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Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 1 Curso Online de Filosofia OLAVO DE CARVALHO Resumos de Aulas Vol. IVol. IVol. IVol. I Elaboração: Mário Chainho ÍndiceÍndiceÍndiceÍndice Pag.Pag.Pag.Pag. Aula 01 – 14/03/2009 2 Aula 02 – 21/03/2009 9 Aula 03 – 04/04/2009 15 Aula 04 – 18/04/2009 20 Aula 05 – 25/04/2009 28 Notas:Notas:Notas:Notas: 1) Este material é para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes devem sempre recorrer às gravações e transcrições das aulas, como fontes primárias, para limitar a propagação dos erros involuntários aqui contidos e colmatar as lacunas. 2) Estes resumos são um primeiro esforço de apropriação do conteúdo das aulas. É sobretudo um trabalho de compactação, edição e montagem que visa ultrapassar dificuldades de entendimento através da criação de foco. Isso originou divisões e catalogações artificiais, largamente discutíveis, que não ocorrem nas aulas, onde os temas se vão encadeando e permutando de forma quase imperceptível. Não há uma tentativa de fazer uma reexposição de tudo “com palavra minhas” e muitas das frases aqui presentes são quase indistintas das utilizadas nas aulas pelo professor Olavo de Carvalho. Em termos gerais, a sequência dos resumos segue a das aulas, mas ocorre com frequência a junção de material que estava na origem disperso e, por vezes, a separação do que antes estava junto. 3) Os resumos foram escritos em português de Portugal, com as limitações inerentes a uma ainda deficiente capacidade expressiva. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 2 Aula 01 Aula 01 Aula 01 Aula 01 –––– 14/03/2009 Sinopse:Sinopse:Sinopse:Sinopse: Este curso deve ser uma oportunidade para a formação de verdadeiras amizades, baseadas na comunidade de valores e objectivos. No Exercício do Necrológio iremos conceber o nosso “eu ideal”, que será a imagem que nos irá orientar ao longo da vida e a base de construção do nosso juiz interior. O juiz interior é a parte mais elevada em nós, a única qualificada para falar com o observador omnisciente, que é uma noção fundamental não só em religião mas em toda a filosofia, pois esta tem no seu cerne uma actividade confessional. O objectivo da filosofia não é aprender a pensar mas obter conhecimento que nos possa orientar. Desde Sócrates que se busca conhecimento que é ao mesmo tempo autoconhecimento e conhecimento científico do mais alto nível, e o ambiente propício para desenvolver essa tradição é o clube de aficionados. A técnica filosófica reside na conversão de conceitos gerais em experiência existencial efectiva e vice-versa. Só valem as ideias dos náufragos, segundo Ortega y Gasset, o que nos dá uma imagem da seriedade pretendida na filosofia. Sem uma adequada capacidade expressiva o conhecimento torna-se impossível, pois nunca será possível transpor de forma adequada a experiência para conceitos sobre os quais podemos raciocinar. No início da aprendizagem a ênfase será colocada na formação literária, e começamos com o estudo da Gramática Latina, de Napoleão Mendes de Almeida, que nos dará, para além de conhecimentos de latim, uma compreensão das relações entre a estrutura gramatical e a estrutura lógica na língua portuguesa. A formação de verdadeiras amizadesA formação de verdadeiras amizadesA formação de verdadeiras amizadesA formação de verdadeiras amizades Para S. Tomás de Aquino, o nosso amigo é aquele que quer e rejeita as mesmas coisas que nós. Só através da amizade é possível a existência da sociedade política, segundo Aristóteles, pois só assim é possível a formação de grupos unidos pela comunidade de objectivos e valores. A amizade é também um dos pilares sobre os quais se constitui a personalidade. Sem os amigos adequados estaremos isolados perante grupos hostis que nos irão enfraquecer bastante ao longo do tempo pela incompreensão, marginalização e julgamentos aviltantes. Esses grupos vendem a sua amizade em troca da nossa corrupção, do abandono dos nossos valores, em suma, em troca da nossa desistência em sermos o que somos. Este curso deve ser uma oportunidade para a formação de verdadeiras amizades, formadas na comunidade de objectivos vitais e valores; amar e odiar as mesmas coisas. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 3 Exercício do NecrológioExercício do NecrológioExercício do NecrológioExercício do Necrológio Neste exercício vamos imaginar que um nosso amigo, após a nossa morte, escreve a um terceiro uma carta a nosso respeito. Vamos supor que realizamos as nossas aspirações mais elevadas em temos humanos, não sociais. Esta imagem ideal da nossa vida altera-se ao longo dos tempos, vai sendo aprofundada, sofre correcções mas sobretudo amputações. Sem a imagem deste eu ideal para orientar a nossa vida, vamos permitir ser julgados por outras instâncias, por medos, preconceitos, pelo falatório do grupo de referência incorporado em nós pela audição contínua. A imagem do eu ideal afasta-nos do estado de dispersão geral; de todas as vozes que nos falam apenas uma pode nos julgar, corrigir e orientar, e é essa mesma voz a única capacitada para realizar a confissão. Começamos assim por ter uma noção prática da filosofia, entendida como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência. A filosofia praticada por um clube de aficionadosA filosofia praticada por um clube de aficionadosA filosofia praticada por um clube de aficionadosA filosofia praticada por um clube de aficionados Este curso é inspirado na pessoa de Sócrates, naquilo que um exemplo tem de significativo e essencial para nós hoje. A filosofia como actividade distintiva começou com Sócrates e nasceu como filosofia política, uma meditação e análise crítica não só da sociedade em geral mas da própria situação social de Sócrates e dos seus interlocutores, pois eles não eram observadores externos da sociedade mas participantes. Na tradição socrática todo o conhecimento deve ser auto-conhecimento e, ao mesmo tempo, conhecimento científico do mais alto grau. O ambiente propício para a realização da filosofia assim estabelecida é o clube de aficionados, como aconteceu nos casos de Sócrates, Platão e Aristóteles, no início da universidade e agora no Curso Online de Filosofia. No seu início a universidade deu um grande impulso ao progresso da técnica filosófica mas, com o passar do tempo, as exigências internas e as impostas pela sociedade fizeram a instituição académica seguir directrizes contrárias ao espírito da filosofia. A filosofia académica passou a ter um campo de actuação delimitado a partir de fora, deixou de fazer um exame crítico das condições originárias, o que constitui um retrocesso em relação a Sócrates. O objectivo da filosofiaO objectivo da filosofiaO objectivo da filosofiaO objectivo da filosofia Nos Tópicos Aristóteles mostra que o objectivo do pensamento é provocar a intuição, ou seja, a percepção directa. Na dialéctica as várias ideias confrontam-se até se formar uma massa crítica e, num dado momento, veremos as coisas tal como elas são. O objectivo da filosofia é o conhecimento, de preferência o conhecimento materializado numa evidência imediata, que é preferível a uma certeza lógica. Aprender a pensar, ao contrário da opinião comum, não é o Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 4 objectivo da filosofia, pois o raciocínio lógico é apenas um dos instrumentos para conhecer, mas até pode atrapalhar se não for domado. O conhecimento que obtemos em filosofia é para a nossa própria orientação e para descobrirmos quem somos. Tem que ser conhecimento que sirva para algo nas horas aflitivas. Aprender é saberalgo que ou outros não sabem e que até podem nem querer saber. Além de que podemos ser incapazes de exprimir esse conhecimento. Mas o importante é que estaremos despertos