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Roberta Giannubilo Stumpf Filhos das Minas, americanos e portugueses: Identidades coletivas na Capitania das Minas Gerais (1763-1792) São Paulo Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de História 2001 Roberta Giannubilo Stumpf Filhos das Minas, americanos e portugueses: Identidades coletivas na Capitania das Minas Gerais (1763-1792) Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Área de concentração: História Social Orientador: Prof. Dr. István Jancsó São Paulo Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de História 2001 AGRADECIMENTOS A István Jancsó, mestre que aprendo a respeitar cada dia mais, pela paciente orientação, pelas longas conversas que estimularam e engrandeceram a minha pesquisa. À Andréa Slemian, Débora Regina Pupo, João Paulo Garrido Pimenta, Milton Ohata, Thómas Wisiak, amigos que participaram durante tantos anos dos seminários de pesquisa, os quais me ajudaram muito a avançar em minhas hipóteses. À banca de qualificação, professoras Cecília Helena L. Salles de Oliveira e Márcia Regina Berbel, pelas sugestões e críticas, e pelo entusiasmo demonstrado pelas minhas idéias. À professora Melânia Silva de Aguiar, por ter me recebido em sua casa, em Belo Horizonte, e por ter me mostrado, quando ainda dava os primeiros passos, que eu estava no caminho correto. À professora Júnia Ferreira Furtado, pelas sugestões bibliográficas, por ter me concedido tantos livros essenciais à minha pesquisa e, acima de tudo, pela sua hospitalidade. Aos funcionários do Arquivo Público Mineiro e do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, em especial à Lúcia Maria Alba da Silva, pelo empenho em reproduzir os documentos com qualidade primorosa. À FAPESP que viabilizou a minha pesquisa. Á Débora Regina Pupo e Márcia Maria Arcuri, amigas de todos os dias, que releram meus escritos com paciência e dedicação, às quais sou extremamente grata. Aos meus pais e irmãs que acreditaram e souberam respeitar o meu trabalho tão distante de suas realidades. E por fim meu especial agradecimento a Fábio Cidrin, meu companheiro, pela sua compreensão e estímulo, que amenizaram as eventuais dificuldades. SUMÁRIO Abreviaturas p.5 Resumo p.6 Introdução p.7 Capítulo 1º- Ideais políticos em contexto de mudanças p.12 Capítulo 2º- Causas da decadência no discurso oficial p.50 Capítulo 3º- Causas da decadência para os filhos das Minas p.99 Capítulo 4º- Politização e crise das identidades:1788-9 p.146 Capítulo 5º- A identidade particularista: significados p.201 Referências bibliográficas p.245 ABREVIATURAS ADIM -Autos de Devassa da Inconfidência Mineira AHU -Arquivo Histórico Ultramarino AMI -Anuário do Museu da Inconfidência APM -Arquivo Público Mineiro CI -Coleção Inconfidentes CMOP -Câmara Municipal de Ouro Preto RAPM -Revista do Arquivo Público Mineiro REA -Revista Estudos Avançados RIHGB -Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro RIHG/MG -Revista do Instituto Histórico Geográfico de Minas Gerais SG -Secretaria de Governo RESUMO O presente estudo analisa as identidades coletivas nas Minas Gerais de 1763-1792 e seu processo de politização. Por tratar-se de um período no qual o declínio do rendimento do quinto somava-se à crise do Antigo Sistema Colonial, privilegiamos sobretudo a análise das alternativas políticas aventadas para reverter este quadro, presentes tanto no discurso oficial como nas representações das Câmaras das Minas Gerais. Reconstruindo o diálogo mantido ao longo deste período entre as autoridades metropolitanas e homens principais da terra que, revestidos de representatividade, participavam dos debates sobre os rumos administrativos e políticos da Capitania, pretende-se mostrar o grau de consonância entre os interesses régios e os das elites locais. Com base nisso, o estudo busca determinar o impacto dos efeitos da política metropolitana sobre as identidades coletivas enquanto representações de adesão destas elites a comunidades de várias abrangências: a da Capitania, a da América portuguesa e, afinal, a da monarquia bragantina. Neste sentido, respeitando as etapas distintas que constituem este processo, cujo desfecho será o ensaio de sedição de 1788-9, pretende-se contribuir para a análise da fragmentação dos antigos referenciais políticos e o surgimento de novas alternativas, agora contrárias ao projeto reformista do Estado absolutista luso. ABSTRACT This study intends to analyze the collective identities of Minas Gerais, from 1763 to 1792, and its process of politicization. Focusing on the period characterized by the decrease of the quinto taxation and the crisis of the Colonialism ( “a crise do Antigo Sistema Colonial”), we have mainly emphasized in analyzing the political alternatives destined to reverse that situation, featured not only the official discourse, but also in the representações of the councils of Minas Gerais. Looking at the debate established between the Portuguese authorities and the local elite who participated in the political and administrative decisions, we aim to demonstrate the level of congruity between interests of the Crown and of the elite, in that particular period. The main objective of this study is to determine the impact of the dominant policy of the Metropolis on the collective identities. This expresses the adherence of this elite to communities of distinct configuration: Minas Gerais, the Portuguese America and, in the end, the Monarchy of Bragança. Thus, considering the several phases of the process that resulted in the conspiration of 1788-9, we shall contribute to the analysis of the fragmentation of old political references, and the rising of the new alternatives already opposes to the current policy of the Monarchic State. INTRODUÇÃO Quando iniciamos esta pesquisa pretendíamos dar continuidade às conclusões a que chegamos em trabalho anterior1, no qual pudemos constatar que os envolvidos na conspiração de 1788-9 na Capitania das Minas Gerais reconheciam-se e eram reconhecidos, predominantemente, como filhos de Minas, bem mais do que explicitamente portugueses, ainda que da América. Assim, a proposta inicial deste trabalho era estudar a trajetória da identidade particularista no período de 1763-1792, correspondente ao declínio da produção aurífera, como também à crise do Antigo Sistema Colonial2 naquela unidade do Império português. No entanto, nosso primeiro contato com a documentação veio mostrar a fragilidade de nosso objetivo. Os documentos pesquisados, quando reveladores dos sentimentos políticos dos habitantes de Minas Gerais, mostraram que ser natural das Minas era exclusivamente uma forma específica de ser português, ao menos até 1788. É no ensaio de sedição3, que a identidade particularista adquire um sentido diverso daquele que anteriormente tinha vigência, com o que a identidade portuguesa nas Minas perde o caráter universalizante que antes era seu peculiar atributo. Isso posto, entramosem colisão com toda uma vertente historiográfica que, na busca anacrônica do brasileiro já configurado na Capitania, descurou do fato de, prevalecendo entre todas as expressões denotando identidade coletiva, a particularista, nas suas diversas formas, sempre radicada na especifidade da formação social das Minas Gerais ( e na sua História), não vinha revestida de conteúdo político conflitante com a identidade coletiva portuguesa.4 Os habitantes da Capitania, desde que brancos e livres, sentiam-se 1 Trata-se de um trabalho realizado em nível de iniciação científica cujo objetivo foi estudar as identidades políticas presentes nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Brasília/ Belo Horizonte, Câmara dos deputados/ Governo do Estado de Minas Gerais, 1976, 10 Volumes. 2 Nos termos propostos por NOVAIS, Fernando- Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 6°edição, São Paulo, Editora Hucitec, 1995. 3 Sobre o termo ver JANCSÓ, István- Na Bahia contra o Império. História do ensaio de sedição de 1798. São Paulo/Bahia, Editora Hucitec/EDUFBA, 1996. Segundo Maxwell, o termo "Inconfidência mineira não é apropriado, já que das idéias não se passou à ação. O termo, cunhado pelos donos do poder, dá maior relevo à repressão bem sucedida do que à conspiração fracassada. MAXWELL, Kenneth- "Conjuração mineira: novos aspectos". In: REA. Volume 3, número 6, São Paulo, maio/agosto 1989, p.4. 