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Pena e Garantias

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Carvalho, Salo De: “Pena e Garantias”. Rio de Janeiro, Editora Lúmen Juris, 2008. 
Introdução.
“Pena e Garantias é uma obra sobre a história da pena, em suas codificações, mostrando as correntes de pensamento através dos tempos e sua ‘evolução ideológica’, passando por autores clássicos até os contemporâneos. A obra mostra a realidade do sistema carcerário no Brasil e suas possíveis soluções. A obra faz paralelos com realidades distintas, mostrando as diferentes perspectivas dos marginalizados e do poder punitivo, tentando explicar o motivo que move a massa carcerária às rebeliões ao sistema” 
Capítulo I – A conquista do Paradigma Garantista
Garantismo e inquisitorialismo: modelos paradigmáticos em tensão. (p.1)
“O direito Penal e o direito Processual penal atuariam como parâmetros de tutela à liberdade, sendo que os direitos políticos possibilitariam os canais de acesso do cidadão as decisões sobre ‘as regras do jogo’.” (p.1).
“O ênfase no penal não decorre unicamente do interesse acadêmico na disciplina mas, e sobretudo, devida às manifestações de vanguarda que este ramo jurídico proporcionou no período de ilustração.” (p.3).
“A partir destas considerações, o trabalho é desenvolvido na configuração do saber (paradigma) inquisitorial e do saber (paradigma) garantista, identificando suas características, princípios e valores fundamentais, o processo de crise e substituição paradigmática, bem como seu legado à teoria do direito e às relações de poder existentes em sua conformação e declínio.” (p.4).
O Paradigma da intolerância: O modelo jurídico inquisitorial. (p.4)
“No direito a doutrina tradicional limitas as questões do modelo inquisitorial às (importantes) modificações processuais (do modelo acusatório-ordálio privado ao modelo inquisitivo) ou à criação da prima scuola, a denominada ‘Escola Clássica’ do direito penal, marco genealógico da ciência criminal moderna (direito penal, processo penal, criminologia e política criminal).” (p.4).
“Cada estrutura de pensamento político elabora formas de compreensão sobre o desvio, o delito, o juízo e a pena.” (p.5).
“O olhar sobre o medievo possibilita aos europeus diagnóstico de problemas atuais em decorrência das constantes tendências de retorno a infância civilizatória pela retomada de práticas bárbaras, na realidade periférico-marginal latino-americana tal análise, mais que diagnóstico de possibilidades de retorno histórico, afirma e desnuda relações vivas e pulsantes, caracterizadoras de uma sociedade na qual coabitam práticas sociais e institucionais pré e pós modernas (trans-modernidade) .” (p.6).
“Entre o sistema político imperante e o conteúdo do direito processual penal existe uma direta e imediata relação, de visibilidade mais intensa, inclusive, que o nexo entre historia politica e direito penal material.” (p.6-7).
“As primeiras manifestações do processo inquisitorial ocorreram na Roma Imperial, após a introdução dos delitos laesae maiestatis (subversão e conjura), nos quais o ofendido era o soberano.” (p.7).
“Importante lembrar que a ação popular (pública) nasceu posteriormente, com a introdução dos delitos contra a coletividade.” (p.8).
“Durante a Alta Idade Média, o processo retomou sua característica acusatória de natureza privada, sendo que o sistema inquisitivo reaparece na Baixa Idade Média, mais precisamente no século XII.” (p.8).
“A modificação do ambiente do século XIII provoca uma profunda alteração na consciência social e na estrutura organizacional.” (p.9).
“Os tribunais forneceram, ao saber oficial, um aparato político otimizado - quando o cristianismo se transformou em religião oficial do Império, a questão virou política -, visto que a excomunhão dos ‘diversos’ ocorria via procedimento inquisitorial. Em realidade, o fato revela a conotação política do processo penal no medievo.” (p.12).
“Juridicamente o modelo inquisitorial estrutura uma nova economia de poder cujas manifestações são presentes até os dias atuais, sobretudo por ser um sistema fundado pela busca de uma ‘verdade real’.” (p.12).
“No Brasil, o tribunal do Santo Ofício iniciou suas atividades em 1572, permanecendo ático até a independência. [...] O santo ofício interferiu profundamente na vida colonial, durante mais de dois séculos, perseguindo portugueses, brasileiros, índios e africanos nos quatro cantos do Brasil.” (p.12).
“Com o ‘achamento’ e a colonização, nota-se claramente a transposição desta máquina judiciaria para o Brasil, a qual possibilitou não apenas a repressão política dos ‘hereges’, mas o controle dos dissidentes políticos e das classes subalternas, inclusive com o genocídio dos povos nativos.” (p.13).
“A palavra pecado abunda nos tipos penais e os crimes contra a fé católica eram penalizados pelo Estado sem ter uma separação efetiva entre as atribuições de um ou de outro no que diz respeito ao ato de punir.” (p.13).
“A ruptura com o jusnaturalismo teológico, que o ocorreu em 1830 com a publicação do estatuto liberal, representa o amadurecimento do processo de reforma penal que o século XIX vai dinamizar no Ocidente.” (p.13).
“Importante aqui é ressaltar, na construção deste modelo processual persecutório de investigação e busca (conquista) da verdade juridicamente válida, sua proliferação em dimensões extraordinárias, muito em decorrência de uma característica trans-histórica e de sua alta funcionalidade para manutenção/legitimação de máquinas judiciárias autoritárias fundadas no signo defensivismo.” (p.14).
“Para caracterizar a epistemologia inquisitiva, propõe a identificação de elementos assimétricos ao da epistemologia garantista que poderiam ser encontrados na definição normativa (direito penal), na comprovação judicial do desvio penalmente relevante (processo penal) e nas formas de sanção (execução da pena).” (p.14).
“A análise do sistema penal não recairia sobre o fato (pré)determinado pela lei penal válida mas, ao contrário, seria dirigida à personalidade da pessoa classificada como perversa, perigosa, herética. A conduta imoral ou antissocial e o resultado produzido seriam frutos da exteriorização da maldade do autor.” (p.14-15).
“A classificação do desviante como herege indica a tendência de criminalização do ser do ‘outro’ que se recusa a repetir o discurso da verdade.” (p.15).
“No interior do modelo antigarantista toda e qualquer conduta perversa é tida como ilícita, visto que as zonas de valoração moral e jurídica são simétricas. Logo, se a sanção no modelo garantista é uma resposta jurídica à violação da norma (quia prohibitum), no modelo inquisitivo traveste-se em resposta quia peccatum, punindo-se o infrator não pelo resultado danoso produzido, mas por quão perigoso ou perverso é.” (p.15-16).
“O segundo elemento da epistemologia inquisitiva é o decisionismo processual, tanto no que diz respeito ao juízo quanto à execução da pena.” (p.16).
“O juízo inquisitorial abdica da cognição e, como efeito da falta de critérios objetivos, subjetiva a decisão e a aplicação/execução da pena desde uma perspectiva protestativa.” (p.16).
“A radical separação entre juiz e acusação é o mais importante de todos os elementos do modelo acusatório. Por outro lado, o sistema processual no qual o juiz procede à busca e valoração das provas, chegando à decisão após instrução escrita e secreta, denomina-se sistema inquisitivo.” (p.16).
“Essas formas não lhe são essenciais, pois o que distingue a forma acusatória da inquisitiva é que, na primeira, as funções de acusar, defender e julgar estão atribuídas a três órgãos diferentes (acusador, defensor e juiz), sendo que no segundo modelo as três funções estão confiadas a um mesmo órgão.” (p.16-17).
“O sistema inquisitivo, portanto, exclui o contraditório, limita a ampla defesa e obstaculiza, quando não inviabiliza, a presunção de inocência, cuja comissividade é o postulado básico do garantismo processual.” (p.17).
“O modelo garantista acusatório vincula-se à racionalidade do juízo, tendo como objetivo principal a máxima tutela das liberdades contra os poderes. O modelo irracionalistainquisitivo é isento de instrumentos de contenção à intervenção do poder punitivo, gerando sistema incerto e ilimitado.” (p.19).
“O modelo estruturado na negação do contraditório e na fusão dos papéis de acusação e julgamento desenvolve, como salientado, um primado das hipóteses sobre os fatos.” (p.21).
O processo de secularização e a invenção da tolerância. (p.22)
“O processo de conhecimento, fruto da experiência do Novo Mundo, corrompe as sólidas bases nas quais a estrutura do poder estava alicerçada.”(p.22).
“No direito, o jusnaturalismo teológico começa a ceder terreno a uma justificativa antropológica, num verdadeiro giro interpretativo.” (p.23).
“Na redescoberta do homem como medida de rodas as coisas, com o ingresso do ‘Novo Mundo’ no cenário histórico, e com visualização de um novo estado de coisas no qual liberdade e igualdade se opõem à servidão, o impulso da laicização das ciências torna o processo secularizador inevitável. [...] Surge o racionalismo, e a capacidade crítica do homem é revelada.” (p.24).
