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1 O IMPACTO DA VIOLÊNCIA NO RIO DE JANEIRO Ignacio Cano João Trajano Sento-Sé Eduardo Ribeiro Fernanda Fernandes de Souza LABORATÓRIO DE ANÁLISE DA VIOLÊNCIA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) 2004 2 1. Introdução. A imagem do Rio de Janeiro está indissoluvelmente ligada à contradição entre a beleza natural e o caos humano, entre a sensualidade do samba e do carnaval e o horror das imagens de chacinas de meninos de rua, de cadáveres transportados em carrinhos, de comércios fechados pelo medo. Como referência cultural e turística do Brasil, tudo o que no Rio acontece possui uma grande repercussão e afeta a imagem do país inteiro. Todavia, para além do seu efeito simbólico, a trajetória do Rio de Janeiro em relação à violência antecede e representa o destino das metrópoles brasileiras em geral. A despeito da sua grande visibilidade, a intensidade da violência no Rio não é a maior do país. O III Mapa da Violência publicado pela UNESCO, com dados do ano 2000, situa a taxa de homicídios do estado do Rio de Janeiro como a segunda do Brasil, após Pernambuco. Já entre as capitais, o Rio ocupa o quinto lugar, atrás de Recife, Vitória, Cuiabá e São Paulo. No entanto, a violência do Rio, sem ser necessariamente a mais intensa, é a mais visível e a que tem marcado o caminho percorrido por outras metrópoles nas últimas décadas. O Rio de Janeiro é, por assim dizer, uma espécie de expressão metonímica da situação nacional. Obviamente, o Rio não está em guerra. Contudo, vários dos sintomas do quadro atual são assustadoramente parecidos com um contexto bélico. A incidência da violência letal, o uso de armamento pesado, as conseqüências trágicas sofridas pelas populações civis nada devem a regiões que efetiva e reconhecidamente encontram-se nessa situação. Para além dos fatos, há uma percepção difusa mas consistentemente difundida no corpo social de que estamos em meio a uma guerra. A guerra não é apenas uma metáfora de efeito dramático ou um recurso explicativo; é também um modelo que pauta a percepção e a reação de cidadãos e gestores públicos. No caso brasileiro, em geral, e do Rio de Janeiro, em particular, esse modelo bélico tem provocado, por vezes, conseqüências desastrosas, como a acentuação da militarização da segurança pública e a tolerância em relação ao abuso dos direitos humanos. Como também se verá adiante, as conseqüências dessa situação vão além das vidas perdidas, comprometendo a vida de comunidades inteiras, impondo o deslocamento forçado de famílias e atingindo um custo social e econômico de tal magnitude que poderia ser 3 definido como uma verdadeira catástrofe humanitária, não por corriqueira menos dramática. Todavia, a violência e a forma como ela se manifesta entre nós apresenta sérios efeitos de tipo político, comprometendo o associativismo, a sociabilidade e a cidadania. Não é exagero dizer que a violência e a criminalidade representam, hoje, um dos maiores desafios impostos à consolidação da democracia e do Estado de Direito no Brasil. 2. Objetivos. O objetivo principal do presente estudo é realizar um breve diagnóstico da violência na cidade e no estado do Rio de Janeiro nos últimos anos, focalizado nos seguintes pontos: a) a incidência; b) o perfil das vítimas; c) o modo em que acontece; d) o impacto individual e social; e) as violações aos direitos individuais acontecidas como conseqüência da violência e das tentativas do estado para reprimi-la; Nesse sentido, a análise do impacto é o nó central do trabalho, considerando-o a partir de vários ângulos possíveis, desde as vidas perdidas ao custo econômico, passando pela alteração da vida comunitária. De forma complementar, o estudo pretende explorar qual é a percepção dos atores sociais sobre o fenômeno, com o objetivo de conhecer como eles compreendem a violência, como ela afeta suas vidas e que estratégias de adaptação ou de resolução existem. Para tanto, decidimos realizar um estudo de caso sobre a favela da Rocinha, uma das comunidades carentes de maior tamanho e de mais tradição na cidade, que durante a semana santa desse ano saltou para os telejornais como palco de mais uma “guerra” entre facções criminosas que paralisou a cidade e impressionou o mundo. Entre os atores sociais, nos concentramos nos jovens por serem eles o grupo mais vulnerável. 4 3. Fontes. A análise do impacto da violência é realizada fundamentalmente através de fontes secundárias e da revisão das numerosas pesquisas que, até o dia de hoje, foram desenvolvidas sobre o tema. Embora ainda limitada, a bibliografia existente sobre a violência no Rio é, junto com a de São Paulo e de Belo Horizonte, uma das mais férteis do país, tanto quanto a análises como quanto a propostas de políticas públicas. A incidência de fatos violentos é mensurada utilizando dados de duas fontes: a) Registros de Ocorrência da Polícia Civil, relativos a crimes cometidos no território; b) Certidões de Óbito processadas pelo Ministério da Saúde (Sistema de Informação de Mortalidade), que constituem o dado mais confiável para a estimativa dos homicídios. Por sua vez, o estudo da percepção dos atores sociais mais relevantes foi realizado por meio de dois grupos focais celebrados com jovens moradores da comunidade da Rocinha. De forma complementar, tanto para estudar o impacto e a incidência da violência quanto para aprofundar no caso da Rocinha, foram usadas informações veiculadas na imprensa. Concretamente, foi realizada uma busca automática de matérias referidas à violência nos jornais “O Globo” e “O Dia”, os de maior circulação no estado. A busca incluiu os anos de 2001 até 2004. 4. Histórico Recente: o surgimento da questão. Até o final dos anos 70 e o início da década seguinte, a violência não era percebida como uma questão central no debate político. Temas como educação, serviços de saúde e desemprego concentravam as preocupações da população e apareciam como as áreas prioritárias da agenda pública. Isso não quer dizer que as grandes cidades brasileiras fossem pacíficas ou que a violência fosse residual. Tomando o caso do Rio de Janeiro, por exemplo, os municípios que compunham a periferia de sua região metropolitana, a Baixada Fluminense, gozavam da péssima reputação de estarem entre as áreas mais violentas da América Latina. Os homicídios perpetrados por grupos de 5 extermínio, muitas vezes sob suspeita de serem compostos por policiais, eram recorrentes e serviam de material jornalístico. Além dos grupos paraestatais, as próprias forças policiais regulares funcionavam, então, com largo uso da força, dispensando tratamento brutal às populações das periferias e aos moradores das favelas. De fato, as forças policiais tinham sido criadas no Brasil do século XIX com o objetivo de manter sob controle, através da violência, os grupos excluídos na ordem urbana pós-colonial, começando pelos escravos e continuando com os libertos1. Esse período dos anos setenta ainda é lembrado e mencionado por alguns analistas que se reportam ao tempo em que gradativamente a violência e a criminalidade foram incorporadas aos debates públicos e se tornaram objeto de atenção2. Embora não haja dados oficiais muito confiáveis ou suficientemente desagregados para que se proceda a uma análise mais acurada, é comum considerar que já nesse período o crime e a violência tinham proporções bastante expressivas, mas não ocupavam o centro das atenções por se concentrar nas periferias e atingir preferencialmente as camadas pobres. Um outro fator que provavelmente retardou o debate público sobre a violênciafoi de ordem política. Durante boa parte do governo militar os órgãos de comunicação foram duramente censurados. Quando, a partir do fim dos anos de 1970, o regime vai pouco a pouco se distendendo, a violência praticada pelo Estado contra os grupos de esquerda ocupa a maior parte das atenções. Começa-se pouco a pouco a ter consciência de que aquele mesmo Estado que torturara, matara e violara os jovens militantes de esquerda já pautava dessa forma sua ação sobre outros setores da população. A preocupação com a violência, de forma geral, começa a aparecer como ponto relevante da agenda. Um terceiro aspecto deve ser mencionado. Salvo alguns casos de quadrilhas, o chamado mundo do crime aparentemente dispunha de poucos recursos tecnológicos, baixa capacidade organizacional e armas com limitado poder de destruição. É ao longo da metade dos anos de 1980 que esse cenário vai mudar. Embora prejudicada pela ausência de dados confiáveis, a literatura especializada costuma atribuir ao crescimento 1 Sobre a história da polícia no Rio de Janeiro, ver Bretas (1997) e Holloway (1997) 2 Essa tese é defendida sobretudo por alguns ensaios produzidos nos primórdios das análises sociológicas da violência no Brasil. Pode-se tomar Oliven (1981) como exemplo. 