4 Ver, por exemplo, as seguintes obras: CALMON, Pedro- História do Brasil. Rio de Janeiro, Editora José Olympio, 1959, Volume IV. SILVA, Norberto- História da Conjuração Mineira. Rio de Janeiro, Imprensa diferentes de todos os súditos portugueses, inclusive dos que viviam nas outras partes da América, o que não conflitava, em nada, com sua total adesão ao Estado português. Às suas especifidades é preciso rastrear na condição de vassalos, e não somente enquanto colonos, já que a identidade mais genérica que portavam não era definida em função da naturalidade (das Minas, americana) e sim do sistema político que definia seu estar no mundo, e que era o da monarquia portuguesa. Frente a tais constatações, admitimos que, para atingirmos nosso objetivo inicial, teríamos que percorrer uma direção contrária, e investigar a fragmentação dos antigos referenciais políticos para então entender a eclosão de alternativas que apontam para o novo. Quanto à periodização, partiu-se de 1763, quando pela primeira vez não foram pagas integralmente as 100 arrobas de ouro, com a crise aurífera tornando-se visível tanto para as autoridades quanto para os habitantes da Capitania das Minas Gerais. Desde então o quadro de alternativas para enfrentar a decadência abriu-se em leque, muitas delas extrapolando o âmbito da mineração, pois as esferas econômica e política imbricavam-se mutuamente. Se até 1788, os habitantes atribuíam ao Estado a tarefa de remediar a perda da vitalidade econômica da região, a ineficácia das diretrizes metropolitanas deu um tom diverso às reflexões dos súditos da Coroa sobre a situação das Minas e o futuro que lhes era reservado. A tudo isto vinha somar-se a lenta erosão das estruturas do Antigo Regime, o que levou-nos a pensar que em 1763 não teve iniciou apenas a crise aurífera, mas também um período de remanejamento de antigos referenciais políticos, processo que elegemos como eixo de nossas investigações. Em 1792, por fim, encerrou-se a repressão ao movimento sedicioso de 1788-9, com a execução de Tiradentes no Rio de Janeiro, e o degredo dos demais envolvidos. A natureza da documentação, por sua vez, limitou nossa análise aos sentimentos de pertencimento político da elite local porque estes foram os únicos que deixaram para a Nacional, 1948, 2 tomos; LIMA JR, Augusto- Notícias históricas (de norte a sul). Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1953; Idem- A Capitania das Minas Gerais. Belo Horizonte/São Paulo, Editora Itatiaia/Editora da Universidade de São Paulo, 1978. LATIF, Miran de Barros- As Minas Gerais. Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1991. CARVALHO, Daniel de- "Formação Histórica das Minas Gerais" In: I Seminário de Estudos Mineiros. Conferências pronunciadas no I Seminário de estudos mineiros, realizado de 3 a 12 de abril de 1956, Belo Horizonte, Imprensa da Universidade de Minas Gerais, 1956, pp. 7-30;. ÁVILA, Afonso- "Inconfidência: projeto de nação possível". In: Análise & Conjuntura. Volume 4, nº2 e 3, maio/dez de 1989, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, pp.61-80. MONTES, Maria Lúcia- "1789: A idéia republicana e o imaginário das Luzes". In: Seminário Tiradentes, hoje: Imaginário e política na República brasileira. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro/ Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994, pp.25-76. IGLÉSIAS, Francisco- Trajetória política do Brasil (1500-1964). São Paulo, Companhia das Letras, 1993. posteridade registros que permitam entender o caráter harmônico de sua adesão à comunidade política- nação pelos padrões do Antigo Regime- portuguesa. Inseridos nas redes de poder, ou conhecedores dos debates político-ideológicos europeus, estes homens contavam com espaço político e arsenal teórico para a exposição de suas insatisfações. Embora os autores das representações das Câmaras, documentos que privilegiamos em nosso estudo, não fossem os mesmos que se envolveram na frustrada conspiração do final da década de 1780, todos eles pertenciam a um grupo seleto que nas Minas conseguiu ocupar posição de destaque graças ao apoio do Estado português. Neste sentido, partilhavam de interesses comuns e tinham as mesmas expectativas em relação às diretrizes metropolitanas, como se revela no diálogo que mantiveram com as autoridades metropolitanas. A estrutura desta dissertação foi elaborada de forma a dar visibilidade aos caminhos percorridos pela análise dos sentimentos políticos da elite local. Estamos certos de que o sentimento de pertencimento à comunidade política portuguesa tinha estrita relação com a satisfação destes súditos quanto à atuação do Estado português nas Minas, cujas autoridades eram subordinadas às diretrizes formuladas no Reino. Assim, no primeiro capítulo detivemo-nos sobre a análise das bases teóricas que orientavam as ações do Estado português, fosse no Reino ou nas colônias. Para tanto, recorremos ao universo político- ideológico europeu do Setecentos5, em especial à filosofia da Ilustração, que deu à época o tom dos debates, e às modificações por ela introduzidas nos conceitos políticos. Demos especial ênfase a esta corrente de pensamento tanto porque a atuação das autoridades metropolitanas se caracterizou, na segunda metade do Setecentos, pelas diretrizes ilustradas, quanto porque as críticas à atuação delas vinham dessas mesmas bases teóricas. A seguir, empenhamo-nos na análise das práticas políticas em curso na Capitania, durante o período, tema do segundo capítulo. Através da análise da correspondência oficial, buscamos entender a percepção que as autoridades tinham da irrecusável decadência, percepção que orientou suas ações políticas e determinou, na maior parte das vezes, sua visão da região e de seus habitantes. 5 Utilizamos a definição do termo "político-ideológico" sugerida por Falcon: trata-se de "processos mentais e políticos, as novas visões de mundo, as culturas em conflito, as distintas formas de pensamento". FALCON, Francisco José Calazans- A época pombalina (política econômica e monarquia ilustrada). SãoPaulo, Editora Ática, 1982, p.7 (Ensaios, 83). No terceiro capítulo procuramos entender as posições dos habitantes frente às diretrizes metropolitanas para, mediante o controle dos eixos da discussão envolvendo a elite local e as autoridades, esboçarmos divergências e convergências entre os interesses locais e os da Coroa. Neste capítulo, analisou-se com especial atenção as representações dos oficiais das Câmaras, canal da exposição das queixas e sugestões dos habitantes endereçadas à Coroa. O segundo e o terceiro capítulo contemplam um período de 25 anos (1763-1788) analisado como um todo, na medida em que as diretrizes metropolitanas formuladas para reverter o quadro de decadência do ouro mantiveram-se praticamente as mesmas, razão para que o teor das representações seguisse esta mesma constância. No entanto, ao longo deste período, a inflexibilidade das autoridades em levar as propostas dos habitantes em consideração foi paulatinamente se acentuando, principalmente após 1777, quando Martinho de Melo e Castro sucedeu a Pombal no Ministério do Ultramar. Tornando-se clara a intenção de Melo e Castro de alterar radicalmente a política anterior quanto à elite local, o que implicava em afastar seus integrantes dos cargos anteriormente conquistados, nota-se rápida mudança no quadro anterior, mediante acentuado aumento das expressões de profundo desagrado. Assim, embora o período seja caracterizado pela permanência no tocante à condução das políticas metropolitanas, ele é repleto de nuanças que ganham nitidez com a "inconfidência", assunto do capítulo seguinte. No quarto capítulo, a análise centra-se nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, corpos documental único. Embora esta documentação há muito vem sendo trabalhada, ainda não o foi na perspectiva da análise dos vocábulos políticos e da freqüência com que estes foram utilizados6. Foi esse método que recorremos para esclarecer a diversidade de alternativas que emergiram em contraposição à identidade portuguesa, e para chegarmos, a partir dos registros dos Autos, à delimitação dos partícipes da nova comunidade política projetada pelos conjurados para o que, então, ainda era a Capitania das Minas Gerais. Por fim, no último capítulo, buscamos entender os critérios ordenadores da identidade particularista, rastreando sua trajetória ao longo do período de 1763-1792, na 6 Trata-se dos termos que nos permitam analisar os sentimentos políticos expressos nos Autos e a territorialidade pensada para se configurar o Estado projetado, assim como daquele que era negado pertencimento. busca dos motivos pelos quais esta identidade tenha emergido como a mais freqüentemente citada no contexto sedicioso. É neste quinto capítulo de nossa dissertação, que retomamos ao que tinha sido o objetivo original deste trabalho. Finalmente, dadas as características do último capítulo, consideramos desnecessárias as tradicionais "conclusões", pelo que se abriu mão delas. * Os documentos manuscritos que utilizamos pertencem quase que exclusivamente ao Arquivo Histórico Ultramarino, acervo que apenas muito recentemente pode ser consultado também no Brasil. Os referentes à Capitania de Minas Gerais estão disponíveis no Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte, ou no Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, sendo que este último coloca a documentação à disposição em disquetes, o que auxilia em muito a pesquisa. Ao transcrevermos esta documentação, assim como as demais pertencentes aos fundos- Secretaria de Governo, Câmara Municipal de Ouro Preto- do Arquivo Público Mineiro -, optamos pela atualização da ortografia, recorrendo ainda a eventuais modificações na pontuação, sem contudo alterar o sentido das frases. Preservamos o tempo verbal das citações transcritas para assim evitarmos alterá-las demasiadamente, embora nem sempre sua forma se harmonize com aquela por nós utilizada. Cremos que assim facilitamos a leitura desta documentação até agora praticamente inédita. Capítulo 1º Ideais políticos em contexto de mudanças As idéias iluministas foram responsáveis por introduzir no universo político- ideológico europeu uma nova visão de mundo, que marcou todo o Setecentos, embora os primórdios desta corrente de pensamento datem de 1680-1715, quando