Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Luiz Milanesi O QUE E ediçao BIBLIOTECA editora brasiliense Luís Milanesi 0 QUE E BIBLIOTECA 1? ediçào 1983 3? ediçào 1985 co p yn g m '•& l u i s Milanesi Capa e ilustrações: João Batista da Costa Aguiar Revisão: Rosângela M. Delis José E. Andrade editora brasiliense s.a. 01223 — r. general jardim, 160 são paulo — brasil ÍN D IC E - B ibliotecas para q u ê ? .............................. - O lh ar para t r á s ............................................ - No Brasil ...................................................... - A e s c o la ......................................................... - A b ib lio teca p ú b l ic a ................................. - A b ib lio teca u n iv e rs itá r ia ...................... - A b ib lio teca esp ec ia lizad a ...................... - B iblioteca e centro de docum entação - In form ação e d e s e n v o lv im e n to ........... - Um a p o lític a para as bibliotecas . . . . - P r o je t o ................................... .. ..................... - Indicações para l e i t u r a ........................... BIBLIOTECAS P A R A QUÊ? Villa-Lobos é a preocupação. Tarefa: é preciso encontrar informações sobre o mais im portante músico brasileiro do século X X . Eis a í dois dados: o compositor nasceu no Rio de Janeiro em 1887 e morreu na mesma cidade 72 anos depois, dei xando um conjunto de obras que marcou uma nova tendência musical: o nacionalismo. Esses dados sobre o compositor foram extraídos de alguma enciclopédia. E pouco, Villa-Lobos exige mais, é inesgotável. Onde obter novos dados? Um estudante de Nova Y ork , Paris, Tóquio, Moscou, por certo não encontraria obstáculos para ter acesso a tudo que é possível conhecer sobre o compositor carioca. Pesquisando, descobriria vários livros, artigos de revistas, discos, partituras, filmes, documentos, que perm itiriam avançar o conheci mento sobre Heitor Villa-Lobos. As informações ^ vão traçando a figura do músico, umas reforçando, outras perturbando o conjunto. Se existem docu mentos fundamentais, outros podem ser descartados como inúteis. Taú, esse era o apelido do mestre, escreveu centenas de peças, de piano solo a grande orquestra e coro. Antes de chegar ás obras, talvez fosse importante ler alguma biografia. Qual delas? Depois, ouvir. 0 quê? Para orquestra e instrumento solo o catálogo de composições relaciona dezenas de obras. Momo precoce, para piano e orquestra, e Martírio dos insetos, para violino e orquestra, são peças relativamente conhecidas. É possível ter acesso às gravações de algumas obras. Parte consi derável permanece sem registro. E partituras? Centenas delas foram editadas. Mas existem os inéditos, manuscritos. E ainda: estudos variados sobre a música de Villa-Lobos, textos que dissecam uma Ciranda ou analisam uma fase, ou . . . 0 estudante entra na biblioteca e dirige-se ao balcão de informações. Ele expõe o problema: quer saber o que existe ali sobre Villa-Lobos. Quem o atende aciona alguns botões, faz perguntas, manipula um teclado, fazendo surgir num visor uma série de indicações. Biografias do músico? Existem cinco no acervo. Quer consultá-las? Vai levar alguma para casa? Não vai precisar do catá logo de obras do compositor? Só para consulta, não pode ser levado para casa. Quer uma cópia? E discos? Obra pianística? Especifique. Consulte antes o catálogo de obras. Há, também, um docu- mentário em vídeo, além das partituras, claro. 0 consulente solicitou três livros — vai retirar dois deles. Em fita cassete vai tomar emprestado as Bachianas brasileiras n 9 5 e os Choros nQ 10, talvez as obras mais conhecidas do compositor. E, airida, vai ver na T V o bailado Manduçarará. Villa-Lobos está cercado, pelo menos por ora. Na medida em que surgem os dados, novos são exigidos, levando a novas buscas. Um artigo de revista traz uma informação que pode reforçar uma suspeita ou estabelecer um conflito. Isso, por certo, acaba criando um emaranhado de dados, complexo em suas relações. Villa-Lobos é o alvo e, enquanto objeto de estudos, pode ser lido e relido de várias maneiras. Antes esgota-se o pesqui sador do que o assunto pesquisado, pois, se uma análise esclarece um aspecto, pode trazer novos problemas, antes insuspeitos. Quanto mais uma bi blioteca propicia esse jogo de dados, a m ultipli cidade das informações que se reforçam ou que se anulam,-mais estará ela chegando ao seu objetivo — que, por sinal, está sempre um pouco mais à frente. Como não existe no campo das investigações o dado definitivo, também não existem bibliotecas definitivas. Ela própria traz em seu bojo as contra dições que vão exigir novos desdobramentos. A biblioteca acima — uma ficção —, permanen temente, deverá aprimorar o seu acervo e facilitar o acesso às informações. Em relação a Villa-Lobos ela deverá estar atualizada, trazendo ao público todas T 7 T 7 as novidades ou preenchendo as lacunas do acervo. Assim, estará organizando o acúmulo de dados, abrindo o campo para novos estudos, permitindo que o pesquisador — um aluno do primeiro grau ou um investigador universitário — encontre subsídios para as suas pesquisas. Villa-Lobos não será sempre o mesmo, preso na imutabilidade de alguns livros, mas será vários. Isso ou aquilo? Ou nenhum dos dois? A conseqüência final de uma pesquisa poderá ser essa última possibilidade. E uma nova visão surgirá. Talvez o estudante em busca de Villa- Lobos esteja dando os seus primeiros passos nesse sentido. O quadro traçado acima mostra, de propósito, uma biblioteca que não existe no Brasil e as possi bilidades de embasamento documental de uma investigação. Um item amplo — Villa-Lobos — leva o estudante a entrar numa biblioteca, o que já é um passo extremamente positivo. E raro, pois nem sempre o desejo de consultar iivros coincide com a existência de bibliotecas. Então, é necessário alterar o quadro, deixando de lado uma concepção ideal que, mesmo não sendo ficção científica, parece que nenhuma ligação tem com o real do dia-a-dia da inteligência brasileira. 0 professor dá como tarefa escolar um trabalho sobre Villa-Lobos. Cabe ao aluno procurar infor mações sobre o músico. Ele deverá tomar as devidas providências. Onde? A escola não tem biblioteca. Talvez tenha, mas está trancada. E 0 que é Biblioteca 11 preciso visitar a biblioteca pública. Felizmente, o município tem uma, funcionando no antigo prédio da cadeia pública. Só abre às 9 horas e fecha às 17. Horário de funcionário público e não de leitor. A noite, não funciona. No balcão de atendi mento, atrás do qual uma senhora tricota e cujo olhar atrás do tricô parece pedir ao consulente que, por precaução, não se aproxime, o estudante faz o pedido: Villa-Lobos. Não, não é aquele pacificador de índios brasileiros. É um músico. Veja ali no catálogo. (Apesar de ser feita a indicação com o queixo, há um catálogo e isso ajuda.) O estudante vai procurar nas velhas fichas puídas e sujas o nome do músico. Parece que não está em ordem alfabé tica. Como é que acha? Um catálogo por mais rudimentar que seja é difícil para quem não tenha facilidade de consultar uma lista telefônica. Por Heitor não existe nada. E nem por Lobos. Só pode ser por V illa. Há uma ficha com esse nome. O consulente retira a ficha do catálogo e leva-3 ao balcão. A atendente grita que não pode tirar a ficha do catálogo. Que é preciso fazer? Pôr a ficha de novo no lugar e anotar os números que estão no alto dela, à esquerda. Números e letras. Anotado o código, resta encontrar o livro. O acesso ao acervo é interditado. Um funcionário desaparece entre as estantes e depois de alguns minutos anuncia que não encontrou o volume. A atendente consulta alguns papéis e murmura algo.Nova busca. Ninguém encontra o livre. 0 estudante sai de mãos vazias. ______________________________________________________ IZ Luís Milanesi 0 professor pedira para a classe pesquisar sobre Villa-Lobos. Ele fez a obrigação. Aquilo lembrava uma gincana. Na saída da biblioteca encontra alguns colegas de classe e eles dão a informação precisa: "Tem um livro que tem tudo o que o professor quer". E o estudante volta à biblioteca. A enciclopédia está sobre a mesa, justamente aberta na página onde se destaca o verbete "Villa- Lobos, Heitor". Então, mãos à obra, copiar e passar de ano. O estudante transcreve o texto enciclopédico. Ao terminar, observa alguns colegas que, em fila, esperam a vez de cumprir o dever escolar. Este segundo modelo de biblioteca é o mais freqüente no Brasil. E até pode ser considerado positivo — pelo simples fato de existir. Em muitos municípios brasileiros não há nada que possa ser identificado com biblioteca. Quantificar o seu número é impossível ou, pelo menos, é uma tentativa precária e isso por dois fatos: primeiro, não se sabe com exatidão o que possa ser conside- derado biblioteca pública. Há muita generosidade na aplicação do termo. Por vezes, ela é um armário com alguns livros escondido em alguma sala da pre feitura. Só funciona para efeito de estatística. Se gundo, como alguns rios nordestinos, as bibliotecas podem ser intermitentes: funcionam em alguns períodos. Outras, obedecendo ao ciclo da vida, nas cem, crescem e morrem. Uma justificativa para a precariedade da situação v que e awuoieca 13 é atribuída, com freqüência, ao subdesenvolvi mento, palavra que até justifica as deficiências seculares do país. No entanto, torna-se difícil entender o desenvolvimento econômico-social sem que sejam afiados os instrumentos educativos. Não será uma nação desenvolvida que aprimorará o seu sistema educacional, mas a prioridade ao ensino, à circulação