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Astigmatismo em Marketing

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Astigmatismo em Marketing	Na era do hedonismo, o marketing ganha interesse pelos motivos errados 
São Paulo, 03 de junho de 1998 (Edição 663) - Por Adriano Silva 
Um sujeito precisou fazer uma bateria de exames clínicos. Só então percebeu que seu plano de saúde não cobria a metade do que era necessário. Disse, ressentido: O plano dessa companhia é uma bomba. Na hora de vender, pode tudo. Depois, não pode nada. É tudo marketing. Vou cancelar minha participação. Naquele instante, em lugares diferentes da costa leste americana, Theodore Levitt, o homem que criou o clássico conceito de "miopia de marketing", e Philip Kotler sentiram um mesmo arrepio gelado lhes descendo a espinha. Não é para menos. A idéia de fechar o negócio a qualquer custo, ludibriando o freguês se for necessário, de forma a pura e simplesmente fazer o caixa tilintar, filia-se a uma lógica de vendas orientada para o curto prazo. Não gera clientes. Gera compradores de uma compra só. Desafetos que espalham suas bílis pelo mercado. Enfim, é uma idéia que nada tem a ver com a lógica de marketing, exceto pelo fato de ser a sua antítese. Se tudo naquela companhia de planos de saúde fosse marketing, o sujeito estaria satisfeito e a empresa estaria mantendo mais um cliente em carteira.
A idéia de marketing como mentira, como maquilagem exuberante que atrai para uma armadilha de vendas; ou pelo menos como uma atividade vazia, desprovida de tutano e seriedade, tem imperado no Brasil. Temos a certeza equivocada de que marketing é uma propaganda metida à besta, que trocou a agência pela corporação e as artes-finais pelo crachá eletrônico. Costumamos pensar, ainda, que quanto melhor o marketing maior o hype - palavra do inglês que define a promessa que não se cumpre; o exagero que deliberadamente conquista para depois frustrar. Em bom português: empulhação.
Para o marketing, entretanto, a propaganda é apenas o meio mais eficiente de comunicar os benefícios de um produto ou serviço a públicos de interesse. É evidente que ações de comunicação visam sempre ressaltar os pontos positivos e omitir o que não interessa mostrar. Assim funciona a propaganda - que almeja, ainda, ser divertida, surpreendente, marcante. Não é assim que funciona o marketing, processo que transcende em muito as ações publicitárias. Enquanto para a propaganda é suicídio a admissão de pontos fracos (imagine o contra-senso de um anúncio de sabão em pó alertando para o desgaste que ele impinge às roupas ou para a poluição que causa ao meio-ambiente), para o marketing é fundamental o reconhecimento dos desempenhos sofríveis, estejam eles no produto ou na própria empresa. Para o marketing, suicídio seria não admitir os pontos fracos dos processos que ele representa: o sabão em pó que desistir de tratar cada vez melhor as roupas do consumidor ou fingir que não vê que precisa reduzir seu impacto ambiental, estará fora do mercado em um par de anos.
O interesse pelo marketing no Brasil, consolidado na última década, parece estar ancorado naquela visão errônea da profissão como uma salada vistosa que envolve ações de comunicação, promoções criativas e gravatas menos conservadoras. É o marketing compreendido como uma atividade de apoio a vendas, como organização de eventos, como uma ocupação confinada ao meio publicitário. Esse conjunto de percepções confunde o que é periférico com aquilo que é central; o instrumento com a inteligência que o conduz.
De todo modo, é fato que o apelo do marketing no Brasil tem sido sua pretendida superficialidade e o glamour que dela decorre. Enxerga-se o marketing como uma atividade da moda, pouco convencional, divertida, feita para jovens criativos. Se fosse um arremesso de basquete, essa visada não daria aro. De início, nada do que ela propõe é definidor. Nada do que ela diz rompe a superfície. Marketing é, essencialmente, compreender o mercado e tornar eficiente e mutuamente lucrativa a relação entre a oferta de uma companhia e a demanda dos consumidores. O resto são coquetéis e happy hours. Quem precisa do marketing para atendê-los?
Diagnosticado o quadro de astigmatismo, impõe-se uma pergunta: por que viemos a enxergar o marketing no Brasil desta forma equivocada? Há duas explicações cabíveis. A primeira é que os empresários nacionais, há 20 ou 30 anos, tomaram o novo conceito pela sua aparência. Reduziram-no (se é que o chegaram a compreender de fato), esvaziando-o à medida que o adotavam. Desta forma, puderam se dizer a par com as últimas tendências internacionais (nosso flair global costuma ser frívolo; nosso espírito, colonial), sem precisarem operar as inflexões de gerenciamento que a lógica de marketing imporia a seus negócios. O resultado foi uma adaptação do conceito de marketing ao mercado brasileiro, ambiente em que o cliente é tradicionalmente um insignificante. Importou-se o verniz do marketing mas teve-se o cuidado de deixar de fora sua medula. Cristalizou-se, com os anos, a compreensão do marketing pela perfumaria que a ele se assacou.