se viveu "a crise da consciência européia"7. No entanto, foi mesmo no século XVIII que elas conquistaram maior espaço porque os homens perceberam que os caminhos que elas apontavam eram os que deviam ser trilhados, em detrimento daqueles que até então haviam seguido. Dado o caráter crítico da Ilustração, o qual nenhum iluminista deixou em maior ou menor grau de apresentar, todos os aspectos da realidade foram objetos de questionamento. Nada escapou ao crivo dos filósofos, nem mesmo aquelas idéias que tradicionalmente aceitas, pareciam estar imunes ao julgamento dos homens, tais como as concepções políticas do Antigo Regime. É o caráter crítico da Ilustração que explica, antes de mais nada, o seu impacto no universo político-ideológico europeu, mais do que o número de homens que se sentiam, e eram assim denominados, iluministas. Eram estes uma minoria, uma elite intelectual, já que também não eram muitos os que se preocupavam em buscar alternativas à crise do Antigo Regime, embora esta fosse cada vez mais sentida por todos. Desta forma, o que queremos compreender é como esta crise estrutural, na qual a do Antigo Sistema Colonial foi parte constitutiva, pode ser sentida também no plano das idéias. Uma vez que os antigos pressupostos ancorados na tradição não se revelavam mais eficientes, e as novas idéias surgiam como possibilidades, o que se verificou foi uma querela entre o antigo e o novo, ou então, como propôs Paul Hazard, entre a tradição e a novidade. Desta forma, se a filosofia iluminista não correspondeu ao pensamento político do Setecentos, foi esta querela que o sintetizou. Cada nação deu a este debate contornos específicos, na medida em que nem sempre os pressupostos iluministas foram incorporados da mesma forma, nem para se pensar os mesmos níveis. No entanto, o que parece inegável é que mesmo nas nações "tradicionais" eles estiveram presentes e de alguma forma contribuíram para se pensar a realidade e para projetar mudanças. Nem mesmo Portugal, uma potência de segunda ordem 7 HAZARD, Paul- Crise da consciência européia (1680-1715). Lisboa, Edições Cosmos, 1948. no cenário europeu, fato que todos os estadistas reconheciam8, ficou isenta de sua influência. É justamente porque a filosofia iluminista ganhou configurações específicas em cada situação particular de tipo nacional e, mais do que isto, apresentou diferenças entre homens e grupos de uma mesma nação, que a tentativa de buscar uma definição do Iluminismo como um bloco homogêneo de idéias não é uma tarefa fácil, embora não seja impossível9. Em todo caso, ainda que as diversidades sejam perceptíveis, podemos afirmar que havia denominadores comuns, ou seja, alguns pressupostos iluministas foram acolhidos por todos, nas mais diferentes nações. São estes denominadores invariáveis que nos permitem utilizar o termo Ilustração ou Iluminismo no singular, assim como atribuir a alguns de seus pressupostos um caráter universal. Puderam estes ser acolhidos nas diversas comunidades políticas graças ao livre trânsito das idéias no contexto europeu, o que possibilitava aos homens tomarem conhecimento do que era discutido além das fronteiras de suas pátrias. Se é nisto que reside a universalidade destesprincípios, não podemos esquecer que o próprio objeto de conhecimento dos iluministas era a natureza humana, e por este motivo puderam servir de referência para se pensar realidades diversas. Os teóricos do Iluminismo nunca deixaram de lado a tentativa de definí-lo, embora alertassem para a ineficácia de qualquer resultado a que se possa chegar. Da leitura do livro de Hazard, por exemplo, podemos arriscar uma definição da Ilustração como sendo uma filosofia que se estruturou a partir da crença na razão, no progresso e na civilização, a qual, por sua vez, embasou as esperanças em tornar os povos prósperos e felizes. No entanto, é o próprio autor quem afirma que os iluministas foram também pessimistas, e que souberam reconhecer a importância da sensibilidade. Hazard conclui, assim, que definir o pensamento ilustrado é sobrecarregá-lo com incoerências, uma vez que eram "os próprios filósofos que se gabaram de ser ecléticos"10. Luciano Guerci, ciente destas dificuldades, procurou amenizá-las ao buscar entender o Iluminismo principalmente como um movimento intelectual. Também Falcon 8 Ver sobre esta questão: DIAS, Maria Odila da Silva- "Aspectos da Ilustração no Brasil". In: RIHGB. Volume 278, jan/março de 1968, Rio de Janeiro, Departamento de Imprensa Nacional,1968. 9 GUERCI, Luciano- L´Europa del Settecento- permanenze e mutamenti. Torino, UTET Libreria, 1988, p. 359. 10 HAZARD,Paul- O pensamento europeu no século XVIII (de Montesquieu a Lessing). Lisboa, Editorial Presença, 1983, p.289. classificou-o como um estilo de vida11. A partir da leitura destes autores, acreditamos que nos resta tentar uma caracterização provisória e sistemática, a ser usada com certa flexibilidade, a qual poderemos chegar apenas se considerarmos a existência de denominadores comuns a todo ilustrado, mesmo que seja preciso mostrar constantemente que estes não eram tão comuns assim. Sem nenhuma hesitação, podemos dizer que a razão é a palavra chave da Ilustração. Os próprios homens da época tinham consciência de viver uma idade em que ela era predominante, ou que começava a ser. Ao tornar-se um instrumento de investigação da realidade, a razão gerou uma inquietude de tudo saber e de tudo duvidar, que empolgou seus adeptos. Certamente este novo conceito de verdade incomodou aqueles que ancoravam suas crenças e certezas na tradição, ameaçadas pela comprovação empírica a que estavam sujeitas. Frente a tais ameaças, os opositores da razão julgavam-na prepotente. Outros motivos levaram os próprios ilustrados a reconhecer as desvantagens que o culto excessivo da razão representava. D´Alembert, por exemplo, considerava que ela poderia ser uma trava à fantasia, à criação poética, como se os novos conhecimentos trouxessem também a perda de certos prazeres. Rousseau colocava a sensibilidade e a razão num mesmo patamar: "Apesar do que dizem os moralistas, o entendimento humano deve muito às paixões, que indiscutivelmente, também lhe devem muito"12. Guerci reconheceu com grande acerto que o que tem sido comumente denominado como pré-romântico neste período, na verdade, fazia parte do próprio movimento Ilustrado. Segundo o autor, não há porque tentar reduzir as ambigüidades desta filosofia13. Ao lado da razão, um segundo denominador comum ao Iluminismo é facilmente reconhecível: a opção pelo horizonte mundano e terreno. Os filósofos colocaram o homem 11 GUERCI, Luciano- Op.cit., pp.359-364. Segundo Falcon, "o fato indiscutível, essencial, quando se trata de caracterizar a Ilustração, é a existência de uma mentalidade ilustrada, em que pesem todas as suas possíveis divergências internas. É esse aspecto que justifica até mesmo considerarmos a Ilustração como 'um estilo de vida' ". FALCON, Francisco- Op.cit. p.96. 12 ROUSSEAU, Jean-Jacques- Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Comentários Jean-François Braunstein, Brasília/ São Paulo, UnB/ Editora Ática, 1989, p. 62. (1ºedição de 1755) 13 Lucília de Almeida Neves Delgado, por exemplo, ao definir Rousseau como iluminista e sentimental segue uma linha de raciocínio que Guerci se empenha em rebater. Segundo ela, o filósofo "foi pensador ligado ao tempo do racionalismo e também um sonhador que antecipou o movimento romântico do século XIX". DELGADO, Lucília Almeida Neves- "A origem da desigualdade e a soberania da maioria em Jean Jacques Rousseau". In: Revista do Departamento de História, nº9, Belo Horizonte, FAFICH/ UFMG,1989, pp.57- 58. e não mais a religião no centro do interesse e do saber, realizando, assim, a passagem do transcendente para o imanente, conforme observou Falcon14. O eterno conflito que os homens viviam entre seu corpo e sua alma foi amenizado e, ao verem-se despojados deste peso, puderam se lançar à conquista da felicidade mundana, não só a individual mas, se possível, de toda a humanidade. A esperança e o otimismo invadiram os pensadores iluministas porque a busca de uma felicidade terrena não lhes parecia um projeto utópico. Foram eles quem melhor souberam observar os males da humanidade e, concomitantemente, apontar para as soluções. Não perceberam as dificuldades, e conformaram-se passivamente com elas. Foram críticos e esperançosos, assumindo os riscos de tentar mudar o que desde sempre parecia ter se estabelecido. Acreditaram na potencialidade humana e na eficácia dos instrumentos que dispunham e, desta forma, puderam ser otimistas e esperançosos quanto ao futuro de todos os povos. Este já se anunciava glorioso principalmente porque bons resultados iam sendo alcançados com o desenvolvimento das artes e da ciência a que os iluministas se dedicaram. No entanto, este ponto também foi motivo de controvérsias entre os filósofos, e foi Rousseau quem deu maior intensidade a esta polêmica. Para ele, as ciências e as artes eram a origem dos males comuns à sociedade de sua época, pois o homem natural, que tanto valorizava, não tinha apresentado nenhum interesse por eles. Mas Rousseau acabava por se contradizer ao apontar o ideal de perfectibilidade como sendo próprio da natureza humana. Ao considerar a inevitabilidade do progresso, ao menos neste ponto, reconciliava- se com os demais filósofos. Por outro lado, se o desenvolvimento científico e das artes era considerado como a maneira mais eficaz de colocar os homens de volta aos trilhos do progresso, ele apontava para uma outra questão de difícil solução. Estavam certos de que, com a intensificação da produtividade, seria possível melhorar o bem estar da humanidade, mas também era verdade que isso resultaria num consumo crescente de artigos luxuosos e, portanto, supérfluos. Havia um certo temor de que isto resultasse numa sociedade desigual. Os iluministas sempre condenaram o luxo porque ele era um dos principais fatores a exteriorizar a diversificação social contrária aos princípios de igualdade energicamente defendidos. 