e permanecendo algum tempo nessa prática obteremos a deliciosa sensação de realidade. A técnica filosóficaA técnica filosóficaA técnica filosóficaA técnica filosófica e o observador omnisciente e o observador omnisciente e o observador omnisciente e o observador omnisciente A técnica filosófica consiste na conversão de conceitos gerais em experiência existencial efectiva e vice-versa. Sem dominar esta técnica, quando estamos no mundo dos conceitos apenas raciocinamos sobre coisas que não existem e, por outro lado, nada podemos entender relativo ao mundo da experiência, pois perdeu-se a relação entre a estrutura conceptual e a experiência. Desde Sócrates que se busca o conhecimento para além do mero conteúdo da consciência mediante a pergunta sincera de nós para nós mesmos, o que pressupõe um observador omnisciente ao qual confrontamos a experiência individual. A filosofia académica exclui totalmente a parte da auto-investigação, abstraindo-se assim da pessoa concreta que a realiza. A actividade filosófica passou a ser apenas uma encenação de um papel delimitado pela burocracia, rompendo com a tradição filosófica baseada na identidade entre a auto- consciência e o conhecimento universal e científico. Essa tradição tornou-se evidente em Santo Agostinho, nas Confissões, onde ele percebeu a raiz do conhecimento filosófico no autoconhecimento tomado no sentido da confissão cristã. Agostinho sabia que existia um obstáculo entre ele e as ideias universais da filosofia, o espelho obscuro mencionado por S. Paulo. Esse espelho é a sua própria personalidade, que tem que ser contornada fazendo uma narrativa para um observador omnisciente a partir da sua individualidade concreta, com todas as suas falhas. Agostinho sabe que não pode revelar nada a Deus, está antes a pedir que Deus lhe revele coisas sobre ele mesmo que não estavam na sua consciência mas apenas na realidade. O juiz interiorO juiz interiorO juiz interiorO juiz interior O desenvolvimento de um juiz interior é necessário para a realização da confissão, pois só esta parte mais elevada de nós está qualificada para falar com o observador omnisciente. Contudo, a noção do observador omnisciente é fundamental não só em religião mas em toda a filosofia. A filosofia é a busca de uma capacidade interna para discernir a verdade dentro da Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 5 máxima medida humana, pressupõe por isso um julgamento interno que não pode ser substituído por nenhuma instância externa. O juiz interior caracteriza-se pela consistência, racionalidade, credibilidade, sinceridade e seriedade. A seriedade implica presença na consciência, não algo na periferia que se esquece no dia seguinte. O juiz interior tem que ser a parte mais elevada de nós, aquela que vê todas as outras e pode comparar e pesar os vários factores. Se pensarmos na confissão, a parte que se arrepende é mais elevada que aquela que pecou, que foi seduzida por uma recompensa momentânea e engoliu o resto da consciência. O restauro da integridade da consciência é feito pela parte que se arrepende, que interpreta a norma geral e mede a gravidade da situação para não cair num arrependimento excessivo. Sem o juiz interior não é possível a actividade filosófica, que é a busca da credibilidade máxima na articulação do pensamento com a realidade. Mas mesmo para a absorção da cultura filosófica, se não existir esse juiz as coisas serão absorvidas pelo canal errado. O juiz interior é o alicerce para a construção da personalidade filosófica, que idealmente pretende cumprir o ideal remoto de nos tornarmos sábios. Essa caminhada refaz o percurso desde Sócrates a Aristóteles, começando pelas especulações de ordem moral e política até chegar ao domínio técnico que Aristóteles estabeleceu como padrão. A atitude filosóficaA atitude filosóficaA atitude filosóficaA atitude filosófica A atitude filosófica é a seriedade no conhecimento, o que difere da atitude crítica, onde se quer questionar tudo. A atitude de seriedade pretendida ficou expressa por Ortega y Gasset quando ele disse que só valiam as ideias dos náufragos. Esta imagem ajuda a elucidar o que é para nós superficial e aquilo que realmente tomamos como sério. Se uma investigação da verdade não for ela mesma verdadeira, o que quer que daí se obtenha não terá sentido, mesmo que se obtenha reconhecimento social. O método filosófico é a descoberta da substância experiencial contida nos conceitos. É um trabalho de autoconhecimento e de auto- análise, onde teremos de ir à raiz de experiências que já tivemos há décadas atrás, e por isso transcende o aspecto intelectual, entrando bastante nas esferas moral e psicológica. Uma filosofia despida desta seriedade vai estar cheia de conceitos que serão utilizados como fetiches e restará um verbalismo desenfreado onde ninguém sabe do que se está a falar mas apenas o quê. A atitude filosófica não se compadece com a vaidade intelectual. Qualquer vaidade é a exibição de um certo aspecto nosso que queremos ver reconhecido e valorizado pelos outros. Mas esse aspecto pode não ter qualquer importância em nós e pode até ser a camuflagem de alguma coisa. O interesse pelo conhecimento tem que estar desligado de vantagens secundárias a serem obtidas, e neste curso tanto podemos vir a obter vantagens sociais como grandes desvantagens, nada está prometido. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 6 Autoridade públicaAutoridade públicaAutoridade públicaAutoridade pública Mário Ferreira dos Santos referia o ponto arquimédico como um ponto de credibilidade máxima onde uma verdade se tornava tão patente que não podia ser esquecida por instante. Esta seria a base firme segundo a qual se podia julgar todos os outros conhecimentos, uma busca constante ao longo da história da filosofia. Quando não é possível obter este nível de auto-evidência procura-se, então, a confiabilidade máxima. Mas para Sócrates não bastava o melhor conhecimento que pudesse ser fundamentado em termos racionais, tinha de ser também conhecimento com importância existencial para ele. A autoridade apenas advinha desta síntese inseparável da consciência pessoal com o conteúdo do conhecimento. A opinião geral hodierna reconhece a ciência como fonte de autoridade pública, o que levanta vários problemas. Na ciência moderna as crenças são subscritas apenas a nível profissional, não importando se a conduta privada as contraria. É apenas uma especulação intelectual de segundo nível, que não tem importância existencial efectiva, pretendendo obter validação social mas não tem autoridade intrínseca para julgar outros conhecimentos. Depois, o próprio método científico tem um âmbito limitado e nem sempre funciona, não podendo fornecer uma base irrefutável de julgamento de tudo o resto. A ciência não investiga a realidade concreta mas um seu recorte hipotético, na suposição de nesse cenário existir uma uniformidade interna que se possa exprimir como hipótese científica descritiva. Como depois há um esforço para encontrar essa uniformidade interna, a actividade tem um carácter tautológico; é um jogo de cartas marcadas que nem sempre funciona. O terreno da filosofiaO terreno da filosofiaO terreno da filosofiaO terreno da filosofia As constantes referências a Sócrates, Platão e Aristóteles não visam arrumar discussões mediante argumentos de autoridade. O território da filosofia foi delimitado por eles, que formularam as questões e as hipóteses que depois deram origem a quase todas as investigações filosóficas. Para impugnar algo que eles tenhamdito temos de partir deles novamente. Renunciar a tudo o que eles tenham feito, como Nietzsche tentou fazer, é querer inaugurar uma coisa nova que já não pode ser chamada filosofia. O conhecimento humano O conhecimento humano O conhecimento humano O conhecimento