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www.sitelovecraft.cjb.net de3103@yahoo.com.br 1 “A Transição de Juan Romero” — H.P. Lovecraft Fonte: “A Tumba... e Outras Histórias”. Ed. Francisco Alves. OS EVENTOS QUE ocorreram na Mina Norton a dezoito e dezenove de outubro de 1894, não tenho vontade de falar. Um senso de dever à ciência é tudo o que me impede de recordar, nos últimos dias de minha vida, cenas e acontecimentos cotados de um terror duplamente agudo, porque não consigo defini-lo totalmente. Mas acho que antes de morrer devo contar o que sei da — direi transição de Juan Romero. Meu nome e origem não precisam ser relatados à prosperidade; na verdade, creio que seja melhor assim, pois quando um homem migra subitamente para os Estados Unidos ou para as Colônias, seu passado fica para trás. Além do que, o que antes era agora não é nem um pouco relevante à minha narrativa; salvo, talvez, o fato de que durante minha estada na Índia eu me senti mais em casa entre professores nativos de barbas brancas do que entre meus irmãos oficiais. Eu não havia mergulhado nem um pouco nos estranhos costumes orientais quando atingido pelas calamidades que me levaram à minha nova vida no vasto Oeste americano: uma vida onde achei bom aceitar um nome meu atual nome — bastante comum e sem significado. No verão e no outono de 1894 habitei as vastidões desérticas das Montanhas dos Cactos, empregado como operário comum na famosa Mina Norton, cuja descoberta por um velho prospector alguns anos atrás havia transformado a região ao redor de uma vastidão quase desolada para um caldeirão borbulhante com vida sórdida. Uma caverna de ouro, que jazia profundamente abaixo de um lago na montanha, havia enriquecido seu venerável descobridor além de seus maiores sonhos, e agora formava o leito de extensas operações de escavação da parte da corporação à qual havia sido finalmente vendida. Grutas adicionais haviam sido descobertas, e o chamado do metal amarelo era por demais grande; deforma que um poderoso e heterogêneo exército de mineiros labutava dia e noite nas numerosas passagens e escavações da rocha. O Superintendente, um certo sr. Arthur, frequentemente discutia a singularidade das formações geológicas locais; especulava sobre a extensão provável da cadeia de cavernas, e estimava o futuro da titânica empresa de escavação. Considerava que as cavidades auríferas eram resultado da ação da água, e acreditava que em breve abririam a última delas. Não se passou muito tempo depois de minha chegada e emprego que Juan Romero chegou à Mina Norton. Pertencente a um largo grupo de mexicanos irrequietos atraídos do país vizinho, ele primeiramente atraiu a atenção somente devido a seus traços; que, embora fossem claramente indígenas, eram ainda assim notáveis devido à sua cor mais clara e conformação refinada, sendo vastamente diferente daqueles dos operários ou dos piútes da localidade. É curioso o fato de que, embora ele diferisse tanto da massa de índios de tribos ou hispanicizados, Romero não dava a menor impressão de ter sangue caucasiano. Não era o Conquistador de Castela nem o pioneiro americano, mas o antigo e nobre asteca, que a imaginação chamou à vista quando o silente peão se esguia no começo da manhã e olhava com fascinação o sol se levantar sobre as colinas a leste, enquanto esticando seus braços ao redor como se na atuação de algum rito cuja natureza ele próprio não compreendia. Mas, a não ser por seu rosto, Romero não tinha qualquer sugestão de nobreza. Ignorante e sujo ele se sentia em casa entre os outros mexicanos de pele parda: tendo vindo (segundo me disseram mais tarde) do mais baixo tipo de vizinhança. Foi encontrado quando criança numa cabana nas montanhas, o único sobrevivente de uma epidemia que passara deixando morte em seu rastro. Próximos à cabana, ao lado de uma fissura bem incomum, jaziam dois esqueletos, recentemente bicados por abutres, e presumivelmente formando os restos de seus pais. Ninguém se lembrava de sua identidade, e logo forma esquecidos pela maioria. Na verdade, a destruição da cabana de adobe e o fechamento da fissura na rocha por uma subseqüente avalanche havia ajudado a apagar até mesmo a cena da