14 FALCON, Francisco- Op.cit, pp.8-9. O otimismo atribuído aos iluministas foi atenuando-se com esses impasses que contestavam suas certezas, mas foram as barreiras impostas à penetração das novas idéias, que com o passar dos anos mostraram-se ser muito mais profundas, que deram ao otimismo um caráter irreal ou pretensioso. Um certo descrédito aparece também nos escritos destes homens propagadores da nova filosofia, como se a crença no potencial humano, justamente por ter sido excessiva, abrisse os caminhos para a desilusão. O que é possível notar é que todos os conceitos básicos ao Iluminismo podem ser relativizados, o que não impede que se os tomecomo referências para o entendimento dessa corrente de pensamento, na qual os opostos interagiam. Partindo desta caracterização "aberta", podemos nos aprofundar em outros aspectos do Iluminismo, em especial as concepções que seus adeptos tinham sobre a história e a diversidade humana, fundamentais a quem se propõe a entender as identidades políticas na segunda metade do século XVIII. Quando nos deparamos com as interpretações dos iluministas sobre o passado, não há como deixar de ver que a dicotomia entre a tradição e a novidade, proposta por Hazard, é simplificadora. Estes filósofos representantes das inovações ideológicas, como sugere o autor, não declararam uma guerra absurda à tradição. As verdades, que assim eram entendidas devido à sua longa permanência no tempo, foram, através dos instrumentos racionais, devidamente questionadas, mas nem sempre negadas. Eles souberam reconhecer no passado os momentos dignos de glória, fossem relativos à história da humanidade ou à sua nação15. Se olhavam para o futuro, não deixaram de reconhecer que o passado poderia também orientar as suas atitudes e esperanças. Assim, a história passada continuava a despertar a atenção dos homens, mas os iluministas inovaram pois, ao colocarem as tradições à prova das leis racionais, despiram-nas do manto sagrado que há muito as revestia. Um novo conceito de legítimo ia sendo gestado, chocando-se às verdades que até então haviam sido aceitas sem qualquer ressalva. Este desejo de tudo verificar empiricamente constituiu-se numa obsessão, e não foram poucas as dissertações que procuraram mostrar a incerteza dos testemunhos, das 15 Ver, por exemplo, RAYNAL, Guillaume-Thomas François (Abade Raynal)- A Revolução da América. Prefácio de Luciano Raposo de Almeida Figueiredo e Oswaldo Mutreal Filho, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1993, p.113, (1ºedição de 1772). Sobre a concepção histórica no século XVIII ver: RIBEIRO, Renato Janine- "Da moral da História às histórias científicas: uma revolução do conhecimento". In: Análise & Conjuntura. Volume 4, n°s 2 e 3, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, maio/dez de 1989, pp. 229- 241. provas e até mesmo dos dogmas religiosos16. Rousseau chegou ao limite desta dúvida já nas reflexões iniciais do seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens: "Começamos, então, por afastar os fatos, pois que não levam à questão"17; e se os invoca em outras passagens para exemplificar suas teorias, os toma como "prova suplementar sendo o essencial a demonstração abstrata"18. O estudo da história ganhou novas técnicas, teve seus estatutos modificados, tornou-se uma ciência. Mably, publicou em 1783, A maneira de escrever a história, um dos muitos trabalhos que surgiram para afirmar a supremacia desta nova metodologia. No entanto, a legitimidade das tradições não estava garantida apenas se resistisse à confirmação empírica. Seu maior obstáculo era sobreviver também à investigação filosófica à qual os iluministas submeteram o passado. A História passou a ser investigada também segundo preceitos morais, pelos quais era possível distinguir os exemplos do triunfo da virtude e da derrota dos vícios. O que procuravam destacar, acima de tudo, eram os momentos virtuosos, entendidos desta forma porque contribuíram ao progresso e ao bem comum da humanidade. O passado legitimador dos erros do presente, das desigualdades e da ignorância de se deixar tudo como está, devia ser contestado não só quando não existissem provas que confirmassem a sua existência, mas principalmente quando não era um exemplo a ser seguido. Para Bolingbroke, em Cartas sobre o Estudo e utilização da história, esta disciplina era "... a filosofia ensinando-nos, por meio de exemplos, como devemos conduzir-nos em todas as circunstâncias da vida pública e privada; consequentemente devemos encará-la com espírito filosófico"19. Entretanto, a principal inovação quanto à percepção do passado foi a radical mudança que os iluministas operaram no que concerne à escolha dos temas. As façanhas dos grandes personagens ou a cronologia dos fatos deixaram de despertar interesse, era a história dos homens que devia ser recuperada, já que estes passaram a ser vistos como os principais protagonistas. A realidade mundana desvinculou-se dos desejos da Providência 16 Outro exemplo é a Dissertação sobre a incerteza dos cinco primeiros séculos da história romana escrita por Beaufort e publicada em 1738, tema que já havia seduzido Lévesque de Pouilly que, em 1723, leu perante à Academia das Inscrições sua memória sobre a incerteza dos primeiros séculos de Roma. HAZARD, Paul- O pensamento....- Op.cit, p. 231 17 ROUSSEAU, Jean-Jacques- Op.cit., p.50. 18 Conforme observou Jean- François Braustein em notas a esta publicação. Idem, p.62, nota 63. 19 HAZARD,Paul- O pensamento...-Op.cit., p.229. divina; o curso dos acontecimentos passou a ser responsabilidade exclusiva dos homens20. Na verdade, acreditavam que os rumos tomados pela humanidade sempre tiveram em suas mãos, mas os homens nunca haviam se dado conta disto. Provavelmente, neste contexto só puderam atribuir a si próprios tamanha responsabilidade porque sentiram que tinham condições para arcar com ela. Dos homens não esperavam mais a passividade, a inércia e o conformismo, estes eram defeitos inadmissíveis para os iluministas. Se a história era entendida como conseqüência dos atos humanos, não haveria porque responsabilizar uma entidade sobrenatural por suas desgraças. Desta forma, ancorados nos acertos e erros do passado, os filósofos propuseram-se a agir e modificar o presente para garantir aos homens um futuro mais prazeroso, justo e promissor. A História tornou-se a mais forte aliada das suas expectativas quanto ao porvir da humanidade. Assim, se o homem passou a ocupar o cerne das atenções e das esperanças, a compreensão da natureza humana tornou-se o principal objeto de interesse dos iluministas. Propuseram-se, então, a refletir sobre um suposto estágio primitivo, anterior à formação das sociedades, para entender qual seria a essência humana que o homem civilizado havia deixado para trás21. Ainda que não estivessem muito certos sobre a real existência deste período, valia a pena admitir esta hipótese como exercício reflexivo que contribuiria para compreender a verdade universal válida a todos os povos, independentemente das diferenças que guardavam entre si. Era preciso aproximar os homens, torná-los compatriotas porque pertenciam a uma mesma nação no meio de tantas nações, regida unicamente pelas leis da natureza. Oliveira, em sua carta "sobre o desterro" de 1743, reconhecia que "o homem deve imaginar que em todo o mundo tem a mesma natureza, que todo ele está debaixo do mesmo Céu, e que em toda a parte se encontram homens da 20 Segundo Donghi, esta concepção da história tipicamente cristã, a qual queriam romper os iluministas, era a princípio anti-revolucionária. Isto porque, nem mesmo os períodos que inauguravam uma realidade totalmente nova não eram vistos como uma conseqüência dos atos humanos, apesar da descontinuidade que apresentavam em relação ao passado. Estes eram determinados também pela Providência divina, desta forma não eram fatos históricos, mas naturais. DONGHI, Tulio Halperin-Tradicion politica española e ideologia revolucionaria de mayo. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1985, p.111. 