de informações, à pesquisa é que propi ciará alcançar novos estágios de desenvolvimento. Nesse investimento no ensino e na pesquisa, as hipotecas deverão ter o incremento compatível ao s apel. Qualquer projeto na área só chegará ao se», jb jetivo se tiver uma política de informação que permita o acesso a ela sem restrições. Nas áreas mais desenvolvidas do país existem exemplos de bibliotecas que cumprem a sua função, mantendo acervos atualizados e serviços eficientes. Entretanto, a disparidade econômica mostra não apenas a mi séria concretizada nas habitações, nas roupas, nos corpos, mas revela também a indigência cultural. Ao lado de aglomerações urbanas industrializadas, como a cidade de São Paulo, que — apesar de suas mazelas — ostenta escolas e universidades, além de programas culturais, existem vastas áreas de absoluta carência. E como se o Brasil vivesse vários tempos históricos: o século X X predominando nos bolsões industriais espalhados pela vastidão do território com feições coloniais. Existem bibliotecas e centros de documentação que acompanham e impulsionam o desenvolvimento social nas áreas \ onde ele é mais florescente. Em contrapartida, as bibliotecas das áreas mais subdesenvolvidas são um reflexo delas. Aiegam os administradores: se não há escolas, não há motivo para construir bibliotecas; se a população não come, por que ler? 0 analfa beto morre em silêncio. Talvez, para os setores mais iluminados da admi nistração brasileira, seja tácito que a educação, a pesquisa, o controle informativo, são peças funda mentais 110 processo de desenvolvimento, uma espécie de sine qua non dele. Isso é percebido com mais clareza onde a renda per capita é maior. Nas regiões onde o subdesenvolvimento é mais óbvio, escola, leitura e bibliotecas são reflexos piorados da situação. Em caso de miséria, a escola é mais miserável. Villa-Lobos como assunto de pesquisa foi o gancho para apresentar a biblioteca brasileira, apesar de, ao que tudo indica, não ser dos assuntos mais freqüentes. 0 tema poderia ser a aplicação da energia nuclear na agricultura, a esquistossomose ou o sal monossódico do ácido-ciclo-3-hexenil- hidroximetil hipofosforoso. Cada biblioteca serve a um determinado público. Quanto mais heterogêneo for esse público, mais diversificado deverá ser o acervo — como é o caso da biblioteca pública. 0 usuário poderá ser o adulto que se alfabetiza ou o geneticista que tem interesse profissional em acompanhar passo a passo os avanços científicos de seu setor. Quanto mais direcionado for o interesse, 1*T UMti) - mais circunscrito será o acervo e maiores serão as possibilidades de controle informativo. Uma biblioteca que seive a um grupo de médicos que se dedica à pesquisa da doença de Chagas deve cobrir a área da forma mais ampla possível, não só tendo um acervo, mas fazendo indicações precisas para que os pesquisadores tenham completo controle sobre a sua especialidade, acompanhando as novas descobertas e permanecendo na fronteira do conhe cimento. As pesquisas, progressivamente, entram pelos detalhes, os cientistas produzem trabalhos específicos, cada vez mais intrincados, e esses trabalhos vão sendo incorporados aos acervos para servir de base a outros pesquisadores, numa rede de informação que evita, em última instância, que um cientista percorra caminhos já andados, repetindo um trabalho, e propicia a uma determinada comu nidade científica a construção harmônica da imensa estrutura do conhecimento humano que se projeta infinitamente. A Ciência é cumulativa e a biblioteca tem a função de preservar a memória — como se ela fosse o cérebro da humanidade —, organizando a informação para que todo ser humano possa usufruí-la. Isso vai da biblioteca que se constrói para aqueles que se alfabetizam, até a biblioteca especializada para o homem de ciência. A distância é grande — a mesma que existe entre o subdesenvolvimento e o desenvolvimento. OLHAR PARA TRÁS A história da biblioteca é a história do registro da informação, sendo impossível destacá-la de um conjunto amplo: a própria história do homem. Na medida da produção do registro informativo, o homem engendrou sistemas — tão rudimentares quanto a informação registrada — para não disper sá-la. Era preciso reter a informação sobre algum suporte concreto; conseqüentemente, tornou-se imprescindível a preservação desses suportes - os documentos — bem como a organização deles. Quanto mais documentos produzidos, maior a exigência de controle. A resposta à explosão informativa do século XX foi a utilização do computador para ordenar a informação registrada. Ou seja, quanto mais o homem gera documentos, mais os profissionais especializados no controle da informação buscam instrumentos e técnicas que v_____________________________________________ S \ permitem a cada homem encontrar o dado que procura. Os reis assírios tinham os seus arquivos, bem como os sumérios e babilônios. Nessa fase da história, esses povos usavam placas de argila para registrar o conhecimento, gravando nelas as inscri ções cuneiformes — uma das primeiras formas de escrita. O conjunto dessas placas de argila pode ser entendido como uma biblioteca. Em Nínive, os arqueólogos encontraram por volta de 22 mil placas, que estavam ali desde o século V II a.C. Certamente havia algum sistema para viabilizar a utilização do material — por sinal, mais complexo de ser manuseado. Um avanço significativo foi a utilização do papiro como suporte da escrita. Era um material mais leve, mais flexível, ainda que frágil. O papiro é uma planta das margens do rio Nilo e foi utilizada pelos egípcios já antes do terceiro milênio a.C. através de uma técnica de entrelaçar as suas fibras formando uma superfície apta a receber inscrições a tinta. Passou a constituir-se noproduto mais divulgado do Egito e, por séculos, foi a forma mais prática para produzir documentos escritos. Os egípcios forneceram ao mundo grego e ao Império Romano o papiro em grande quantidade. Fabrica vam faixas com a largura aproximada de um palmo por 8 metros, em média. Esse material formava rolos dos quais podia pender uma eti queta com o título. O rolo de papiro chamava-se s. ' N volumen. Existiam bibliotecas com milhares •"X de volumes. Posteriormente, o papiro importado foi substi tu ído pelo pergaminho, pele de carneiro ou de outros mamíferos tratada de forma a servir como suporte de inscrições a tinta. As peles, que podiam ser enroladas como o papiro, passaram a ser recor tadas e unidas numa margem, formando um objeto mais próximo da forma do livro atual. Apesar da importação onerosa do papiro e da fabricação do pergaminho, também cara, havia uma produção literária que permitia formar acervos, ou seja, bibliotecas. É sempre lembrado o Museion de Alexandria, uma espécie de centro de cultura, uma casa de sábios, que chegou a reunir, supõe-se, mais de 500 mil volumes. Essa biblioteca primitiva foi destruída em 47 a.C. Mas a idéia da formação desses acervos que aglutinavam os sábios persistiu, inclusive em Roma, onde no ano de 370 existiam 28 bibliotecas públicas, um índice considerável se forem feitas comparações com fases mais recentes. Dessas grandes coleções do passado quase tudo foi perdido. Os manuscritos que se conservam hoje são cópias feitas séculos depois da morte de seus autores. Nas poucas obras que subsistiram dessa Antigüidade que fez pirâmides eternas e papiros precários, ou templos e palácios sólidos, mas pergaminhos frágeis, há referência a muitos outros textos que se perderam definitivamente. Por exemplo: Esquilo escreveu setenta tragédias e ' - ■pp ~TT Sófocles, 123; de cada um restaram sete obras. Não sobreviveram, também, 75 tragédias de Eurípedes e 29 comédias de Aristófanes, além de obras de Tácito e T ito Lívio. Com certeza, a produção literária foi várias vezes superior ao que o homem conseguiu reter durante mais de vinte séculos. As cópias manuscritas eram raras e caras (faziam-se poucos exemplares de cada obra) e a precariedade física do suporte fez com que a maior parte do registro do pensamento humano que precedeu a imprensa se perdesse. Foram os cristãos os que mais contribuíram para a preservação das obras literárias (a partir da queda do Império Romano, apesar de eventuais ataques a livros e bibliotecas). Em seus redutos eles forma vam acervos com o objetivo de conservar os livros litúrgicos, textos das Escrituras e escritos dos padres. Nos conventos juntavam essas obras e os religiosos, habilitados, em trabalho paciente, ocupavam parte de seu tempo na tarefa de passar para os pergaminhos os textos que lhes pareciam mais úteis, quase sempre os religiosos. Também textos profanos foram copiados dentro dos mos teiros — o que propiciou a conservação de obras que, provavelmente, estariam perdidas se não fosse o lavor minucioso dos religiosos. Eles, notadamente os beneditinos, cuja Regra monástica prescrevia a leitura, no scriptorium desenhavam com penas e tinta as letras e as iluminuras. Na Regra beneditina, os empréstimos de livros aos monges eram feitos no \ começo da Quaresma e o prazo de leitura estendia- se até o final do ano. Na Idade Média, as abadias foram o repositório literário que servia a uma parte do segmento letrado. Mas não só os religiosos retinham e preser vavam os manuscritos; os reis e outras personali dades de destaque começavam progressivamente a formar as suas coleções particulares. A obra literária era cara e só os mosteiros (que a produziam) e os homens que detinham o poder davam-se ao luxo de possuir um livro. Nesse período, uma coleção média de manuscrito' tinha em torno de duzentos, trezentos volumes. O