O outro suporte para o astigmatismo com que olhamos o marketing é a época mesmo em que vivemos. Esse final de século tem sido um tanto filistino. Vivemos uma era em que a aparência é tudo. Antes de ser, o sujeito precisa parecer que é. Um profissional é mais o que ele gaba, muito mais o que ele jacta, do que aquilo que ele realmente acrescenta, pensa ou faz (por isso há tantos politiqueiros bem-sucedidos no mundo corporativo brasileiro. Gente que não produz nada, não agrega valor algum ao negócio, mas que tem a epiderme bem trabalhada, o sorriso adequado, a pose correta).
Na medida em que o marketing é visto como a disciplina do superficial, do brilho fácil, do embuste recheado de charme, ele se torna a disciplina do nosso tempo. E chegamos à contradição suprema de um consumidor insatisfeito enunciar "isso é puro marketing", usando o nome da doutrina que o toma como a causa e a consequência de um negócio, para denotar as situações em que se sente enganado, usurpado por mercadores estultos. Marketing, quem diria, sendo apontado como o pivô da insatisfação de consumidores. Uma realidade brasileira, específica, absurda.
SUPERFICIALIDADE HEGEMÔNICA - Em economias fundadas na competição, ofertas que forem geradas em um processo de marketing autêntico e bem conduzido são necessariamente satisfatórias para os clientes e lucrativas para as companhias. As que não forem não serão outra coisa por muito mais tempo. No Brasil, de modo geral, imagina-se que a idéia de empresa lucrativa não é compatível com a de consumidores satisfeitos. Acredita-se que ou se tem uma coisa ou se tem a outra. A obviedade não vista é que os dois cenários são indissociáveis, contíguos e interdependentes.
As hordas de marqueteiros que entram todo ano no mercado não contribuem muito para a alteração desse ce -nário no Brasil. Pelo contrário, atraídos exatamente pelo que é oco e veleidoso, esses novos profissionais só fazem reproduzir velhos pontos-de-vista carregados de astigmatismo. São - somos todos - filhos dessa era em que a superficialidade é hegemônica, em que a ordem de tudo é ser fácil, digerível.
O hedonismo pouco ilustrado de nosso tempo teve seu início, é muito provável, com a expansão americana no Pós-Guerra. A cultura européia, em geral, e a francesa, em particular, de tradição elitista e paladar pedregoso, sucumbiram à ascensão dos Estados Unidos como o novo emissor de padrões de comportamento e de atitude para o mundo. A tradição filosófica francesa, que ensinara o planeta a pensar, começou a soar insuportável. Raciocinar virou esporte de gente chata. Analisar com discernimento passou a ser coisa de desmancha-prazeres. Sartre e suas palavras refinadas, arquitetadas em sentenças sinuosas, longas e belamente construídas, foi suplantado pelos romances policiais. E seus termos toscos. E suas frases curtas. Tudo o que era denso tornou-se fugaz. A alta cultura virou cultura pop. Óperas de audiência seleta viraram concertos para milhares. A grande literatura virou cinema de entretenimento. Enfim,tudo que era francês desmanchou-se no ar.
E veio ainda a velocidade. Substituiu-se a perenidade dos bosques europeus pela aceleração das highways americanas. E o tempo que as pessoas se davam para sentar em um café parisiense, ler um livro e viver, pela refeição fast food. Hoje, nada é feito para durar muito. Tudo é descartável. E veio o kitsch como a validação estética da baixa erudição (a cultura americana legitima a ignorância média do cidadão desde que esta se recubra de boa dose de charme e ande a mais de 100 quilômetros por hora). Mediocrizou-se a classe média. E denegriu-se todo ato humano que não fosse eminentemente divertido. O brilho da casca, enfim, passou a valer mais do que o miolo.
Abaixo a cultura americana, então, porque ela é má, destruiu nossos melhores valores e, como se não bastasse, ainda ajudou a desvirtuar o entendimento de marketing no país? Que nada. Se há cancros no hedonismo laico da cultura pop, há muitos mais no pedantismo academicista da cultura clássica. Aos versos de Caetano, que sabem elogiar em meio à crítica: "...os americanos são responsáveis por grande parte da alegria existente nesse mundo". Hoje somos todos mais horizontais, democráticos, liberais e bem-humorados por conta da expansão cultural dos Estados Unidos no Pós-Guerra. Há apenas que filtrar, sem nacionalismos bocós, o que não nos serve. Por exemplo, as possíveis entronização do fútil e pasteurização da inteligência que habitam o cerne do american way of life. Há também, por outro lado, que apreender aquilo que nos interessa. Por exemplo, o senso americano de conveniência e o sentido de praticidade e eficiência que lhes rege a vida. E ainda, mais que tudo, compreender e consolidar por aqui o grande emprego do marketing que eles fazem por lá.

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