21 "Não é, pois, fácil empreendimento distinguir o que há de originário e de artificial na atual natureza do homem e conhecer profundamente um estado que não mais existe,que talvez nunca tenha existido, que provavelmente não existirá jamais e, do qual, deve-se contudo ter noções corretas para bem julgar de nosso estado presente" ROUSSEAU, Jean-Jacques- Op.cit, p.42. mesma espécie"22. Nota-se assim o mesmo desejo "pacifísta" que está contido na frase que anos depois se tornou emblemática com a Revolução Francesa: "igualdade, fraternidade e liberdade". Tratava-se enfim de reconhecer as semelhanças para extinguir os conflitos, as guerras e as injustiças, contra os quais os iluministas lutaram com tanto ardor, na maior parte das vezes da maneira pela qual julgavam ser correto combater: através das palavras. Os versos do ilustrado espanhol Jovellanos são um dos inúmeros exemplos desta atitude: " Un solo pueblo entonces, una sola y gran familia, unida por un solo y común idioma, habitará contenta los indivisos términos del mundo"23 De tudo o que estamos mostrando, não há como não deixar de perceber uma semelhança entre a Ilustração e o Cristianismo. Afinal, ambas as correntes de pensamento difundiam um espírito de comunhão entre os homens, e tiveram a mesma pretensão de iluminar o mundo, tirando-o das trevas24. Daí muitas vezes terem se chocado, principalmente porque muitos religiosos, aos quais Hazard intitula apologéticos, sentiram que sua hegemonia estava ameaçada pelo cosmopolitismo das idéias iluministas, muito mais tolerantes que as suas, capazes portanto de atrair um maior número de adeptos. No entanto, até a metade do Setecentos, o que predominou foi uma harmoniosa convergência entre a luz da revelação e a da razão ou, ao menos, a não exclusão de nenhuma das duas25. Religiosos menos conservadores puderam, inclusive, abraçar o Iluminismo para corrigir os defeitos do próprio Cristianismo que eles foram capazes de reconhecer. Assim como os demais iluministas, empenharam-se em condenar os abusos, os fanatismos e as superstições desta religião e, de certa forma, saíram-se vitoriosos. As instituições como o Santo Ofício ou a Companhia de Jesus, entendidas por estes homens, laicos ou religiosos, 22 HESPANHA- António Manuel & Silva, Ana Cristina Nogueira da- "A Identidade portuguesa". In: Mattoso, José & Hespanha, António Manuel (direção) História de Portugal. (O Antigo Regime) Volume 4. Lisboa, Editorial Estampa, p.32. 23 Resposta a una epístola de Moratín. Apud. SANCHEZ AGESTA, Luis- El pensamiento político del despotismo ilustrado. Sevilla, Grafitálica, 1979, pp. 249-250. Sarrailh mostra que Jovellanos e Condorcet eram a favor de uma língua universal como meio de estabelecer a fraternidade entre os povos. SARRAILH, Jean- La España ilustrada de la segunda mitad del siglo XVIII. Mexico, Fondo de Cultura Económica, 1957, p.171. 24 A metáfora da luz utilizada pelos iluministas é antiga, mais remota até que o próprio Cristianismo, estando presente nas religiões dualísticas orientais, no platonismo e no neoplatonismo assim como na tradição hebraico-cristã. GUERCI, Luciano- Op.cit. p.395. 25 idem, ibidem. como uma trava ao avanço das novas idéias e conseqüentemente ao triunfo da liberdade de consciência, foram extintas. No entanto, apesar das semelhanças passíveis de serem visualizadas entre estas duas correntes igualmente cosmopolitas, do embate entre elas o Iluminismo levou vantagem, já que seu "novo ideal de fé", ao ser muito mais universalizante, pode atrair os homens das mais diversas crenças. Os iluministas partilhavam de um mesmo desejo: serem cosmopolitas, homens do mundo que não pertenciam a uma nação, e sim a muitas. No século XVIII, "ninguém se manteve (mantinha) no lugar de origem (...) a imagem trágica do Exílio tende(ia) a desaparecer"26. O sábio, dizia Feijóo, "se siente ciudadano del mundo; cualquier tierra es para él pátria"27. No entanto, este esforço incessante na afirmação da harmonia entre os povos não determinou que os iluministas obscurecessem as diferenças que estes guardavam entre si. Na verdade, souberam valorizá-las, porque para estabelecer as semelhanças era preciso considerar que estas se escondiam sob o signo da diversidade humana. A cada passo dado rumo ao conhecimento da natureza dos homens, eterna e imutável, o que se evidenciava eram as arbitrariedades impostas a ela. Quando se predispuseram a entender no que os homens se assemelhavam, inevitavelmente defrontavam-se com suas diversidades. Duas questões que caminhavam juntas, neste século em que os opostos se explicavam constantemente. O sucesso que os relatos dos viajantes e das expedições científicas alcançaram na época talvez possa ser explicado por esta curiosidade em conhecer as diversas formas com que os homens viviam nos quatro cantos do mundo 28. O eurocentrismo foi deixado de lado, dando lugar a um relativismo cultural em conformidade com as idéias daquele tempo. Mais uma vez os iluministas foram buscar na História as respostas para o entendimento da diversidade humana. Afinal, não teria sido no seu curso que os elementos de distinção tomaram forma, já que no princípio os homens eram todos iguais? Não era a História, portanto, o núcleo estabelecedor das diferenças? Mas este retorno aos tempos 26 HESPANHA-, António Manuel & Silva, Ana Cristina Nogueira da- Op.cit, p. 237. 27 Teatro crítico, II, 10 , parágrafo 41. Apud SANCHEZ AGESTA, Luis-Op.cit, p.29. 28 Hazard mostra como os relatos dos viajantes e as expedições científicas contribuíram à formação de uma consciência de igualdade entre os homens e, concomitantemente, para a percepção das diferenças. HAZARD, Paul- O pensamento...- Op.cit., pp.15-31. Segundo Figueiredo e Muntreal Filho, o sucesso editorial da Obra de Raynal deve-se não só às críticas feitas ao Antigo Regime mas também à "importância que tinham, na época, os relatos de viagens, as 'histórias', categorias favoritas nas bibliotecas do século XVIII". Figueiredo, Luciano Raposo de Almeida e Muntreal Filho, Oswaldo- " Prefácio". In: RAYNAL, Guillaume-Thomas François- Op.cit, p. 5. passados não lhes serviu para empreenderam uma crítica às diferenças entre os povos, pelo contrário, os iluministas as aceitavam, e não pretendiam corrigí-las, pois reconheciam sua irreversibilidade. Tolerantes, respeitavam as múltiplas formas de viver que a humanidade encontrou desde que começou a viver em coletividade, mas condenaram as alternativas que desrespeitaram a natureza humana, a ser preservada a todo custo29. Era preciso voltar às leis naturais e combater as civis que as contrariavam, por mais temp0o que estas tivessem vigorado. O passado tornava-se então uma referência obrigatória a seus planos de atuação. Assim, por mais que manifestassem um desejo em pertencer ao mundo, ao atribuírem importância às diferenças entre as sociedades, souberam eles próprios dar vazão também aos seus sentimentos nacionalistas. Inclusive, quando se tratou de elaborar um plano concreto de ação, a realidade que se prontificaram a pensar tinha contornos bem específicos. Debruçaram-se sobre as trajetórias das comunidades políticas, já que se alguns males eram comuns a todos os homens, era possível identificar aqueles que eram próprios a cada nação, cuja origem havia de ser buscada em seu passado. Já foi lembrado que os iluministas atribuíam aos homens a tarefa de solucionar seus males. Quando estes eram localmente reconhecidos, os remédios podiam ser mais facilmente prescritos. Cada comunidade nacional devia empenhar-se em corrigir seus defeitos específicos, tendo para isto que voltar à sua trajetória coletiva, e reconhecer com isso os caminhos erroneamente percorridos a fim de evitá-los futuramente. Optar por novos rumos era a maneira mais eficaz decorrigir o passado e garantir um porvir mais satisfatório. Não havia mais razão para os homens se conformarem com os males característicos de suas comunidades. Estes podiam ser remediados porque já não eram mais entendidos como naturais. Pelo contrário, se eles eram históricos e se os homens eram os protagonistas da História, estes tinham total responsabilidade por remediá-los. Foi esta lógica que invadiu os escritos dos ilustrados, dentre os quais podemos citar o beneditino espanhol Feijóo que rebatia às críticas dos estrangeiros quanto à decadência da Espanha, pois considerava "una equivocación grosera en que se confunde el 29 Foi por este motivo que as Ciências naturais ganharam enorme propulsão. Conhecendo-se a Natureza seria possível guiar-se por suas leis, e corrigir a dos Estados que não as respeitassem0. "Os mais antigos filósofos designavam por leis naturais a ordem eterna e imutável de todas as coisas criadas; os juris-consultos romanos viam nelas instruções dadas pela natureza a todos os animais, a maior parte dos moralistas tomou-as como regras ditadas pela razão e limitou-se unicamente aos homens". HAZARD, Paul- O pensamento...