humano e a paralaxe cognitivae a paralaxe cognitivae a paralaxe cognitivae a paralaxe cognitiva Há conhecimentos internos difíceis de transpor para pensamento e quanto maior o esforço para o conseguir mais longe ficamos da intuição original. Este afastamento da experiência original deve-se a uma deficiente capacidade expressiva e para perceber isso é preciso ter noção do processo envolvido na formação do conhecimento. O conhecimento humano Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 7 começa como percepção, depois passa a memória e imaginação e só quando as coisas se consolidam em conceitos verbalizáveis é possível exercer o raciocínio. Esta série de conversões é necessária porque o material dos sentidos não é transportável. Contudo, uma entidade real, com toda a sua estrutura e composição, não pode ser transposta totalmente para um conceito. As conclusões a que se cheguem sobre os conceitos terão de sofrer uma nova série de conversões para poderem ser aplicadas às entidades reais, caso contrário haverá apenas um exercício de puro abstratismo, apagando a experiência. Esta é a situação que ocorre na paralaxe cognitiva, onde é criada uma definição e feito um raciocínio sobre ela acreditando que ainda se está a lidar com o objecto real. Mas o objecto real tem muito mais coisas que as que pode conter uma definição, e esta pode até estar errada. Para evitar o fenómeno da paralaxe cognitiva é necessário desenvolver o senso do concreto e do abstracto, para nunca perder a ligação das frases à realidade. Mas antes disso é necessário aperfeiçoar o domínio da linguagem, porque sem expressar a experiência correctamente ou, pior ainda, trocá-la logo por um nome, tudo daí para a frente será desligado da realidade. O início da educação deve começar pela arte literária porque o conhecimento tem início quando a experiência que temos na memória encontra uma forma mental que pode ser repetida por palavras. Neste curso não se pretende obter propriamente um domínio literário mas sim domínio sobre alguns instrumentos de expressão literários. As três funções da linguagemAs três funções da linguagemAs três funções da linguagemAs três funções da linguagem Segundo Karl Bühler, a linguagem teria três funções: a função nominativa, que significa dar nome às coisas e descrever a realidade; a função expressiva, relativa à expressão de sentimentos e experiências; e a função apelativa, relacionada com a influência que se quer exercer no receptor. Actualmente quase só a terceira função se encontra em uso, as outras são simuladas para obter convencimento. Este decaimento da linguagem é muito grave porque a literatura é a expressão directa e completa do imaginário e nenhuma outra arte a pode substituir e, por isso, se a linguagem decai, tudo o resto será arrastado. Sem o trabalho dos escritores, poetas, romancistas, que fazem uma primeira síntese da experiência para a tornar do domínio público, os conceitos em circulação não veiculam nenhuma experiência real. Hugo von Hofmannsthal salientava a importância da literatura a partir de outro ponto de vista, chamando a atenção de que nada existe na política de um país sem antes ter estado na sua literatura. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 8 Estudo da Gramática LatinaEstudo da Gramática LatinaEstudo da Gramática LatinaEstudo da Gramática Latina Napoleão Mendes de Almeida elaborou uma gramática de latim que é uma obra-prima para a compreensão não só do latim mas do próprio português, ajudando também na aprendizagem de outras línguas. Só é possível compreender uma frase em latim a partir dos seus elementos constitutivos, pelo que a leitura é equivalente à análise sintáctica. Ao estudar o latim pela Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida iremos perceber aos poucos as relações subtis entre a construção material das frases e a sua estrutura lógica subentendida. Isto abre- nos a porta para a própria técnica filosófica, que depois vai pegar na estrutura lógica e vai transpô-la para a estrutura de percepção e desta para a realidade. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 9 Aula 02 Aula 02 Aula 02 Aula 02 –––– 21/03/2009 Sinopse:Sinopse:Sinopse:Sinopse: Nesta aula são feitas várias considerações sobre o Exercício do Necrológio, desde as motivações para a sua realização e devido enquadramento a considerar, até chegar a alguns conselhos práticos. O grosso da aula aborda alguns pré-requisitos à actividade filosófica, entendida como a busca da verdade na realidade. O candidato a filósofo deverá ser uma testemunha fidedigna que conquistou a própria voz e que começa por relatar para si mesma o mundo da sua experiência genuína. Terá de ser iniciado através de um aprendizado artístico, onde enriquecerá o seu imaginário e o seu equipamento expressivo. O poder do símbolo será aludido a propósito de Platão. Considerações sobre o Exercício do NecrológioConsiderações sobre o Exercício do NecrológioConsiderações sobre o Exercício do NecrológioConsiderações sobre o Exercício do Necrológio Uma verdadeira personalidade não pode existir numa vida onde não existe um elemento unificante, onde qualquer sonho acaba sempre por se esfumar por nunca se transformar em projecto. O Exercício do Necrológio visa proporcionar esse elemento unificante. Os elementos dispersantes são também os inimigos da alma: o Mundo, o Diabo e a Carne. O Mundo é a circunstância de Ortega y Gasset. Não existimos num teatro mental concebido por nós mas num mundo partilhado por todos e que não é feito à nossa medida. Dentro desse mundo surgem alguns dos elementos mais corruptores, como o nosso grupo de amigos, os nossos pares, as pessoas que nos atraem e até a nossa família, que vendem a sua afeição a um preço altíssimo. O Diabo e a Carne são elementos que se manifestam internamente, por vezes difíceis de distinguir, que incluem os desejos de prazer, poder e riquezas, mas também, e cada vez mais, a cobardia induzida. Temos também as nossas tendências hereditárias, que Szondi aludia nas figuras dos nossos antepassados que nos exigem a repetição dos seus destinos, em especial quanto piores esses destinos tenham sido. A isto ainda se juntam outras figuras que se incorporaram em nós pela audição contínua e passaram a usar a nossa voz e a mobilizar a nossa vontade. Estes elementos externos e internos, que nos provocam anseios contraditórios, não constituem o que realmente somos mas são o nosso ponto de partida para o qual devemos ganhar consciência de modo a fazer os arranjos necessários. Estamos na situação de um escritor que trabalha com uma nova língua, lutando para tornar suas as palavras para que estas expressem o que ele quer realmente dizer e não veiculem apenas ideias estereotipadas. Fazer com que o factor unificante prevaleça sobre o factor dispersante passa por, na linha de Viktor Frankl, definir um objectivo que tenha real sentido para nós e buscar a sua consecução Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 10 sem contar apenas com circunstâncias favoráveis e integrando as desfavoráveis. Acabaremos, assim, por realizar a reabsorção da circunstância que Ortega y Gasset dizia ser o destino concreto do homem. Para a realização do exercício não é necessário saber o que queremos fazer na vida, o próprio génio não tem profissão definida. A nossa vocação pode até passar por estar à disposição, ou pode ser uma vida pobre em realizações externas e concentrada em realizaçõesinteriores. O importante é imaginar que realizamos o melhor de nós, algo louvável e que mereça ser contado. A realização do exercício implica alguns dotes de romancista. Vamos conceber um eu ideal sem começar logo a pensar que será impossível atingi-lo, temos de imaginar que sim, mas temos de ser sinceros, aquilo tem de corresponder à nossa individualidade e, se não