surgimento da universidade acelerou a produ ção de manuscritos. Nos espaços onde as obras podiam ser consultadas, os volumes mais usados permaneciam acorrentados nos locais de leitura. A difusão do papel no Ocidente (século X IV ) barateou as cópias manuscritas, mas o passo mais significativo nesse sentido foi a invenção do tipo móvel, feito conseguido por Gutenberg, na cidade renana de Mogúncia, em meados do século X V . A impressão, a partir dessa época, permitiu que o pensamento humano registrado pela escrita chegasse a um número progressivamente maior de pessoas. O livro deixou de ser produzido pelo trabalho caligráfico dos religiosos, volume por volume, e passou a sair das of icinas, barateando e acelerando o processo. Do artesanato passou-se à fabricação em série. Tal fato determinou profundas transfor- mações que marcaram a história do pensamento humano: a circulação de idéias expandiu-se, saltou, definitivamente, o muro dos conventos, chegando a um número de pessoas cada vez maior. As bibliotecas deixaram de ser tesouros para se tornarem serviços e os livros perderam o seu valor mó.arial para se tornarem material de consumo, tornando-se domésticos. Os cidadãos passaram a formar bibliotecas em suas casas, corno formavam os reis pré-Gutenberg. As grandes coleções, pertencentes ao Estado e à Igreja, eram um repositório quase sempre precioso do conhecimento humano, onde conservavam-se obras raras, tesouros que mais davam a essas grandes bibliotecas a função de museu, entendido aqui como urrí mostruário histórico. O acesso a esses conservatórios literários era restrito. Isso perdurou até o século X X . Houve transformações históricas que alteraram essa situação, mas sem transformá-la substancialmente. A Revolução Fran cesa tirou os livros das mãos dos nobres e colocou- os à disposição da maioria. A própria Biblioteca do Rei, a Mazarine, teve esse destino. Já no século X X , a Revolução Russa, mudando as estruturas econômicas daquela sociedade, estabeleceu uma nova prática para o ensino o o acesso à informação. Lenin estabeleceu uma política para as bibliotecas, permitindo um rápido desenvolvimento no setor. A tendência que se clarificou a partir do século X IX veio no bojo da Revolução Industrial. A v____________________________________________ J biblioteca/museu deixou de ser a única possibili dade enquanto coleção pública, passando a existir a biblioteca/serviço, oferecida ao público. Essa tendência foi se espalhando no rastro da expansão do operariado: a nova biblioteca tinha uma deter minada função educativa, caracterizando-se como um presente filantrópico que se dava aos segmentos populares, os mais necessitados de ilustração. Posteriormente, já no limiar do século X X , sobrepondo-se à idéia de biblioteca como uma forma de organização dosaber, delineou-se para ela uma nova função: sistematizar o acesso às infor mações. Ter dados à disposição, funcionalmente, passou a ser uma nova necessidade A informação tornou-se um bem acumulável e valorável. "Um homem informado vale por dois." Saber e poder passaram a ter uma trajetória claramente paralela. Do profissional especializado ao cidadão comum, a necessidade de informar-se caracterizou-se como algo prioritário. A biblioteca passou a ser o terri tório mais adequado a esse exercício determinado pelas transformações sociais: o desenvolvimento industrial, a competição acirrada em todos os setores, notadamente no científico-tecnológico (em particular durante as guerras). A partir disso, a informação foi vista como um elemento estratégico para a segurança e o desenvolvimento. Essa necessidade foi sentida inicialmente nos países mais desenvolvidos nas ciências e nas téc nicas, e que chegaram a esse estágio sobre o emba- L U que è Biblioteca 23 sarnento sólido de um sistema escolar. Nenhum empreendimento científicopoderá se sustentar sobre uma escola frágil. Sem reforçar as bases, através de maciço investimento na educação, do primeiro grau à universidade, não será possível gerar sequer os usuários para a utilização dos complexos sistemas oferecidos. O mais completo sistema informativo na área de energia nuclear, por exemplo, não poderá produzir os benefícios se não existirem pesquisadores para utilizá-lo. Mesmo a subutilização é contraproducente, pois os benefícios não corresponderão ao investimento. Os sistemas de informação devem apoiar-se no sistema integral de ensino, permitindo um fluxo ascendente daqueles que se interessam pela investi gação. Assim, a instituição criada para controlar a informação num determinado setor do conheci mento humano não será um presente pouco prático e sem uso integral, mas responderá a uma exigência do meio social de onde emerge e pelo qual é finan ciada. Os países subdesenvolvidos correm o risco de estabelecerem sofisticados programas de informação científica sem o respaldo de uma educação integral eficiente. A escola brasileira, por vezes, tem a aparência de uma pirâmide invertida: falta a base de formação escolar mais eficiente, essa que desenvolve nos indivíduos o interesse pelas infor mações. E ao mesmo tempo propicia o acesso a centros organizados, onde os dados estejam ao alcance e tenham função. ________________ ffl _______________ NO BRASIL A formação intelectual do Brasil, com o seu analfabetismo endêmico, mostra algumas caracte rísticas peculiares. Os jesuítas, como instrumento apostólico, trouxeram os livros para evangelizar e colonizar — ações que se confundem. Fora do fardo dos filhos de Santo Inácio, os livros enfren tavam no Brasil algumas barreiras alfandegárias. Os portugueses foram sempre rigorosos com a publicação e circulação de impressos. Desde 1536, qualquer impressão de livro passava por três censuras: Santo Ofício e Ordinário (da Igreja Católica) e o Desembargo do Paço (poder civil). As censuras eram independentes. A primeira lista de obras proibidas surgiu em 1551 sob a responsa bilidade do Cardeal Inquisidor Geral, o Infante D. Henrique. Em 1768, o Marquês de Pombal aperfeiçoou a censura, unificando as três existentes v_____________________________________________ J sob a denominação de Real Mesa Censória. Só em 1821 foi abrandada a censura, isso quando o Brasil rompia com Portugal. Essa prática estendeu-se à Colônia de forma rigorosa, ainda que a repressão às obras "ímpias” nem sempre pudesse ser exercida em sua plenitude. Muitas obras passavam pela alfândega e isso é atribuído ao desconhecimento das ordens da censura ou à pura ignorância dos funcionários, incapazes de avaliar a obra. Tal fato não é de se estranhar, pois as instruções da Biblioteca Pública da Bahia, a primeira do Brasil (1811), em relação ao bibliotecário, prescreviam: "Deverá ser um sujeito de muito boa conduta que saiba bem ler, escrever e contar". A ignorância generalizada e a desorganização levaram à vulnerabilidade e à pene tração de obras explicitamente proibidas. Rubens Borba de Moraes, bibliófilo e bibliotecário, locali zando na Bahia a Encyclopédie de Diderot e d'Alambert, obra proibidíssima, observa que a mesma para chegar ao seu destino passou pelas polícias da França, Portugal e Brasil. De qualquer forma, os livros importados da Europa aglutinavam-se nas mãos de particulares ou, mais comumente, nos conventos. Estes foram os repositórios mais abastecidos do período colo nial. As ordens religiosas não monopolizavam a geração e circulação do pensamento, mas cobriam um vasto espaço dessa reduzida prática nos três primeiros séculos. Os jesuítas, principalmente V____________________________________________ J ( \ eles, formavam bibliotecas em seus conventos para ensinar e aprender, utilizando os livros sobretudo para a propagação da fé. A obra jesuítica foi fundamentalmente catequética, buscando implantar na selva o reino de Deus, tarefa memorável que exigiu daqueles missionários tenacidade acima de tudo. Essas pequenas bibliotecas conventuais alimentavam a fé, convertiam, fortaleciam a crença e também implantavam nas selvas e nas tabas o espírito apologético — a verdade da fé do colonizador. Avaliar até que ponto esses núcleos letrados podem ter contribuído para o desenvolvimento do pensamento é tarefa difícil e controvertida. E certo que as duas censuras da Igreja em Portugal cerceavam a circulação de livros e não seriam os jesuítas os que romperiam com essa imposição. A seleção dos livros para as bibliotecas dos con ventos era rigorosa, sendo suprimidas radicalmente as obras consideradas obscenas; as heréticas eram admitidas com as devidas cautelas, inclusive para que fosse possível rebater as heresias nelas contidas. Também os livros poéticos sofriam restrições dentro da pedagogia jesuítica. A orientação maior provinha do Index librorum prohibitorum, ao qual se recorria para saber se uma determinada leitura era pecaminosa, indo contra a fé ou contra os costumes. Os dogmas, os mandamentos, as ordena ções e os decretos conformavam o pensamento de tal forma, que sair dele levava à punição. A liber- i u J - t l À l ò m t u m K S l \ dade de investigação não foi uma prática nos três primeiros séculos de colonização. Aliás, ela não é uma característica da Companhia de Jesus. Quando Pombal, em 1759, expulsou os jesuítas, substituindo-os por outros religiosos, os padres partiram, deixando aqui as suas bibliotecas. Prati camente abandonados, esses primitivos acervos foram levados à hasta pública. Algumas coleções perderam-se pela falta de conservação. Outras, sem compradores, foram utilizadas para outros fins que não os da leitura, E significativo constatar que os livros não encontraram compradores. Se para os jesuítas não era