- Op.cit, p.143. defecto de habilidad con la falta de aplicación, la posibilidad con el hecho"30. Para ele, a decadência da Espanha não podia ser explicada por uma suposta incapacidade natural dos espanhóis, ou por um desejo da Providência em vê-los arruinados. Ela era, enfim, resultado da vivência coletiva destes homens ao longo de sua própria história. Mais do que defender sua comunidade frente aos ataques injustos, Feijóo demonstrava otimismo quanto ao futuro de sua nação: se o progresso poderia ser novamente alcançado a partir do esforço humano, a Espanha não estava condenada naturalmente a fracassar. Mas o Progresso também não era uma certeza, algo pré-estabelecido e inevitável. Para alcançá-lo era preciso um empenho constante; o destino já não era um fato a ser passivamente esperado. Assim, não nos parece paradoxal que os ilustrados revelassem um desejo em pertencer ao mundo, e dedicassem tamanho ardor no respeito às características comuns a cada nação31. No século do cosmopolitismo, as identidades políticas nacionais não estavam ameaçadas de extinção. Montesquieu, por exemplo, afirmava "que era homem antes de ser francês"32. Neste caso em especial, o autor dava maior destaque ao seu sentimento universal, sem que com isto negasse seu pertencimento à nação francesa, ainda que considerasse que fosse francês pelo acaso. Hazard, insiste em descrever Feijóo como "patriota, para ele nada havia mais querido no mundo que o seu país. Cosmopolita, era a favor de mais vastas comunicações entre os povos, da abolição do espírito de partido, da paz universal"33, não demonstrando nesta caracterização nenhuma incoerência. Como sintetiza corretamente Falcon: "o movimento ilustrado oferece ao historiador mais atento uma combinação algo paradoxal de cosmopolitismo e de afirmação de diferenças nacionais"34. Este paradoxo é, no entanto, apenas aparente, já que os sentimentos universal e nacional caminharam lado a lado, sem chocaram-se necessariamente, ao longo do Setecentos. Conforme vimos, este século da razão e do otimismo, também estiveram 30 SARRAILH, Jean-Op.cit, p.181. 31 Abade Raynal, por exemplo, teceu elogios à Revolução americana porque esta significou a vitória da liberdade contra a opressão, permitindo assim que a humanidade se deparasse com os vícios da sociedade do Antigo Regime. Mas o pensador francês atribui à independência da América inglesa ainda maior importância: com ela os ideais universais foram restaurados sem que os usos, os costumes, a religião e as leis americanas deixassem de ser conservados. RAYNAL, Guillaume-Thomas François- Op.cit. Rousseau em suas Cartas sobre a legislação da Córsega e Considerações sobre o Governo da Polônia, publicadas na década de 1770, dava importância à preservação das características nacionais por serem essenciais à vida política de uma comunidade. SMITH, Anthony D.-National Identity, London, Penguin Books,1991, p.88. 32 FEBVRE, Lucien- Honra e pátria. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998, p.162. 33 HAZARD, Paul- O pensamento...-Op.cit., pp. 89-90. 34 FALCON, Francisco- Op.cit., p.104. presentes a sensibilidade e o descrédito. Da mesma forma, se foi o século do cosmopolitismo, o nacionalismo nem por isso deixou de se anunciar. Febvre, ao dizer que no curso da segunda metade do século XVIII "o epíteto nacional instala-se por toda a parte, para continuar a triunfar sob a Revolução"35, dá destaque a um destes aspectos, mas suas palavras não desconsideram a predominância das idéias iluministas universais. Afinal, não teria sido com esta mesma revolução que elas atingiram seu apogeu? Deste emaranhado de idéias aparentemente contraditórias o melhor seria afirmar o que já foi dito anteriormente: o Setecentos foi o século dos opostos e dos extremos que, ao menos no interior da Ilustração, puderam coexistir em harmonia. Muitos estudiosos do iluminismo não estão de acordo com esta coexistência entre os sentimentos nacional e cosmopolita tal como proposto acima. Ortega y Gasset, ao analisar o século XVIII na Espanha, diz ter sido o menos espanhol de todos, como se a introdução de idéias estrangeiras colocasse em xeque a tradição espanhola, tão calcada no Cristianismo.36 Agesta, da mesma forma, diz que os iluministas espanhóis, quase sem exceção, "abominaron todo lo antigo e desheredaron lo español"37. Para ambos os autores, os intelectuais da Espanha, ao acolherem o Iluminismo, e ao sentirem-se também eles cosmopolitas, estavam, em última instância, negando a identidade política nacional que portavam. O que procuramos insistir, contrariando estes estudiosos, é que a introdução do Iluminismo em uma nação não resultava necessariamente na negação dos sentimentos de pertencimento político a ela. O que podemos observar é justamente o contrário. As reformas ilustradas, tal como empreenderam Portugal e Espanha, foram manifestações explícitas de amor a estas nações. As novas idéias foram bem acolhidas porque evidenciavam os males nacionais, e mais do que isto, porque alimentaram a esperança daqueles que, justamente por amarem suas pátrias, se preocuparam em corrigir seus defeitos. Não há como negar que o iluminismo contribuiu para que reformas de cunho nacionalista fossem empreendidas, e justamente porque tinham este caráter é que puderam ser dirigidas, como no caso português, pelo seu soberano. Ainda que aos nossos olhos pareça uma contradição que os estadistas portugueses tenham se orientado por uma 35 FEBVRE, Lucien- Op.cit.,pp.172. 36 SARRAILH, Jean- Op.cit, p.17. 37 SANCHEZ AGESTA, Luis-Op.cit., p.40. filosofia estrangeira que era essencialmente crítica ao Absolutismo, os estadistas acreditavam que para reverter o estado decadente de Portugal e, concomitantemente, preservar a soberania monárquica, elas deveriam ser introduzidas para interagirem com as velhas idéias. É certo que a preservação da tradição seria dificultosa, na medida em que toda interação resulta numa nova ordem. Não se trata de uma contradição semântica que leva a concluir um desfecho prévio. É do contexto em si que se desprende a crise, na qual a antiga ordem estava condenada a malograr. No entanto, as autoridades portuguesas não poderiam partilhar dessa percepção. Em seus discursos não se percebe nenhuma disposição em reconhecer a ineficácia de seus esforços; o reconhecimento de que a tradição perdia paulatinamente a sua legitimidade, e que acrise política se anunciava era algo que escapava às suas consciências. A aceitação das idéias iluministas em Portugal explica-se também por outra razão: elas foram acolhidas em função de reformas nos níveis administrativos e econômicos. Acreditava-se que centrar ali as mudanças bastava para tirar Portugal do limbo em que se encontrava, e para fornecer aos homens a certeza de que a prosperidade não havia ficado para trás e, pelo contrário, poderia ser revivida. Assim, se o Estado era o principal agente das mudanças que visavam um futuro mais próspero, o pertencimento a ele era reforçado, na medida em que aos súditos agradava a idéia de pertencer a uma nação cujos dirigentes estavam preocupados com a sua felicidade. No final do século XVIII e início do XIX, o nacionalismo era um princípio fortemente ancorado nas idéias de liberdade, racionalidade, cientificidade e modernidade; só um século depois é que ele assumiu feições conservadoras.38 * A polaridade universal-nacional, essencial à compreensão da filosofia iluminista, permite entender como esta corrente de pensamento, a qual tem sido analisada principalmente pelo seu viés cosmopolita, pôde levar os homens da época a refletirem sobre as identidades nacionais que portavam. E fazendo isso, estão lançadas as bases de um arsenal teórico satisfatório para analisar as idéias políticas defendidas tanto pelo Estado português quanto pela elite das Minas, a qual não ficou isenta da influência da Ilustração. Esta nova visão do mundo, imanente, mundana e racional, conforme a caracterização de 38 Enciclopédia Einaudi, volume 14 ( Estado-Guerra), verbete "nação", Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1989, p.277. Falcon, orientou uma série de reflexões que atingiram diversos níveis da realidade. Não cabe discorrer aqui sobre todas elas, pois isto daria um estudo à parte. No entanto, é necessário aprofundar um pouco mais detalhadamente as inovações introduzidas por esta filosofia no que concerne aos conceitos políticos, entre os quais cabe destacar soberania, nação e identidade. Antes de apontar para estas mudanças é importante deixar claro que as teorizações políticas do Iluminismo não romperam integralmente com as concepções políticas tradicionais. A própria ênfase dada ao pacto entre governantes e governados é um exemplo desta continuidade, já que a teoria do pactum subiectionis serviu também aos teóricos de outros tempos para estabelecer a legitimidade e os limites dos governos. Por outro lado, a depender de como o pacto foi interpretado, se unilateral ou bilateralmente, o conceito serviu tanto aos teóricos do absolutismo para legitimar o poder do monarca, como para aqueles que defendiam o direito de rebelião dos súditos. Desta forma, o conceito não determinava a priori concepções políticas específicas; ele em si não é comprometedor. Portanto, dizer que os iluministas se utilizaram de um conceito tradicional, em nada surpreende, já que é a sua interpretação que aponta para a novidade. Não se trata, aqui, de recompor as idéias dos principais teóricos sobre esta questão, apenas demarcar a linha evolutiva destas interpretações para a melhor compreensão da inovação que os iluministas operaram. Em linhas gerais, a noção do pacto político, até o século XVIII, resumia-se à idéia de que os homens, possuindo uma tendência natural para se agruparem, delegaram a uma só instância ( um monarca ou um grupo) o poder de os governarem, abdicando desta forma dos poderes individuais. A formação da sociedade, para os teóricos dos séculos XVI e XVII, não se constituía numa etapa distinta da constituição da política. Para os pensadores da Península Ibérica, predominantemente cristãos, este pacto entre os homens obedecia a uma vontade divina; o acordo entre monarcas e súditos tinha Deus por autor. A origem das organizações políticas não era um fato propriamente humano, era uma conseqüência da queda dos homens determinada pela Providência, porque, conforme já vimos, cabia a ela orientar o destino dos homens