soubermos bem para onde apontar, podemos começar logo por excluir tudo aquilo que não queremos ser. Outras coisas que podem dificultar a realização do exercício são, por um lado, a idolatria do prazer, mas também a pressão que a sociedade coloca sobre nós para desvalorizarmos a realização da pessoa humana. Mas o exercício é apenas o início do caminho, não só não tem de estar na forma definitiva como deve ser refeito muitas vezes. Aquilo que queremos ser agora pode não ser a nossa verdadeira vocação mas é a única pista que temos e ter vindo parar ao Curso Online de Filosofia já terá algo a ver com a nossa vocação. Não devemos ter a pretensão de querer cultivar todas as virtudes, algo inacessível ao ser humano, mas apenas algumas e depois estas irradiarão para outras. Podemos até descobrir, ao realizar o exercício, que as nossas aspirações são motivadas por vaidade, mas é só a partir desta sinceridade que podemos aspirar verdadeiramente a um estágio mais elevado, onde faremos as nossas escolhas face à ideia da morte. Aquilo que queremos ser deve ter validade para além da morte. Existe ainda um exercício complementar a este, que ficará para mais tarde, e que consiste em aceitar tudo o que nos sucede. Enquadra-se dentro da moral da investigação da verdade e obriga-nos a colocar a realidade acima dos nossos desejos pois só assim saberemos distinguir a realidade dos acrescentos que lhe colocamos em cima. A dificuldade em praticar filosofia na instituição académicaA dificuldade em praticar filosofia na instituição académicaA dificuldade em praticar filosofia na instituição académicaA dificuldade em praticar filosofia na instituição académica A essência da filosofia ocorre na consciência do indivíduo num trabalho de apropriação de si mesmo como portador de conhecimento, onde não é possível consultar uma entidade externa. A filosofia é uma tradição e uma prática pela qual essa tradição é continuamente recuperada, restaurada e assim adquire continuidade ao longo dos tempos. O que o aluno tem de fazer é inserir-se nessa tradição e não procurar apenas obter conhecimentos, um trabalho inevitável mas não representando mais que 10% do total. As universidades, com a estabilização de rotinas burocráticas, prestam-se ao cumprimento de obrigações Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 11 regulamentares e mesmo que estas sejam do mais alto nível e transmitam o legado acumulado, não se inserem naquilo que é pretendido na filosofia. Apenas em alguns períodos a instituição académica beneficiou a filosofia, como no próprio aparecimento da universidade, servindo no mais das vezes para a sufocar. O testemunho fidedigno sufocado num universo de linguagem viciadaO testemunho fidedigno sufocado num universo de linguagem viciadaO testemunho fidedigno sufocado num universo de linguagem viciadaO testemunho fidedigno sufocado num universo de linguagem viciada Um segundo pré-requisito da filosofia, depois do adestramento da linguagem, passa por nos tornarmos testemunhas fidedignas. O conhecimento depende desse testemunho, mesmo no caso da ciência, onde as experiências têm, no mínimo, de ser observadas por alguém que depois as irá relatar. Ninguém pode refazer todas as experiências mas apenas um número ínfimo. Maior importância ganha o testemunho em disciplinas onde nada pode ser repetido, como na História. O testemunho individual não é subjectivo por natureza, pois subjectivo é o que depende do arbítrio individual. Há certos dados que estão objectivamente em nós e só nós sabemos. Sem o testemunho fidedigno o universo da filosofia fica fechado para nós. Mas o testemunho autêntico torna-se difícil de obter num contexto onde a linguagem está viciada, onde a concentração dos mídia serviu para veicular nas palavras o seu universo de crenças, ideias e percepções. As palavras que usamos e as frases feitas, que são mais de metade da nossa linguagem, são de domínio público e têm os seus significados próprios associados, não sendo adequadas ao que queremos exprimir. A tA tA tA tensão entre a experiência genuína e os análogos culturaisensão entre a experiência genuína e os análogos culturaisensão entre a experiência genuína e os análogos culturaisensão entre a experiência genuína e os análogos culturais Um terceiro preliminar passa por averiguar se os termos da discussão filosófica estão fora do eixo da situação real. Ocorrendo isto, a investigação levará a conclusões erradas ou a uma série de perguntas sem fim que só pode ser terminada por decisão arbitrária. Apenas conseguimos pensar sobre conceitos extraídos a partir de imagens que se consolidaram na memória, segundo Aristóteles. Da passagem da experiência sensorial, individual, para a retenção na memória já existe a intervenção de um elemento externo de ordem colectiva. As imagens fornecidas pela cultura ajudam a reter os elementos dos dados sensoriais, mas também introduzem uma interpretação. Vai existir uma tensão entre a experiência directa e os análogos culturais que ajudam a exprimir a primeira. Nem sempre esses análogos são adequados, mas eles têm uma força enorme, podendo asfixiar a nossa experiência originária e o que permanecerá na nossa memória será apenas aquilo que esses análogos culturais permitirem. A ampliação do imaginário torna-se fundamental para ter um conjunto de análogos culturais, que se podem combinar entre si, grande o suficiente para se aproximar o mais possível das experiências reais. Na literatura brasileira predominam idiotas e personagens impotentes face à situação e, face a esta pobreza do imaginário, certas qualidades Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 12 humanas passam a ser inverosímeis e deixam de ser colocadas em prática. Fica assim muito mal preenchida a escala de Aristóteles e Northrop Fried que gradua as personagens consoante o seu poder, onde, para além das personagens abaixo da situação havia também Deus, personagens com poderes divinos, personagens sem poderes divinos mas de altíssima qualidade e as pessoas de poder comum. Aristóteles dizia que aquelas coisas eram contadas por serem possíveis. Na passagem para a expressão verbal usamos palavras, que também são elementos culturais consolidados. Torna-se fundamental encontrar uma linguagem própria que possa exprimir o que realmente queremos dizer e não apenas os estereótipos da cultura dominante. Na origem da actividade filosófica existe uma actividade confessional, a actividade da testemunha que relata para si mesma de maneira fiel o mundo inteiro da experiência. Esta experiência pode ser difícil ou impossível de expressar, porém é o material genuíno que temos e que nos fornece os poucos elementos de certeza que possuímos. É daqui que percebemos claramente a diferença entre observar, receber uma informação e criar uma informação. Se conseguirmos transpor a experiência genuína, sem a desvirtuar, para um produto que possa ser expresso na linguagem colectiva, então estaremos a realizar a função do escritor, que não é obrigação do filósofo mas este terá de fazer algo disto pois é parte essencial da actividade filosófica. Não é possível raciocinar sobre a realidade a partir dos dados brutos, indizíveis, nem apenas sobre os elementos simbólicos fornecidos pela cultura de massas, altamente dizíveis, que criam a perigosa ilusão de estarem a falar da realidade por terem com esta uma relação analógica. Quem apenasse exprime através destes pobres análogos culturais acabará por acreditar que não existe realidade, pois nunca foi uma testemunha que teve a experiência do conhecimento genuíno por ela mesma descoberto, só sabe por ouvir falar. Esta experiência genuína é algo muito mais modesto do que a presença total de que falava Louis Lavelle, a experiência básica do ser, mas só podemos obter a segunda se já tivermos a primeira consolidada. A