“Se o pensamento politico do século XVI acrescentou ao saber a possibilidade de rememorar a natureza perdida do gomem, questionando toda a estrutura do medievo, impossível à ordem permanecer sustentando um sistema de poder repressivo sacrificialista e intolerante direcionado ao sancionamento do ‘ser’.” (p.28).
“(Locke, em seu ‘Segundo Tratado sobre o Governo Civil’) Afirma que, para atingir plena compreensão sobre o poder político, deve-se considerar o estado natural dos homens, um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem.” (p.29).
“É um estado ideal de seres racionais comandados pela lei natural sem o auxílio ou tutela das leis civis.” (p.29).
“O poder/direito de execução das sanções não seria, porem, um poder absoluto ou arbitrário, mas restringido pelos ditames da ‘razão calma e da sã consciência’, ou seja, desde um critério de proporcionalidade entre a transgressão e a penalidade.” (p.29).
“O estado de natureza, que tenderia a ser um estado de ‘paz perpétua’, acabaria resultando num ‘estado de guerra’ pois, devido à falta de poder hierarquicamente postado, a resposta às lesões dos bens da vida caberia ao indivíduo que assume papel de juiz em causa própria.” (p.30).
“Posto dessa forma, o raciocínio de Locke desenvolve-se em quatro assertivas: (1ª) as leis naturais podem ser violadas; (2ª) as violações das leis naturais devem ser punidas e os danos reparados; (3ª) o poder de punir e de exigir reparação cabe, no estado de natureza, à própria pessoa vitimada; e (4ª) quem é juiz em causa própria habitualmente não é imparcial e tende a vingar-se em vez de punir.” (p.31).
“Para evitar a corrupção do estado de paz pelo estado beligerante, a única solução razoável seria a criação da sociedade política e, consequentemente, do estado civil.” (p.31).
“A passagem do estado de natureza para o estado civil representaria a transferência do poder privado ao poder público.” (p.31).
“A transferência do poder privado à violência ao Estado é o pressuposto de ordem, típico do pensamento ocidental fundado no mito.” (p.32).
“No rito de passagem do estado de natureza para o estado civil, os indivíduos, segundo a matriz filosófico-política exposta não renunciariam seus direitos naturais, muito menos permitiriam ao Estado ingerência plena nas esferas de sua liberdade.” (p.33).
“Ao pactuar, o indivíduo não aliena todos os seus direitos à entidade garante, mas mantém uma esfera de liberdade na qual a interferência do Estado é ilegítima: a esfera da liberdade de pensamento e de consciência.” (p.33).
“O consenso limita o poder estatal, vinculando-o ao princípio da legalidade e garantindo ao cidadão direitos supra-estatais. Nesses termos, a violação dos direitos do cidadão por parte de outrem, permite ao Estado a punição legítima.” (p.34).
“O Estado é, pois, poder que não tem outro objetivo senão a preservação e, portanto, não poderá ter nunca o poder de destruiu, escravizar ou propositalmente empobrecer os súditos.” (p.34).
“A teoria do direito de resistência como mecanismo de garantia do cidadão contra o Estado, visando a impedir o abuso dos poderes Executivo (tirania), Legislativo e/ou Judiciário.” (p.36).
“Demostra Locke que três seriam os casos em que haveria rompimento do contrato e retorno ao estado de natureza: usurpação, tirania e dissolução do governo – excetuando-se os casos de degeneração da sociedade civil por fatores externos.” (p.37).
“Nem toda resistência ao Príncipe é rebelião.” (p.38).
Capítulo II – O Garantismo Jurídico-Penal: Gênese e Crise
Recepção do contratualismo pelo direito penal. (p.39)
 “Como visto, a teoria do contrato social representa a possibilidade de alteração na imutável ordem estabelecida pelo medievo. Ao propor que a sociedade seria composta artificialmente por um pacto simbólico e fundante, os teóricos dos setecentos e oitocentos sustentam a capacidade modificadora e crítica do homem” (p.40).
“O pólo de legitimidade externa do poder é deslocado do teológico ao antropológico.” (p.40).
“Para os clássicos o crime é um fato do homem, não no seu pensamento (de internis non curat praetor) ou no seu modo de ser (periculosidade do indivíduo que comete um crime).” (p.41).
“Os fundamentos do direito penal moderno são lançados em bloco pela ilustração, tendo em vista a coerência de suas proposições: a lei penal – geral, anterior, taxativa e abstrata (legalidade) – advém de contrato social (jusnaturalismo antropológico), livre e conscientemente aderido por pessoa capaz (culpabilidade/ livre arbítrio), que se submete à penalidade (retributiva) em decorrência da violação do pacto por atividade externamente perceptível e danosa (direito penal de fato), reconstituída e comprovada em processo contraditório e público, orientado pela presunção de inocência, com atividade imparcial de magistrado que valora livremente a prova (sistema processual acusatório).” (p.41).
“A ideia da construção do processo civilizatório como superação de um ‘estado de guerra’ Para os acadêmicos, o contrato social simbolizaria o ato de alienação da liberdade individual ao Estado em troca de segurança, sendo que o conjunto destas ‘pequenas porções de liberdade’ fundamentaria o ius puniendi.” (p.43).
“O impacto do pensamento milanês é perceptível nos processos de codificação europeu dos séculos XVIII e XIX, bem como pela forma de interpretação destes textos divulgada pela nascente escola da Exegese.” (p.45).
“Feuerbach e Marat, diferentemente dos demais autores elencados como representantes da prima scuola, explicitam o entendimento do poder estatal como intrinsecamente mal, como (pré)destinado à violação dos direitos fundamentais, sendo necessária sua limitação.” (p.45-46).
“Os direitos (subjetivos) para Feuerbach seriam externos, ou seja, direitos naturais anteriores ao Estado e que com ele não desapareceriam. Assim, cria condição para o seu respeito e garantia, ficando a possibilidade de resistência como alternativa em caso de sua violação por parte do ente público.” (p.47).
“Se do delito, descumprimento contratual por parte do indivíduo, surge o poder do Estado em punir, evitando assim o mal maior da vingança privada, do abuso do poder público nasce o direito de resistência, pois rompido o ele fundante.” (p.47).
“A discussão sobre o direito (penal) contratualista até Marat limitava-se ao plano dos direitos e garantias individuais. O autor propõe uma inversão, um giro metodológico na interpretação do pacto.” (p.47).
“Preocupado com a tutela da liberdade individual contra os abusos do poder, cria sistemas taxativos de delitos (princípios da publicidade), precisos de penas (princípios da proporcionalidade, pessoalidade e culpabilidade) e de juízos equânimes (princípio da imparcialidade).” (p.48).
“A premissa pactual é quase um imperativo nas obras da época, e desta Marat não se furtou. O autorfunda no contrato social sua teoria política, justificando seu modelo penal. A renúncia da vingança privada, da liberdade natural e da comunhão primitiva dos bens advém do intuito do cidadão em delegar ao poder público o poder punitivo e, ao adquirir o status civil, assegurar a segurança na fruição dos mesmos.” (p.48-49).
“Conclui-se que, ao irromper um giro metodológico na estrutura do pensamento liberal contratualista, incluindo como direitos fundamentais os direitos sociais, e ao sugerir uma práxis republicana e constitucionalista, Marat antecipa o pensamento ‘liberal-socialista’.” (p.50).
“Impensável (re)escrever a história do pensamento penal liberal brasileiro sem pensar na influência da reforma pombalina.” (p.50).
“Os egressos da Faculdade de Direito de Coimbra fomentaram o racionalismo jurídico no Brasil, cujo papel foi decisivo na construção do Estado-nação, visto que vieram compor a elite pensante e o corpo técnico da burocracia nacional.” (p.51).
“Forjado o modelo legislativo penal material desde a matriz liberal advinda da modernidade portuguesa – apesar da manutenção do regime escravocrata e da incompatibilidade discursiva que tal contradição gerava-, fundamental era a elaboração de estatuto processual que garantisse instrumentalidade à aplicação dos direitos.” (p.53).
“Com a formação da Escola de Recife, o pensamento nacional assumirá o discurso penal diverso do liberal, aderindo os cânones da criminologia positivista italiana.” (p.54).
O refluxo do pensamento garantista (p.54)
“Seu objetivo é demonstrar, e aqui reside sua virtude, a constante tensão entre dois modelos diversos e assimétricos de percepção da realidade jurídica (e política).” (p.55).
“O modelo penal clássico é identificado fundamentalmente como um modelo restrito de intervenção, visto entender de forma limitada as funções estatais.” (p.55).
“Alessandro Baratta denomina de princípio do bem e do mal. Segundo essa principiologia, a sociedade apresentar-se-ia como um todo orgânico e funcional de indivíduos idôneos e respeitadores da lei, sendo a única disfunção o delito.” (p.56).
“Embriagada pelo discurso evolucionista das ciências naturais e pela mudança nas funções do Estado, a Escola positiva agrega os cientistas que pesquisam o fenômeno delitivo.” (p.57).
“Capacita-se via antropologia e sociologia criminal, a possibilidade de catalogação e identificação de indivíduos ontologicamente perversos, em decorrência de suas anomalias anatômicas e fisiológicas.” (p.58).