6 do comércio de drogas, sobretudo mediante o aumento do fluxo de cocaína, uma radical alteração nos padrões organizacionais de grupos dedicados a atividades criminosas. Uma das mudanças mais importantes seria o rápido processo de aquisição de armamento pesado. Tornado um negócio capaz de movimentar somas vultosas, o tráfico de drogas suscitou a disputa de grupos pelos pontos de venda varejista da droga, em sua maioria localizados nas favelas3. Essa tendência teria dinamizado um outro comércio ilegal, o de armas, que pouco a pouco foram despejadas num mercado em expansão. Assim, a organização de grupos fortemente armados voltados para o comércio ilegal de drogas e o conseqüente crescimento do comércio ilegal de armas alteram significativamente as dinâmicas da violência no Rio de Janeiro. Simultaneamente crescem o interesse e a percepção de que a violência é um fenômeno bem mais próximo do que jamais parecera antes. Se antes estivera isolado nos rincões da metrópole, nas suas periferias miseráveis e degradadas, a violência passa a se incorporar lentamente ao cotidiano das camadas médias. Ao menos é assim que boa parte da sociedade fluminense, em geral, e carioca, em particular, começa a lidar com o problema. A cultura do medo daí construída se torna ela própria mais uma variável que incide sobre as dinâmicas que a originam4. As percepções de insegurança são hoje parte de um sentimento que atravessa virtualmente toda a sociedade carioca, independentemente de extrato social, corte de gênero ou idade. Poder-se-ia dizer que boa parte da população convive com a sensação de que a violência teria se “democratizado”, atingindo a todos por igual, mesmo que os dados não justifiquem essa visão. Para analisar a realidade objetiva que está por trás dessas mudanças na percepção, o gráfico seguinte mostra as taxas de homicídio para cada município da Região Metropolitana do Rio de Janeiro nos últimos três anos censitários: 1980, 1991 e 2000. Esses homicídios são estimados a partir das certidões de óbito do Ministério da Saúde. O principal problema desses registros é a existência de uma categoria de mortes por causa externa de intenção desconhecida, que podem corresponder a homicídios, suicídios ou acidentes. Em função disso, foram desenvolvidas metodologias para estimar o total de 3 O impacto do aumento da comercialização das drogas sobre a violência é, hoje, um consenso entre analistas, sobretudo em se tratando co caso específico do Rio de Janeiro. A título de exemplo, essa conexão é explorada, entre outros, por Zaluar (1994), Soares (2000), Dowdney (2003). 7 homicídios considerando uma parte dessas mortes de intenção desconhecida (ver Cano & Santos, 2001). As estimativas usadas nesse estudo estão baseadas nesses procedimentos. TABELA 15 Taxa estimada de homicídio por 100 mil hab. na Região Metropolitana do Rio de Janeiro Município 1980 1991 2000 DUQUE DE CAXIAS 53,91 82,72 65,69 ITABORAI 27,12 80,71 80,33 ITAGUAI 33,71 72,94 53,24 MAGE 37,66 84,55 39,77 MANGARATIBA 8,87 46,88 48,89 MARICA 13,94 85,58 42,62 NILOPOLIS 38,04 83,13 81,47 NITEROI 28,69 64,95 57,09 NOVA IGUACU 39,86 80,36 72,49 PARACAMBI 22,04 34,44 13,43 RIO DE JANEIRO 38,88 67,34 59,87 SAO GONCALO 26,98 72,18 62,43 SAO JOAO DE MERITI 40,83 84,98 66,38 Os dados revelam com clareza o espetacular crescimento da violência letal em todos os municípios da Região Metropolitana durante a década dos 80. Em 1980 a maioria dos municípios apresenta taxas entre 25 e 40 por 100.000 habitantes. Em 1991, 8 municípios têm uma taxa de mais de 80, e apenas um fica abaixo de 40. Por sua vez, entre 1991 e 2000, a maior parte dos municípios experimenta uma leve diminuição, mas não volta para o patamar de 20 anos atrás. As taxas médias entre os 13 municípios são as seguintes: em 1980: 31,6 por 100.000 hab.; em 1991: 72 por 100.000; e em 2000: 57 por 100.000. A cidade do Rio de Janeiro segue esta mesma tendência, com uma taxa final de 60 por 100.000 hab. no ano 2000. Esses dados confirmam as análises que descrevem um agravamento da segurança na cidade durante os anos de 1980. Se os homicídios diminuem relativamente no ano 2000 em comparação a dez anos atrás, o mesmo não pode ser dito de outros crimes. O número de furtos e roubos registrados pela Polícia Civil continua crescendo durante os anos de 1990. O crescimento é 4 Sobre o conceito de cultura do medo, ver Soares (1996) 5 Fonte: Certidões de Òbito do Ministério da Saúde: Sistema de Informações sobre Mortalidade. Elaboração própria. 8 particularmente alarmante no caso dos roubos, que é um dos crimes violentos que mais insegurança provoca. A taxa de roubos no estado no ano 2003 (779 roubos por 100.000 hab.) é mais do dobro do valor dessa mesma taxa em 1995 (370 por 100.000 hab.). As lesões dolosas também crescem de forma significativa a partir de meados dos anos de 1990. GRÁFICO 16 Evolução das ocorrências no Estado : Lesão Corporal, Roubo e Furto - 1991 a 2003 0 200 400 600 800 1000 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 Ta xa s po r 10 0 m il ha b. Lesão Corporal dolosa Roubos (total) Furtos (total) Outros dados relevantes para analisar a evolução da violência são os relativos a armas de fogo. As armas de fogo apreendidas pela Polícia no estado do Rio aumentaram intensamente desde os anos de 1960 até o momento atual (ver Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2002). No entanto, os registros de armas acauteladas pela Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos da Polícia Civil (DEFAE) mostram um crescimento maior durante os anos de 1970, um aumento mais moderado na década seguinte e uma nova retomada do crescimento nos anos de 1990. Um total de 224.584 armas foram acauteladas pela Polícia Civil no estado do Rio no período compreendido entre 1959 e 2001. Embora a hipótese da confluência entre tráfico de drogas e armas durante os anos de 1980 implicasse, ao menos em tese, um maior aumento justamente durante esta década, não é possível interpretar esses dados de forma linear. Isto porque o aumento do número de armas acauteladas não depende exclusivamente do númerode armas em circulação, mas também da própria atividade policial. Por exemplo, a partir da nova Lei de Armas de 1997, a atividade policial aumentou e o número de armas apreendidas teve uma forte tendência de 6 Fonte: Registros de Ocorrência da Polícia Civil. Elaboração própria. 9 crescimento. Em conseqüência, no final dos anos de 1990 a polícia acautelava no estado algo em torno de 10.000 armas por ano. GRÁFICO 27 ARMAS ACAUTELADAS NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO POR ANO (1950-2001) 0 1000 2000 3000 4000 5000 6000 7000 8000 9000 10000 11000 1945 1950 1955 1960 1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 Ano de entrado no acautelamento N úm e ro de a rm a s Contrariamente ao imaginário popular, a grande maioria das armas apreendidas pela polícia são armas curtas, como revólveres e pistolas, e não armas longas de grande poder de fogo. Todavia, a imensa maioria dessas armas é de fabricação brasileira e não vem do exterior. A imagem onipresente do armamento pesado em mãos dos traficantes de drogas — fuzis e metralhadoras de fabricação estrangeira— tende a obscurecer uma realidade muito mais ampla. Dados relativos às armas acauteladas no período de 1999 até o primeiro semestre de 2003 revelam que mais de 85% dessas armas está composto por revólveres e pistolas (ver Governo do Rio de Janeiro, 2003). Contudo, há de se registrar, também nesse período, a presença de armas de guerra, como fuzis (200) e submetralhadoras (107). O número efetivamente apreendido poderia ser maior, mas o alto valor dessas armas poderia 7 Tomado de Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2002. 10 incentivar os policiais a não entregá-las para o acautelamento. De qualquer forma, o número de fuzis acautelados por ano aumentou de 21 em 1999 para 54 em 2002. TABELA 28 Armas Acauteladas pela Polícia Civil no estado do Rio de Janeiro Outro dado que chama a atenção é o número de granadas apreendidas. Apenas no período entre janeiro e outubro de 2002, foram apreendidas pela polícia um total de 291 granadas. Esse papel crescente das armas no estado responde não apenas ao tráfico de armas entre grupos criminosos, mas, também, a uma maior difusão das armas entre a população civil, o que indica uma tendência à banalização do uso de arma de fogo por parte de um contingente cada vez maior da população. Diversas pesquisas mostram que quanto mais armada uma sociedade, maior serão as chances de ela se ver obrigada a conviver com índices altos de violência. Isto acontece por várias vias. Em primeiro lugar, porque o cidadão que se arma para se defender está se colocando, na verdade, numa situação de maior risco, particularmente se tenta reagir a um assaltante armado (ver IBCCRIM, 2000). Em segundo lugar, porque pequenos conflitos do cotidiano, que teriam acabado num Juizado de Pequenas Causas, podem ter um resultado fatal se os protagonistas estiverem armados. E, em terceiro lugar, porque há um fluxo considerável entre as armas legais e 11 ilegais, visto que armas que são compradas para proteção pessoal acabam sendo furtadas, roubadas ou vendidas, e vão a parar nas mãos de terceiros não autorizados. Dados do Rio de Janeiro mostram que mais de 20% das armas apreendidas pela polícia fluminense em razão de crimes foram vendidas legalmente no próprio estado a cidadãos ou empresas que nada tinham a ver com o ramo da segurança (ver Cano, 2001). Quando o fácil acesso a armas de fogo se combina com um quadro de depreciação da confiança nos agentes do Estado e nas instâncias mediadoras de conflito, o resultado pode ser desastroso. Ao que tudo indica, esse tem sido o quadro gradativamente delineado no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras. 5. A Violência Letal. Está fora de dúvida que a violência letal constitui a manifestação mais dramática da insegurança vivida pela população do Rio. Como já observamos, os níveis de violência letal no estado são bastante elevados. Segundo os últimos dados disponíveis, baseados nas certidões de óbito processadas pelo Ministério da Saúde e na aplicação das técnicas de estimativa anteriormente mencionadas, o estado do Rio de Janeiro contabilizaria no ano de 2001 um total de 7.985 vítimas de homicídio, que equivaleriam a uma taxa de homicídio de 54,5 por 100.000 habitantes9. Essa seria a segunda maior taxa de homicídios do Brasil, atrás somente de Pernambuco. Para a cidade do Rio de Janeiro, o total estimado é de 3.276 vítimas, que correspondem a uma taxa de homicídio de 55,2 por cem mil habitantes. Esses altíssimos índices tendem a reforçar a percepção largamente difundida de que a situação é tal que todos os cidadãos estão igualmente sujeitos a ser vítimas. Uma análise mais detida, contudo, contradiz essa suposição. Vejamos como os dados nos revelam o perfil das vítimas e as circunstâncias das mortes por homicídio na cidade do Rio de Janeiro. 