alguns dias de semana, seja usufruído com atividades que lhe dão prazer, como sair com amigos, praticar esportes e descansar. Neste sentido, ser casado/a e/ou ter filhos/as pode fazer diferença na utilização do tempo livre dos professores. Como já foi apontado, Pedro, quando não está em sala de aula, ocupa-se das tarefas domésticas e do cuidado com o filho, tanto dos dias de semana, quanto nos finais de semana. O que faz em seu tempo livre é “atividades de lazer com a família e dormir”. Renato tem todo o tempo da semana ocupado pelo trabalho econômico, pois trabalha nos três turnos. Nos finais de semana, o seu tempo livre é dedicado às atividades esportivas, à ioga, a ir ao cinema, ao teatro, passear com a família, ir às compras, ler e ouvir música. Ao contrário dos professores, todas as professoras, morando sozinhas ou não, trabalhando um, dois ou três turnos, possuem alguma ou a total responsabilidade pelo trabalho doméstico. Ajudadas pelas mães, pelas filhas ou por alguma outra mulher, como 11 as empregadas domésticas ou diaristas, as professoras dedicam-se, ao menos, uma hora por dia a estas atividades, além do trabalho remunerado e dos serviços escolares realizados em casa. Uma característica que distingue os/as docentes, homens e mulheres, de outros grupos profissionais é o fato de que, além de trabalharem em mais de uma escola, como é o caso de Pedro, Renato, Adriana e Fernanda ou exercerem outra atividade fora do magistério a fim de complementarem a renda familiar, como é o caso de Marcelo e também de Renato, os/as professores/as, na maioria das vezes, levam serviços escolares para casa. Pedro, Renato, Adriana e Fernanda têm parte de seus finais de semana ocupados com estas atividades. Amanda dedica-se algumas horas a estas atividades nos dias da semana. Ao contrário, Marcelo alega que evita levar trabalho para casa, o que só é possível por ser optante de um regime de trabalho que disponibiliza tempo para que tais atividades sejam feitas na escola. Na Rede Municipal de Ensino de São Paulo, há a possibilidade de os/as docentes optarem pela Jornada Especial Integral – JEI6, que inclui, além das horas trabalhadas em sala de aula, tempo de estudo coletivo e para preparação e elaboração de atividades. Teoricamente, quem opta por esta jornada deveria ter tempo suficiente para fazer as atividades sem levá-las para casa, tal como Marcelo. Na prática, no entanto, é uma tarefa difícil. Pedro, Fernanda e Adriana também são optantes por JEI, mas levam atividades para serem feitas em casa, principalmente, a preparação das aulas. Renato, por ser iniciante na Rede Municipal, assumiu a Jornada Básica de Trabalho – JB7, que não inclui tempo de trabalho coletivo e Amanda tem uma jornada mais extensa do que a Básica, mas insuficiente para não levar os serviços escolares para casa. Somente por meio dos questionários, não é possível apreender por que Pedro, Renato, Fernanda, Adriana e Amanda não conseguem deixar de levar as atividades para casa – ou preferem levar, já que as horas-atividades individuais podem ser cumpridas em local de livre escolha do/a docente. Uma hipótese que formulo, relacionada aos significados de gênero, é que os/as professores/as casados/as e/ou com filhos/as e/ou aqueles/as quem possuem outras atividades – remuneradas ou não – além do trabalho na Rede Municipal, preferem levar as atividades para serem feitas em casa por terem uma 6 A Jornada Especial Integral – JEI inclui 25 horas/aula e 15 horas-atividades (11 horas/aula semanais na própria escola e 4 horas/aula semanais em local de livre escolha), perfazendo um total de 40 horas/aula semanais. 7 A Jornada Básica – JB inclui 18 horas/aula e 2 horas-atividades (individuais), perfazendo um total de 20 horas/aula semanais. 12 maior flexibilidade de tempo para fazê-las, mesmo que os finais de semana fiquem comprometidos. Finalizando, é possível considerar que ser homem ou ser mulher não determina condições de vida, incluindo o uso de seus tempos cotidianos. Outras variáveis precisam ser levadas em conta, tais como, socialização de gênero, idade, estado civil, apoio familiar, apoio institucional, entre outras. Talvez em menos quantidade que as mulheres, os professores também possuem jornadas extensas e ritmos intensos. Eles possuem dupla jornada, como Marcelo, ou até mesmo tripla jornada, como Pedro e Renato. Referências bibliográficas BRUSCHINI, Cristina. Gênero e trabalho no Brasil: novas conquistas ou persistência da discriminação? (Brasil, 1985/95). In: ROCHA, Maria Isabel Baltar da. (org.). Trabalho e gênero: mudanças, permanências e desafios. ABEP, NEPO/UNICAMP e CEDEPLAR/UFMG. São Paulo: Ed. 34, 2000. CARVALHO, Marília Pinto de. Trabalho docente e relações de gênero: algumas indagações. Revista Brasileira de Educação, mai/jun/jul/ago, n. 2, p. 77-84, 1999. ________ e VIANNA,Cláudia Pereira. Educadoras e mães de alunos: um (des)encontro. In: BRUSCHINI, Cristina e SORJ, Bila. Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo: Marco Zero/FCC, 1994. DEDECCA, Cláudio Salvadori. Tempo, trabalho e gênero. São Paulo, 2004 (mimeo). DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia Empírica do Lazer. Trad. Sílvia Mazza. São Paulo: Perspectiva, 1979. ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. HIRATA, Helena. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo, 2002. MELUCCI, Alberto. Movimentos sociais e sociedade complexa. Cadernos do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Movimentos Sociais - movimentos sociais na contemporaneidade. São Paulo: PUC - Serviço Social, n. 2, p. 11-32, abril, 1997. ________. O jogo do eu: a mudança de si em uma sociedade global. São Leopoldo: Unisinos, 2004 (versão original, em italiano, de 1991). 13 NOGUEIRA, Cláudia Mazzei. A feminização do mundo do trabalho: entre a emancipação e a precarização. Campinas: Autores Associados, 2004. SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, n. 20, v. 2, p.71-99, jul/dez, 1995. ________. Entrevista com Joan Wallach Scott - entrevista a Miriam Grossi, Maria Luiza Heilborn e Carmem Rial. Estudos Feministas. Florianópolis, ano 6, n. 1, p. 114-124, 1998. SORJ, Bila. Trabalho remunerado e trabalho não-remunerado. In: VENTURI, Gustavo, RECAMÁN, Marisol e OLIVEIRA, Suely de. (orgs.) A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo. Fundação Perseu Abramo, 2004. TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro. Tempos enredados: teias da condição professor. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: FaE/UFMG, 1998. UNBEHAUM, Sandra G. Experiência masculina da paternidade nos anos 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH/USP, 2000. Carolina Faria Alvarenga formou-se em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG) e, atualmente, é mestranda pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), na linha de pesquisa Sociologia da Educação, sob orientação da Profa. Dra. Cláudia Pereira Vianna.
Compartilhar