“Juntamente com o princípio da culpabilidade, o princípio da legalidade e da jurisdicionalidade sofrerão sérios abalos.” (p.59).
“A mudança de objeto – da lei ao homem delinquente – condiciona uma mudança radical de método – do lógico aristotélico (dedutivo) ao induto experimental (empirista) -, e de acertamento processual dos casos penais – do modelo cognoscitivista jurisdicional ao decisionismo valorativos substancialista.” (p.59).
“Polarizado o saber acadêmico nacional entre Recife e São Paulo, é do Nordeste que advirá a primeira escola jurídica genuinamente brasileira, sob a forte influência do positivismo criminológico. Assim, o produto das teorias etiológicas não ficou reduzido ao universo científico europeu.” (p.62).
“Desde o fim do Império e durante a República Velha, autores como Afrânio Peixoto e Clovis Beviláqua sustentavam a necessidade de impor freios à miscigenação racial, temendo um processo de degeneração social.” (p.63).
“Tobias Barreto direcionava incisivas críticas ao pensamento lombrosiano e, consequentemente, à base teórica que Nina Rodrigues tentava consolidar. Afirmava que a ideia capital de Lombroso não é de todo isenta de certo sabor de paradoxia. Reduzindo o crime às proporções de um fato natural, incorrigível, inevitável, tão natural e incorrigível como a doença, pareceria que Lombroso julgava inútil a função da justiça pública.” (p.66).
“Médicos postulavam reformar a filosofia e revogar o direito criminal: o psiquiatra quer destronar o jurista, a psiquiatria quer tornar dispensável o direito penal.” (p.67).
“O movimento da defesa social visa identificar os sujeitos perigosos, reabilitando-os a partir de uma preocupação moral de emenda desde o enfoque médico e psiquiátrico.” (p.68).
“O modelo etiológico transformou a ciência penal em ciência criminológica, determinando a padronização dos critérios e condições de proceder a investigação do fenômeno criminal Assim, o estudo foi transportado da ótica jurídica (das ciências humanas) ao universo das ciências médicas (naturais).” (p.69).
“Assim, para Liszt, os pressupostos da punibilidade deviam determinar-se segundo os princípios liberais do Estado de Direito exatamente como sempre expôs a Escola Clássica.” (p.70).
“Sustenta Ancel que o modelo penal de Defesa Social caracterizar-se-ia por ser uma política ativa de prevenção que intenta tutelar a sociedade, protegendo também o delinquente, pois visaria assegurar-lhe através de condições e vias legais, um tratamento apropriado.” (p.71).
“Essa proteção social seria realizada sob a noção de periculosidade, aliada ao conjunto de medidas extrapenais destinadas a neutralizar o delinquente, seja pela eliminação/segregação ou pela aplicação de métodos curativos/educativos.” (p.72).
“Chama-se atenção, porém, ao fato de que, se na esfera criminológica e político-criminal, a teoria crítica rompeu com as amarras do positivismo, a prática maniqueísta do sistema operou um câmbio altamente eficiente.” (p.74).
Capítulo III – As Razões do Garantismo
O programa político-criminal garantista (p.77).
“O saber ilustrado demostra a capacidade crítica do homem na construção do processo humanizador, e por isso de maturidade, que nega terminantemente a redução do próprio homem à condição de supérfluo.” (p.78).
“A filosofia ilustrada possibilita ao homem o reconhecimento de sua capacidade criativa e contestatória, e por isso o marco do pensamento iluminista é gênese da luta pelas humanidades.” (p.78).
“Com o remodelamento das funções da criminologia oficial, com a deformação inquisitorial do processo penal e com a assunção por parte do direito penal da esquizofrenia legislativa na abundante produção de leis, o sistema penal é acometido por gradual e substantiva perda de legitimidade, (re)estruturando-se a partir de uma concepção penal funcionalista-eficientista que delega à pena e à criminalização uma forma bizarra de processo pedagógico .” (p.80).
“Todavia, se com o advento do Estado intervencionista o direito penal vislumbrou a autonomização científica da criminologia, assistiu também o espantoso processo da formulação legislativa.” (p.80).
“Percebe-se, portanto, que o direito penal contemporâneo, devido ao processo de alta demanda criminalizadora, fruto do ingresso de novas formas de violação aos bens jurídicos (conflitos coletivos e trans-individuais), padece de uma ‘elefantíase legislativa’ que resulta na perda dos limites substanciais entre ilícitos penais e administrativos.” (p.81).
“O modelo teórico minimalista caracterizar-se-ia por dez restrições ao arbítrio legislativo ou erro judicial. Segundo este modelo, não se admite nenhuma irrogação de pena sem que tenha sido cometido um fato, previsto legalmente como crime, de necessária proibição e punição, gerador de efeitos danosos a terceiros, caracterizado pela exterioridade e materialidade de ação, pela imputabilidade e culpabilidade do autor em além disso, comprovado empiricamente por acusação diante de um juiz imparcial, em processo público realizado em contraditório, mediante procedimentos pré-estabelecidos em lei.” (p.83).
“Os termos empregados por Ferrajoli para formulação das condições de possibilidade do modelo dão onze: pena, delito, lei, necessidade, ofensa, conduta, culpabilidade, juízo, acusação, prova e defesa.” (p.83).
“O sistema antípoda é indicado pela carência da principiologia exposta. Assim, a maior ou menos correspondência com a principiologia garantista caracterizaria modelos minimalistas ou maximalistas, quanto à elaboração normativa; acusatórios(cognitivistas) ou inquisitivos (substancialista), quando ao juízo; e garantistas ou pedagógicos, quanto à fundamentação e execução da pena. Configurariam, pois, sistemas punitivos autoritários ou garantistas.” (p.84).
“A estrutura elaborada por Kelsen, cuja concepção é cerrada na Constituição lógico-formal e direcionada ao interior do sistema jurídico estatal, é modificada, pois passa a voltar seu olhar tanto para o interno quanto para os novos valores e princípios advindos do exterior.” (p.85).
“Logicamente, o pressuposto básico do programa garantista é o princípio da legalidade, entendido como regra semântica que identifica o direito vigente como objetivo exaustivo e exclusivo da ciência penal, estabelecendo que somente as leis ( e não a moral ou outras fontes externas) dizem o que é crime, e que as leis dizem somente o que é crime (e não o que é pecado) Vê-se, pois, o princípio secularizador balizando a legalidade penal.” (p.86).
“A hermenêutica garantista viabiliza, ao mesmo tempo, de acordo com a necessidade de tutela do mais débil, a flexibilização ou a defesa intransigente da legalidade.” (p.88).
“Desde os vínculos com o sistema de direito positivo, o programa garantista formula como critérios negativos (limitadores) de definição de delito o evento (lesividade), a ação (materialidade) e a culpabilidade (responsabilidade pessoal).” (p.89).
“Portanto, o garantismo caracteriza-se como uma tecnologia dirigida à satisfação de valores substanciais, selecionando-os, explicitando-os e incorporando-os normativamente como condições de legitimação jurídica das proibições e das penas, com o escopo de minimizar o poder punitivo.” (p.89).
“O critério de eleição do bem jurídico encontraria guarida na Constituição.” (p.90).
“Não basta, para justificar a punição de um fato, que ele seja considerado imoral; assim como não basta que este seja considerado juridicamente permitido ou punido para que seja considerado moralmente lícito ou ilícito.” (p.91).
“Existe, enfim, uma esfera da vida das pessoas intangível ao poder do Estado e subtraído ao controle policialesco; não apenas as intenções e idealizações, mas com maior razão os erros pensamento e de opinião.” (p.92).
“Atualmente, a Constituição é o espaço no qual os reflexos desta opção se manifestam, visto ser instrumento de afirmação da razão: estes contratos sociais em forma escrita, que são os pactos constitucionais, estabelecem como limites e vínculos para a maioria pré-condições do viver civil.” (p.93).
“Esse plano da impossibilidade de negociação diz respeito fundamentalmente à igualdade dos cidadãos perante a lei, tenham eles incorrido ou não em sanções penais. Logo, a garantista dos seus direitos fundamentais não poderia ser sacrificada sequer em nome do ‘bem comum ou público’. ” (p.93).
“A garantia desses direitos corresponde a pré-condições de convivência, sendo que sua lesão por parte do Estado justificaria o dissenso, a resistência e a guerra civil.” (p.94).
A teoria geral do garantismo (p.95).
“Ferrajoli visualiza outros dois aspectos relevantes para o diagnóstico da atual crise do direito: (a) a inadequação estrutural das formas do Estado de direito às funções do Welfare State decorrente da falta de elaboração de um sistema de garantias dos direitos sociais comparável às garantias tradicionalmente disponíveis para a propriedade e a liberdade – os direitos sociais, como se sabe, são mais difíceis de proteger do que os direitos de liberdade -; e (b) o deslocamento dos lugares da soberania fruto da alteração na hierarquia das fontes, ocasionando o enfraquecimento do constitucionalismo nacional face à ausência de um constitucionalismo internacional – a proteção internacional é mais difícil do que a produzida no interior do Estado, em particular dentro de um Estado de direito.” (p.96).