possível vislumbrar para o livro uma outra função senão a catequética, para o rei era uma possibilidade de contestação ao estabelecido. Qualquer forma de impressão era proibida na Colônia. Em fevereiro de 1747 foi instalada no Rio de Janeiro uma tipografia. Em julho, por ordem de Lisboa, foi fechada. O funda mento mais claro para a medida seria a eventual concorrência que uma indústria brasileira pudesse fazer à da metrópole. A Carta Régia é taxativa: cadeia para quem ousasse imprimir papéis. Os livros deveriam vir de Portugal, através de impor tação regularizada. Tais medidas não impediram que muitos particu lares tivessem boas coleções ou até mesmo que bibliotecas fossem formadas com certa prodigali dade para o meio. A da Bahia, já citada, tinha milhares de livros, muitos deles proibidos. Devassas, V_________________________________ J ; N seqüestros, espólios, atestam a existência na Colônia de muitas obras que refletiam a evolução do pensamento europeu na época. É o caso dos inconfidentes de Vila Rica. Alguns tinham notáveis coleções, como atestam os Autos da Devassa da Inconfidência Mineira. Não se sabe se as bibliotecas desses homens ilustrados eram clandestinas. Sabe-se claramente que eles foram incriminados também em razão de determinadas obras que possuíam. é o caso de Tiradentes, que foi flagrado com a Coleção das Leis Constitucionais dos Estados Unidos da América. Cláudio Manuel da Costa juntou em vida 388 volumes e o Padre Luís Vieira, com oitocentos volumes arrolados na devassa, era proprietário de uma das mais amplas e completas coleções do Brasil de então. Esse acervo equipa- rava-se a uma selecionada coleção européia. Depois da invasão jesuítica do século X V I, a maior transformação que a Colônia sofreu em sua vida intelectual foi a vinda de D. João V I em 1808. Espantada pelas tropas napoleônicas, a Corte portuguesa chegou ao Brasil trazendo parte da civilização lusitana.Nessa época, Portugal não ostentava o poderio e brilho do século X V I. Portanto, o que aqui chegou não refletia, exata mente, as conquistas de alguns países europeus, notadamente no campo intelectual. Portugal nessa época era um país de economia periférica e com uma produção material e simbólica equivalentes. O Brasil, portanto, sofria uma colonização dupla, v_____________________________________________________ ) - Apesar disso, a chegada de D. João V I ao Rio de Janeiro provocou profundas mudanças no país. Com os tesouros da Corte, o rei incluiu em sua frota um precioso carregamento: a Biblioteca Real. Era formada por milhares de livros. Foi instalada, inicialmente, no Hospital da Ordem Terceira do Carmo e inaugurada em 1811. Três anos depois, com 60 mil volumes, foi aberta ao público. Após a Independência, foi anexada ao patrimônio público, constituindo-se no acervo básico da Biblioteca Nacional. Também chegou ao Brasil, nos porões dos navios, a tipografia para a constituição da Imprensa Régia. Até aquela data as oficinas tipográficas estavam totalmente vetadas por Lisboa. Depois, sob a tutela da Corte, só em 1808 foram editados 37 títulos e até 1822, 1154. Todo esse trabalho editorial foi realizado sob a censura, conforme a legislação portuguesa. Quando a imprensa chegou ao Brasil, o corpo censório estava firmemente estabelecido. Ou seja, a imprensa nasceu no Brasil depois da censura. Essa grande Biblioteca Real e a Imprensa Régia por certo não tiveram a mesma significação das coleções particulares quanto à difusão e circulação de novas idéias. Em Vila Rica não existia uma biblioteca pública e foi lá que a devassa apontou obras interditadas que traziam pensamentos revolu cionários para a Colônia. E provável que essas obras subversivas circulassem entre os inconfidentes. permitindo a eles uma ilustração que os colocava não apenas acima do nível geral de reflexão, mas também particularmente contra a situação de dependência do Brasil. Em que medida os livros propiciaram a circulação de idéias? A difusão oral não foi mais significativa? E difícil indicar uma resposta. As conjeturas apontam uma elevada porcentagem de analfabetos como o elemento que cercearia a circulação de livros, mas não as idéias neles contidas. Então, poucos livros seriam repro duzidos oralmente em progressão que poderia significar também distorção. Após a Independência, um ânimo novo leva a projetos de construção do país. Fundam-se jornais e com eles implantam-se as tipografias. Novas idéias devem ser divulgadas, defendidas, e a im prensa torna-se o veículo fundamental nesse pro cesso. E com os jornais surgem os folhetos, os livros. É um novo tempo para o pensamento no Brasil. Abrem-se escolas, criam-se jornais, circulam idéias. 0 livro tem o campo de penetração ampliado. 0 cerceamento é menor à literatura, a população passou a ter o acesso a ela facilitado. Além da Biblioteca Pública da Bahia (1811) e da Biblioteca Imperial e Pública do Rio de Janeiro (Biblioteca Nacional), incorporada ao patrimônio do Estado em 1825, novas foram criadas: Biblioteca da Faculdade de Direito de São Paulo, uma junção das bibliotecas da Cúria e do Mosteiro de São Francisco, compradas com o objetivo de servir a uma futura universidade paulista. Esse objetivo não foi totalmente logrado pois, quando da fundação do Curso Jurídico, a biblioteca passou a servir a ele, oferecendo aos leitores mais de 4 mil livros (1828). Em 1829, foi criada a Biblioteca Pública do Estado do Maranhão e, no ano seguinte, a Biblio teca da Faculdade de Direito de Pernambuco. Em 1837, fundou-se uma outra biblioteca pública no Rio de Janeiro: a do Real Gabinete Português de Leitura. Progressivamente, outras foram criadas, ampliando as possibilidades de acesso ao livro. Esse entusiasmo pós-Independência só ressalta a situação precária que predominava anteriormente. Um confronto com outros países latino-ameri canos revela com clareza a difícil situação brasileira. Na época da Independência havia mais de 80% de analfabetos, certamente excluídos desse cálculo os índios e os escravos. Os sistemas de ensino então criados não foram capazes de superar em pouco tempo as deficiências acumuladas. A popu lação era majoritariamente analfabeta. O Segundo Reinado ofereceu um imperador bibliófilo, mas isso não alterou nada. No começo do século X X , o índice de alfabetizados não chegava a 30%. A República não mudou substancialmente a paisagem. Quem lia no Brasil no começo deste século? Talvez os padres, os bacharéis, alguns profissionais liberais e estudantes. E, curiosamente, a produção literária era intensa, fazendo supor que uma porcentagem relativamente alta dos leitores era ^ ) 32 Luis Milanesi tarnbém de criadores. Na República das Letras, o ato de escrever, principalmente poesias — os inde fectíveis-sonetos —, era ação gratificante, prova velmente conferidora de status. A imprensa brasi leira do começo do século revela em suas páginas essa proliferação literária. O leitor era um plumitivo e os seus ídolos eram Coelho Neto, Bilac e outros situados numa posição semelhante è que ocupam hoje os heróis de indústria cultural. Essa reduzida parcela letrada da população perdia-se na vastidão do país, incapaz de estender a todos os benefícios da escola. Ainda em 1890, um intelectual encarregado pela República de organizar a educação no país, Benjamin Constant, estava à frente de um órgão que oferecia os instru mentos para agir: o Ministério da Instrução, Correio e Telégrafos, o que indica a importância que era atribuída ao ensino. Nessa época, apenas três editoras sobreviviam: Laemmert, Garnier e Fran cisco Alves. Os escritores da época, mesmo aqueles que eram ídolos nacionais, não conseguiam viver da literatura. O máximo que alcançavam era o trabalho em jornais, o que permitia a eles, de certa forma, escre ver. Por isso, em suas obras, demonstravam um certo ceticismo em relação às possibilidades de produção e consumo de obras literárias no Brasil. Coelho Neto, desencantado com as perspectivas editoriais em seu tempo, criou em seu livro A conquista o seguinte diálogo: O que é Biblioteca 33 Dizem que a população do Brasil é de treze milhões mais ou menos. — Pois bem: doze milhões e oitocentos mil não sabem ler. Dos duzentos mil restantes, cento e cinqüenta lêem livros franceses, trin ta lêem tradução, quinze mil lêem a cartilha e livros espíritas, dois mil estudam Augusto Comte e mil procuram livros brasileiros. — E os estrangeiros? — Não lêem livros nacionais. — Ora, não lêem . . . — Não lêem! Isto é um país perdido." Quando o Brasil chegou aos 20 milhões de habitantes — começo do século —, uma edição rara mente chegava a ter 2 mil exemplares. Monteiro Lobato, inquieto com a situação, sem deixar abater-se enquanto editor, reclamava numa carta a Godofredo Rangel do desinteresse pelos escritores e pelos livros. Referindo-se à casa editora Francisco Alves dizia que era melhor tirar as obras de Machado de Assis das estantes e colocar legumes, mais lucrativos, concluindo: "O Brasil é uma horta, Rangel". Depois de 1920. Lobato, a partir de bases modernas, transforma o panorama editorial com uma série de lançamentos bem-sucedidos comer cialmente e sustentados por campanhas publici tárias inéditas. No entanto, esse esforço editorial, apesar de sua pujança, desenvolvia-se sobre terreno não confiável. c ------------------------------------------------------------------------------------------^ Não se passa impunemente por quatrocentos anos de analfabetismo e não seriam alguns êxitos edito riais que alterariam o panorama. A partir da década de 20 surge o rádio, criando uma nova situação. Já antes disso existia o cinema,mas ele não