lembrança. Criado por um ladrão de gado mexicano que lhe dera seu nome, Juan diferia pouco de seus companheiros. A ligação que Romero manifestou comigo começou indubitavelmente através do belo e antigo anel hindu que eu usava quando não trabalhava. De sua natureza, e de como chegou ao meu D www.sitelovecraft.cjb.net de3103@yahoo.com.br 2 poder, nada posso dizer. Era meu último laço com um capítulo de minha vida para sempre encerrado, e eu o tinha em alto valor. Logo observei que o mexicano de olhar estranho também estava interessado; olhava-o com uma expressão que bania todas as suspeitas de simples ganância. Seus hieróglifos estranhos pareciam ativar alguma fraca recordação em sua mente não-educada, porém ativa, embora ele não pudesse ter visto a coisa parecida antes. Poucas semanas depois de sua chegada, Romero era para mim como um serviçal fiel; isto, independente do fato de que eu não era mais que um mineiro comum. Nossa conversa era necessariamente limitada. Ele só sabia algumas palavras de inglês, ao passo que descobri que meu espanhol oxoniano era um tanto diferente do patóis dos peões da Nova Espanha. O evento que estou para relatar não foi precedido por longas premonições. Embora o homem Romero tivesse me interessado, e embora meu anel o tivesse afetado de forma peculiar, acho que nenhum de nós tinha qualquer expectativa do que estava para acontecer quando houve a grande explosão. Considerações geológicas haviam ditado uma extensão da mina diretamente abaixo da parte mais profunda da área subterrânea; e a crença do Superintendente de que apenas rocha sólida seria encontrada deu lugar à instalação de uma prodigiosa carga de dinamite. Com este trabalho Romero e eu não estávamos ligados, pelo que nosso primeiro conhecimento de condições extraordinárias veio de outras pessoas. A carga, talvez mais forte do que previamente estimada, havia parecido sacudir toda a montanha. Janelas de barracos na encosta externa foram estilhaçadas pelo choque, enquanto mineiros perto das passagens mais próximas foram derrubados. O Lago Jóia, que jazia sobre o cenário da ação, encapelou-se como numa tempestade. Numa investigação poste- rior, verificou-se que havia um novo abismo que jazia indefinidamente sob o local da explosão; um abismo tão monstruoso que nenhuma linha de mão poderia chegar ao seu fundo, e nenhuma lâmpada conseguiria iluminá-lo. Estupefatos, os escavadores tiveram uma conferência com o Superintendente, que ordenou grandes extensões de corda a serem levadas ao poço, e divididas e baixadas sem cessar até que se descobrisse um fundo. Pouco depois, os trabalhadores de rosto pálido comunicaram seu fracasso ao Superintendente. Firmemente, porém com respeito, eles afirmaram sua recusa em revisitar o abismo ou realmente a trabalhar mais na mina até que ela pudesse ser selada. Alguma coisa além de sua experiência os estava evidentemente confrontando, pois até onde podiam dizer, O éter abaixo deles era infinito. O Superintendente não os reprovou. Ao invés disso, ponderou bastante, e fez planos para o dia se- guinte. O turno da noite não foi lá aquela noite. Às duas da manhã, um coiote solitário na montanha começou a uivar desgostoso. De algum lugar dentro das obras um cachorro latiu em resposta ou ao coiote... ou a outra coisa. Uma tempestade estava se formando ao redor dos picos da cordilheira, e nuvens de formas estranhas se acumulavam horrivelmente ao redor do trecho borrado de luz celestial que marcava as tentativas de uma lua coriácea de brilhar através das muitas camadasde vapores de estratos cirros. Era a voz de Romero, que vinha da cabana acima, que me acordou, uma voz excitada e tensa que alguma vaga expectativa que eu não podia compreender: — Madre de Dios! — El sonido — ese sonido — orga usted! — Io oyte usted? — Señor, ESSE SOM! Eu escutei, perguntando-me o que ele queria dizer. O coiote, o cão, a tempestade, era tudo audível; a ultima agora ganhando ascendência à medida que o vento gritava mais e mais freneticamente. Relâmpagos se faziam visíveis através das janelas da casa. Questionei o mexicano nervoso, repetindo os sons que ouvira: — El coyote? — el perro? — el viento? Mas Romero não respondia. Então começou a