8 Tomado de Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2003. Na verdade, os dados correspondem ao período de começo de 1999 até o primeiro semestre de 2003. 9 Essas taxas são calculadas segundo o lugar de residência da vítima e não segundo o local de ocorrência do óbito ou do trauma. 12 As vítimas são, como no resto do mundo, preferencialmente jovens do sexo masculino. A tabela seguinte mostra as taxas específicas de homicídio por sexo e idade na cidade, revelando com clareza uma grande concentração etária e de gênero. TABELA 310 Taxa de homicídio por 100 mil hab. por sexo e idade Cidade do Rio de Janeiro Faixa Etária Sexo Total Masculino Feminino 0 a 9 anos 1,98 1,06 1,79 10 a 14 anos 13,26 6,29 9,80 15 a 19 anos 232,58 14,33 122,57 20 a 24 anos 303,49 11,63 155,08 25 a 29 anos 235,63 12,55 120,64 30 a 39 anos 130,72 9,69 66,72 40 a 49 anos 78,65 6,62 39,37 50 a 59 anos 48,40 5,36 24,51 60 anos ou mais 28,97 6,90 15,52 Total 108,79 7,80 55,18 As taxas mais altas estão concentradas entre os quinze e os vinte e nove anos, ultrapassando nesse grupo a barreira das cem mortes por cem mil habitantes. Observe-se, porém, que a mesma faixa etária concernente aos homens apresenta indicadores sempre superiores a duzentas mortes por cem mil. A faixa de vinte a vinte quatro, todavia, supera as trezentas vítimas. Por outro lado, a maior taxa observada entre vítimas do sexo feminino (14,33 na faixa de 15 a 19 anos) é apenas um pouco superior a segunda mais baixa observada entre os homens (13,26 para vítimas entre 10 e 14 anos). Isso significa que as vítimas preferenciais são efetivamente homens. Tomemos, em seguida, a variável cor. A próxima tabela revela a distribuição percentual das vítimas de homicídio e da população geral segundo esse critério. A comparação deve ser feita com cuidado, porque a cor da população é obtida através da autodeclaração da pessoa no censo, enquanto que a cor das vítimas é registrada pelo médico que preenche a certidão de óbito. 10 Fonte: Certidões de Òbito do Ministério da Saúde: Sistema de Informações sobre Mortalidade. Elaboração própria. Censo de População. 13 De qualquer forma, e mesmo admitindo que possa haver algumas variações na classificação por cor de uma fonte para outra, os dados mostram com clareza que a composição étnica das vítimas é diferente da do conjunto da população. TABELA 411 Composição por Cor das Vítimas de Homicídiose da População Geral Cidade do Rio de Janeiro. Cor ou raça Nº Homicídios % dos Homicídios % da População Branca 1.099 37,37 58,54 Preta 468 15,91 9,44 Amarela 1 0,03 0,22 Parda 1.299 44,17 30,79 Indígena 0 0,00 0,27 Ignorado 74 2,52 0,75 Total 2.941 100,00 100 Podemos constatar que há uma super-representação de pretos e pardos entre as vítimas de homicídio, acompanhada, obviamente, por uma sub-representação da população branca. Enquanto mais da metade da população da cidade está identificada como branca, o percentual de vítimas que corresponde a esse segmento não chega a quarenta por cento do total. Essa tendência se inverte nos casos de pretos e pardos, que, tomados individualmente, apresentam percentuais sensivelmente maiores na coluna de vitimização do que em sua participação na população. Somados, pretos e pardos compõem sessenta por cento das vítimas de homicídio, ainda que mal ultrapassem os quarenta pontos percentuais do total da população. Uma forma de visualizar com mais clareza essa conclusão é calcular as taxas de homicídio para cada grupo étnico. As taxas de pretos e pardos são mais de duas vezes as taxas dos brancos. É importante enfatizar que o valor de 32 por cem mil referente a vítimas de cor branca já é um número bastante elevado. Contudo, os indicadores são eloqüentes ao evidenciar que a vitimização letal tem uma cor preferencial: ela atinge em proporções muito maiores os pretos e os pardos. 11 Fonte: Certidões de Òbito do Ministério da Saúde: Sistema de Informações sobre Mortalidade. Elaboração própria. Ano de 1991. Censo de População. 14 TABELA 512 Taxa de homicídio por 100 mil hab. por cor Cidade do Rio de Janeiro Cor Taxa por 100 mil hab. Branca 32,05 Preta 84,67 Amarela 7,69 Parda 72,02 Indígena 0,00 Total 50,21 Um elemento importante é o meio com que as pessoas foram assassinadas. Os dados mostram que, nesse ano de 2001, 82,59% das vítimas foram mortas por arma de fogo. Essa cifra nos remete ao volume extremamente alto de armas em circulação no Rio de Janeiro hoje. Cirurgiões da cidade relatam que o número de ferimentos por armas de grosso calibre tem aumentado nos últimos anos, de forma que alguns médicos cariocas estão se especializando no tratamento dessas feridas de guerra, mesmo em tempo de paz13. Por último, para configurar um perfil das vítimas da violência letal, precisamos estudar a classe social e o local de residência das vítimas. Esse ponto se articula com o debate clássico na academia e na política sobre a relação entre violência e pobreza. De certo modo, as formulações iniciais sobre a violência no Brasil se erigem sob o signo desse debate. Originalmente, quando começavam a ser feitas as primeiras análises sobre a violência, houve uma tendência a associar o seu crescimento à pobreza e à iniqüidade social. Posteriormente rejeitada com bases em algumas pesquisas fundadas em indicadores macro-econômicos, é possível identificar, hoje, uma tendência a retomar tais relações, agora de forma bem mais qualificada e fundada14. A relação entre pobreza e violência não é automática nem aparece da mesma forma quando comparamos diferentes unidades entre si. Por exemplo, quando comparamos 12 Fonte: Certidões de Òbito do Ministério da Saúde: Sistema de Informações sobre Mortalidade. Elaboração própria. Censo de População. 13 Ver a matéria intitulada “Tiros cada vez mais fatais no Rio”, O DIA, 3 de agosto de 2003. 14 Das primeiras análises em que aparecem sugestões de associação entre crime e pobreza, ver Oliven (1981). Uma crítica a essa perspectiva a partir do cruzamento de indicadores de criminalidade com dados macroeconômicos encontra-se em Coelho (1987). Um rápido balanço na discussão internacional e uma análise sobre a correlação é feita por Cano & Santos (2001) 15 estados dentro do Brasil ou municípios dentro do estado do Rio, a variável que maior associação apresenta com a taxa de homicídios não é a pobreza, mas a urbanização. Estados e municípios mais urbanizados revelam taxas claramente superiores (ver Cano & Santos, 2001). No entanto quando comparamos a taxa de homicídios de habitantes de bairros dentro da mesma cidade, o resultado não oferece lugar a dúvidas: a vitimização letal atinge preferencialmente os pobres. As taxas das áreas abastadas são sensivelmente inferiores às das áreas mais degradadas, sem infraestrutura ou serviços urbanos satisfatórios e habitadas por populações de baixa renda. Em alguns bairros nobres das cidades a taxa chega a ser sete vezes inferiores às das áreas de maior risco. O coeficiente de correlação entre o homicídio e diversos indicadores sociais chega a ultrapassar 0,615. Esse diagnóstico é sistemático e consistente em todas as áreas metropolitanas brasileiras estudadas, incluindo o Rio de Janeiro (ver CEDEC 1996a; CEDEC 1996b; CEDEC 1996c; CEDEC 1996d; Soares, 2000; Cano, 1998). Assim, é importante reconhecer que a distribuição da violência dista muito de ser aleatória ou igualitária. Com efeito, o local de moradia é uma das dimensões que mais afeta o risco de uma pessoa morrer assassinada. Morar em alguns espaços implica um risco maior do que em outros. No caso da cidade do Rio de Janeiro, os espaços em que se encontra essa população de risco têm nome específico e fama em todo o país: favela. 6. A resposta do Estado. A pergunta que deve ser feita é em que medida a atuação do Estado contribui para resolver o problema da violência, e em que medida o potencializa ou exacerba. Infelizmente, há razões fundadas para acreditar que essa segunda hipótese pode perfeitamente concorrer com a primeira no Rio de Janeiro. Em outras palavras, os agentes do estado fazem parte da solução, mas, freqüentemente, também fazem parte do problema. O primeiro sintoma da gravidade da situação é o número de homicídios decorrentes da própria ação policial. No ano passado, as polícias fluminenses reconheceram ter matado 15 O coeficiente oscila entre um valor máximo de 1 —quando toda a variabilidade da taxa se explicaria em função dos indicadores sociais— e um valor mínimo de 0 —que reflete uma ausência total de relação entre ambas. 