“A crise descrita abala profundamente o princípio da legalidade, gerando exercícios de poder autoritários em detrimento das garantias e do anseio, mormente em países periféricos, de construção da democracia através do paradigma do Estado de Direito.” (p.96).
“O princípio da legalidade, condicionado à estrutura hierarquizada do ordenamento jurídico balizado pela Constituição, é o ponto de partida na construção do modelo garantista, sujeitando-o, de forma sui generis, às regras do positivismo jurídico.” (p.98).
“Percebe Cadermatori que esse arcabouço conceitual não leva em conta o fato de que o moderno Estado constitucional incorporou diversos princípios em seus estatutos. Segundo o autor, os princípios determinam valorações ético-políticas e de justiça das normas por ele e nele produzidas, agindo como critérios de (des)legitimação não mais externos ou jusnaturalistas (moral ou político), mas agora internos ou positivistas (jurídico) .” (p.100).
“A incorporação constitucional dos direitos fundamentais impõe à teoria do direito revisão das esferas da validade e vigência das normas, e a necessária de separação destas categorias, principal erro do ‘paleopositivismo dogmático’ (dogmatismo).” (p.100).
“A tese positivista da presunção de regularidade dos atos de poder, calcada na visão acrítica e contemplativa do jurista, é negada, sobretudo porque fundada na (ingênua) noção da existência de um ‘poder bom’. Não basta a sintonia da norma com os parâmetros formais estabelecidos para sua validação, visto que eles nada garantem. Imprescindível é sua harmonia com os direitos e garantias que expressam a racionalidade material (substantiva) do estatuto fundamental.” (p.101).
“O primado dos direitos fundamentais, locados naqueles contratos sociais em forma escrita que são as cartas constitucionais, em geral emanadas por maiorias qualificadas, identifica não somente o norte de interpretação das normas e o critério e validade das decisões, mas altera a teoria do Estado e da democracia.” (p.104).
“A fundamental diferença entre estes dois modelos de Estado moderno é a de que no primeiro (Estado de direito ou legislativo) os vínculos do poder estão restritos à legalidade formal, enquanto no segundo (Estado constitucional ou democrático de direito) as normas constitucionais que versam sobre os direitos e garantias fundamentais são dotadas de caráter vinculante.” (p.104).
“O sistema político estatal regido por normas, isto é, pelo princípio e não pelo príncipe, é um fenômeno relativamente recente, pois nasce na modernidade.” (p.105).
“Os vínculos expressos pelos direitos fundamentais à validade das decisões representariam, pois, técnicas contra possíveis tentações despóticas ou paternalistas da maioria.” (p.106).
“Definitivamente, o sentido de democracia não corresponde mais à legitimidade procedimental das decisões majoritárias, pois estas não tem poder deliberativo absoluto (uma decisão pode ser majoritária e autoritária ao mesmo tempo).” (p.107).
“Importante ressaltar que o sentido do termo ‘moral’ empregado neste momento diz respeito aos critérios de legitimação externa do sistema normativo, ou seja, é termo vinculado aos valores extra ordem jurídica, e não à concepção de moral individual (foro interno) como foi trabalhado na aferição do princípio da secularização no direito penal.” (p.109).
“Norberto Bobbio, ao deslocar temporalmente o problema, percebe o fato de que atualmente o conceito de tolerância vem identificado aos problemas de convivência entre as minorias étnicas, linguísticas, raciais e de todos aqueles denominados ‘diversos’.” (p.111).
“Reivindicar o direito à igualdade não exclui o direito à diversidade, sobretudo porque não são antônimos.” (p.112).
“Dessa forma, conforme advoga Ferrajoli, desobedecer é justo quando é injusta a lei, sendo igualmente legítimo rebelar-se quando os poderes violam direitos fundamentais e/ou os meios de garantias legais se revelam ineficazes para sancionar sua invalidade.” (p.114).
Capítulo IV – O Modelo Garantista de Limitação do Poder Punitivo
 “A pena nas sociedades modernas: Introdução” (p.115).
“A principal característica das normas de conduta, tanto jurídicas como sociais, é sua coercitividade, poisreprovam simbólica ou faticamente atos indesejáveis. O teor fundamental da coação é, segundo Hans Kelsen, a aplicação de um mal ao destinatário mesmo contra a sua vontade, empregando a força física, se necessário.” (p.115).
“O monopólio da coação nas mãos do Estado tornou-se, portanto, uma das principais conquistas da modernidade.” (p.116).
“No entanto, se a sanção se manifesta através da violência, surge uma pertinente indagação levantada por Kelsen: qual seria a diferença entre o Estado (comunidade jurídica) e um ‘bando de saqueadores’, visto que ambos adotam a violência para privar determinadas pessoas de seus bens (vida, liberdade, patrimônio et coetera).”(p.116)
“A questão está situada na legitimidade do poder político. A concepção garantista (heteropoiética), estruturada na centralidade da pessoa humana, vincula a legitimidade do poder ao(s) seu(s) vínculo(s) com os direitos humanos.”(p.116).
Esboço dos modelos justificacionistas da ilustração (p.117).
“A autoridade ilimitada do Estado patrimonialista é sucedida por instrumentos jurídicos de contenção do poder. A estrutura principiológica apresentada, essencialmente restritiva do poder de punir e por isso garantista, tem sua fundamentação externa no pacto social.” (p.117).
“Lembre-se que tais justificativas rememoram modelos penais da Antiguidade, cujos resquícios são encontrados no Velho Testamento – violação por violação, olho por olho, dente por dente; assim como ele causou uma injúria a um homem, assim será feito contra ele.” (p.118).
“A ideia da ‘devolução do mal com o mal’, presente no modelo retributivista arcaico, representa a mais primitiva forma de justiça, que exige que o violador receba um castigo idêntico ao sofrido pela vítima.” (p.118).
“Zaffaroni e Pierangeli, apontam a capacidade de trabalho e a liberdade como os únicos objetos idôneos de conversão em dívida. O tempo, portanto, surgirá como ‘a’ sanção penal característica da modernidade.” (p.119).
“O modelo penalógico de Kant é estruturado na premissa básica de que a pena não pode ter jamais a finalidade de melhorar ou corrigir o homem, ou seja, o fim utilitário seria ilegítimo. Se o direito utilizasse a pena como instrumento de dissuasão, acabaria por mediatizar o homem, tornando-a imoral.” (p.120).
“Em Hegel, a pena será justificada pela necessidade de recompor o direito com uma violência correspondente àquela perpetrada contra o ordenamento jurídico. O delito, percebido como lesão à ordem jurídica, deveria ser neutralizado através de uma força correspondente.” (p.120).
“Ferrajoli, critica as teorias retributivistas, pois entende que a ideia da pena como restauração ou reafirmação de ordem violada demonstra um equívoco derivado da confusão entre direito e natureza.” (p.121).
“E é a cessão da liberdade individual o ato que funda o Estado, estruturando e justificando o poder de punir: o conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo exercício de poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; é uma usurpação e não mais um poder legítimo.” (p.122-123).
“Assim, se o pacto versa essencialmente sobre a liberdade, somente esta poderia ser executada, pois a incidência em qualquer outro bem jurídico (v.g. vida e liberdade de expressão) seria ilegítima.” (p.123).
“Não se pode, portanto, neste modelo, deliberar sobre a vida de um cidadão; somente sua liberdade (parcial) poderia ser negociada, sujeitando-a à sanção.” (p.123).
“Ao perceber que a coação física não basta por si só, visualiza um tipo de coação que antecipa a prática do ilícito.” (p.125).
“Como também advertiu Radbruch, tem-se como resultado prático a redução da razão jurídica à razão política ou de Estado, obtendo como efeito o ‘terrorismo penal’. Trata-se, pois, de modelo cuja decorrência aponta ao panjudicialismo e ao maximalismo inquisitorial.” (p.126).
“A primeira ação estatal depois de firmado o pacto seria de igualar (igualdade substancial) a comunidade sob os critérios de justiça social – a própria sociedade não merece existir senão enquanto busca o bem estar próprio do gênero humano. Neste modelo, a igualdade seria plena: formal e material.” (p.127).
A justificativa etiológica de prevenção especial: fundamentos e programa político-criminal (p.128).
“Com o refluxo do pensamento garantista, pelo ingresso da concepção organicista nas ciências criminais, irrompeu-se um novo giro inquisitorial no discurso penal, não mais identificado com a moral (modelo pré-ilustrado), mas fundido por premissas naturalistas.” (p.128).
“O sentido essencialmente profilático da pena transforma o universo e o perfil do direito penal. A ciência ocupada exclusivamente por pensadores do direito e da política até o século XVIII e meados do século XIX é invadida por uma série de profissionais alheios ao mundo jurídico. São médicos, psiquiatras, anatomistas, biólogos, assistentes sociais, antropólogos, sociólogos e pedagogos que começam a descaracterizar a especialidade penal, já solidificada na estrutura formal das letras jurídicas.” (p.129).