sussurrar amedrontado: — El ritmo, Señor — el ritmo de Ia tierra — AQUELA PULSAÇÃO NO SOLO! E agora eu também ouvia; ouvia e tremia e sem saber por quê. Muito, muito abaixo de mim havia um som — um ritmo, bem como o peão havia dito que, embora excessivamente faço, ainda assim dominava até mesmo o cão, o coiote e a tempestade que se aproximava. Procurar descrevê-lo era inútil: pois era tal que não possibilitava descrição. Talvez fosse como o pulsar das máquinas de um grande cruzador marítimo, como os que se sente nos convés, mas não era mecânico; não tão despido www.sitelovecraft.cjb.net de3103@yahoo.com.br 3 do elemento da vida e da consciência. De todas as suas qualidades, a que mais me impressionou foi a distância da terra. À minha mente acorreram fragmentos de Joseph Glanvil que Poe citou com tre- mendo efeito∗: “... a vastidão, a profundidade e a incompreensibilidade de Suas obras, que contém em si: um abismo mais profundo que o poço de Demócrito.” Subitamente Romero pulou de sua cama, parando por um instante à minha frente para olhar o estranho anel na minha mão, que brilhava estranhamente a cada clarão do relâmpago, e depois ficou olhando muito na direção do puço da mina. Também me levantei, e ambos ficamos inertes por um momento, forçando os ouvidos ao ritmo único, que parecia cada vez mais assumir qualidade vital. Então, sem volição aparente, começamos a nos mover na direção da porta, cujo ranger nas dobradiças trazia uma confortável sugestão de realidade terrena. O clamor nas profundezas — pois tal coisa o som parecia ser — crescia em volume e em distinção; e nos sentimos irresistivelmente atraídos à tempestade e daí até a bocarra escura do poço. Não encontramos nenhuma criatura viva, pois os homens do turno da noite, haviam sido liberados do trabalho, e estavam indubitavelmente no povoado de Ravina Seca derramando rumores sinistros nos ouvidos de algum garçom sonolento. Da cabine do vigia, no entanto, brilhava um pequeno quadrado de luz amarela como o olho de um guardião. Perguntei-me palidamente como o som rítmico havia afetado o vigia; mas Romero movia-se com mais presteza agora, e o segui sem parar. Ao descermos o poço, o som abaixo tornou-se definitivamente claro. Era para mim tão terrível quanto uma espécie de cerimônia oriental, com bater de tambores e cânticos de muitas vozes. Eu estive, como vocês sabem, muito tempo na Índia. Romero e eu nos movemos sem hesitação física por pontes e descendo escadas; sempre na direção da coisa que nos atraía, mas também sempre com um penoso medo e relutância desesperadoras. Num momento, imaginei ter enlouquecido: foi quando, ao me perguntar como nosso caminho era iluminado na ausência de lampião ou vela, percebi que o antigo anel cm meu dedo brilhava com assustadora radiância, difundindo um lustro pálido através do ar úmido e pesado ao redor. Foi sem aviso que Romero, após descer aos tropeções uma das muitas escadas largas, disparou a correr e me deixou sozinho. Algumas novas e frenéticas notas nos tambores e cânticos, perceptíveis apenas levemente para mim, havia agido sobre ele de forma assombrosa; e com um grito selvagem ele correu sem auxílio na escuridão da cavena. Ouvi seus gritos esganiçados se repetirem à minha frente enquanto ele tropeçava desajeitadamente ao longo das mudanças de nível e zanzava enlouquecido pelas escadas. E, amedrontado como estava, eu ainda retinha o suficiente de minha percepção para notar que sua fala, quando articulada, não era de qualquer espécie conhecida para mim. Polissílabos duros porém impressionantes haviam substituído a costumeira mistura de espanhol ruim e inglês pior ainda, e destes, somente o frequentemente repetido grito “Huitzilopotchli” parecia um pouco familiar. Mais tarde eu definitivamente coloquei esta palavra nas obras de um grande historiador — e tremi quando a associação me ocorreu∗∗. O clímax daquela noite aterradora foi composto mas muito breve, começando justamente quando alcancei a última caverna da jornada. Fora da escuridão imediatamente adiante explodiu um grito final do mexicano, que foi seguido de um tamanho coro de sons insólitos que eu jamais poderia ouvir novamente e sobreviver. Naquele momento pareceu-me como