16 mais de 1.100 suspeitos em intervenções policiais. O número é altíssimo, inclusive superior ao número total de homicídios —incluindo todas as causas— em numerosos países do mundo. A cifra não só é extremamente elevada, mas vem aumentando de forma dramática nos últimos anos. A partir de 1999 a Polícia Civil contabiliza o número de vítimas fatais nos chamados “autos de resistência”, que é categoria por ela utilizada para definir os casos de suspeitos mortos por policiais. TABELA 616 Número de Mortos em Atuações Policiais (“Autos De Resistência”) Estado do Rio de Janeiro ANO 1998 1999 2000 2001 2002 2003 Número de civis mortos em “Autos de resistência” 397 289 427 596 897 1.195 Com a exceção de 1999, todos os outros anos experimentam um aumento significativo em relação ao ano anterior. A prática de rotular esses casos como “autos de resistência”, ou alguma outra fórmula parecida, é comum nas polícias do Brasil, justamente para evitar que sejam categorizados como homicídios dolosos, embora seja essa a sua definição legal. Assim, “auto de resistência” seria, a princípio, o confronto que se dá entre polícia e suspeitos, quando esses últimos reagem à voz de prisão. Em tese, portanto, seria uma ação legítima da parte de policiais no cumprimento de seu trabalho. No entanto, uma pesquisa realizada no Riosobre as dinâmicas e as características dessa modalidade de homicídios para o período compreendido entre janeiro de 1993 e julho de 1996 mostrou resultados assustadores (Cano, 1997). Resumidamente, os dados revelaram que havia mais mortos do que feridos por arma de fogo, contrariamente ao que se espera de qualquer confronto armado genuíno; em 46,5% dos casos os cadáveres apresentavam mais do que quatro perfurações; 61,5% das vítimas apresentavam pelo menos um ferimento na cabeça; 65% das vítimas tinham ao menos uma perfuração nas costas, o que indica que muitas delas não estavam em posição de enfrentamento quando foram atingidas. Além disso, a pesquisa 17 recolheu uma série de outras informações que possibilitam concluir, sem qualquer dúvida, que a polícia fluminense não somente mata muito como faz uso excessivo e deliberado da força. Em outras palavras, a intenção em diversas intervenções policiais não parece ser simplesmente prender ou imobilizar o opositor, mas acabar com ele. Isto significa que, em alguns casos, o episódio poderia ter sido resolvido usando um grau de força inferior, enquanto que outros casos configuram simplesmente execuções sumárias. A presença de vários casos de disparos à queima-roupa confirma esse último ponto. O estudo mostrou também que o uso excessivo da força policial era notoriamente mais intenso nas favelas do que no resto da cidade. Um dos desdobramentos da pesquisa sobre letalidade da ação policial foi a investigação na Justiça Militar sobre os procedimentos jurídicos relativos a casos de homicídios provocados pela Polícia Militar (Cano, 1999). Além da observação de uma série de procedimentos contrários ao estipulado legalmente —ausência de perícia no local da ocorrência, deslocamento do(s) cadáver(es) do local da morte, etc.—, a nova pesquisa revelou que de 301 casos em que houve abertura de inquérito, em apenas seis foi oferecida denúncia pela promotoria. E esses seis casos resultaram em absolvição a pedido do promotor do julgamento, mesmo aqueles que continham claros sinais de execução sumária. A visita da Relatora Especial das Nações Unidas para Execuções Sumárias ao Brasil, em 2003, confirmou o grave quadro da violência policial no estado (ver CEJIL et al., 2003) e a impunidade em que permanecem esses casos. O uso excessivo da força é uma das marcas das polícias brasileiras em geral (ver Ouvidoria de Polícia de São Paulo, 2002), mas atinge patamares particularmente alarmantes no Rio de Janeiro (ver Lemgruber et al., 2003; Cano, 2003; Justiça Global, 2004). Na verdade, as mortes em intervenções policiais são, além de um problema em si mesmo, o reflexo de uma atitude geral do policiamento em áreas de favela que toma essas populações como inimigos potenciais. Podemos afirmar que, com freqüência, as populações faveladas recebem por parte da polícia um grau de proteção inferior ao que as Convenções de Genebra prescrevem para populações civis em tempo de guerra. Nesse contexto, os direitos humanos dos moradores dessas áreas são freqüentemente violados e a validade da lei que vigora no resto da cidade é relativa. De fato, parece que a 16 Fonte: Registros de Ocorrência da Polícia Civil. 18 polícia no Brasil, fundada historicamente para conter as populações escravas e perigosas na base da violência, não acabou ainda de completar a transição que a tiraria completamente do velho papel: manter os excluídos sob controle de forma autoritária. O estudo de caso sobre a Rocinha permitirá entender melhor esse ponto. Quanto à situação nas cadeias, as péssimas condições, a ocorrência corriqueira de torturas e as dificuldades encontradas pelos presos para estudar ou trabalhar inviabilizam qualquer função resocializadora (ver Human Righst Watch, 1998). Em suma, é possível afirmar que o Estado responde à violência de uma forma relativamente violenta. Essa resposta, longe de resolver o problema, parece ter contribuído para uma espiral de brutalidade na qual agentes do estado e criminosos desenvolvem sua ação com níveis crescentes de violência que são, inclusive, desnecessários para os seus objetivos declarados. Por sua vez, os cidadãos, desconfiados da capacidade do Estado para protegê-los, recorrem cada vez à segurança privada, utilizando recursos compatíveis com suas possibilidades econômicas. As classes menos favorecidas possuem grades, cães e outros equipamentos de menor custo, enquanto que as elites blindam carros e contratam agentes de segurança privados. A se confirmar a tendência atual, pode-se dizer que está em curso um processo de privatização de uma das atribuições que se firmaram como pilar básico do Estado moderno. No plano político, as pressões por iniciativas capazes de melhorar as condições de segurança tornaram o tema um dos principais motes das disputas eleitorais e uma arma fartamente usada para desqualificar administrações rivais. Pode-se dizer que durante duas décadas e meia as políticas de segurança e os debates em torno delas oscilaram entre duas posições antagônicas. A primeira demanda que as políticas de segurança se orientem pelo respeito à lei, pela melhoria das condições de vida das populações mais vulneráveis à violência, pelo investimento na capacitação das polícias e o combate à corrupção dentro delas e pelo fim das ações discricionárias contra as populações pobres e faveladas. Uma segunda posição enfatiza o uso da força no combate ao crime e, ao menos em tese, concede que, dadas certas circunstâncias, alguns excessos por parte das polícias seriam justificados. Os que mantêm essa atitude desqualificam os que sustentam a visão 19 anterior como defensores dos direitos humanos –—entendendo a noção de direitos humanos como ‘direitos dos bandidos’— e os responsabilizam pelo aumento da criminalidade. É lamentável observar que a utilização de recursos extralegais e a adoção de estratégias policiais que desrespeitam os direitos das populações pobres são defendidas por setores significativos da população fluminense. Ao longo dos últimos vinte e cinco anos, as políticas de segurança no estado do Rio de Janeiro oscilaram entre esses dois pólos: o que defende a cidadania e o respeito aos direitos de todos, particularmente dos mais desfavorecidos; e o que apela à lógica da lei e da ordem a qualquer custo17. Para fazer jus à verdade, as tentativas de introduzir uma segurança pública democrática não foram aplicadas até suas últimas conseqüências. Todas as políticas que tiveram esse perfil tentaram simultaneamente promover a modernização das forças policiais, mas pecaram por tibieza na ação contra setores corruptos das instituições que desejavam reformar e por não levarem até o final iniciativas cruciais para obterem sucesso. Assim, pode-se dizer que as políticas autoritárias foram as únicas implementadas sistematicamente e que as políticas de segurança pública democráticas são, mais do que nada, um contrafatual. O exemplo mais bárbaro de política de segurança pública truculenta foi a “premiação por bravura”, que o governo do estado do Rio de Janeiro aplicou entre 1995 e 1998, aumentando a remuneração dos policiais que se envolviam em confrontos com resultado de morte. Não foi surpresa que a iniciativa aumentasse o número de mortes em intervenções policiais, particularmente em favela, e agravasse os indicadores de uso excessivo da força (Cano, 1997). Esse tipo de abordagem certamente não resolveu o quadro de segurança pública, o que não foi suficiente para que seus defensores o questionassem. Ao contrário, alguns interpretam que é preciso uma repressão ainda mais violenta (ver Anistia Internacional,2003). Dentro dessa lógica assumida como inatacável, a falta de resultados aparentes nunca é sintoma de fracasso, mas prova da necessidade de intensificar a receita. Em suma, nenhuma política pública revelou-se suficientemente eficaz até o presente momento, e os indicadores de violência letal continuam no mesmo patamar dramático, governo após governo, como se de um desastre natural se tratasse. Todavia, a oscilação das 17 Para a reconstituição desse debate nos anos de 1980 e 1990, ver Sento-Sé (1999). 