“Do postulado determinista, com a consequente negação do livre arbítrio pelo atavismo antropológico, a pena será considerada medida de higienização social. Se o delinquente representa um organismo disfuncional no interior de uma sociedade sã, unívoca e consensual, a resposta do Estado à transgressão da norma deve ter uma fundamentação terapêutica.” (p.131).
“A classificação representa o primeiro passo na anamnese reconstrutiva do grau de periculosidade apresentado pelo delinquente.” (p.131).
“Coligada à indeterminação da pena, a perpetuidade da reincidência, circunstância pessoal considerada critério substantivo de definição da periculosidade do réu, impor-se-ia, pois o cometimento de um delito representaria uma mácula na vida do indivíduo e deveria acompanhá-lo até a morte. A prática de novo delito indicaria que a medida terapêutica foi falha, impondo nova e diversa medicina.” (p.134).
”A noção de periculosidade está indissociavelmente ligada a certo exercício de futurologia pseudamente científico.” (p.135).
“No que tange ao direito processual penal, a categoria periculosidade rompe com qualquer possibilidade de construção de um modelo processual de garantias, visto ser o extremo oposto do princípio da presunção de inocência.” (p.136).
A crítica garantista ao modelo periculosista e à subjetivação processual (p.137)
“Ferrajoli, ao tratar das valorações proferidas pelo juízo penal à interioridade do agente, nomina dois modelos antigarantistas: os sistemas sem culpabilidade e os sistemas substancialistas. O primeiro seria característica das formas taliônicas primitivas; o segundo, de averiguação subjetivista, direcionaria a repressão às condutas sem ação e/ou meros estados particulares.” (p.137).
“Segundo Ferrajoli, a subjetivação do delito e da pena conforma estruturas penais de autor que comprometem não apenas a estrita legalidade, mas também a estrita jurisdicionalidade, pois confiado a critérios arbitrários de avaliação da anormalidade ou da periculosidade do réu, o que inevitavelmente frustra o conjunto das garantias processuais. Não obstante, advoga que a interioridade de um homem – o seu caráter, a sua moralidade, os seus precedentes penais, as suas inclinações psicofísicas – não deve interessar ao direito penal senão para daí induzir o grau de culpabilidade das suas ações criminosas.” (p.137).
“como sustenta Ferrajoli, verdadeira ‘monstruosidade jurídica’ porque tal juízo é um prognóstico judicial em si mesmo arbitrário, pois resoluto em decisões potestativas desvinculadas de qualquer parâmetro processual válido.” (p.138).
“A extensão semântica de termos como periculosidade, personalidade, antecedentes e conduta social tornam o ato jurisdicional extremamente arbitrário no acertamento dos casos.” (p.138).
“A utilização do aparelho penal de controle social para determinar (lei penal), valorar (processo) e transformar (pena) personalidades consideradas perigosas (outsiders)conforma um projeto político-criminal antidemocrático, tendente à profilaxia social, típico de sistemas totalitários.” (p.139).
“O correlativo da justiça penal é o próprio infrator, mas o do aparelho penitenciário é outra pessoa; é o delinqüente.” (p.139).
“Considerar a pena como instrumento curativo ou reeducativo, pressupondo ser o delito uma patologia individual ou social, pressupõe aproximação dos conceitos de natureza (e/ou moral) com direito.” (p.139).
“São as mais antiliberais e antigarantistas teorias já concebidas, justificando modelos maximalistas e substancialistas.” (p.139-140).
O garantismo e a negação da legitimidade jurídica da pena. (p.140)
“Primeiramente, o autor (Zaffaroni) indaga se é possível ao operador do direito, principalmente o juiz, tomar decisões sem um modelo justificador. Em momento posterior, reloca o problema à academia, ou seja, indaga se poderia o professor lecionar sem uma ‘teoria da pena’, sem uma estrutura que justifique racionalmente sua imposição.” (p.141).
“Zaffaroni entende ser absolutamente dispensável uma teoria da pena, visualizando a possibilidade de (re)construir o direito penal com a precípua finalidade de redução da violência do exercício do poder. Reduzir dor e sofrimento (redução de danos) seria o único motivo de justificação da pena nas atuais condições em que é exercida, principalmente nos países periféricos.” (p.141-142).
“Para conseguir reduzir o poder punitivo, deve ser progressivamente liberal (garantista), e para ser ‘progressivamente liberal’ deve prescindir de qualquer ‘teoria da pena’.” (p.142).
“Constata-se, pois, uma interação entre a crítica marginal e o modelo garantidor na redefinição das doutrinas penalógicas. Não mais uma teoria justificante do ‘direito de punir’, mas uma teoria normativa sobre os limites e condições de legitimidade da pena fundadas em fins específicos: diminuição de dor e sofrimento causados pela aplicação da pena; reconhecimento da pena na esfera política; e tutela do pólo débil da relação contra qualquer tipo de vingança emotiva e desproporcional, seja pública ou privada.” (p.143).
“O direito nesta ótica, retomaria seu papel de limite à política, atuando como vínculo negativo à ação administrativa.” (p.143-144).
“Tobias Barreto quando redireciona a questão da pena: o conceito da pena não é um conceito jurídico, mas um conceito político.” (p.144).
“O defeito das teorias correntes em tal matéria consiste justamente no erro de considerar a pena como uma consequência do direito, logicamente fundada... Que a pena, considerada em si mesma, nada tem que ver com a ideia do direito, prova-o de sobra o fato de que ela tem sido muitas vezes aplicada e executada em nome da religião, isto é, em nome do que há de mais alheio à vida jurídica.” (p.144).
“Pode-se sustentar relativa sintonia entre o modelo garantista e a concepção de pena inaugurada por Tobias Barreto. Ao sustentar que a pena é um ato político e que o direito, como limite da política, deveria estabelecer freios à sanção, se está a recusar os conhecidos modelos de direito penal máximo que, em sua estrutura teórica de razão de Estado, optam pelo primado da política sobre o direito. Desta forma, o modelo garantista, negando as teorias da pena, estabelece critérios de limitação do poder penal.” (p.145).
“Note-se que a concepção de delito e delinqüente precedente ao paradigma da reação social é representada pela ação de uma minoria desviante, isto é, o delito é a exceção e o delinqüente é um homem diferenciado dos demais.” (p.145-146).
“A pergunta ‘por que punir? ’ tem, para o autor, dois significados diversos: o sentido científico de indagação do ‘por que existe a pena? ’; e o problema filosófico do ‘por que deve existir a pena? ’.” (p.146).
“a pena apresentar-se-ia como guardiã do direito do infrator em não ser punido senão (razoavelmente) pelo Estado, redimensionando a função do direito e do processo penal, não mais direcionado à tutela social, mas à proteção da pessoa que se encontra em situação de violência privada – momento da lesão interindividual – e/ou pública – plano institucional.” (p.147).
Capítulo V – Os Sistemas de Execução e o Garantismo Penal
 Valore e princípios penalógico-constitucionais (p.151).
“Beccaria afirmava que aquele que perturba a tranquilidade pública, que não obedece às leis, que viola as condições sob as quais os homens se sustentam e se defendem mutuamente, deveria ser excluído da sociedade, isto é, banido (exílio local).” (p.151).
“A condição de apátrida não estaria apenas vinculada à clássica distinção entre nacionais e estrangeiros, mas sim ao fato de provocar em algumas pessoas situação de perda dos elementos mínimos de conexão com a ordem jurídica interna dos Estados, destituindo-os da legalidade e da jurisdição.” (p.152).
“Os apátridas, ao deixarem de pertencer a qualquer comunidade política, tornam-se supérfluos.” (p.152).
“Augusto Thompson assinala que a penitenciária é uma sociedade sui generis (dentro de outra sociedade), na qual foram alteradas, substancialmente, as feições da comunidade livre.” (p.153).
“Sobretudo porque existe um consenso no Brasil que entende que o problema da execução penal é meramente administrativo, isto é, se fossem cumpridos pelo Estado-administração os preceitos da LEP, estariam resguardados em sua plenitude os direitos ao apartado.” (p.155).
“Segundo o art. 1º da Constituição, a República constitui-se Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Rege-se, em suas relações internacionais, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II, CR/88). A prevalência dos direitos humanos, no entanto, não vincula apenas as relações exteriores, mas orienta todo ordenamento jurídico nacional.” (p.155).
“Os valores humanistas são concretizados nos princípios constitucionais, categorias jurídicas de cunho abstratamente inferior, mas que condicionam a legislação no que diz respeito à sua legitimidade interna. O princípio lapidar do modelo jurídico de garantias é o ‘princípio da secularização’.” (p.157). 
“Assevera Zaffaroni, que o princípio da secularização é um princípio metajurídico, de legitimidade externa do direito penal, cuja caracterização é dada fundamentalmente pela adoção de formas republicanas de governo.”(p.157).
“Apesar do caráter abstrato das normas e princípios constitucionais, que acaba dificultando sua concretização, a atitude do operador jurídico deve ser comissiva, de interpretação e filtragem dos institutos jurídico-penais a partir do texto constitucional, em verdadeiro ‘uso alternativo do direito’.” (p.159-160).