desde os tempos mais remotos. Percebe-se que a origem das monarquias ibéricas, tal como vinha sendo explicada até meados do século XVIII, o elemento volitivo humano em muito pouco predominava e os limites do poder político não eram determinados pelo pacto em si, mas sobretudo por uma força superior. Não eram às leis terrenas, que o Rei devia obedecer. As leis divinas ditavam mais alto, e o monarca devia seguí-las de acordo com sua consciência. Neste sentido, havia de ser virtuoso, cumprindo as obrigações que a ele cabia como cristão e, mais do que isto, como Deus na própria terra. As monarquias legitimavam-se no século XVI na "catolicidade dos reinos"39, e o Rei, chefe supremo, tinha como missão expandir o catolicismo pela terra, o que legitimava, por exemplo, suas conquistas no ultramar. Suas atribuições eram, portanto, espirituais. Não surpreende que a obra de Maquiavel tenha causado tanto impacto. Pela primeira vez, as teorias políticas foram pensadas desvinculadas das teológicas, estado de coisa inadmissível para os teóricos das nações ibéricas, embora estes estivessem conscientes de que a moral cristã limitava o poder temporal do Rei. Ser português no século XVI, por exemplo, era ser súdito do Rei de Portugal, e se o monarca legitimava seu poder segundo pressupostos espirituais, ser português era também, e principalmente, ser cristão. O bom vassalo não era somente aquele que obedecia ao monarca, mas aquele que, acima de tudo, obedecia a Deus. "'Portugueses' e 'católicos' torna(va)m-se, assim, identidades inseparáveis. Mas, como os meios de produção da identidade católica eram muito mais eficazes e abrangentes do que os mecanismos de produção de uma identidade gentilícia ( nationalis) ou reinícola, o que se passava era, de facto, a catolicidade minava continuamente estas últimas"40. A própria condição de cristão fazia com que os portugueses se sentissem superiores, como os eleitos de Deus num projeto de irradiação do catolicismo e, ao mesmo tempo, de combate aos infiéis. Acreditava-se que a nação fora, desde sempre, favorecida com dons de Deus e "distinguida por sinais inequívocos de eleição"41, como, por exemplo, pelo fato de ali terem aportado os primeiros santos, os primeiros apóstolos. Assim, no topo da identidade nacional estava o pertencimento a uma respublica christiana e, de certa forma, "o primado desta catolicidade" sobre a identidade nacional limitava o reconhecimento dos elementos de organização desta identidade porque nem todos os católicos eram súditos do Rei de Portugal, e nem todos que viviam ali podiam se sentir portugueses, pois não eram 39 HESPANHA, António & Silva, Ana Cristina Nogueira da- Op.cit, p.20. 40 Idem, p.21. 41 Idem, ibidem. católicos. O que se nota nas teorias políticas sobre a origem da constituição do Estado português, é que se há um reconhecimento da unidade política, ela é menos perceptível do que o da unidade supranacional cristã. Assim, a identidade nacional era informada por elementos políticos próprios da realidade portuguesa, mas concomitantemente era organizada por critérios sobrenaturais que, por serem comuns também a outras nações cristãs, acabavam por reduzir a potencialidade definidora desta identidade política. No século XVII, com as guerras religiosas, vemos um esfacelamento desta unidade mais ampla e, como conseqüência, a diminuição do poder representado pelo Cristianismo. Assim, os teóricos políticos delegaram ao monarca atribuições muito mais modestas, ao menos no que concerne à territorialidade de seu poder. O soberano deixoude ser visto como um instrumento da expansão da religião cristã pelo vasto globo, seus deveres tornaram-se mais humanos, suas obrigações limitavam-se agora em preservar a ordem e a catolicidade dentro de seu Reino42. No que se refere às teorizações sobre o pacto político, havia um certo desinteresse pelas especulações teóricas legitimadoras do poder do monarca. A responsabilidade a ele atribuída resumia-se à conservação da ordem, e isto bastava para justificar a sua soberania política. No entanto, a sacralidade do pacto continuava a ser reconhecida, continuava a ser considerada irrevogável, portanto, a idéia de que a identidade portuguesa remetia ao pertencimento a uma entidade supranacional continuava a vigorar. De qualquer forma, esta missão imposta à instância máxima do poder, tão fundamental em tempos de distúrbios das consciências, acabava por ligar a comunidade dos súditos ao corpo do monarca, e não tanto à Igreja. No entanto, o pertencimento à Igreja católica continuava a ser um vínculo identificador dos portugueses porque a divindade do Rei ainda era reconhecida.43 Desta forma, no Seiscentos, as teorizações políticas não eram mais importantes do que a realidade empírica na legitimação do poder do monarca, cuja mera necessidade de impor a ordem, o justificava. De qualquer forma, destas especulações se depreende uma tendência à dessacralização e à nacionalização de seu poder, as quais, em última instância, vinham contribuir para a centralização política dentro dos limites nacionais. Visto a 42 Para Koselleck, a guerra civil religiosa foi o ponto de partida do Absolutismo clássico. KOSELLECK, Reinhart- Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro, EDUERJ/ Contraponto, 1999, p.19. 43 Enciclopédia Einaudi, Op.cit, p.282. urgência em se solucionar as guerras religiosas que se alastravam pela Europa, a política distanciou-se da moral, tornou-se inclusive mais importante do que ela. A doutrina da "razão do Estado" foi a mais clara evidência disto. “A exclusão da ‘moral’ na política não se opunha à moral secular, mas à moral religiosa com pretensão política”, conforme Koselleck44. O pacto, por sua vez, continuava a ser interpretado pelos tratadistas do século XVII unilateralmente, servindo somente para especificar as responsabilidades do soberano e não para afirmar os direitos dos súditos. As interpretações deste acordo político só levaram em conta os desejos dos vassalos quando a nação passou a residir na comunidade composta pelos cidadãos; idéia introduzida pelos iluministas. No século XVII o patriotismo ainda era uma planta estrangeira nas monarquias, segundo palavras de D´Aguesseau, escritas em 171545. Mas se os iluministas reviram a noção do pacto, foram os teóricos do século XVII os primeiros a anunciar a tendência à secularização política, ainda que com grandes ressalvas, já que se o Rei era o principal responsável pelo futuro de sua nação, ele ainda era visto como uma figura divina. Também os iluministas foram buscar na idéia de pacto o entendimento da constituição e da atribuição do poder político. À diferença dos teóricos anteriores, distinguiram este estágio da formação da sociedade, pois para eles estes dois momentos eram distintos. Segundo suas interpretações, os homens têm uma tendência natural a se agruparem, o que não quer dizer que, ao se reunirem em sociedade, constituíssem automaticamente o poder político. São os próprios homens, que num estágio posterior, estabeleceram, por livre e espontânea vontade, um acordo entre eles e um governante eleito não mais por desejo divino. Assim, se a sociedade antecede o poder político, e se este é o resultado de um acordo feito entre os homens, cabe a eles primar pela vigência das normas estabelecidas no pacto, que continuava a ser entendido como natural, mas cuja natureza diferia daquela dos teóricos dos séculos anteriores. O pacto era natural porque é próprio da natureza humana se reunir em grupos e estabelecer um acordo entre governados e governantes. É na esteira do pensamento de São Tomás de Aquino que os ilustrados 44 KOSELLECK, Reinhart- Op.cit., p.25. Ver seu primeiro capítulo, no qual esclarece esta tendência afirmada acima. No que diz respeito à centralização política esclarece o autor: "O postulado de que o monarca detém o monopólio do restabelecimento da paz impõe ao soberano uma responsabilidade absoluta. Na época, ela expressou de forma cristalina na afirmação da responsabilidade exclusiva perante Deus". p.22. 45 FEBVRE, Lucien-Op.cit, p.160. atribuíram naturalidade ao pacto46. Assim, se o pacto foi desacralizado, as atribuições do governante deviam estar voltadas para os homens. Não eram as leis divinas que deviam orientar suas atitudes, o que cabia ao monarca respeitar eram as leis civil e profana47. Estas deveriam traduzir a vontade da nação, assim como respeitar as leis da natureza, pois estas eram a única garantia com a qual os homens contavam para alcançar a felicidade48. Conforme Hazard, no século XVIII, "a felicidade torna-se um direito"49. Num período em que os conflitos religiosos cessaram, não era esperado dos governantes apenas a manutenção da ordem: os homens podiam exigir deles atitudes mais positivas. Ao entender o pacto de sujeição como um acordo bilateral, os iluministas puderam determinar o poder político, mas fazendo-o também asseguravam o direito dos homens. Segundo suas concepções, caso o monarca não respeitasse as regras do pacto, caberia aos súditos destituí-lo do poder e eleger um novo que o fizesse. O que ligava os súditos ao Rei não era mais a fidelidade tradicional, e sim a solidariedade de todos numa empresa comum50. A partir de então, a noção de soberania foi reavaliada, deixou de residir no corpo místico do Rei para encontrar-se plenamente no corpo da nação, formada pelos súditos, ou melhor cidadãos, já que aquele termo foi substituído por esse. Segundo Febvre, no século XVIII o real pode ser substituído pelo nacional51. 