20 estratégias evidencia o despreparo das elites políticas, a desarticulação do Estado e a ausência de formulações consistentes e duradouras para a área de segurança. Esse certamente foi um fator crucial para que a situação chegasse aos termos em que se encontra hoje. 7. Impactos da Violência. Os dados até aqui apresentados revelam a magnitude da violência no Rio, e deixam transparecer seus múltiplos impactos, que agora passaremos a enumerar com maior detalhe. O primeiro impacto, e o mais dramático, são essas quase oito mil vidas ceifadas a cada ano no estado por causa dos homicídios. A gravidade da situação fica patente ao observarmos que aproximadamente 16% das cerca de 50.000 vítimas de homicídio no país são fluminenses, enquanto que a população do Rio representa menos de 9% do total populacional. Além das vidas perdidas, isto deixa um pesado lastro para os sobreviventes: órfãos, viúvos e viúvas e desestruturação familiar, sem mencionar o trauma emocional sofrido pelos familiares das vítimas. O efeito demográfico também é devastador. O desequilíbrio entre os sexos, devido à maior mortalidade específica dos homens em todos os países do mundo, fica agravado pela violência porque ela afeta preferencialmente os homens. Isto faz com que um importante contingente de mulheres esteja condenado a não encontrar um parceiro, pois os parceiros potenciais diminuíram por causa da violência. Uma pesquisa recente, com dados de 1998 (Cano & Ferreira, no prelo), revelou que 6,5% de todas as pessoas do sexo masculino nascidas no estado do Rio acabam morrendo assassinadas. A proporção para o Brasil é de 3,1%. Todavia, como a violência afeta sobretudo os jovens, ela deixa um custo enorme em termos de anos de vida perdidos e de custos econômicos, tanto para a sociedade em geral quanto para as famílias cujos provedores são mortos. Além das mortes, a violência deixa também um grande número de vítimas com lesões, sendo que algumas delas provocam invalidez permanente, total ou parcial. Infelizmente, é difícil quantificar o número de vítimas não fatais porque não há uma centralização dos registros médicos para além das internações hospitalares. Os tratamentos de emergência, por exemplo, não costumam ser registrados de forma homogênea. 21 A literatura sobre custos econômicos da violência no Brasil é muito limitada, entre outras coisas pelas dificuldades metodológicas que a tarefa enfrenta. Diferentes supostos metodológicos resultam em estimativas de custos muito diferentes. Em uma das poucas tentativas feitas para enfrentar o problema, um grupo de pesquisadores (Piquet Carneiro et alli, 2000) desenvolveu uma estimativa para o município do Rio de Janeiro, com base nos dados de 1995.Numa Inicialmente, foram coletadas informações junto ao Movimento de Autorização de Internação Hospitalar (AIH), ao Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) e ao Sistema de Informação Ambulatorial, ligado ao Ministério da Saúde. O estudo estimou que, naquele ano de 1995, foram perdidos prematuramente na cidade do Rio de Janeiro nada menos do que 153.508,74 anos de vida. No plano econômico, os custos calculados pelos pesquisadores –—custos diretos de atendimento às vítimas mais os custos econômicos por morte prematura e incapacidade— naquele ano foram de cerca de 967 milhões de dólares. Se a esses valores agregam-se os gastos públicos com o sistema de segurança pública, de forma geral, e alguns gastos de agentes privados com proteção e seguros, esses valores chegam à casa de dois bilhões de dólares, o que corresponderia a 5% do PIB do município. Mesmo levando em conta que parte desses recursos seriam de qualquer modo destinados à manutenção de um serviço de segurança pública mínimo, não podemos negar que uma fração significativa desses valores poderia ser dirigida a investimentos sociais, caso a violência estivesse num patamar razoável. Embora devamos encarar tais números com reserva, como os próprios responsáveis pela pesquisa não se cansam de alertar, é evidente que os custos econômicos da violência são altíssimos. Todavia, a estimativa fornecida pelos autores não contabiliza outros custos intangíveis ou de difícil mensuração. Esse cálculo de 5%, portanto, deve ser considerado um valor subestimado. Entre os custos não contemplados estão os investimentos externos e internos perdidos em função do clima de violência, a desvalorização dos imóveis e a queda da atividade econômica em função do medo. Não há uma estimativa sobre esses pontos, mas é comum encontrar na imprensa local matérias sobre a redução do preço de venda e de aluguel das moradias situadas em áreas de risco18 e sobre o fechamento temporal ou 18 “Violência e Prejuízo” O DIA, 7 de maio de 2004. “Violência das favelas atinge preço de imóveis” O GLOBO, 20 de janeiro de 2002. 22 definitivo de lojas e indústrias como conseqüência da violência e das ameaças19. As perdas das empresas de transporte com a depredação dos ônibus são também um assunto freqüente20. Todavia, há muitos outros impactos psicológicos, emocionais e sociais dificilmente quantificáveis em termos econômicos, mas que afetam de uma forma drástica a qualidade de vida dos cidadãos. Muitos deles são mais facilmente capturáveis mediante levantamentos de trajetórias de vida, entrevistas e grupos de discussão. Um exemplo relativamente freqüente é o de famílias inteiras obrigadas a deixar sua moradia em áreas conflagradas sem ter, muitas vezes, para onde ir. Esse deslocamento forçado não é muito diverso do que acontece em situações de guerra, com a diferença de que o deslocamento é de curta duração. Em geral, basta deixar a comunidade para o risco diminuir. Não havendo uma guerra declarada nem um front específico, não existem campos de refugiados e os fluxos não são concentrados, o que inviabiliza a quantificação dos deslocados compulsórios. De todo modo, é comum a imprensa relatar casos de famílias que abandonam suas casas devido à violência, seja pelo medo do conflito ou, mais freqüentemente, por terem sido expulsas pelos criminosos que exercem o poder no local. Por outro lado, pesquisas realizadas com meninos de rua mencionam muitos depoimentos de adolescentes que vão viver nas ruas para fugir de problemas em que se viram em suas comunidades de origem21. Com freqüência essas situações têm a ver com endividamento ou animosidade com figuras ligadas ao narcotráfico. É irônico que enquanto a literatura sobre pobreza se preocupa com a regularização fundiária e com o título de posse da moradia urbana em áreas marginais como o fator fundamental para melhorar a vida das pessoas, a situação nas periferias urbanas do Brasil mostra um quadro diferente. Por um lado, as moradias em áreas irregulares, mesmo sem contar com um título de propriedade legalizado, fazem parte do mercado e são vendidas e alugadas quase como se estivessem registradas na Câmara de Propriedade Urbana. Por outro lado, a violência converte qualquer título de propriedade em papel molhado, pois quando um morador é expulso pelo líder local do narcotráfico, ele é obrigado a sair 19“Violência em favelas expulsa indústrias e lojas” O GLOBO, 8 de abril de 2001. “Tráfico expande seus limites para além das favelas”, O GLOBO, 15 de setembro de 2002. 20 “Criminosos forçam ônibus a mudarem itinerário”, O GLOBO, 15 de setembro de 2002. 21 A título de exemplo, destacaríamos Silva & Milito (1993) 23 deixando tudo para trás. Nesses casos, o Estado revela-se totalmente incapaz de proteger o morador. De forma geral, é possível concluir que os moradores de áreas de risco sofrem a violação de numerosos direitos básicos no seu dia a dia. Os grupos ligados ao tráfico impõem sérias restrições à livre circulação dos moradores das comunidades pobres. A territorialização do varejo das drogas e a subseqüente disputa entre facções degradaram a qualidade de vida das pessoas que vivem em áreas carentes. Toque de recolher, proibição de acesso ou de vestir determinadas roupas são fatos corriqueiros. Moradores de áreas controladas por uma determinada facção podem pagar com a vida, caso se aventurem a circular em áreas controladas por facções rivais. Com isso, até laços familiares entre membros de famílias que vivem em comunidades sob controle de grupos adversários ficam seriamente comprometidos. Os limites impostos à fruição do direito de livre circulação se originam das disputas de facções armadas, e também das intervenções policiais, inspiradas numa estratégia militar em que a proteção das populações locais é, no melhor dos casos, um objetivo secundário. O estudo de caso da Rocinha permitirá compreender e aprofundar melhor vários desses aspectos. Embora de natureza e intensidade distintas, as restrições se estendem às outras classes que se encontram em lugares mais elevados da pirâmide social. A cultura do medo que se difundiu pela cidade tem funcionado como uma espécie de dinamizador da degradação dos padrões de sociabilidade e de convívio social. Ainda que haja uma grande margem de idealização nas narrativas de tempos passados em que o morro e o asfalto conviviam supostamente em harmonia, é evidente que o medo funcionou, nas três últimas décadas, como um poderoso antídoto para várias das iniciativas de aproximação e