“A Constituição é o topos hermenêutico para uma ação garantidora, não podendo, pois, ser mecanismo de restrição dos direitos fundamentais.” (p.162).
Sistema de execução penal (p.162).
“Na doutrina, a natureza jurídica da execução penal é indicada por três sistemas: os sistemas administrativos, os sistemas jurisdicionais e os ‘sistemas mistos’.” (p.162).
“Para o autor, a função administrativa distingue-se da jurisdicional porque na primeira o administrador age espontaneamente, adota medidas preventivas para evitar a violação da lei e cria, com seus atos, situações jurídicas novas.” (p.163).
“a função administrativa é assim primária, enquanto a jurisdicional é função secundária. Desta forma, advoga ser a execução penal atividade administrativa: a verdadeira natureza da execução penal é de ato de administração, principalmente pelo fato de que nela o Estado age como um poder soberano para a realização dos seus interesses. Se, ao contrário, a execução penal fosse um ato jurisdicional, o órgão executivo estaria vinculado aos interesses de outros.” (p.163).
“A divisão das esferas na execução diria respeito fundamentalmente à necessidade imperiosa, por parte da administração, de regular disciplinarmente a ‘massa carcerária’, enquanto caberia ao judiciário conceder/restringir ‘benesses legais’.” (p.165).
“Segundo a tradição, o direito penitenciário é autônomo, distinto do direito penale processual penal, representando o conjunto de normas que regulamentam a organização carcerária.” (p.166).
“O princípio da legalidade dos atos administrativos é diverso do princípio da legalidade penal, gerando, em fase de execução da pena, profunda diafonia. A ação executiva é regida pelos princípios da disciplina e da ordem, e sob estes signos viu-se historicamente a justificativa da administração penitenciária para restrição/violação de direitos do condenado que não foram limitados pela sentença penal.” (p.166).
“o apenado não pode mais ser considerado mero objeto, mas torna-se titular de posições jurídicas de vantagem como sujeito de relação processual.”(p.168).
“O paradoxo da relação processual na execução da pena acaba sendo revelado no complicado liame entre direito penitenciário, inequivocamente administrativo, e processo de execução, de natureza jurisdicional. Segundo Grinover, a dificuldade reside em poder extremar estas duas atividades: administrativa e jurisdicional.”(p.168).
“Se o processo penal é o instrumento através do qual o Estado se apropria do conflito do sujeito lesado para resguardar a racionalidade da resposta ao delito, deve operar de maneira otimizada na execução, controlando os atos administrativos de forma a resguardar a dignidade e a humanidade dos apenados. Logo, o juízo de execução tem poderes para interferir diretamente nas relações entre a administração dos estabelecimentos penais e os detentos.”(p.169).
“O modelo jurídico é garantista ou antigarantista. O sistema processual é acusatório ou inquisitório. O sistema executivo é jurisdicional ou administrativo.”(p.170).
“Os sistemas processuais, organizados de forma lógica, caracterizam-se pela presença de um princípio reitor que estabelece sua teleologia (maximização dos poderes ou das garantias). Se o sistema acusatório é identificado pelo princípio dispositivo, o inquisitório o será pelo princípio inquisitivo.”(p.171).
“a jurisdicionalização (formal) da execução penal representou avanço em matéria de garantias frente ao modelo pretérito administrativizado. Beneti ensina que o fenômeno da jurisdicionalização aperfeiçoou-se, fixando-se a jurisdicionalização da execução penal como corolário da inafastabilidade da jurisdição penal, um dos fundamentos da garantia do Estado de Direito.”(p172.).
“O processo executivo é povoado por regras essencialmente inquisitivas, a começar pelo seu ato de inauguração, ou seja, com a iniciativa da ação.”(p.173).
“Sabe-se que a oralidade do procedimento é uma das principais garantias do contraditório e da publicidade dos atos. Não obstante, a não exigência de presença do defensor, bem como as possibilidades de iniciativa pelo juiz (ação e prova), viciam o direito de defesa e o livre convencimento.”(p.174).
“A partir desta anamnese, sustenta Schecaira a necessidade de se reconhecer o caráter contraditório do processo de execução penal, admitindo, ao condenado, principal interessado em todas eventuais modificações da forma e quantidade da sanção punitiva, a possibilidade de produção da prova, criticando-a e oferecendo contraprova, sempre que do procedimento possa resultar alteração do título executório penal, seja para a concessão ou para revogação de qualquer direito.”(p.175).
Direitos versus Disciplina(s): O controle do indivíduo e da massa carcerária (p.175).
“Embora os direitos do preso tenham atingido status constitucional, a estrutura processual (inquisitiva) inviabiliza sua plenitude. A ‘natureza mista’ (híbrida) representada pela tensão entre jurisdição e administração, aliada ao modelo jurisdicionalizado autoritário normatizado na LEP, possibilitou diagnosticar o sistema de execução penal brasileiro como inquisitorial.” (p.175).
“É lógico que da perda do direito de ir e vir decorrem inúmeras limitações, daí o escopo normativo em suprir o encarcerado das necessidades materiais através do estatuto social positivo – normas que regulam alimentação, vestuário e instalações higiênicas (art. 12, LEP); atendimento médico, farmacêutico e odontológico (art. 14, LEP); assistência jurídica (art. 15, LEP); instrução escolar e formação profissional (art. 17,LEP); recreação, orientação, segurança e previdência (art. 23, LEP);assistência religiosa (art. 24, LEP); direitos decorrentes de atividade laboral (art’s. 28 e seguintes, LEP) et coetera. Tudo porque reconhece-se que o preso, apesar de ter sua liberdade restringida, não perde todos os direitos adquiridos enquanto cidadão.” (p.176).
“O movimento da Nova Defesa Social aglutinou pensadores cuja orientação é direcionada à reação aos sistemas penalógicos de retribuição jurídica, característicos das doutrinas penais ‘clássicas’ do final do século XVIII. Representaria, assim, uma ‘nova concepção de luta contra a delinquência’, a partir da reconstrução entre direito penal, criminologia e política criminal (novo modelo de ciências penais integradas).” (p.177).
“Nota-se, assim, que o limite constitucional de respeito à integridade moral assegurado no valor dignidade humana não é observado. Com efeito, a deslegitimação (invalidade) formal e material das normas que pretendem modificar o ‘ser’ do condenado sob a máxima da ressocialização, recuperação ou reintegração, é perfeitamente justificável.” (p.178).
“Sustenta Michel Foucault que as disciplinas foram inventadas durante os séculos XVII e XVIII como fórmulas gerais de dominação no momento em que se percebeu ser mais eficaz e econômico vigiar do que punir. Com intuito de docilizar os corpos e adestrar a alma a partir de um processo contínuo de fabricação de seres submissos, as disciplinas ingressam oficialmente na história da punição como uma forma de ‘humanização da pena’. Punir mais e melhor, técnica legitimada desde um discurso humanitário encobridor do real, possibilitou a difusão desta nova economia política de poder.” (p.180).
“Os modelos de ressocialização e readaptação, fundados na ideologia do tratamento, marcam os problemas e os riscos da pedagogia disciplinar e, como sustenta Zaffaroni, impõem parâmetros de conduta e pensamento que pertencem a outras classes sociais, com interesses diversos, obtendo como consequência a perda de identidade dos apenados (desculturação) e a consolidação de sua posição marginal (reculturação).” (p.181).
“Foucault, avaliando a tensão entre os regimes de legalidade e as disciplinas, nota que é no limite do direito e dos mecanismos de disciplina que se dá o exercício do poder: as disciplinas têm seu discurso.” (p.182).
“Como esclarece Alvino Augusto de Sá, ao discutir a natureza dos exames criminológicos e as formas de prognose, o parecer da CTC deveria voltar-se eminentemente para a execução, para a terapêutica penal e seu aproveitamento por parte do sentenciado.” (p.183).
“Tarefa elucidativa no que tange à assunção ideológica do modelo defensivista é a de previsão de o corpo criminológico (COC) realizar prognósticos de não-delinquência, requisito subjetivo presente no ordenamento penal brasileiro para concessão do livramento condicional – para o condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, a concessão do livramento ficará também subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinquir (art. 83, parágrafo único, CP).” (p.183).
“Se as avaliações sobre a personalidade e conduta social na aplicação da pena podem ser taxadas como inquisitivas, visto estabelecerem juízos sobre a interioridade, os diagnósticos, exames e prognósticos previstos pela LEP não poderão ser conceituados de outra forma.” (p.184).
“Lembra Vera Malaguti Batista, ao estudar a atuação dos operadores secundários do sistema de atendimento a adolescentes infratores, que estes quadros técnicos, que entraram no sistema para ‘humanizá-lo’, revelam em seus pareceres (que instruem e tem enorme poder sobre as sentenças a serem proferidas) conteúdos moralistas, segregadores e racistas, carregados daquele olhar lombrosiano e darwinista social erigido na virada do século XIX e tão presente até hojenos sistemas de controle social.” (p.185).