tinha o alcance da radiofonia, que, progressivamente, se popularizava. Na década de 50, surge a televisão e reforça a característica básica do rádio: a simultaneidade da re c e p ç ã o coletiva. Notadamente depois da década de 40, o rádio tornou-se popular, difundindo as suas men sagens sobre uma população com alto índice de analfabetismo. E logo depois a T V continuou o mesmo caminho, ampliando-o. O que isso quer dizer? Sem maiores desdobramentos, que a popu lação brasileira passou direto da oralidade aos meios de comunicação que a reforçaram, sem que existisse a possibilidade da cultura letrada — como ocorreu em quatrocentos anos pós-Gutenberg na Europa. Sem pretender entrar no mérito do pro blema e fazer conjeturas de valor, apenas o fato é ressaltado: em quatro séculos, a população total do Brasil teve uma precária experiência com a cultura letrada. A telerradiodifusão do país orga nizou o seu conteúdo a partir dessa cultura. A pergunta: o brasileiro lê pouco?, poderão surgir várias respostas, inclusive sim e não. Lê menos que o francês ou o argentino, mas isso não quer dizer muito. Quando se afirma que o brasi leiro lê pouco, pensa-se, basicamente, no fato de v __________________________________ — existirem uma baixa produção de livros, um alto índice de analfabetismo e, como conseqüência, uma rede deficiente de distribuição. Estatistica mente a situação pode ser calculada; é, entretanto, mais complexo o significado da leitura para o brasileiro. Quando se constata que a porcentagem maior de venda de impressos concentra-se em publicações banais, a leitura pode ser tomada como ação que beneficia o leitor? Daí a preocupação com as estatísticas, pois os números nem sempre revelam a essência. A década de 60 marcou a expansão da T V , o meio de comunicação ao qual se atribui com alguma freqüência o poder de desviar o público do livro. É outro ponto de dúvida e cuja resposta não será encontrada em relatórios estatísticos. Tanto o rádio como a televisão são meios que dispensam a habilidade da leitura. Para ter acesso a eles é preciso apenas conhecer a língua (e, por momentos, nem isso é necessário). Isso quer dizer que uma parte do público pôde ter acesso a informações que nunca teria se não existissem esses meios. Para o público letrado houve a possibilidade, entre outras, de ler e ver televisão. Parece que, aí, a T V realmente absorveu uma faixa do tempo disponível das pessoas. O rádio quando surgiu passou a ser uma diversão alternativa que, por certo, ocupou um espaço anteriormente reservado a outras formas de lazer, à leitura, por exemplo (mesmo que fosse dos romances da divulgada "coleção das ------------------------------------------------------------------------------------------''l moças” ). A radiofonia substituiu uma parte da leitura/lazer. A radionovela e a telenovela tornaram pouco atrativa a leitura digestiva. Posteriormente, firmou-se a fotonovela, mas como um tipo de leitura mais propício aos curtos momentos de locomoção (ônibus), a espaços entre duas ativi dades ou em locais de espera. Certamente não será necessária uma comprovação estatística para verificar que o número total de horas que o brasi leiro alfabetizado dedica aos programas de televisão é superior ao tempo gasto com leituras, sejam elas quais forem. É preciso ressaltar que os indivíduos que procuram na literatura a fruição da obra de arte não encontram na radiofonia uma alternativa satisfatória, pois o rádio, chegando a uma faixa mais ampla da população, torna o seu conteúdo mais fácil para que ele possa ser aceito. Aos leitores habituais de Machado de Assis, Euclides da Cunha, Eça de Queirós, Emile Zola (freqüentes no começo do século), o rádio comercial não poderia satisfazer. Não é por causa de Fiávio Cavalcanti que as pessoas deixarão de ler Guimarães Rosa. Nas primeiras décadas do século X X houve proli feração de pequenas bibliotecas, um reflexo atenuado da tendência européia desde o século anterior de se organizar bibliotecas populares. Aparecem as bibliotecas como um benefício social, organizadas por associações e tendo sempre um patrono como a coluna-mestra do empreendi mento. A ação governamental em relação a essas ' 0 que é Biblioteca 37 bibliotecas é fraca. Os governos sempre tomaram a iniciativa de doar livros como se isso pudesse ser um estímulo ao fortalecimento delas. O esforço partia de indivíduos ou de grupos que se organiza vam. Em alguns casos, fundava-se uma entidade para dar respaldo a uma biblioteca; outras vezes, ocorria o oposto: criava-se uma biblioteca dentro de uma entidade cujo fim precípuo não era orga nizá-la. Talvez dessa insistência em relação às bibliotecas tenha surgido, quase tradicionalmente, nos estatutos de associações civis, um cargo, o de bibliotecário, que, pela inutilidade, desapareceu desses documentos. De qualquer forma, está registrado que houve um tempo em que as associa ções recreativas tinham, estatutariamente, o cargo de bibliotecário, o que indica que se acreditava na importância da biblioteca para as entidades associativas. Essa dimensão de utilidade que se dava às bibliotecas vinha fundamentalmente da idéia da "boa leitura” tão divulgada pelos meios religiosos. Atrás dela assentavam-se os projetos amplos de "boa formação". A chamada Ação Católica foi uma grande estimuladora da abertura de bibliotecas para levar os jovens, principalmente, aos "bons livros". Um pensamento que esteve em voga por anos foi: "A brir uma biblioteca é como fechar uma cadeia". Ou seja, a leitura, a "boa", era uma forma de redenção. Paralelamente, os livros que não recebiam essa classificação eram sumariamente 38 L uís Milanesi condenados e suprimidos. As entidades religiosas, a Congregação Mariana, por exem plo, foram grandes promotores da leitura. E, se foram positivas nesse aspecto, não se pode deixar de fazer uma ressalva à rígida censura que dividia os livros em "bons” e "m aus” , ou em edificantes e prejudiciais. As b ib lio tecas que essas associações organizaram, de uma form a geral, entraram em decadência e, sim ulta neamente, as próprias entidades. Algumas perderam a função. Por outro lado, deve ser ressaltado que a própria função do livro m udou: de lazer e instrução ele passou a instrum ento quase exclusivo para os trabalhos escolares, as chamadas "pesquisas", uma atividade meramente prática, rotineira. A função do prazer d im inuiu, bem como o papel, a idéia do apostólico ligada à leitura. * 0 « A ESCOLA A Reforma do Ensino de 1971 decretou, oficial mente, a prática da pesquisa na escola. E como pesquisar supõe livros, a biblioteca passou a ser procurada pelos estudantes do primeiro e do segundo graus. Talvez, a instituição do ato de pesquisar como uma obrigatoriedade tenha sido determinada a partir da constatação de que o professor tem funções mais importantes do que discursar sobre os temas dos programas de ensino. A escola brasileira, com algumas variações, funcionou e ainda funciona dentro de um esquema que leva o aluno à reprodução de discursos. Ao professor cabe preparar a aula. Ele lê. O quanto lê depende do professor e das circunstâncias. Se estiver em início de carreira, provavelmente lerá mais do que o profissional que diariamente calcula v______________________________________________________) I P Luís Milanesi o quanto falta para se aposentar. A renovação no magistério exige uma flexibilidade que o funcio nário público nem sempre tem. A aula expositiva torna-se uma rotina. Por isso, o professor já tem a matéria na ponta da língua; ele próprio deixa de fazer pesquisa. Ano após ano expõe aos alunos aquilo que entende como pertinente ao programa, e acredita ser o seu discursoa expressão da verdade. O professor sabe, e por isso cabe a ele expor. Ao aluno 'resta ouvir e, de preferência, reter. Alguns tomam notas — o que pode levar o professor a colaborar com essa boa vontade, proferindo pausadamente o seu discurso, tão pausadamente que a oratória acaba recebendo uma outra denomi nação: ditado. De qualquer forma, os alunos, como receptores das mensagens, devem, no momento em que forem solicitados, provar que não desconhecem o conteúdo da exposição, ou seja, que sabem exatamente aquilo que o mestre disse. Os professores organizam ritos de passagem para averiguar se aos discípulos pode ser conferido um novo grau estabelecido pelo sistema escolar. Os alunos são provados, fazem prova. O professor decide quem será aprovado ou reprovado, restando a este último prestar mais atenção às aulas e saber reproduzi-las. A prova pode ser oral ou escrita. No primeiro caso, a denominação comum é "cha mada oral” . Nela o professor "toma o ponto". Isso sugere que o professor "prepara o ponto", apresenta-o aos alunos, que devem retê-lo para que 42 l u i s M i la n e s i A o mestre, ao retomá-lo, encontre-o íntegro. A traje tória da informação é longa e desgastante (tanto para a informação quanto parg os participantes do ritual). Do livro dos mestres ao discurso para os alunos, da retenção à retomada da informação, há perdas e, às vezes, curiosos acréscimos. De qualquer forma, cabe ao professor estabelecer a sua verdade e cabe aos alunos reproduzi-la, perfeitamente, se possível. Por certo esse é um dos motivos, senão o único, da tendência ao ato de memorizar. Daí, os recursos mnemônicos ou, mais prosaicamente, a "cola” . A reprodução fiel é a garantia do diploma. Se o aluno cometer algum deslize criativo, poderá sofrer alguma forma de punição. No jogo da pergunta/resposta o professor deve perguntar o que ensinou e o aluno deve responder o que aprendeu. Fora disso, o desastre. 