se todos os terrores e monstruosidades ocultas da Terra tivessem se tomado articulados num esforço para destruir a raça humana. Simultaneamente a luz do meu anel se extinguiu, e vi unia nova luz brilhando de um espaço mais abaixo, porém a poucas jardas à minha frente. Eu havia chegado ao abismo, que estava agora brilhando rubramente, e que tinha evidentemente engolido o desafortunado Romero. Avançando, olhei a borda daquele abismo que nenhuma corda pôde descobrir o fundo, e que agora estava num pandemônio de chamas que piscavam e provocavam rugidos odiosos. Primeiramente não vi nada senão um leve brilho de luminosidade; mas então, formas, todas infinitamente distantes, ∗ Lema de Uma descida no Maelstrom. ∗ ∗ Prescott, A Conquista do México. www.sitelovecraft.cjb.net de3103@yahoo.com.br 4 começaram a se destacar da confusão e eu vi — era Juan Romero? — mas Deus! Não ouso contar- lhes o que vi!... Alguma força do céu, vindo em meu auxílio, obliterou tanto as visões quanto os sons em tamanho ruído que pode ser ouvido quando dois universos colidem no espaço. O caos tomou conta de tudo, e conheci a paz do esquecimento. Mal sei como continuar, já que condições tão singulares estão envolvidas; mas falei o melhor possível, nem sequer tentando diferenciar entre o real e o aparente. Quando despertei, estava a salvo em minha cabana e o brilho vermelho da aurora era visível pela janela. A alguma distância o corpo sem vida de Juan Romero jazia sobre uma mesa, cercado por um grupo de homens, incluindo o médico do acampamento. Os homens discutiam a estranha morte do mexicano enquanto jazia dor- mindo; uma morte aparentemente conectada de alguma forma com o terrível raio que havia atingido e sacudido a montanha. Não era evidente nenhuma causa direta, e uma autópsia não foi capaz de revelar qualquer motivo pelo qual Romero não devesse continuar vivo. Fragmentos de conversa indicavam além de dúvida que nem Romero nem eu havíamos deixado a cabana durante a noite; que nenhum de nós esteve acordado durante a apavorante tempestade que passara sobre a Cordilheira dos Cactos. Aquela tempestade, disseram homens que se aventuraram pela mina adentro, havia causado extenso desmoronamento, e havia encerrado completamente o profundo abismo que criara tanta apreensão no dia anterior. Quando perguntei ao vigia que sons ele ouvira antes do poderoso estrondo do trovão, ele mencionou um coiote, um cachorro e o desdenhoso vento da montanha — nada mais. E nem tampouco duvido de sua palavra. Sobre a retomada do trabalho, o Superintendente Arthur convocara alguns homens especialmente dependentes para fazer algumas investigações em volta do ponto onde o abismo havia aparecido. Embora pouco ansiosos, obedeceram, e cavou-se um buracoprofundo. Os re- sultados foram muito curiosos. O teto do vácuo, visto quando aberto, não era de qualquer maneira fundo; mas agora as perfurações dos investigadores encontravam o que parecia ser uma extensão ilimitada de rocha sólida. Descobrindo nada mais, nem mesmo ouro, o Superintendente abandonou suas tentativas; mas um olhar perplexo ocasionalmente passa por seu ombro quando senta-se pensativo à sua mesa. Uma outra coisa é curiosa. Pouco depois de acordar naquela manhã após a tempestade, reparei a incrível ausência de meu anel hindu do meu dedo. Eu o prezava muito, mas no entanto senti uma sensação de alívio pelo seu desaparecimento. Se algum de meus companheiros de mina o tivesse apanhado, deve ter sido muito esperto em dispor dele, pois apesar de anúncios e uma busca da polícia, o anel nunca mais foi visto. De algum modo, duvido que tenha sido roubado por mãos mor- tais, pois muitas coisas estranhas me foram ensinadas na Índia. Minha opinião de toda a minha experiência varia de tempo a tempo. À luz clara do dia, e na maior parte das estações, sou capaz de achar que a maior parte daquilo tudo não passou de um sonho; mas às vezes no outono, às duas da manhã, quando os ventos e os animais uivam inquietos, surge de inconcebíveis profundezas uma maldita sugestão de um pulsar ritmado... e sinto que a transição de Juan Romero foi realmente terrível. Dezesseis de setembro de 1919.
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