“Se a despatologização do delito ocorreu com a teoria estrutural-funcionalista de Durkheim no início do século, incrementando um giro copernicano na criminologia que culminou com a consolidação acadêmica do paradigma da reação social, o reducionismo sociobiológico desse modelo revela-se obsoleto em termos científicos. No entanto, mesmo desqualificado epistemologicamente, acaba por ditar as regras da execução da pena.” (p.186).
“Ao responder indagação sobre o porquê de sua crítica à criminologia ser tão rude, Foucault afirma que os textos criminológicos não têm pé nem cabeça... Tem-se a impressão – prossegue – de que o discurso da criminologia possui tal utilidade, de que é tão fortemente exigido e tornado necessário pelo funcionamento do sistema, que não tem nem mesmo necessidade de se justificar teoricamente, ou mesmo simplesmente ter uma coerência ou uma estrutura. Ele é inteiramente utilitário. A utilidade seria fornecer argumentos ao julgamento, permitindo aos magistrados uma ‘boa-consciência’.” (p.187).
“Para além da avaliação individual, a estrutura meritocrática determina critérios de verificação da conduta do preso conforme o maior ou menor grau de adaptação às regras disciplinares que regulam a permanência no estabelecimento penal.” (p.189).
“No sistema pátrio, o procedimento de instrução e julgamento das sanções disciplinares é presidido pela administração penitenciária, funcionando como atividade extensiva do juízo de execução (artigo 47).” (p.189).
“O caráter adestrador dos sistemas prisionais disciplinares exerce efeitos degradantes na individualidade dos apenados, sendo totalmente contrários aos postulados pedagógicos da educação. O estímulo ao autorrespeito, à espontaneidade e à individualidade, característicos de uma pedagogia voltada ao crescimento e à autodeterminação, são degradados pelo servilismo de modelo cujo imperativo é a disciplina.” (p.190).
“Autoridade inconteste e obediência servil são pressupostos desse modelo pré-disposto a fugas, rebeliões e motins. A resistência às manifestações agressivas da comunidade carcerária, natural nas circunstâncias da perda da liberdade, acaba sendo a principal função da administração.” (p.191).
Garantismo e execução penal: proposições (p.192).
“Concorda-se com Ferrajoli quando afirma que a história das penas tornou-se, indubitavelmente, mais horrenda e infamante para a humanidade que a própria história dos delitos, porque as violências produzidas pelos delitos são menores que as produzidas pelas penas.” (p.192).
“Ferrajoli, ao avaliar a porosidade da execução penal, indaga se é legítima sua modificação, ou seja, se é lícito à administração carcerária ou ao juiz de execução reduzir ou aumentar a pena conforme os resultados do ‘tratamento penal’.” (p.193).
“O norte da execução, portanto, seria delimitado pela adequação às regras meritocráticas e ao programa ressocializador, os quais balizarão a quantidade e a qualidade da pena.” (p.194).
“Neste aspecto, lícita a crítica ao sistema progressivo que, apesar de se apresentar ao público como mecanismo humanitário, legitima um modelo absolutamente antigarantista que torna incertos o tempo e a forma de resposta ao desvio. Assim, se o aumento da pena em sede executiva contraria um modelo de garantias, sua redução, estruturada no princípio do arrependimento, é igualmente ofensiva aos direitos fundamentais.” (p.196).
“Importante frisar que a ‘flexibilidade das penas’ significa também flexibilidade dos pressupostos da pena; e esta maleabilidade supõe o esvaziamento da lei e do juízo e, em consequência, a dissolução de todas as garantias, tanto penais como processuais.” (p.196).
“O ‘bom comportamento carcerário’ é indicado, fundamentalmente, pela ausência de registro, no prontuário do preso, de falta grave. Muito embora não haja prazo específico para extinção dos efeitos da sanção administrativa, entende-se que, por analogia aos decretos de indulto, tal avaliação deve estar limitada aos últimos 12 (doze) meses de cumprimento de pena. Assim, se o preso, neste lapso temporal, sofrer condenação administrativa por falta grave, e em sendo esta falta homologada judicialmente, não poderá gozar o direito postulado.” (p.198).
“Desta forma, tem-se como imprescindível a jurisdicionalização dos procedimentos relativos às faltas (no mínimo as graves), pois os efeitos produzidos nesta seara (jurisdicional) acabam por exigir tal atribuição ao magistrado da execução. O controle judicial da legalidade dos atos administrativos não ocorreria, portanto, de maneira reflexa com a mera homologação da sanção, mas seria constante, visto que o debate sobre a conduta faltosa dar-se-ia no palco processual, em audiência, com necessária presença do Ministério Público e da Defesa técnica.” (p.198-199).
“A ausência de controle semântico, decorrente da tipicidade aberta do art. 50 da LEP, gera modelo propício ao abuso do poder pelos agentes carcerários.” (p.200).
“Foucault entende este processo como uma técnica de normalização do poder que não é apenas resultado do encontro entre o saber médico e o poder judiciário, mas da composição de certo tipo de poder – nem médico, nem judiciário, mas outro –, que colonizou e repeliu tanto o saber médico como o poder judiciário.” (p.201).
“A morosidade da magistratura em responder aos incidentes executivos é tamanha que chegou a ser nominada, em diversas ocasiões, como uma das causas de inúmeros motins e rebeliões.” (p.204).
“Parece, pois, salutar, não apenas que a legislação seja aperfeiçoada no sentido do estabelecimento de prazos razoáveis às decisões judiciais em sede executiva, mas, apreendendo os valores ínsitos ao Pacto de São José, sejam criadas técnicas judiciais idôneas a uma célere decisão sobre os incidentes de execução penal.” (p.205).
“Desta forma, uma lei específica e abrangente atenderá a todos os problemas relacionados com a execução penal, equacionando matérias pertinentes aos organismos administrativos, à intervenção jurisdicional e, sobretudo, ao tratamento penal em suas diversas fases e estágios, demarcando, assim, os limites penais de segurança.” (p.206-207).
“Neste quadro, uma das formas (normativas) de garantir os direitos dos apenados seria a recapacitação do processo penal e, em consequência, de sua estrutura principiológica. Para tanto, advoga-se, como proposta político-criminal, a urgente necessidade de recodificar a execução, restabelecendo a ideia de sistema processual que foi totalmente ofuscada pela reforma de 1984.” (p.207).
“Ferrajoli percebe a necessidade de alteração do teto cominado à pena privativa de liberdade para, no máximo, dez anos. Segundo o autor, tal redução suporia não somente uma atenuação quantitativa, mas também qualitativa da pena, dado que a ideia de retornar à liberdade depois de período ‘breve’, e não largo ou interminável, tornaria mais tolerável e menos alienante a reclusão para o condenado.” (p.208).
“Mister observar que vinte anos é o limite máximo de pena de reclusão em países como a França, Bélgica, Suíça, Noruega, Luxemburgo e Grécia; a Dinamarca e a Islândia têm como limite dezesseis anos; Alemanha, Hungria e Polônia estabelecem como teto quinze anos; enquanto na Finlândia o máximo é de doze anos e na Suécia é dez anos de reclusão.” (p.208).
“Congregada à proposta de diminuição do máximo, está a indeterminação da pena mínima. Nesta perspectiva, ao legislador caberia delimitar apenas o máximo, ficando ao critério do juiz a fixação motivada da sanção. Entende Ferrajoli que, para as penas privativas de liberdade, não se justifica a estipulação de um mínimo legal: seria oportuno, em outras palavras, confiar ao poder equitativo do juiz, a escolha da pena abaixo do nível máximo estabelecido pela lei, sem vinculá-lo a um limite mínimo, ou vinculado a um limite mínimo muito baixo.” (p.208).
“A eficácia do modelo garantista somente pode ser alcançada quando o controle das atividades administrativas ocorra comissivamente pelo Poder Judiciário, exigindo do Poder Executivoo respeito à dignidade dos presos, suprindo-os de suas carências materiais e respeitando sua individualidade. Os subterfúgios utilizados pela administração não podem ser empecilho ou barreira à atuação judicial.” (p.209).
Capítulo VI – Garantismo e Conflitos Carcerários: Fugas, Rebeliões e Motins
 As novas funções da pena (p.213)
“A saída para a proclamada crise seria a minimização do Estado, a flexibilização dos direitos (individuais e sociais) e a privatização das empresas públicas prestadoras de serviços, como forma de reduzir o déficit fiscal.” (p.214).
“O custo do ‘enquadramento do círculo’, porém, seria o fato de que alguns países subdesenvolvidos (como os latinos) não conseguiriam acompanhar o processo. Todavia, independente deste fato, deveriam dividir os ônus e as dificuldades do centro com os países desenvolvidos.” (p.215).
“As renovadas formas de exclusão seriam caracterizadas pela perda do status de cidadão por algumas pessoas, não somente em razão das restrições econômicas, mas por qualquer característica que as possa diferenciar (raça, nacionalidade, religião et coetera).” (p.215-216).
“Como percebe Eduardo Faria, com o processo de globalização e a gradual simbiose entre marginalidade social e marginalidade econômica, as instituições jurídicas dos Estados são obrigadas a concentrar sua atuação na preservação da ordem e da segurança, assumindo papéis eminentemente punitivo-repressivos.” (p.216).