busca da verdade na reA busca da verdade na reA busca da verdade na reA busca da verdade na realidade alidade alidade alidade O conhecimento começa e é recuperado por aquelas pessoas raras que não aprenderam com ninguém. Para as restantes apenas é possível aprender filosofia na presença de um filósofo que mostra como se faz. No início da formação o centro pedagógico é a presença do próprio professor, que passará muitos elementos indizíveis, questões de estilo, indo depois o aluno ganhando autonomia. O conhecimento que o filósofo irá instigar nos alunos não passa pela obtenção de sentenças genéricas, como saber se Deus existe, pois coisas como essas não são verdades mas crenças. A filosofia começou precisamente quando as crenças já não bastavam e as pessoas queriam saber como as coisas eram mesmo. A verdade é o que pode ser dito e confirmado pela experiência, ela reside na realidade e não em sentenças gerais. O objectivo da Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 13 filosofia é descobrir a verdade na realidade, partindo da experiência genuína e raciocinando sobre ela com o auxílio dos elementos culturais absorvidos de forma a nos servirem. Se não tivermos este cuidado em lidar com os elementos culturais, a acção inverte-se e seremos nós a ser absorvidos por eles, tornar-nos-emos repetidores de frases feitas nas quais, por cruel ironia, nos iremos reconhecer. Na época em que vivemos a verdade e a objectividade são procuradas apenas nas coisas que todos podem verificar ao mesmo tempo. Mas algo só é passível de ser verificado por todos mediante via lógica, não por experiência genuína. A lógica lida com o mundo limitado das possibilidades, não pode abarcar tudo o que o mundo contém. A lógica torna-se perigosa se lhe dermos primazia e abandonarmos as experiências que não são à sua medida. Devemos ver a lógica como uma ferramenta de processar os materiais que terão de ser apreendidos, em primeiro lugar, numa aprendizagem artística. Quando pedimos a alguém para dizer como chegou a determinada ideia, o mais frequente é a pessoa começar a montar um raciocínio lógico na hora, algo automático e muito mais fácil de fazer do que recorrer à memória. Isto é uma fuga à realidade e por isso a filosofia não pode servir para aprender a pensar. O seu objectivo é conhecer a realidade. A verdade reside na realidade e representa o seu conteúdo afirmativo, mas a realidade tem muitos mais aspectos do que a verdade. A literatura como moeda de troA literatura como moeda de troA literatura como moeda de troA literatura como moeda de troca e como meio de conquista da própria vozca e como meio de conquista da própria vozca e como meio de conquista da própria vozca e como meio de conquista da própria voz A boa literatura funciona como moeda de troca entre as pessoas, permitindo um relacionamento verdadeiramente humano através do intercâmbio de experiências internas e externas. Sem verdadeira literatura a situação é análoga à de uma sociedade sem moeda, onde a economia não tem qualquer eficiência. O caso presente não é o da ausência de moeda mas da má qualidade da moeda existente, isto é, o que está em circulação são símbolos que não veiculam a experiência real mas a encobrem. É a situação análoga à da inflação, onde o dinheiro vale pouco porque não tem bens para garanti-lo. A primeira coisa a fazer para restaurar a situação é absorver e actualizar a boa literatura do passado, começando pelos autores de língua portuguesa. Isto deve ser feito com um interesse humano e documental e não literário. Queremos conhecer a língua na qual as situações humanas são expressas mas também as próprias personagens e para isso teremos de nos abrir mais tarde para a literatura estrangeira. Apenas se tivermos a capacidade de imaginarmos personagens podemos compreender as pessoas reais. É preciso estar prevenido para a absorção de elementos linguísticos de outras línguas, especialmente aqueles provindos do inglês, que podem dar origem a uma imitação directa de efeito pavoroso, originando a perda da musicalidade do idioma, um dos seus principais elementos expressivos. Isto é contraproducente com o objectivo de expressar a experiência Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 14 real por que o próprio acto de escrever já encobre a experiência real de estar falando. Primeiro há que recuperar as influências das línguas latinas com estruturas mais próximas à do português. O equipamento linguístico terá de ser aperfeiçoado até deixar de constituir um problema e uma vez conquistada a própria voz podemos exercer concentração directa no assunto que temos em mãos. Os objectivos secundários da linguagem, como obter simpatia ou compensar o desprezo por nós mesmos, têm que ser removidos da discussão filosófica. Isto também terá um efeito terapêutico sobre a nossa vida, porque agora sabemos quem somos e também sabemos que realmente sabemos algo, mesmo se não for possível provar isso para alguém. Não será a obtenção de uma voz própria que nos tornará incompreensíveis para os outros mas o conhecimento obtido. Subir na escala de consciência implica necessariamente tornarmo-nos incompreensíveis para os outros. Ninguém foi mais incompreendido que Cristo. O poder do símboloO poder do símboloO poder do símboloO poder do símbolo A ideia da reminiscência em Platão é paradoxal pois implicaria uma sequência infinita de reminiscências para poder funcionar. Contudo, esta ideia em Platão não é uma doutrina, é uma figura de linguagem, um símbolo poético. Não nos chegou o ensinamento técnico de Platão, destinado aos alunos mais avançados, mas apenas o seu material poético, que é a porta de entrada onde nada é muito preciso. Em vez de doutrina existem imagens, símbolos a serem compreendidos. Platão deve ser lido ficando aberto à sugestividade da linguagem, sem querer tirar conclusões filosóficas porque elas não estão lá, estão no segundo andar, nas chamadas leis não escritas. Sócrates vai discutindo as coisas, mostrando que as opiniões estão erradas e quando perguntam qual é a opinião dele, ele conta um mito, não dá opinião nenhuma, ou seja, ele sugere. O símbolo é uma matriz de ligações (Susanne Langer). A grande vantagem de ler Platão está nos símbolos que ele fornece e proliferam em centenas de intuições. O símbolo tem uma função hormonal na inteligência e as eventuais contradições estão montadas de maneira a abrir a inteligência para outras percepções, não estão fechando conclusões. É neste sentido que Platão nos alimenta de inspiração para o resto da vida. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 15 Aula 03 Aula 03 Aula 03 Aula 03 –––– 04/04/2009 Sinopse: Sinopse: Sinopse: Sinopse: Um dos grandes problemas da moralidade reside na transposição das normas e valores universais para as situações concretas. Sem este problema resolvido corremos o risco de nos tornarmos fundamentalistas, na acepção de Eric Voëgelin, e passarmos a acreditar em frases independentemente do que queiram dizer. O Exercício do Testemunho, baseado num texto de Louis Lavelle, tendo isto em mente, pretende criar as condições na nossa vida concreta para mantermos a fidelidade à recordação do eu ideal delineado no Exercício do Necrológio. A questão da honestidade intelectual coloca-se, acima de tudo, no momento da formulaçãodo testemunho individual e não podemos esperar que o escrutínio dos pares corrija a falta de consciência moral. Essa mesma honestidade deve ser fortalecida pelo voto de abstinência em matéria de opinião, onde nos iremos libertar aos poucos da necessidade de aprovação e nos iremos preparar para formular uma opinião com suficiente experiência pessoal e cultural associada. A transmissão de conhecimento em filosofia implica um longo percurso para o qual devemos ganhar consciência e adestramento. O problema