0 aluno só será aprovado se no instante preciso mostrar que sabe aquilo que o professor quer que ele saiba. Esse sistema de ensino, que é ainda a regra, domina todas as fases da escola e entra triunfante na universidade. Existem os disfarces (na universi dade os alunos tomam notas taquigráficas das aulas), mas o arcabouço do sistema permanece: o professor é o profissional que sabe mais e que é pago para transferir aos alunos a sua sabedoria; o aluno sabe menos, cabendo a ele, como num sistema de vasos comunicantes, receber esse con teúdo transbordante de conhecimento. O magister dixit, ou seja, Roma locuta, causa fin ita : a autori- O que é Biblioteca 43 dade do professor está acima de tudo, reprodu zindo na escola, num reflexo reduzido, sistemas mais amplos de autoritarismo, E possível e até freqüente que exista no professor um discurso antifascista, ainda que na prática haja imposição. Os alunos, moldados desde o primário nesse sistema, mesmo identificando-o, têm dificuldades para romper com ele. Se existir espaço livre para a criação, emergem os bloqueios. A Lei 5692 de 1971 pretendeu mudar a escola. A Reforma do Ensino, ao que tudo indica, não propiciou grandes alterações, pois substancialmente a escola pública pouco mudou. A intenção da Lei ao reformular foi trazer novas práticas. Isso seria correto se o pensamento de Pascal "ensina-me a ajoelhar que eu aprenderei a rezaF" tivesse apli cação no ensino brasileiro. Ou seja, a inclusão de novas práticas não alteraram substancialmente o trabalho escolar. Foi instituída a pesquisa, uma atividade que veio no bojo de um decreto e que por isso transfigurou-se, assumindo os amplos contornos e vícios da escola nacional. No instante do desen- cadeamento da imposição da pesquisa dois fenô menos foram observados: 1) a ineficácia de um decreto que exige mudanças sem levar em conta as deficiências sedimentadas ao longo da história do ensino no país; 2) a inexistência de bibliotecas em condições de servir de base para o desenvolvimento das pesquisas. Em resumo: pretendeu-se mudar por decreto aquilo que só uma prática a longo \ prazo poderia alterar. E, além disso, a infra-estrutura material tornou a prática mais inexeqüíve! ainda. Deve ser observado que a atividade de pesquisa só poderia ser realizada se os próprios professores tivessem habilidade nessa tarefa. A í, provavelmente, esteja situado o obstáculo maior: os professores, encarregados de dimensionar a pesquisa como prática elementar do processo educativo, de um modo geral não conseguiram concretizar o objetivo em função de um fato elementar: eles próprios nunca fizeram pesquisa. Então, a tarefa de pes quisar passou a definir uma nova atividade, aquela que efetivamente poderia ser- realizada: copiar textos. Os editores, atentos ao mercado, atendendo a uma nova exigência, passaram a oferecer um produto perfeitamente ajustável à nova situação do ensino público: enciclopédias. Algumas delas, altamente especializadas: "enciclopédia de pes quisa". Ou seja, obras cujos verbetes coincidissem com os tópicos dos programas de ensino. Já que a escola circunscreve aquilo que os alunos devem aprender e exige que eles busquem e copiem esse conteúdo, por que não oferecer essa sabedoria fragmentada em verbetes — pílulas de rápido efeito? Aos pais, fizeram a oferta de livros mágicos que poderiam suprir os outros, ou pelo menos bastavam para satisfazer as exigências da escola. Por sua vez, as bibliotecas reforçaram os seus estoques de enciclopédias, obras instantâneas de referência, para poder atender a esse novo público. Alterações substanciais no processo educativo não ocorreram. Se a escola antes da pesquisa obri gatória fundamentava-se numa oral idade pré- gutenberguiana, passou depois a ter o traço de um enciclopedismo mal copiado. As enciclopédias cujos verbetes marcados são aqueles que constam dos programas de ensino não passam de camisas- de-força que amarram o pensamento e condicio nam os primeiros passos na busca do conhecimento. Por vezes, o ato da cópia torna-se tão mecânico que a utilização de copiadoras, tesoura e cola engendra-se na normalidade do processo. O livro adequado à pesquisa passa a ser um instrumento cuja utilidade fundam ental é superar mais uma etapa do calendário escolar. Livro: use e jogue. A transcrição de trechos de livros foi um aperfei çoamento do velho ditado. Antes, sem o acesso fácil a livros e a máquinas de copiar, o professor encarregava-se de ditar o que deveria ser aprendido. O aluno tinha um caderno de pontos. Agora, o caderno de pontos já vem pronto. Basta copiar e mostrar. Sem dúvida, o processo fo i acelerado, ainda que isso não signifique aperfeiçoamento. O ditado exigia, pelo menos, que o aluno escre vesse. A cópia da enciclopédia, em casos mais graves, prescinde disso: basta duplicar e entregar. Isso posto, pode ser configurada a atual biblioteca, aquela atrelada à escola ou aos seus caminhos: é o local onde se cumpre a exigência da pesquisa com o menor aborrecimento possível. Ao aluno v ________________________________________________________> c ------------------------------------------------------------------------------------------ ^ interessa a via mais fácil para satisfazer as exigências dos professores. A biblioteca deve facilitar para ele esses caminhos, dando acesso direto ao trecho que ele deve copiar. Se o assunto for "Caxias", cabe à biblioteca indicar o livro e página exatos para evitar perda de tempo. Se o assunto for "Transama- zônica" (tema freqüente anos atrás), o aluno não se preocupa em saber se é contra ou a favor, apenas transcreve o que o livro diz — geralmente a favor. Ao bibliotecário acaba restando uma tarefa inglória: guarda-enciclopédia. Se ele se situar na expectativa da escola não passará de um organi zadorde livros nas estantes. No instante em que os grupos de alunos chegarem à biblioteca, ele terá condições de indicar a obra exata (e a página), colocando-a a serviço dos alunos na sua tarefa de cópia. Essa atividade mecânica, identificada na escola como "pesquisa", é o oposto do que pretende ser. Como ponto de partida, deve ser ressaltado que não pode existir pesquisa sem que haja dúvida, pelo menos um traço dela. De um modo geral, o aluno toma conhecimento do que precisa saber para ser aprovado. Ele deve, por exemplo, saber algo sobre a "Guerra do Paraguai", aquilo que está em determinada obra. Se isso é importante para ele ou se existem conflitos de informações e interpre tações relativas ao assunto, quase nunca se discute. 0 aluno tem poucas oportunidades de chegar à situação-base do pesquisador: saber o que não \ > vy b 17iL/((UiCtU 47 sabe. A escola que o brasileiro cursa (quando o faz) é discurso de certezas. Ela está plena de !!! e por isso estão em falta as ??? A ! deveria sempre ser precedida pela ? As !! I do magister vão ocupando os eventuais espaços das ??? dos alunos que, desde cedo, aprendem numa prática de sala de aula a não ter dúvidas. A interrogação de um aluno é uma trinca no sistema escolar que foi erigido. Quando a escola fecha o campo da dúvida, cria barreiras ’à prática da busca. Em algumas escolas mais providas de recursos, adotam-se os chamados recursos audiovisuais para aperfeiçoar o discurso: projeções, discos e, mais recentemente, vídeo. 0 avanço tecnológico velozmente cria esses recursos e com eles incrementa o mesmo discurso do profes sor. Ou seja, o pacote de informações que se pretende transferir aos alunos vem embalado de forma mais sedutora, atrativa. 0 aluno "aprende" melhor com as maquininhas de ensinar. A parafer nália eletrônica que a fartura permite utilizar também nada altera em substância a prática da imposição de conhecimento. Essa concepção de ensino não está distante de uma prática que, geral mente, se denomina adestramento. Antes os alunos decoravam as capitanias hereditárias sem entender nada daquilo; depois passaram a copiar verbetes e trechos de livros sobre as capitanias sem, ainda, entender. No presente, todos cantam o Hino Nacio nal sem saber o que significa, exatamente, "se o penhor dessa igualdade", ou "florão" ou "fúl- c ^ gidos" . . . Na prática do adestramento a gratificação é o torrão de açúcar. Na escola é a nota. A voz do dono é reproduzida. 0 objetivo é passar de ano. Após a prova, o aluno descarta as informações inúteis que acumulou e que, de fato, quase nunca servem para nada. Em oposição a isso, a pesquisa busca a criativi dade. Antes de tudo é preciso definir o que procurar; depois, como procurar. O passo seguinte será a seleção dos dados coletados. E, por fim , a combi nação desses dados para que seja possível a expli cação desejada. Esse processo, com as devidas adaptações, pode e deve ser usual em qualquer nível de escolaridade. A biblioteca, como núcleo de informação, é o serviço que dispõe as informações para o público. Tratando-se de escolares, que tipo de informação a biblioteca deve oferecer? Em teoria, todas aquelas que, num determinado instante, possam responder a uma dúvida. Durante a busca, duas ou mais informações podem entrar em conflito. Ou podem completar-se, reforçando um ponto de vista. Em suma, na medida em que um dado é procurado, de acordo com a amplitude do acervo e da qualidade dos serviços oferecidos, criam-se situações de decisão que, por exemplo, quase nunca ocorrem numa sala de aula. De um modo gerai, o mestre é o emissor de um pensamento articulado em infor mações desejavelmente coerentes. Já uma busca de V_____________________________________________________J ^ informações em livros poderá levar o pesquisador a múltiplas informações. 