“Vê Ferrajoli que, ao reduzir o indivíduo a um ‘subsistema físico-psíquico’, funcionalmente subordinado às exigências do sistema social geral, tal doutrina é acompanhada inevitavelmente de modelos de direito penal máximo e ilimitado, programaticamente indiferentes à tutela dos direitos da pessoa.” (p.217).
“dúvida o processo civilizatório da região. Na execução da pena, constantes e insolúveis problemas revelam fatos cuja simples observação faz transparecer os mais fortes traços da barbárie: o irracionalismo, a inexistência de garantias e a tolerância às práticas penais genocidas. A tese ultrapassa o âmbito acadêmico e é percebida pelos operadores do direito.” (p.218).
A ilicitude dos conflitos carcerários (p.220)
“A realidade carcerária brasileira possibilita perceber o alto nível de ilegalidade das práticas do Poder Público. O vácuo existente entre a normatividade e o cotidiano acaba por gerar situação indescritível: a brutalização genocida da execução da pena.” (p.220-221).
“Mesmo assim, ciente das consequências do ato sedicioso, a massa carcerária acaba por encontrar em condutas ilícitas (fugas, rebeliões e motins) a única maneira eficaz de romper com o silêncio totalitário dos muros prisionais. Tais manifestações geram o fenômeno da ‘conflitividade carcerária’.” (p.221).
“Cezar Bitencourt, ao analisar a etiologia dos conflitos nas prisões, chama atenção para o fato de que os motins carcerários são os fatos que mais dramaticamente evidenciam as deficiências da pena privativa de liberdade. É o acontecimento que causa maior impacto e o que permite à sociedade tomar consciência, infelizmente por pouco tempo, das condições desumanas em que a vida carcerária se desenvolve... O motim rompe o muro de silêncio que a sociedade levanta ao redor do cárcere.” (p.222).
“Em realidade, percebe-se que os atos de transgressão às regras impostas no ambiente carcerário indicam, na grande maioria dos casos, a única possibilidade de manifestação da massa carcerária contra a constante lesão dos seus direitos..” (p.222).
“A configuração da evasão prescinde igualmente a violência, bastando sua simples tentativa para ser definida como falta disciplinar.” (p.225).
“Os efeitos da sanção disciplinar extrapolam a órbita administrativa e invadem o processo de execução penal, pois a ‘boa conduta’ é requisito objetivo para o gozo dos direitos subjetivos. Assim, não obstante ser de natureza administrativa, a decisão sobre as faltas condiciona a avaliação judicial dos incidentes da execução.” (p.225).
“O delito é consumado no momento do emprego da violência contra a pessoa, sendo inadmissível, no caso, a tentativa, pois o legislador elencou como segunda possibilidade típica a forma tentada. Mister ressaltar que a mera violência, que se constitui como meio idôneo para a fuga, preenche todos os requisitos do tipo, sendo a fuga em si, mais propriamente, um exaurimento de crime já consumado com o início da execução.” (p.228).
“A relevância que a norma incriminadora pretendeu dar ao impor sanção cumulativa é a negação e o repúdio ao ato lesivo. Somente existe delito no momento em que esta violência é praticada. Da mesma forma, a punição cumulativa inviabilizaria ao aplicador absorver (princípio da consunção) a evasão violenta no crime-meio. Contudo, urge que os critérios sejam revistos.” (p.233).
“A tradição demonstra que as normas jurídicas mais autoritárias e, consequentemente, conformadoras de modelos maximalistas, foram aquelas emergenciais produzidas sob a etiqueta de ‘delitos contra o Estado’. Tais incriminações, normalmente elaboradas com grande ambiguidade e lacunariedade, acabam por sobrepor a razão de Estado à razão de direito, olvidando a ofensividade (ataque concreto) ao bem jurídico (palpável).” (p.234).
Conflitos carcerários e direito de resistência (p.235).
“Em realidade, o direito de resistência renasce quando o sistema ordinário de garantias não funciona, sendo verdadeira falácia normativa a ideia de o instituto ser incompatível com o Estado de direito porque neste o poder é vinculado à lei e as violações são por ela punidas.” (p.236).
“Entretanto, constata-se que os instrumentos jurídicos positivados inviabilizam a plena defesa da Constituição ou proporcionam, de maneira tímida, a redução dos poderes privados.” (p.237).
“O problema do direito de resistência poderia remeter o trabalho à bela e lúdica caracterização desde a tragediografia helênica, ou permitir incursões na filosofia clássica. Rui Barbosa, por exemplo, afirma que ninguém condensou melhor o alcance do direito de resistência do que o velho Farinaccius, colocando em uma fórmula clara, prática, justa e expressiva o sentido da desobediência legítima.” (p.239).
“Segundo Norberto Bobbio, a resistência compreende todo tipo de ruptura contra a ordem constituída, que põe em crise o sistema pelo fato de produzir-se, como acontece em um tumulto, uma sublevação, uma rebelião, uma insurreição, até o caso limite da revolução.” (p.240).
“Mais que um ‘direito’, a resistência à opressão é um mecanismo tipicamente garantista, pois sua natureza reflete instrumentalidade à satisfação dos direitos humanos individuais, sociais e/ou trans-individuais. É que o sentido do termo ‘garantias’ deve ser empregado para expressar as técnicas previstas, explícita ou implicitamente, que objetivam minimizar o vácuo entre normatividade e efetividade dos direitos.” (p.240).
“Dessa forma, o ato de transgressão às leis e/ou decisões adquiririam dupla funcionabilidade: pode servir tanto para mudanças necessárias e desejadas como para preservação ou restauração necessária e desejada do status quo.” (p.241).
“Os tipos penais de evasão e motim, a disposição dos atos de sedição nas normas penitenciárias e o desenvolvimento jurisprudencial e dogmático sobre a matéria descartam qualquer possibilidade de justificação do ato, independentemente da finalidade ou da situação de fato que motivou a conduta.” (p.243).
“No que diz respeito à garantia dos direitos individuais, a autorização da violência como forma de autotutela é prevista, legal ou supra legalmente, nos casos de exclusão de ilicitude, como causa de justificação de atos que, de outra forma, seriam punidos como crimes.” (p.244).
“Afirma Ferrajoli que é justo rebelar-se quando a lei é injusta; mas também é juridicamente legítimo quando os poderes públicos violam os direitos fundamentais e os meios e as garantias legais se revelam ineficazes em sancionar sua invalidade.” (p.245).
“O primeiro requisito que se encontra prejudicado pela peculiaridade da situação fática é a publicidade da conduta.Por se tratar de instituição total, cujo princípio configurador é o do isolamento, sendo decorrência natural a não visibilidade, a necessidade de publicização da ação inviabilizaria totalmente o ato reivindicatório.” (p.248).
“A utilização da força não deve, de modo algum, ameaçar às pessoas, principalmente terceiros não envolvidos, porque ao se atentar contra as liberdades dos outros, perde-se a legitimidade do caráter civil.” (p.249).
“Os autores contemporâneos consideram imprescindível o elemento subjetivo nas causas de justificação, por entenderem que a atual estrutura da teoria do delito exige avaliação do aspecto cognitivo e volitivo na relação entre a conduta do agente e o resultado por ele produzido. Requisitos objetivos e subjetivos são constantes em todos os níveis de avaliação no estudo estratificado do delito (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), sobretudo após o finalismo welzeliano.” (p.251).
“O direito de resistência, como leciona Canotilho, é a ultima ratio do cidadão que se vê ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, por atos do poder público ou por ações de entidades privadas. Logo, inexigível seria submeter os atores aos efeitos penais e/ou administrativos.” (p.252). 
“No caso penitenciário brasileiro, a observação empírica permite constatar a brutal violação da legalidade constitucional pelos organismos públicos responsáveis pela execução da pena. O direito de resistência, representado pela politicidade das condutas desobedientes (fugas, rebeliões e motins), exsurge, pois, como possibilidade única, e última, de resgate dos direitos dos encarcerados.” (p.252).
“Importante salientar, contudo, que a recepção das causas supralegais limita-se exclusivamente à restrição da incidência do direito penal, ou seja, são causas de exclusão da tipicidade (insignificância e adequação social), culpabilidade (inexigibilidade de comportamento) e, no caso, de ilicitude (consentimento do ofendido e direito de resistência). Nunca, porém, de inclusão.” (p.254).
“Desde esta concepção, plenamente possível a inclusão das reivindicações dos presos na esfera da juridicidade, visto serem suas demandas absolutamente legítimas, fundamentalmente porque seu escopo é o de efetivação da própria legalidade estatal sonegada.” (p.254).
“Assim, os conflitos carcerários previstos nos tipos dos arts. 352 e 354 do CP e nos dispositivos da LEP, quando justamente motivados, teriam (deveriam ter) sua ilicitude excluída. Apesar de típico, o fato estaria sob a chancela da cláusula supralegal, tornando-se lícito. Passível de resposta penal restariam apenas as ações de violência praticadas contra as pessoas durante os conflitos.” (p.255).
Luidgi Silva Almeida – 3º período direito 2013

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