de vitalização do espaço público. É verdade que os segmentos mais pobres da sociedade são as maiores vítimas da violência do Estado, o que por si só representa um grave obstáculo ao acesso a direitos. No entanto, a depreciação da confiança nos mecanismos legal e na justiça de uma forma geral se difunde por toda a sociedade. Desse modo, a naturalização do uso de meios extralegais para a solução de conflitos é incorporada compulsoriamente à rotina dos segmentos com menor acesso aos mecanismos institucionais de justiça, se tornando componente da 24 percepção mais geral da ordem e do Estado. Uma vez difundido na sociedade como um todo, esse ceticismo em relação aos mecanismos universalistas do Estado de Direito se retroalimenta e, mais uma vez, as conseqüências mais negativas se voltam para os segmentos mais desfavorecidos22. Outro dos efeitos perversos do fenômeno da violência é o desgaste a que ela submete as relações sociais. A sociabilidade, as redes sociais e comunitárias, tudo o que hoje se conhece com a ambígua noção de ‘capital social’ foi seriamente afetado. Com efeito, o crescimento da violência e as formas que ela tomou foram desastrosas para o associativismo incipiente que as comunidades faveladas e de periferia apresentavam em fins dos anos 70 e início da década posterior. O padrão de autoridade imposta pelos grupos ligados ao tráfico é despótico e reatualiza, com tinturas mais fortes de coação e violência, formas tradicionais de controle social. O Estado, que freqüentemente só chega a certas áreas da cidade através de suas agências armadas, igualmente atua de forma discricionária e violenta. O poder paralelo do tráfico tem apenas a vantagem de ser mais previsível do que o da polícia —embora contenha também consideráveis níveis de arbitrariedade— e de não considerar a comunidade como inimiga. Nesse quadro, o associativismo civil se configuraria como alternativa viável para a organização de demandas e o fortalecimento de valores comunitários. No entanto, o poder e a coação do tráfico ameaçam a independência das associações de moradores23. Muitos líderes que se negaram a se submeter foram mortos ou expulsos. Ainda outros foram cooptados. Em suma., não é necessário idealizar tais comunidades para divisar o vigor associativo nelas observado, mas é indispensável reconhecer que, entre muitos fogos cruzados, as dificuldades impostas são enormes e o resultado final dessa equação lhes é abertamente desfavorável. 22 Sobre o acesso a justiça, consultar a coletânea de artigos por Pandolfi et alli. (1999) 23 “PODER PARALELO: Relatório da Assembléia indica que 400 dirigentes de entidades se associaram a bandidos” , O GLOBO, 20 de junho de 2002. 25 8. A favela como locus da violência. Um dos espaços mais estudados pela sociologia carioca, as favelas são uma das referências típicas da cidade do Rio de Janeiro. Desde que surgiram, possivelmente no final do século XIX ou início do século XX, as favelas ocupam o imaginário social de forma ambivalente. É comum serem reconhecidas como ambientes de grande efervescência associativa e cultural, como berço de algumas das mais importantes manifestações estéticas de caráter popular, como ambientes em que a criatividade do povo é posta em prática para lidar com as dificuldades impostas pela pobreza e o desamparo. Uma segunda forma de abordar as favelas é aquela que as identifica como espaços de concentração da criminalidade, de violência e das mais abjetas perversões. Segundo tal perspectiva, as favelas são ambientes viciosos, habitados e freqüentados pela escória da sociedade. Tal perspectiva é bem mais antiga — sua origem praticamente se confunde com o surgimento das primeiras favelas na cidade— e provavelmente mais arraigada no imaginário social do que a primeira24. Se a perspectiva negativa das favelas é abertamente preconceituosa, aquela que antepõe um sinal positivo às dinâmicas próprias desse ambiente se revela, por vezes, um tanto romântica. É verdade que algumas favelas do Rio de Janeiro revelaram ou revelam uma impressionante vitalidade cultural e associativa. No entanto, não se pode negar que tais características não se têm mostrado suficientemente fortes para superar as precaríssimas condições em que vive boa parte da população favelada da cidade. No censo do ano 2000 foram registradas, na cidade do Rio de Janeiro, 516 favelas, com uma população total de aproximadamente 1.092.476 pessoas. Trata-se, portanto, de um percentual significativo da população carioca, cujo peso sobre o total cresce historicamente década após década. Mesmo durante a década que experimentou um programa de remoção de favelas, o crescimento da população nas favelas ainda foi superior do que o crescimento geral da cidade. No momento atual, como pode ser observado na tabela a seguir, quase vinte por cento dos moradores da cidade residem em favelas. 26 TABELA 725 Pessoas residentes na cidade do Rio de Janeiro por Tipo de Moradia : Favela x Asfalto 1991 % 2000 % Favela 882.483 16,10 1.092.783 18,67 Asfalto 4.598.295 83,90 4.759.131 81,33 Cidade 5.480.778 100,00 5.851.914 100,00 A favela é um lugar central quando se trata de violência, tanto no nível simbólico quanto objetivamente falando. Ela é de fato um lugar de alto risco mas, para além dos fatos, ela encarna, na visão dos moradores do asfalto, a noção de violência e perigo. A segregação existe de fato, pois a grande maioria das pessoas de classe média nunca entrou numafavela, seja por preconceito, seja por consciência do perigo. A segregação no sentido contrário também acontece, não na forma espacial, mas como preconceito contra os favelados. É mais difícil obter emprego se você menciona que sua residência está numa favela, razão pela qual muitos favelados mantêm em segredo o seu lugar de moradia. Assim, a favela não faz parte do tecido urbano normal da cidade, onde os cidadãos têm a liberdade de ir e vir. Ela não tem endereços oficialmente reconhecidos e não raro milhares de pessoas compartilham um único endereço postal, localizado na entrada da favela. As entregas de produtos e serviços são raras, em função do perigo de violência e da dificuldade de acesso. Em suma, a favela dá lugar à noção da cidade segregada, da cidade partida, dividida em dois pólos antagônicos, reconhecíveis a simples vista: favela, normalmente nos morros, e asfalto, em baixo. Na verdade, o asfalto não tem um perfil muito definido; trata-se simplesmente de um neologismo que serve para uma identidade negativa: tudo aquilo que, sendo urbano, não é favela. Muitas das dinâmicas negativas relacionadas à violência que têm sido descritas até aqui acontecem preferencialmente nas favelas. O crescimento do varejo do comércio ilegal 24 Um conjunto de trabalhos dedicados à questão das favelas, em cujos artigos podemos obter uma série de outras referências sobre estudos desse espaço, foi editado por Zaluar e Alvito (1998) 25 Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2000. - Base de informações por setor censitário. 27 de drogas nas favelas configurou um quadro em que a violência ocupa um lugar central. O vazio deixado pelo Estado passou a ser ocupado, em parte, por grupos armados que impõem sua autoridade nas comunidades pela coação. Embora precisem de alguma margem de cumplicidade das populações das áreas em que atuam, os chefes desses grupos possuem sempre um poder coercitivo e, com freqüência, utilizam o medo e a ameaça. Como já foi mencionado, a territorialização do comércio ilegal e as disputas pelos locais de venda trouxeram muitas conseqüências negativas. Todavia, as invasões de comunidades em busca de um mercado maior fizeram com que muitos ‘donos’ de bocas de fumo não tivessem qualquer laço com a comunidade, dificultando, assim, a relação e incrementando o medo. De fato, quando um chefe conquista a boca de um rival, é muito comum que famílias inteiras, sobre as quais pairam suspeitas de vínculos afetivos ou de parentesco com membros do grupo derrotado, sejam obrigadas a abandonar suas casas. Outras famílias simplesmente fogem dos confrontos que acontecem na porta de suas casas. A conseqüência inevitável dessa territorialização do comércio ilegal de drogas foi a atração da atenção da polícia para as favelas, tanto para ‘combater o crime’ quanto, no caso dos policiais corruptos, em busca de uma fonte de renda irregular que pudesse ser extraída dos criminosos. A forma violenta com que a polícia se comporta dentro das favelas é um dos pesadelos recorrentes dos moradores. Desse modo, a ação da polícia não somente desperta medo, como neutraliza qualquer credibilidade do Estado e da justiça junto a essas populações. Uma das conseqüências mais trágicas dessas estruturas é a capacidade de cooptar para suas malhas uma parcela da juventude residente nas favelas. Mal equipados educacionalmente, sem muitas chances de inserção digna no mercado de trabalho e bombardeados por apelos que associam bens de consumo e status, os jovens das comunidades faveladas têm se revelado para tais organizações uma mão de obra barata e facilmente substituível, na medida que vai sendo dizimada pela violência. Embora não haja ainda dados para calcular, por exemplo, taxas de homicídio nas favelas, não resta dúvida de que os jovens dessas comunidades são protagonistas principais desses indicadores de homicídio anteriormente descritos, seja como autores, seja como vítimas. Dados da Segunda Vara da Criança e do Adolescente também são conclusivos sobre o aumento de 28 jovens nessa faixa etária que são objeto de medidas sócio educativas em função de envolvimento com o tráfico de drogas26. Como já foi explicado, o tráfico de drogas teve um impacto brutal sobre os mecanismos associativos das comunidades faveladas. No esforço de assumirem diretamente o controle das associações de moradores ou de evitar interferências nos seus negócios, os chefes do tráfico não hesitaram em usar a força. Alguns casos de assassinatos de lideranças que não aceitaram a intromissão tornaram-se célebres pela crueldade ou pela popularidade das vítimas em suas comunidades. Em conseqüência, há indícios de que uma parte significativa das associações de moradores ainda existentes nas favelas esteja de alguma forma comprometida com o tráfico. A Rocinha, favela localizada em uma área nobre da cidade, pode ser abordada como uma espécie de síntese perversa da situação de catástrofe humanitária por que passam essas comunidades. Vejamos, a seguir, um pouco da crônica desses conflitos e como essa parcela mais vulnerável da população da Rocinha —os jovens— lida com a violência. 