0 professor é o canal único, como se ele fosse um livro. A biblioteca contém muitos livros, formando um conjunto complexo de conflitos e reforços. Cabe ao leitor aprender a entrar e a sair — principalmente a sair — desse jogo. A biblioteca é um conjunto de discursos, é como se ela fosse milhares de aulas impressas, das quais os alunos aproximam-se sem imposições e bloqueios. E, ainda, a biblioteca é mais do que livros, é informação, seja de que tipo for. A não existência desse serviço faz com que o professor seja a única fonte. Ou, se o professor insistir em representar a única opção de conhecimento, a biblioteca perde o seu sentido, tornando-se absolu tamente dispensável. Um conflito pode estabele cer-se no momento em que um professor impõe a sua informação como a única (a que dá passagem para o diploma), ao lado de uma biblioteca, centro de informações, que pode levar um aluno a discor dar do mestre. A biblioteca é um antídoto ao dogmatismo na medida em que ela oferece infor mações sem censura. A autoridade escolar é usada para levar uma versão (e até para ocultar igno rância). A biblioteca anula essa autoridade e dá a possibilidade de ampliação das informações e do campo de debates. Na biblioteca o professor é um aluno também. Juntos é que buscarão o conheci mento, discutindo passo a passo os obstáculos para se chegar a ele. v _____________________________________________________ / s \ 0 estágio da escola brasileira, no entanto, leva à conclusão de que a existência ou não de bibliotecas em função do ensino pouco alteraria a essência da escola pública. Isso só ocorreria se, numa súbita iluminação, os responsáveis pudessem sentir que é impossível trabalhar com educação sem que se disponha de informações; por outro lado, os biblio tecários que atuam no setor (são poucos!) só poderiam ter um papel efetivo de co-educador no instante em que fizessem da biblioteca um local de acesso crítico às informações e, inclusive, um local gerador de um espírito de oposição a todo discurso dogmático, seja de quem for. 0 uso elementar de uma biblioteca encontra uma série de barreiras na escola brasileira. A pri meira delas é a mais óbvia e espantosa: a ausência pura e simples de bibliotecas e bibliotecários. A segunda é a concepção de ensino que ainda prevalece (apesar dos decretos baixados). A pesquisa que a escola exige poderia ser feita em qualquer depósito de enciclopédia e não necessariamente em uma biblioteca. A ausência de bibliotecários, apesar da falta de dados, é algo facilmente constatável: basta uma visita a escolas públicas. A política oficial leva à contratação de centenas de professores por um bibliotecário, demonstrando com isso que ainda dá prioridade ao discurso dos professores ao livre acesso às informações. 0 que importa é o programa de ensino e a aula que o efetiva. 0 resto transcende ^ ) \ aos objetivos oficiais e, por isso, é considerado supérfluo. A inexistência de bibliotecas comprova isso. Só uma nova concepção de escola poderia incorporar uma biblioteca escolar Com os requisitos elementares de acesso a um acervo capaz de respon der às questões básicas que os alunos possam formular, sendo ao mesmo tempo um estímulo ao levantamento de questões. A biblioteca substi tuiria a sala de aula expositiva, o discurso do mestre daria lugar ao acesso crítico à informação, abrindo-se o espaço fundamental para a discus são. Os documentos organizados (livros, revistas, filmes, discos, vídeos, fo to s . . . ) estariam à dispo sição de professores e aiunos, que vasculhariam o acervo buscando todas as possibilidades de enten der os fenômenos de maior interesse dos alunos. Dessa forma, os alunos aprenderiam o que é funda mental que aprendam: procurar. Reter informa ções torna-se desnecessário quando se aprende a achar o que se procura. Não é preciso reter os números telefônicos, mas saber manuseara lista e ter acesso a ela. Também não teria utilidade reter na memória as informações para ser aprovado. Ou copiar verbetes de enciclopédia. Saber chegar às informações e extrair o máximo possível de um acervo, juntando os dados e combinando-os, romperia com a tradição do ensino que vem do alto e impõe a sua verdade, verdade pronta para ser usada. O acesso livre à informação é um exercí- \ ) u que e aiouoieca a ^ cio de liberdade que se desdobra infinitamente. No conhecimento não há nada definitivo, nem o professor e nem os livros. Tudo está para ser reescrito constantemente. A BIBLIOTECA PÚBLICA A partir de 1971 as bibliotecas públicas foram, praticamente, transformadas em bibliotecas esco lares. É nessa data que as pesquisas passaram a se constituir numa obrigação escolar. E como os esta belecimentos de ensino não dispunham de biblio tecas em condições mínimas de uso, as bibliotecas públicas, sempre um pouco melhores, passaram a receber os estudantes. Daí nasceu a necessidade de adaptar a veiha biblioteca pública a essa nova demanda. A primeira medida foi a compra de obras adequadas: as enciclopédias. Antes dessa drástica mudança, a biblioteca pública era uma iniciativa que tinha claras intenções de aprimorar a vida cultural do município ou até mesmo de estimular a boa leitura. Depois, ela passou a ser um serviço oferecido aos estudantes, principalmente aos que não dispusessem de recursos para ter a sua própria ^____________________________________________________ J -»»M/ biblioteca em casa. Ou seja, uma espécie de "ajuda aos alunos pobres". Dessa forma, elas passaram a ser vistas mais claramente como instituições de utilidade. Foram, pois, as obrigações escolares que tornaram a biblioteca algo mais concreto: havia uma necessidade clara que justificava a sua existên cia. Acrescenta-se a isso que a biblioteca, dentro da nova exigência, não pediria muito em termos de investimento: alguns livros e um funcionário contratado para os serviços elementares: manter a ordem, fazer empréstimos, cuidar da administração e dos trabalhos técnicos e, em muitos casos, cuidar da limpeza. Essa transformação alterou a idéia de biblioteca pública e, através de medidas oficiais, deu esse novo papel a ela. Como seria inviável, na ótica dos administradores, criar bibliotecas escolares e públicas em condições adequadas de funciona mento, pela força das contingências, escolarizou-se a pública. Dentro das exigências da escola, foi fácil essa adaptação. D aí o fato comum da baixa fre qüência à biblioteca: os próprios pais suprem as necessidades de seus filhos sem que eles precisem passar pelo dissabor de enfrentar um serviço público. Para a concretização disso, basta adquirir os livros "adotados" e uma ou duas enciclopédias. Essa mentalidade de formar a sua própria coleção já é mais antiga, mas foi reforçada com as novas exigências escolares. Inclusive, a publicidade em torno das obras didáticas foi feita em torno dessa idéia: colecione, forme a sua biblioteca, evite dissabores. A faixa de estudantes que pôde acu mular livros passou pela escola sem necessidade de visitar a biblioteca. Já a parte excluída dessa possi bilidade recorreu à biblioteca pública como solução. Em suma, se o pai puder comprar a Barsa, o filho não precisará ir à biblioteca. Daí, a resposta quando se pergunta se é necessária a biblioteca pública: "Para mim, não, pois tenho todos os livros em casa". Ou seja, o leitor limita-se pela sua própria coleção, estimulado pela escola. Isso tem impli cações graves, pelas limitações que põe ao pensa mento. No entanto, é previsível, pois a escola circunscreve as tarefas e os pais, tendo condições, enquadram os filhos nessa exigência, dando para isso as condições materiais. Há, ainda, um outro dado a ser considerado: mesmo aqueles que acreditam que os acervos maiores permitem uma busca mais acurada passam pela tentação de acumular livros, formando biblio tecas particulares pelo fato elementar das biblio tecas públicas serem precárias. Elas são tão fracas que obrigam quaisquer interessados a investir em livros. Se o livro é um instrumento de trabalho, nada mais cômodo do que tê-lo. Entretanto, acon tece que as pesquisas acabam sendo limitadas pelo poder aquisitivo do interessado, o que pode ocasionar danos consideráveis na investigação. Os livros em circulação podem ser adquiridos, mas obras fora de catálogo dificilmente são encontradas v_____________________________________________________y - c • ^ a não ser em bibliotecas. Em suma, nem sempre a biblioteca doméstica pode suprir a riqueza de uma coleção pública. Por isso, torna-se fundamental que a opção individual não esvazie as exigências em torno da biblioteca da coletividade. Nem sempre os acervos domésticos têm função de estudo. Podem representar para o possuidor uma indicação de status. Ou seja, os livros trans formam-se em símbolos, indicando erudição (uma conquista a ser alcançada). Vastas estantes com livros encadernados formam um cenário que impõe o respeito que a sabedoria merece. Grandes coleções foram formadas dentro desse misto simbólico/decorativo. Os vendedores de coleções encadernadas lucraram muito sobre essa tendência. Algumas empresas adquirem obras em brochura e fazem encadernações vistosas, com muito dou rado, vendendo depois por um preço bem mais elevado, investindo, assim, num outro papel do livro: o ter para ser (mesmo não sendo). Os heróis sábios brasileiros têm como patrono-mor a figura de Rui Barbosa, o “ rábula transcendental” , cujo nome projetou-se nas asas de uma erudição livresca, gramatical. 