da moralidade e a intromissão do fundamentalismoO problema da moralidade e a intromissão do fundamentalismoO problema da moralidade e a intromissão do fundamentalismoO problema da moralidade e a intromissão do fundamentalismo Toda a regra moral é genérica, universal, e toda a situação humana é concreta e particular, assim enunciou S. Tomás de Aquino um dos principais problemas da moralidade. Fazer a transposição da situação concreta para o sistema geral de normas e valores implica uma correcta categorização e classificação, onde as possibilidades de erro são muitas. O Exercício do Necrológio pode ajudar neste processo, pois a ideia de quem queremos ser irá também nos dar um critério de moralidade que nos ajudará a julgar os próprios actos. O eu ideal tem que ser portador de virtudes reconhecidas por outros, logo universais, mas concretizáveis de alguma forma por nós mesmos, caso contrário seria sempre um ideal tão longínquo que nem tentaríamos colocá-lo em prática. O próprio exercício é uma forma de medirmos a distância a que nos encontramos desse ideal. Sem critérios de moralidade que nos obriguem a retroagir os pensamentos de volta à realidade caímos o risco de nos tornarmos fundamentalistas, na acepção de Eric Voëgelin. Ele definia um fundamentalista como alguém que acredita em frases independentemente do que queiram dizer. Os fundamentalistas vêm certas palavras como símbolos queridos, fetiches que defenderiam contra qualquer coisa. Um exemplo de fundamentalismo é a utilização do conceito de “democracia integral”, pois a democracia é por natureza um sistema de proporcionalidade entre poderes. É um conceito que não só não é realizável na prática como é contraditório consigo mesmo, não corresponde a nada no plano conceptual-lógico. Mas Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 16 isso não impede um fundamentalista de tirar conclusões sobre a “democracia integral”, ter sentimentos por ela e mesmo usá-la como critério de julgamento. Para o fundamentalista é irrelevante que as suas palavras nada signifiquem no mundo exterior, porque elas representam qualidades que ele atribui a si mesmo, além de serem emblemas de troca a usar com outros fundamentalistas que os identificam como decentes e respeitáveis, ao passo que outras frases classificarão os seus adversários como malignos e perversos. Mas até os 10 mandamentos podem tornar-se fetiches para um fundamentalista quando não é feito o exercício de perceber o que significam os mandamentos na experiência real. Outro exemplo de fundamentalismo é o do professor de Direito que disse que “extrair o sentido de um texto é o mesmo que extrair o sentido de uma garrafa, o leitor antes atribui sentido ao texto”. Foi uma frase a que ele se apegou sem perder um minuto para examinar o sentido, pois bastaria pensar que as próprias garrafas que ele usa têm de ter um sentido ou ele não saberia que uso lhes dar. E os seus alunos deviam logo ter perguntado se ele pretendia que eles captassem algum sentido no que ele tinha dito ou se deviam antes atribuir um sentido, pois a fala dele não deve ser assim tão privilegiada para ser a única a vir com sentido. A partir dos desacertos que podem existir na comunicação alguém deduziu que está sempre tudo errado, que apenas existe a projecção de sentido, mas se assim fosse o próprio indivíduo nem saberia o que projectou, pois quando fosse analisar a sua própria projecção precisaria de fazer outra em cima, o que levaria a uma série infinita. A honestidade intelectual resolvida no seio do testA honestidade intelectual resolvida no seio do testA honestidade intelectual resolvida no seio do testA honestidade intelectual resolvida no seio do testemunho individualemunho individualemunho individualemunho individual A confiabilidade do testemunho é essencial no conhecimento. No caso da filosofia temos de pensar nos seus efeitos a longo prazo e nada provoca danos tão monstruosos como os erros e mentiras dos filósofos, pensando apenas nos milhões de mortos do nazismo e do comunismo. Por isso deve existir sempre uma honestidade intelectual proporcional à situação, já que não existe honestidade integral. Se acreditarmos na nossa veracidade instintiva já estamos no caminho do engano, pois o apelo da mentira em nós terá uma proporção semelhante ao da verdade. Temos de nos lembrar sempre que podemos mentir como qualquer outra pessoa e isso já tem um efeito paralisante. Também não podemos achar que o julgamento dos pares irá resolver o problema, eles não garantem, pelo seu número, que o coeficiente de desonestidade diminui. O número nunca pode compensar a falta de consciência moral. Os pares têm como principal interesse nada mais que obter o seu próprio favorecimento, agora ou depois, porque também eles irão sofrer o mesmo julgamento. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 17 Exercício do Testemunho Exercício do Testemunho Exercício do Testemunho Exercício do Testemunho –––– Louis Lavelle Louis Lavelle Louis Lavelle Louis Lavelle Um novo exercício será baseado num excerto do texto “Testemunho”, colocado em apêndice no livro “Da Intimidade Espititual”, de Louis Lavelle, publicado em 1955. Há na vida momentos privilegiados nos quais parece que o universo se ilumina, que nossa vida nos revela sua significação, que nós queremos o destino mesmo que nos coube, como se nós próprios o tivéssemos escolhido. Depois o universo volta a fechar-se: tornamo-nos novamente solitários e miseráveis, já não caminhamos senão tacteando por um caminho obscuro onde tudo se torna obstáculo a nossos passos. A sabedoria consiste em conservar a lembrança desses momentos fugidios, em saber fazê-los reviver, em fazer deles a trama da nossa existência cotidiana e, por assim dizer, a morada habitual do nosso espírito. Este exercício, a realizar diariamente, consiste em reviver os momentos privilegiados, o que remete directamente para o Exercício do Necrológio, que visava induzir a entrada nesse estado. O grande problema da moralidade, a adaptação da regra geral à situação específica, é o propósito do Exercício do Testemunho, onde os nossos actos individuais passam a ser testemunho da realização progressiva do nosso eu ideal pela fidelidade à sua recordação. A forma prática de realizar isto dá-se através da imaginação, que permite que os valores universais sejam transpostos de forma concreta para a nossa pessoa. Louis Lavelle refere os momentos privilegiados, onde o universo revela-nos a sua significação e aceitamos a totalidade da nossa existência. Para aceitarmos a nossa vida temos de a ver no seu conjunto, na sua forma final, daí o artifício do necrológio. Está aqui implícita a noção básica no ser humano de chegar a ser, que está condicionada à noção da morte. Mas a vida que retratamos não pode reflectir valores que apenas tenham sentido para nós, ela tem de alguma forma de se inserir em valores universais. Esta vida só foi relatada em necrológio por ser louvável, e como foi louvável é um exemplo que soa como um conselho. Mas estes são momentos fugidios e no mundo a que chamamos de concreto tacteamos perdidos, somos personagens que foram parar ao romance errado, rodeadas de pessoas que mais do que estarem contra nós,simplesmente não têm forma de conceber o que tentamos fazer. A tentação será evadirmo-nos para a fantasia ou deixarmo-nos corromper, mas qualquer uma das opções é uma traição à nossa vocação. A nossa vida terá de ser concebida como um romance que engloba a nossa situação real mas também as ideias e projectos mais elevados que temos para nós mesmos. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 18 Sem a imaginação apenas podemos repetir os conceitos abstractos como um papagaio. É o intermediário imaginativo que permite relacionar o universal com a situação concreta que estamos vivendo. Existem mesmo sínteses de qualidades nas pessoas inseparáveis a tal ponto que se tornam impossíveis de definir, mas são perfeitamente alcançáveis pela imaginação. A imaginação permite conceber o arquétipo de alguma coisa, que pode ser uma vaca ou D. Quixote, que abrange tudo aquilo que tenha aquelas qualidades de modo parcial, e é a partir daqui que as verdades abstractas ganham substância de realidade. O ser humano não enfrenta apenas uma dificuldade lógica para relacionar o universal com o concreto, por este não vir com as suas categorias e conceitos lógicos correspondentes explicitados. Ele tem o mesmo dilema em termos psicológicos, porque nele mesmo também convivem o universal e o concreto; ele tem a sua vivência particular mas também a sua concepção de um universo dotado de sentido. Será o mundo imaginário, através das analogias que fornece, que poderá resolver esta dupla dificuldade e poderá dar corpo ao princípio estruturante delineado no necrológio. Não podemos chegar ao objectivo apenas através do pensamento lógico. O próprio génio distingue-se não pela inteligência mas pela organização e riqueza da memória, que lhe permite transitar mais facilmente entre analogias. A transmissão do conhecimento em filosofia A transmissão do conhecimento em filosofia A transmissão do conhecimento em filosofia A transmissão do conhecimento em filosofia A técnica filosófica consiste em ligar pensamento a realidade. Neste processo o filósofo irá conseguir transmitir muito pouco do que ele mesmo descobriu. Existe sempre um antes e um depois que não está escrito, que no caso de Platão é muito maior do que aquilo que ficou registado, e tem que ser completado por nós pela imaginação. Por isso é fundamental ter a noção de que em filosofia só existe obra inacabada, é uma prática que está continuamente se refazendo, nunca termina, e basta uma palavra que um filósofo disse 20 anos depois da publicação de um livro para modificar completamente a sua interpretação. Na literatura não é assim, a obra de Shakespeare contém tudo o que é necessário para a compreender e julgar. Ao filósofo não basta ter ideias, é preciso memorizá-las. O processo já é em si criativo, o que para Aristóteles era uma junção entre fantasia criativa com fantasia memorativa, e vai ser a repetição na memória que vai criar fórmulas cada vez mais concretas e duráveis. A experiência culturalmente compartilhada, ainda antes de nos oferecer pontos de referência acessíveis a outros, já nos ajuda no processo memorativo e criativo, pois as nossas recordações são evanescentes. Quando vamos contar as nossas ideias a alguém temos de usar a linguagem que é composta de três aspectos. Existe a sua construção material dada pela gramática (Dante). Dominando esta parte podemos avançar para a construção ideal, dada pela lógica. Mas quem nos vai ler ou ouvir é uma pessoa real que necessita ser convencida, e por isso há ainda uma construção psicológica, elaborada pela retórica. Este processo de construção da Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 19 linguagem é neutro em relação ao seu conteúdo objectivo, mas é através dele que podemos comunicar as nossas intuições que ligam pensamento à realidade. Voto de abstinência em matéria de opiniãoVoto de abstinência em matéria de opiniãoVoto de abstinência em matéria de opiniãoVoto de abstinência em matéria de opinião Uma chamada de atenção repetida alerta-nos para nos privarmos de dar opinião. Devemos logo evitar opiniões inúteis. Se não fomos convocados para dar opinião e se essa opinião não acrescenta nada de válido, não há nenhum motivo para apresentá-la. Devemos também nos abster da opinião que não estiver carregada de experiência pessoal e cultura suficiente. Antes de elaborar uma opinião temos de saber o estado da questão. Sem isto, a opinião será um conjunto de palavras onde projectamos valores naquele momento e no dia seguinte, no parágrafo seguinte ou até na mesma sentença já estamos esquecidos do que estamos falando. O direito de emitir uma opinião corresponde ao direito do outro em não ouvi-la. Repetir os estereótipos que todos falam dá um certo ar de unidade que esconde a fragmentação na mente que está por trás. Isto é loucura em sentido estrito. Muitas vezes estaremos numa situação de conflito em que nem chega a existir divergência de opiniões; a única coisa que podemos fazer será mostrar que o outro não pensou nada, nem chegou a ter uma opinião errada, teve apenas uma reacção emotiva que, por ser similar à dos colegas, vai parecer que significa alguma coisa. No fundo, isso é desejo de aprovação social. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 20 Aula 04 Aula 04 Aula 04 Aula 04 –––– 18/04/2009 Sinopse:Sinopse:Sinopse:Sinopse: Os elementos de dispersão moral diferem hoje bastante dos inimigos da alma inscritos nos sete pecados capitais. Os novos factores de alienação derivam da intromissão do Estado em todas as relações humanas e da pressão dos elementos exteriores, que fazem de nós fracas figuras desejosas de aprovação. O Exercício do Testemunho mostra-nos que a realidade exterior não é nenhum solo duro e a unidade da consciência só pode ser obtida quando assumimos o domínio da nossa biografia. A literatura deve ser usada para fortalecer a consciência ao povoar o nosso imaginário de um conjunto de situações e personagens humanas que nos sirvam para identificar situações reais por analogia. O nosso plano de estudos deve responder ao nosso reportório de ignorância, que tem que ser elaborado fazendo a distinção entre o que ignoramos mas devíamos saber e aquilo que ignoramos porque faz parte do desconhecido próprio da estrutura dos objectos. A paralaxe cognitiva coloca um mundo inventado no lugar do mundo real e teve origem na divisão entre fenómenos primários e secundários estabelecida pelos filósofos da entrada da modernidade. Para conhecermos uma pessoa temos de conhecer a sua biografia. Continuação do Exercício do TestemunhoContinuação do Exercício do TestemunhoContinuação do Exercício do TestemunhoContinuação do Exercício do Testemunho Na continuação da aula anterior, começamos por colocar um excerto mais alargado do texto “Testemunho”, de Louis Lavelle. Há na vida momentos privilegiados nos quais parece que o universo se ilumina, que nossa vida nos revela sua significação, que nós queremos o destino mesmo que nos coube, como se nós próprios o tivéssemos escolhido. Depois o universo volta a fechar-se: tornamo-nos novamente solitários e miseráveis, já não caminhamos senão tacteando por um caminho obscuro onde tudo se torna obstáculo a nossos passos. A sabedoria consiste em conservar a lembrança desses momentos fugidios, em saber fazê-los reviver, em fazer deles a trama da nossa existência cotidiana e, por assim dizer, a morada habitual do nosso espírito. Não há homem que não tenha conhecido tais momentos, mas ele os esquece depressa como um sonho frágil, pois ele se deixa captar, quase imediatamente, por preocupações materiais ou egoístas que ele não consegue ultrapassar porque Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 21ele pensa reencontrar nelas o solo duro e resistente da realidade. Mas aquilo que é próprio de uma grande filosofia é reter e reunir esses momentos privilegiados, mostrar como são janelas abertas para um mundo de luz cujo horizonte é infinito, do qual todas as partes são solidárias e que está sempre oferecido ao nosso pensamento e que, sem jamais dissipar as sombras da caverna, nos ensina a reconhecer em cada uma delas o corpo luminoso do qual ela é a sombra. Com a realização deste exercício iremos perceber o nosso medo de uma existência verdadeiramente humana. A desvalorização e esquecimento dos momentos privilegiados decorrem da covardia que nos fez cair de joelhos diante das pressões exteriores e justificamo- nos