9. Um breve estudo de caso: a comunidade da Rocinha Para examinar mais de perto o impacto da violência nas comunidades de baixa renda e, particularmente, a visão dos moradores, decidimos analisar de forma exploratória a situação da Rocinha. As fontes utilizadas foram duas: matérias na imprensa escrita dos últimos 3 anos e meio —“O Dia” e “O Globo”— ; e dois grupos focais com jovens residentes da Rocinha. Os grupos focais foram realizados com moradores da comunidade que tinham entre 16 e 24 anos. Isto porque, como já foi mostrado, as pessoas dessa faixa etária são as principais vítimas diretas da violência. O primeiro grupo focal foi composto por jovens de sexo masculino (12 no total) e o segundo por jovens de sexo feminino (8 no total), para tentar evitar uma possível interferência nas manifestações dos participantes em função da presença de jovens do outro sexo27. A seleção dos participantes foi realizada por líderes comunitários; a grande maioria dos jovens foram contatados através de projetos sociais (“Jovens pela Paz”, “Vida Nova”, rádio comunitária, Ateliê das Artes, etc.) de que fazem 26 Sobre indicadores relativos a crianças e adolescentes em conflito com a lei, ver Sento-Sé, 2004. 27 Os grupos masculino e feminino foram realizados, respectivamente, nos dias 16 e 21 de junho. 29 parte. Isto significa que eles não são, necessariamente, representativos do conjunto de jovens da comunidade. Com efeito, eles são, provavelmente, jovens afastados de atividades delitivas e com maior inserção social do que outros, o que deve ser levado em consideração ao analisar os dados. A convocatória foi feita para falar sobre “questões da comunidade”, sem que a questão da violência fosse previamente mencionada. O roteiro utilizado durante a discussão em grupo pode ser conferido no anexo. A área ocupada hoje pela Rocinha era parte de uma fazenda de cana-de-açúcar e café, que foi comprada pelos jesuítas para abrigar a Pontifícia Universidade Católica nos anos 4028. Eles permitiram que funcionários e famílias pobres ocupassem essa parte das terras. A partir daí o crescimento foi vertiginoso e, hoje em dia, ela é uma das maiores favelas da cidade. Segundo o censo de 2000, a comunidade conta com 56.338 habitantes, mas a maioria deles acredita que a população é bem maior, até fazer jus ao apelativo de “maior favela de América Latina”. Situada numa área altamente valorizada, rodeada por bairrosde classe média-alta —São Conrado e Gávea—, o nível de vida dos seus moradores é superior ao da maioria das favelas e os aluguéis de seus imóveis são comparáveis aos pagos em bairros das periferias da área metropolitana. A Rocinha conta, diferentemente da maioria das favelas, com uma rua que atravessa quase toda sua extensão. Nessa rua e em seu entorno, na parte mais baixa da favela, há uma vigorosa rede comercial. Tradicionalmente a Rocinha é percebida como menos violenta do que a maioria das favelas, embora conflitos não faltem, especialmente nas áreas menos acessíveis. Devido a suas dimensões e a sua localização, ela é considerada um importante entreposto do comércio varejista de drogas, o que faz com que seja objeto de cobiça de grupos rivais. Por outro lado, em função de estar em um bairro nobre da cidade, todos os conflitos que ocorrem na Rocinha causam forte impacto sobre a opinião pública, principalmente quando eles transbordam o espaço propriamente da favela. Ao longo das últimas duas décadas foram várias as ocasiões em que isso ocorreu. Normalmente, depois desses eventos o poder público anuncia iniciativas de impacto, voltadas para a melhoria da qualidade de vida da comunidade. 28 Ver O Globo, 20 de dezembro de 2001, pag. 17. 30 Em 1987, cerca de 300 moradores ocuparam a Estrada da Gávea com caixotes pedindo o fim da violência policial. Foram dispersos com cassetetes e responderam com tijoladas. O confronto acabou em tiroteio durante madrugada. Esse foi mais um incidente típico em que as favelas “descem para o asfalto”, predando automóveis e assustando os que por ali passam, como reação a uma ação particularmente violenta da polícia. Nessas ocasiões, os mais assustadores fantasmas que assombram o cidadão médio e associam as populações faveladas às outrora chamadas classes perigosas tomam o centro da cena e fazem engrossar o coro dos que clamam por segurança a qualquer preço. Dentre as tragédias recentes que marcam a crônica da Rocinha, o tráfico também evidenciou o seu caráter despótico. Em meados da década de 1980, duas lideranças comunitárias foram assassinadas por resistirem às investidas do tráfico sobre a associação. Apesar desses episódios, a Rocinha encarna, de alguma forma, os traços mais positivos da imagem da favela —criatividade, adaptação, disposição para o trabalho— e era comum ver turistas circulando em suas ruas. No entanto, em janeiro de 2004, o fim do acordo entre os grupos organizados em torno da venda de drogas pressagiou uma “guerra” pelo controle do território. Finalmente, a guerra estourou na Semana Santa desse ano, quando um grupo armado veio da vizinha favela do Vidigal para tomar a Rocinha. Em quatro dias aproximadamente 12 pessoas morreram e um número indeterminado foi expulso de suas casas29. Não obstante as “guerras” pelos pontos de venda de drogas serem um fato comum na cidade, o episódio da Rocinha, por interromper o trânsito entre a Zona Sul e a Barra da Tijuca, teve uma repercussão fantástica e comoveu a cidade e o país. Os governos estaduais e federais começaram mais uma vez a cogitar a intervenção das Forças Armadas. A imprensa internacional, por conta de infelizes declarações do vice-governador defendendo a construção de um muro ao redor da comunidade30, também fez uma ampla cobertura sobre o episódio e seus desdobramentos. O jornal “O Dia” relatou as impressões de um morador de São Conrado, testemunha do confronto: “Nunca tinha visto o céu ficar vermelho. Parecia filme. A visão da 29 Ver O Dia, 20 de abril de 2004, artigo de Andréa Gouvêa Vieira. 30 O vice-governador retirou posteriormente sua proposta, alegando não ter sido compreendido adequadamente. 31 varanda do apartamento era de um campo de batalha. O barulho das bombas, ensurdecedor. Vários grupos corriam da Rocinha em direção à praia, parecia cena do apocalipse31” Desde então, a polícia matou o chefe local do tráfico, conhecido como “Lulu”, e procura intensamente, até agora sem resultado, o chefe do grupo que liderou o ataque, conhecido como “Dudú”. Embora não tenha havido uma nova tentativa de invasão, a tensão e a presença da polícia na comunidade continuam intensas. Nesse intervalo, houve outras mortes em confrontos posteriores. Assim, a análise da violência na comunidade deverá revelar dois planos diferentes e superpostos: o nível geral de violência nos últimos anos e o agravamento da situação nos últimos meses. As duas primeiras questões colocadas nos grupos focais eram relativas aos principais problemas enfrentados pela comunidade, por um lado, e pelos jovens da comunidade, por outro. O objetivo era, justamente, explorar a centralidade que a violência ocupa como problema na vida dessas pessoas. Entre os garotos, os problemas fundamentais mencionados são a falta de educação, as limitações ao lazer, o tratamento do lixo, a moradia em áreas de risco e a falta de conscientização das lideranças e dos moradores sobre vários problemas comunitários. Quanto aos problemas da juventude, são relatados as drogas, a gravidez precoce, a falta de moradia e, fundamentalmente, a falta de emprego e de canais de inserção social em geral. A violência aparece como uma questão conectada com a criminalidade, em função precisamente das dificuldades para encontrar trabalho e um salário decentes que permitam uma inserção satisfatória. - “A gente fica sem oportunidade, porque tem aquele conhecimento, mas você não tem uma assistência para você ir para fora para poder exercer esta profissão. Você vai lá fora tem muita gente que apóia, tem familiares que dão incentivo, você sai daqui para procurar emprego, fora você gasta a passagem, e não tem de onde você tirar aquilo. Então o pessoal aqui fica à mercê de fazer qualquer biquinho aqui, biquinho ali... tá difícil. O jovem ganha esta bolsa mas tem várias coisas, tem os encontros. Aí fica: “pô, só esta bolsa?”