46 Sobre São Tomás de Aquino escreve Chatelêt: "Rompendo com a perspectiva segundo a qual a Cidade dos homens é diretamente de instituição divina e ligada ao pecado original, Tomás estabelece que ela é - na ordem da Criação- um fato natural. Se Deus quer que os homens vivam em sociedade, disso resulta que o poder, cujo objetivo é assegurar a unidade de uma multiplicidade, é uma questão humana que faz parte do plano geral da Providência e não de um desígno singular de Deus ou de seu representante. Desse modo, a definição do bom poder é uma tarefa exclusivamente da razão"(grifos do autor) CHATELÊT, François et alli- História das idéias políticas. Rio de Janeiro, Zahar, 1985, p. 32. Apud. FURTADO, Joacir Pereira- Uma República de Leitores-História e memória na recepção das Cartas Chilenas ( 1845-1989). São Paulo, Editora Hucitec, 1997, p.81. 47 Luciano Guerci, em sua análise do Contrato social de Rousseau, detém-se na predominância das leis como instrumento que legitima a sujeição dos homens. Para o historiador italiano, muitos estudiosos acreditam erroneamente que este pensador foi o pai espiritual dos regimes totalitários, sem considerar que, para Rousseau, se as leis determinam a associação entre os homens é com a finalidade de os defender e proteger, respeitando a sua liberdade e seus interesses comuns. GUERCI, Luciano- Op.cit, p. 425. 48 "Nada debe ser tan querido por los hombres como las leyes destinadas a hacerlos buenos, sabios y felices. Las leyes serán tanto más preciosas para el pueblo si las contempla como una barrera contra el despotismo, y como salvaguardade una justa libertad.". DIDEROT, Denis & D´ALEMBERT, Jean Le Rond- Artículos políticos de la "Enciclopédia". Verbete "ley". Selección, traducción y estudio preliminar de Ramón Soriano y Antonio Porras. Madrid, 1992, p.109. (1ºedição 1751-1765). 49 HAZARD,Paul-O pensamento...-Op.cit., p. 32. 50 DONGHI, Tulio H.- Op.cit., p.88. 51 FEBVRE, Lucien- Op.cit., pp.165-6. Desta forma, o que acabou também por sofrer modificações foi o conceito de identidade nacional. Este deixou de expressar unicamente o pertencimento político a um Estado e passou a traduzir também a comunhão entre os homens que compartilhavam dos mesmos sentimentos, seja em relação a um passado comum ou a um porvir ideal. A identidade política tornou-se então uma opção, daí os homens no século XVIII poderem se sentir pertencentes a muitas nações, se auto-intitulando cosmopolitas, ou mesmo desterrar- se de sua nação quando nela não encontravam a vigência das leis naturais e o respeito à sua condição humana. Por outro lado, ainda que o pertencimento político à nação pudesse ser questionado, não havia como negar que todos os indivíduos portavam características diferenciadoras determinadas pelo local onde haviam nascido. Ou seja, se os sentimentos políticos não traduziam uma imposição, tampouco era fácil livrar-se das características que inevitavelmente haviam de carregar por um dia terem pertencido a uma dada nação, por mais que procurassem negar este fato. Só para dar um exemplo, ainda que um indivíduo quisesse pertencer ao mundo, a língua utilizada para expressar este sentimento, na maior parte das vezes, continuava a ser aquela que era comumente falada em sua terra natal. Estas mudanças do século XVIII em relação ao pacto e à identidade nacional não foram totalmente assimiladas no Império português, embora a introdução das idéias ilustradas resultou num debate teórico em torno da identidade que merece ser esclarecido. Em Portugal havia duas concepções tradicionais de se pensar a questão: uma naturalista e outra política. A primeira dava continuidade às teorias segundo as quais a identidade portuguesa era entendida como um dado natural, determinada por um desejo da Providência, assim como era a índole de cada povo. Tal identidade antecedia à identidade política, no sentido de que antes de Portugal se constituir em comunidade politicamente ordenada, existia um Portugal natural definido pelo seu clima, pela qualidade de seus ares e de suas águas, com a identidade portuguesa sendo transmitida pelo sangue. A terra portuguesa tinha características próprias, sempre valorizadas pela sua excelência, a definir seus habitantes. "O acto fundador do reino, no século XII, não pode, neste contexto, ser senão desvalorizado, como um detalhe que apenas sublinhava politicamente uma realidade 'nacional' existente desde sempre"52. Ao lado desta concepção reinava outra estritamente política, a qual atribuía a origem de Portugal justamente ao ato fundador de D. Afonso. 52 HESPANHA- António Manuel & SILVA, Ana Cristina Nogueira da- Op.cit p.29. Tratava-se, então, de buscar uma genealogia dos portugueses, encontrada então na antigüidade da Casa Real. No século XVIII, segundo Hespanha e Silva, com a entrada das idéias iluministas, o que se verificou foi um embate entre os adeptos destas duas teorias, as quais, no caso português, eram representadas respectivamente pelos "casticistas" e os "estrangeirados". Estes últimos, adeptos do Iluminismo, "também cria[ra]m numa especifidade portuguesa. Mas nem a sua antropologia universalista a concebia como natural e necessária, nem o seu paradigma da organização social e política a julgava desejável, nos termos em que ela se apresentava"53. Foram eles, portanto, responsáveis pela introdução de novos paradigmas no que concerne à questão da identidade portuguesa, embora seus esforços não foram capazes de modificar a hegemonia das antigas concepções. O que vale dizer que, apesar de Portugal ter aberto suas fronteiras e procurado se europeizar, admitindo portanto a introdução de algumas das novas idéias, no que se refere às idéias políticas, basicamente a de soberania e de identidade, Portugal não renunciou ao seu legado teórico tradicional. Ainda no final do século XVIII os portugueses eram aqueles que deviam fidelidade a um soberano cujo poder divino estava isento de questionamentos. Tal concepção era aceita em todas as partes do Império português, tal como se pode desprender, por exemplo, da frase de Francisco Antônio de Oliveira Lopes, natural das Minas, que no interrogatório a que fora submetido, registrado nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, acreditava que havia sido preso por ter tido conhecimento de que havia naquela Capitania "sujeitos temerários e esquecidos dos seus mais religiosos deveres que se atreve[ia]m a conspirar contra o legítimo domínio da Rainha Nossa Senhora desta Conquista"54. * No que concerne às discussões em torno das identidades políticas, se os teóricos portugueses não incorporaram as inovações introduzidas pela Ilustração, em outros níveis estas foram fundamentais para que pudessem conceber um projeto de reformas que desejaram realizar. Na verdade, o simples fato de reconhecerem o estado decadente da nação portuguesa, já indica o quanto aceitaram a concepção iluminista de que não era possível atribuir aos males de um povo a causas naturais. Também os ilustrados portugueses entenderam que estes eram históricos, podendo desta forma serem corrigidos 53 Idem, pp.19-20. 54 ADIM- Op.cit, Volume II, p.42. pois, se assim não fosse, não iriam se dedicar a esta tarefa, pois ninguém pode acreditar que do combate com os deuses possa-se sair vitorioso. No entanto, estes tratadistas acreditavam que a perda do peso político de Portugal no cenário europeu devia-se ao pouco sucesso alcançado na esfera econômica, razão para que a reforma tenha se concentrado nesse nível. Reformar a nação portuguesa era sobretudo desenvolver as atividades produtivas que haviam de ser modernizadas para que Portugal pudesse competir com as nações mais avançadas. Assim não foi uma reforma que propiciou o entendimento das especificidades políticas da nação portuguesa, já que o atraso não era pensado nestes termos. Esta noção da decadência já estava presente nos tratadistas do mercantilismo português do século XVII, entre os quais podemos citar Duarte Ribeiro de Macedo55. Também os teóricos naturalistas reconheciam o atraso de Portugal, atribuindo a sua causa a um mau governo que não soube respeitar as leis naturais desta nação. Portanto, não se trata de uma percepção da realidade própria do Setecentos, mas foi neste século que ela intensificou-se, principalmente porque esta "peculiaridade" negativa passou a ser anunciada no exterior. As características negativas da nação portuguesa serviam aos estrangeiros para desprestigiá-la, o que feria a susceptibilidade dos portugueses, que acreditaram que ilustrar sua pátria era uma das maneiras de reverter esta imagem. Desta forma, o desejo de modernizar o Reino significou um reforço do sentimento de pertencimento à nação portuguesa, no sentido de que refletia o amor dos portugueses pela sua pátria. A percepção do atraso, segundo preceitos ilustrados, culminou na afirmação da potencialidade de Portugal. Foram os estrangeirados, portugueses que conheciam o estado das coisas nas nações mais adiantadas, os grandes responsáveis por alimentar em sua pátria esta visão mais positiva das coisas. Reconheciam o atraso mas alimentavam a esperança de que Portugal poderia superá-lo, daí seus diagnósticos terem ganho
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