0 escrever difícil, o falar empolada- mente, a citação de máximas — aquisições literárias — levam a um exercício de poder fundamentado na erudição e que, ocasionalmente, pode ser um trunfo importante. Sêneca, em seu Tratado acerca da tranqüilidade da alma, escrito dois mil anos atrás, afirmava: "As despesas ocasionadas pelos V____________________________________________ J estudos, e que parecem ser as mais honrosas de todas, só as acho razoáveis na medida em que forem moderadas. Que me interessam esses milhares de livros, estas inumeráveis bibliotecas? A vida inteira de seus proprietários mal chegaria para lhes lerem os títu lo s . . . Tal homem possui livros que nunca lhe servem nos estudos, mas está lá para lhe ornamentar a sala de ja n ta r . . . Hoje os próprios banhos e termas estão guarnecidos com uma biblioteca, tornada ornamento obrigatório de cada casa . . . Não se procuram obras-primas a não ser para enfeitar paredes". Fazendo-se peque nos ajustes, o texto de Sêneca é apropriado para o presente, mostrando que a ostentação de sabe doria não só se revela na escrita e na fala, mas concretiza-se também na exibição de livros. De qualquer modo, não existe uma relação entre as bibliotecas particulares ricas e as bibliotecas públicas pobres. Aquelas não são o motivo destas e uma não exclui a outra. A particular é espontânea, motivada pelo desejo de posse e acúmulo, além da necessidade precisa de instrumentos de trabalho. Já a pública exige um esforço coletivo fundamen tado na idéia da utilidade, na construção de um bem para ser utilizado por todos indistintamente. A biblioteca pública, como um esforço de demo cratização da leitura, exige, para o seu desenvol vimento, uma consciência da realidade que faz parte da visão geral que os indivíduos têm da realidade. A biblioteca varia em sua organização v________________________________________________ ij que e m u tiu ie cu de acordo com essa ótica política. Em 1937, com a fundação do Instituto Nacional do Livro, no Ministério da Educação e Saúde, pretendeu-se criar um incentivo oficial às bibliotecas, em formade colaboração com iniciativas já tomadas. Essa medida, que teve continuidade posteriormente, propõe um ponto de reflexão: em que medida o Estado, efetivamente, poderá atuar de forma útil para o desenvolvimento das bibliotecas? Elas, no Brasil, sempre estiveram ligadas a escolas, tendo também a í um forte desempenho a Igreja Católica através de sua ação apostólica, de cruzada em defesa da fé. Na medida em que os governos foram criando escolas públicas, parte da responsabilidade em relação às bibliotecas transferiu-se para o poder público — escandalosamente confundidas com repartição pública e com a . carga negativa que ela carrega. As prefeituras dos municípios também encarregaram-se de formar bibliotecas, existindo em quase todos os municípios do Brasil, algumas apenas nominalmente ou sendo um empreendimento de alcance tão curto que se torna difícil enquadrá-lo não só na categoria de pública, mas também na de biblioteca. Outras têm função de cartão de visitas das cidades, tendo origem em administrações de prefeitos literários. Atrás de uma biblioteca imponente há um administrador plumi- tivo. Existe, ainda, uma terceira possibilidade: as associações civis que se organizam em torno de uma biblioteca. Em que medida o poder central UU JJUii) deverá interferir nessas iniciativas e de que modo? Até agora, os benefícios vieram na forma de distri buição de livros (que, por vezes, nem mesmo são subutilizados: perdem-se integralmente) ou em assistência técnica. A política para as bibliotecas revela fortes traços de paternalismo, como, aliás, em tantos outros setores da relação Estado/povo. Na medida em que existe um pai semeando livros a mancheias, livros muito bem selecionados pelos funcionários governamentais, ocorrem dois fatos: 1) a iniciativa deixa de ser da coletividade, que acaba não fazendo as próprias conquistas e apren dendo com os seus fracassos; 2) o acervo reflete a visão oficial, pois sabe-se que quem semeia livros indiscriminadamente pode colher tempestades. A ação de cima para baixo tem demonstrado a sua fragilidade. E isso não será apenas motivado pelas endêmicas carências monetárias, mas pelo pater nalismo que gera filhos débeis. De qualquer forma, a ação estatal, procurando recuperar o tempo perdido e superar as barreiras que a história e as circunstâncias atuais impõem, poderá ser produtiva, devendo existir como uma ação fundamental pelo acesso democrático à informação pela maioria de brasileiros excluídos não desse benefício, mas desse direito. Faltam dados claros sobre a situação da biblioteca pública no Brasil. Por isso, torna-se difícil fazer análises. Ao lado de algumas estatísticas encomiás- ticas, jaz uma instituição precária, fragmentada, e v_____________________________________________________ ) - N que não cumpre o que se poderia esperar dela. Entre o real e um modelo teórico há uma distância que evidencia o quanto deverá ser realizado. Apesar de dados esparsos, não se sabe quantas bibliotecas públicas existem r o Brasil — e nem mesmo se sabe o que pode ser considerado como tal. Os Estados brasileiros têm as suas bibliotecas e, teoricamente, funcionam como articuladores de uma rede que abrangeria todos os municípios. Essas bibliotecas estaduais coordenariam um conjunto, promovendo aquilo que é essencial: a integração de serviços. O Estado de São Paulo, exceção, não tem uma biblioteca central, ficando, assim, inviável a articu lação de atividades. Cabe aos municípios aplicar recursos para a manutenção e desenvolvimento das bibliotecas locais. Não se sabe qual é o nível desse investi mento das prefeituras. No entanto, a julgar pela situação, não se aplica muito nesse setor, sempre encarado como supérfluo face a outros problemas, como saneamento básico, água, estradas etc. Há casos de orçamentos municipais que fazem previsão de verba para as bibliotecas, no entanto elas acabam sendo remanejadas para outros setores. Isso quer dizer que esse serviço não recebe do poder público as atenções que uma análise elemen tar exigiria. Algumas bibliotecas funcionam e ampliam o seu acervo através de doações voluntá rias. Em muitos casos essas campanhas promovem descarte de livros inúteis que acabam depositados \ na biblioteca municipal sem oferecer qualquer serventia. Essas campanhas, sem dúvida, aumentam o acervo, mas em nada contribuem para o aprimo ramento da biblioteca como serviço de informação para o público. São raros os casos de eficiência, ou seja, de resposta em função das necessidades do meio. Isso sugere que se pergunte se é viável estabelecer um padrão mínimo para as bibliotecas públicas. Ou seja, qua' é o número de livros e área para uma determinada cidade. No Brasil as características dos municípios variam de tal forma que um padrão correria o risco de parecer insensato. As necessi dades de um município do interior do Piauí são diversas de uma localidade paulista. Arbitraria mente poderia ser dito que uma população de 50 mil habitantes deveria contar com uma biblio teca de 10 mil, 15 mil ou 20 mil volumes. Em teoria, quanto maior for a disponibilidade de infor mação para um determinado meio, mais benefi ciado ele será. No entanto, as bibliotecas, apesar de sua precariedade, têm uma procura abaixo de suas possibil.dades de atendimento. Ou os serviços oferecidos são muito ruins — e então rejeitados — ou não existe mesmo a necessidade, o que é raro. De qualquer forma, não há notícia de mobilização popular e protesto público contra a indigência das bibliotecas. E mínima a parcela da população que se utiliza delas. Quase sempre são os estudantes, fazendo os seus deveres escolares de acordo com as v ______________________________________________________________________________________________________________________________ — > \ exigências dos professores. Nesse caso, qualquer infra-estrutura basta: o prédio pode ser inade quado, o acervo medíocre, a atendente semi- analfabeta, a desorganização geral. Aliás, isso tudo não é estranho às bibliotecas públicas brasileiras. Se elas fossem fechadas não haveria nenhuma comoção nacional. A produção de informações no país, apesar de relativamente pequena, encontra na biblioteca um canal estreito pelo qual o fluxo é reduzido. Os livros formam a quase totalidade do acervo. Os recursos audiovisuais ainda não foram anexados aos acervos como deveriam. Discos, filmes, fitas, vídeos são elementos raros. E isso, talvez, pela impossibilidade fatal de ter um acervo livresco que possa refletir a produção editorial do país. Como ter disco se falta livro? Da editora às estantes de uma biblioteca o caminho é longo e quase nunca se efetua. Biblioteca pública é sinôni mo de museu de livros por mostrar coleção morta, praticamente inútil. São depósitos quase sempre mal cuidados, entregues ao mau humor de funcio nários públicos que, por falta de um mínimo de habilitação, abrem e fecham as portas e assinalam os empréstimos. São raras as bibliotecas que contam com funcionários que atuam visando a melhoria dos serviços, que se propõem a um trabalho catequético para mobilizar os adminis tradores e população em torno da idéia do acesso à informação como possibilidade de, enxergando mais, realizar mais. I € % ________ J • J * m m A BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA A deficiência das bibliotecas escolares e públi cas encontra um sucedâneo à altura: a biblioteca universitária. Da mesma forma que o ensino su perior está precariamente assentado sobre a frágil estrutura do ensino do primeiro e segundo graus, a biblioteca universitária é uma seqüência coerente. Nesse terceiro ciclo, as exigências formais são maiores, tornando-se imprescindível a manutenção de bibliotecas adequadas para alimentar a pesquisa, um dos elementos
Compartilhar