. Aí chega no final do mês, pinta, não pinta, aí o pessoal fica já meio assim... qualquer coisinha que pintar já vem na cabeça...” - [“Como assim “qualquer coisinha que pintar?”] (moderadora) 31 Ver O Dia, 10 de abril de 2004. 32 - “..Os jovens que se envolvem na criminalidade. Ta precisando, aí pinta, o amigo vem, “uma paradinha de cem”, ele vai, precisa... Tem que fazer...quando se dá conta já está no meio.” (participante 7, grupo masculino) “Aí vem a questão do tráfico, aí vem a questão que engloba todo este processo. O jovem entra no tráfico: por quê? Porque lá fora não tem perspectiva de emprego. Aí o jovem pensa: ‘lá fora não tem emprego, está difícil de arranjar emprego, eu não tenho dinheiro, eu vou fazer o quê? Tem que entrar no mundo do tráfico’ Por isso que muitos jovens aqui entram no tráfico, porque não têm oportunidade de emprego lá fora e muitos têm um certo preconceito, que aqui no Brasil existe muito isso, não só com os negros mas com os favelados.” (participante 9, grupo masculino) Já no grupo feminino, a violência surge imediatamente como a primeira resposta à pergunta sobre os problemas da comunidade. A carência de emprego, de saneamento e, no caso dos jovens, a falta de apoio, de lazer , de berçários e de oportunidades de formação, são também elencados, mas a violência ocupa o lugar central. “A gente não tem nem mais o que debater, a não ser a violência...” (participante 1, grupo feminino) Podemos apontar duas razões para a resistência relativa dos jovens de sexo masculino a reconhecer diretamente a gravidade do problema da violência, particularmente em comparação com as garotas. A primeira é o estigma vinculadoà associação entre favela e violência, que os moradores muitas vezes procuram combater destacando os aspectos positivos da vida na comunidade. A segunda é que a violência é essencialmente uma questão em que os homens são os protagonistas tanto ativos quanto passivos, por isso eles podem se sentir menos a vontade para expor a questão, enquanto que as mulheres, quase sempre vítimas da violência, não sentem responsabilidade alguma do que acontece e estão, portanto, mais dispostas a expor o problema. O discurso dos jovens de ambos os sexos está perpassado sempre por uma consciência dolorosa da exclusão e do preconceito sofridos pelos moradores de favelas, o que gera uma sensação de inferioridade em relação ao resto dos habitantes da cidade. “Geralmente, já são discriminados. Aí ficam: '-Onde você mora?', '-Na Rocinha', '-Ahh, então é bandido!” (participante 3, grupo feminino) “Porque você desenvolve um trabalho, as pessoas conhecem seu trabalho, mas as pessoas elas têm medo de te dar uma oportunidade. Muitas vezes elas querem te dar uma oportunidade mas tem um cara lá fora que ele tem 33 faculdade, que ele tem isso, que ele tem aquilo, ele sabe apresentar um projeto melhor do que o seu... Ele sabe fazer tudo melhor que você por ele... não fazer melhor, mas ele sabe apresentar, fazer uma apresentação melhor que vá chamar mais atenção da pessoa por ele ter estudo, por ele ter dinheiro... Às vezes por ter uma família que já tem um conhecimento através da área, às vezes na questão do trabalho, você chega lá para procurar um trabalho, você é da comunidade, pode ter cinco pessoas da comunidade32 em um nível de escolaridade igual ao que mora lá em baixo no asfalto, na sociedade; agora se ele vê que tem um da sociedade ali, ele vai descriminar todos da comunidade, vai ficar com aquele que é da sociedade mesmo que ele seja o pior de todos. Porque ele jamais vai imaginar: “um cara que mora em Copacabana não vai me roubar”. Agora se ele falar: “ih, eu vou botar este cara da Rocinha aqui, sei lá, de repente este cara rouba aí [...], não é não? É só coisas assim que as pessoas pensam.” (participante 5, grupo masculino) Essa contraposição entre “sociedade” e “comunidade” é perfeita para transmitir a exclusão e a oposição entre os dois pólos. A idéia de comunidade está vinculada a laços afetivos mais estreitos; a noção da sociedade está ligada a um status superior. De qualquer forma, não restam dúvidas de que a “comunidade” não faz parte da “sociedade” em geral. A expressão “lá fora” aparece nada menos do que 14 vezes no grupo masculino para definir os moradores do asfalto, frisando mais uma vez a idéia de oposição e transparecendo um certo fechamento das comunidades em si mesmas. Em certas ocasiões este sentimento de exclusão e inferioridade é supercompensado através da ênfase nas virtudes superiores da vida em comunidade, que seria, inclusive, preferível à vida fora da favela. “A gente não é pobre. A gente mora na comunidade, a gente é rico. Pelo contrário, eu acho que os pobres são muito mais ricos que os ricos realmente. Então é porque os pobres, se você entrar legal na cultura que está acontecendo, você vai ver muita pessoa rindo, alegre lá dentro. E se você entrar numa empresa você só vê pessoas – na grande maioria das empresas – pessoa tudo com cara emburrada, tudo fazendo cara de mau.” (participante 5, grupo masculino) Quanto se pergunta explicitamente pela violência, todos os integrantes de ambos os grupos são categóricos. A violência faz parte do cotidiano dos moradores de forma constante. Trata-se de uma experiência que afeta pessoas próximas, às vezes de forma trágica. 32 O sublinhado é nosso. 34 - [“Vocês conhecem alguém, algumas pessoas já falaram, que tenha falecido por conta dos..?”] (moderadora). - “ Meu irmão...” (participante 6) - “Sentado na porta de um bar, a polícia veio, ele se assustou que todo mundo correu, foi correr também, tomou um tiro nas costas. Ficou agonizando na vala...” . (participante 2) - “E eles [policiais] ainda levaram como se meu irmão fosse um bandido, deu é pena. Arrastaram... Se não fosse o meu outro irmão e minha sobrinha, para ir lá, eles não iam deixar. Porque quando minha sobrinha foi lá falar com eles, eles ainda chamaram minha sobrinha de piranha. Ainda ganhou dois socões nos peitos dela, e não deixaram ela passar, teve que dar uma volta imensa para pegar meu irmão, porque se não eles iam arrastar meu irmão como se fosse um qualquer, um bandido, um corpo, sei lá...” (participante 6, grupo feminino) “Eu acho que a violência ali, já faz parte do nosso dia-a-dia. Da nossa convivência... é diária. Não tem um dia em que não morre um...” (participante 1, grupo feminino) - [“Queria que vocês dissessem se já testemunharam, viram, algum ato violento; algum de vocês?”] (moderadora) - “Já, milhões.” (participante 5) - “[..] Uns dois meses antes da guerra, um traficante pegou um cara que estava bêbado, em vez de ele entrar na casa da esposa dele, ele entrou na casa da vizinha. Aí a vizinha chamou o traficante. O cara levou ele no meio da rua, aí ele não quis ir, aí o cara pegou uma perna de três, quebrou aquela madeira na cabeça dele, partiu a cabeça dele no meio na frente de todo mundo.” (participante 4, grupo masculino) Em ocasiões, os participantes reconhecem explicitamente o trauma decorrente dessa exposição constante a níveis de violência tão intensos. Mas mesmo quando não existe esse reconhecimento, não se pode duvidar do impacto psicológico e social dessas experiências. “Primeira vez que eu presenciei uma violência, assim do tráfico, da polícia, eu tinha mais ou menos 7 anos. Quando eu presenciei, eu vi a morte, um policial matou um traficante na minha frente. Então eu fiquei traumatizado com aquilo e daí em diante em fiquei com pavor de arma. Meu pai tinha arma em casa, e eu pedi pelo amor de Deus para ele jogar aquilo fora, e ele deu um sumiço. Isso me afeta muito, porque meu sonho é sair da Rocinha. Com toda a segurança que passa, a galera gostar e tal, eu não quero criar meu filho aqui[...]O que me afeta é o nervosismo, a ânsia que a violência provoca. Quando eu vejo um policial ou um bandido, qualquer um, por mais que seja próximo de mim, vem aquela imagem, aquela fotografia, e eu acabo ficando nervoso. Já é psicológico isso.” (participante 3, grupo masculino) 35 A sensação dos jovens é ainda mais dramática porque ao nível de violência imperante em comunidades desse tipo se superpõem agora as conseqüências da “guerra” em que a Rocinha está imersa desde abril. Repetidas comparações entre “antes” e “depois”, sempre lamentando o rumo que as coisas tomaram, aparecem nos discursos. “Porque antes de acontecer isso tudo que tem acontecido, a Rocinha talvez seja um dos melhores lugares do Rio de Janeiro para se morar. Porque você poderia entrar e sair a qualquer hora que você quisesse. Se você tivesse na sua cama, 3 horas da manhã você falasse: ‘ah, vou lá em baixo comer um churrasquinho.’ Você poderia descer o morro inteiro e vim aqui no Boiadeiro comprar um churrasquinho e subir de volta que nada ia te acontecer. Hoje em dia se a pessoa acorda lá 8 horas da noite, fala: ‘vou lá em baixo comprar um hambúrguer’. Olha pela janela, vê as ruas todas vazias, fala: ‘ih, não vou não, a rua está muito calma, então a polícia deve estar por aí’. Todo mundo fica acuado, com medo.” (participante 5, grupo masculino) A restrição da mobilidade parece ser o efeito mais imediato e mais geral dos episódios dos últimos meses. A Rocinha perdeu o clima de relativa tranqüilidade que tinha em comparação com outras comunidades. Os horários em que as pessoas podem entrar
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