retroactivamente dizendo que abandonamos o mundo dos sonhos para pisar o solo duro da realidade. As pressões exteriores estão sempre presentes e aqueles momentos onde existe unidade da consciência, em que não existe hiato entre realidade e idealidade, são fugidios, mas daqui não se pode concluir que a realidade resida nos primeiros. O mundo empírico e as situações externas têm uma natureza transitória, apresentam-se à nossa consciência como um fluxo de ilusões, mas se lhes prestarmos culto entraremos numa posição existencial onde a compreensão da nossa existência e da própria realidade externa torna-se impossível. Uma realidade mais estável e permanente remete necessariamente para a experiência da unidade da consciência. É este poder de perseverar em si mesmo que se subentende na definição de filosofia como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência, mais do que a mera aquisição de conhecimento. É uma prática espiritual onde todos os factos são encarados à luz do que é definitivo e irrevogável, a morte, entendida como o final do ciclo de transformações. Aquilo que foi, foi e aquilo que não foi jamais será. Apenas neste nível pode existir uma verdadeira sinceridade e seriedade, caso contrário seremos presas fácies das expectativas do momento, que não são mais que a materialização da opinião dos outros, os nossos desejos e ilusões, a pressão que vem dos pares, da família, do emprego, de algo sempre transitório. Damos tanta importância a estas coisas em parte por elas serem a negação de tudo o que queremos ser. Traímos o que há de mais próprio, íntimo e verdadeiro em nós por respeito medroso a uma transitoriedade que nos afasta sempre do centro da nossa consciência. Tudo em filosofia tem de ser feito com a ideia da morte em nossa frente, só valem as ideias dos náufragos, como dizia Ortega e Gasset. Mas não é a morte o grande risco que corremos, segundo Georges Bernanos, mas sim morrermos como imbecis. Para quem é religioso pode haver a tentação de substituir a ideia da morte pela atitude face a Deus. Mas ninguém sabe o que é Deus, o nosso diálogo com Ele já está viciado pelos nossos preconceitos e pelas pressões do meio. Antes de falar com Cristo temos de encontrar a nossa própria voz Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 22 pois Ele recusa-se a ouvir outra. Mas todos sabemos algumas coisas definitivas sobre a morte e esse será o nosso ponto de ancoragem. Os factores de dispersão moralOs factores de dispersão moralOs factores de dispersão moralOs factores de dispersão moral Os elementos de dispersão moral, aqueles que fazem esquecer o propósito moral da nossa vida, são muito diferentes daqueles que apareciam nas situações de vida no tempo de Santo Agostinho e na Idade Média, quando os clássicos da educação apontavam como principais inimigos da alma os próprios desejos, em especial os desejos de prazer e de riquezas. Naqueles tempos a criação de riqueza era quase nula e não existiam os inúmeros serviços disponíveis hoje. As doenças eram um flagelo e a insegurança generalizada. Mas estes problemas pesavam sobre o conjunto da comunidade e não opunham o indivíduo a ela. Supomos hoje, pelas conquistas de liberdades e direitos civis reflectidos na história jurídica, que aqueles tempos eram também de grande opressão. Mas o que é jurídico só vale em tribunal e o que decide a conduta no dia-a-dia passa muito mais pela organização económica das sociedades e pela disposição física das cidades. O ambiente de liberdade vivido na antiguidade e Idade Média é para nós inimaginável. A relação com o trabalho era totalmente diferente da existente hoje e muito menos opressiva. A maior parte das pessoas trabalhava em casa ou muito perto de casa, quando hoje é frequente ser necessário mais de uma hora em transportes para chegar ao local de trabalho. Também não existia uma separação rígida entre momentos de trabalho e de lazer. O elemento lúdico e o de trabalho estavam tão indistintamente ligados que não era necessária uma data específica para os lazeres. O cidadão comum também não vivia sobre a pressão dos horários. Apenas para os monges existiam horários rígidos, por razões de disciplina que eles mesmo desejavam e lhes faziam bem. Para as restantes pessoas era tudo altamente flexível, mas hoje uma desobediência ao relógio pode destruir uma vida. As inegáveis vantagens que a sociedade moderna oferece, progressivamente a partir da Revolução Industrial, vieram associadas a um enorme conjunto de pressões e exigências que seriam insuportáveis para um camponês da Idade Média. Nunca como hoje foi tão fácil ser marginalizado e ostracizado e a própria organização física da sociedade contribui para isso. São factores novos que não fazem parte da natureza humana e por isso não estamos automaticamente habilitados a lidar com eles. Os elementos alienantes inscritos nos sete pecados capitais, como a cobiça e a luxúria, pesam hoje muito menos que o próprio medo da cobiça e da luxúria. Um dos principais elementos alienantes nas sociedades modernas é o desejo de aprovação, o que faz de nós pessoas excepcionalmente tímidas que não têm a sinceridade de se conhecer a si mesmas. Os próprios elementos da moral cristã que se incorporaram nas leis do Estado e nos hábitos sociais, ao se desvincularem da sua raiz original, tornaram-se elementos de pressão alienantes Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 23 ao ponto de impedirem uma vivência realmente cristã. O cristianismo intrometeu-se na sociedade antiga para dar uma família aos escravos, para acudir as mulheres repudiadas e proteger as crianças, que podiam ser alvo fácil de pedofilia ou até ser mortas à nascença se indesejadas. Mas passados muitos séculos o Estado chamou a si a supervisão das instituições criadas por inspiração cristã. O Estado passou a mediar todas as relações humanas e todos passaram a estar sobre vigilância constante à espera de um erro para serem punidos. A principal preocupação do Estado moderno é a sua própria manutenção e crescimento. Para isso utiliza a estratégia “dividir para reinar”, coloca todos sobre suspeição mútua pela exploração das pessoas que gostam de se vitimizar e fazer mexericos, e depois oferece a sua protecção. Esta protecção do Estado é um poderoso elemento de alienação. O tema do escritor cristão François Mauriac é mostrar que o maior obstáculo a uma vida cristã é precisamente um meio social construído sob o nome de valores cristãos, que depois foi contaminado pela ideologia burguesa e os valores positivistas. A alma assim sufocada entra muitas vezes em transgressão por desespero, mas a saída da alienação terá de passar por falar com Deus com a própria voz. O nosso discurso interno de acusação e defesa acaba por ser também uma teatralização alienante. Colocamo-nos numa posição do juiz omnisciente que julga as duas partes. Mas quem nos acusa é o diabo e quem nos defende è a nossa vaidade, personificados numa plateia, anónima ou de nossos conhecidos. Nem nós estamos qualificados para sermosjuízes em casa própria, isso cabe o verdadeiro observador omnisciente, nem nenhuma das partes, de acusação e defesa, fala a verdade. Se nos viciarmos neste teatro vamos achar que todas as outras pessoas com quem nos relacionamos também fazem parte dele e ficamos fechados à verdadeira comunicação humana. Uma solução simples, usada há séculos, para terminar com este teatro é simplesmente rezar, o que também serve para pôr fim ao discurso de queixas e recriminações. A restituição da unidade da consciênciaA restituição da unidade da consciênciaA restituição da unidade da consciênciaA restituição da unidade da consciência Se somos oprimidos pela presença dos elementos alienantes, também ficamos angustiados pela sua ausência. Já não sabemos viver sem a pressão dos horários ou sem as cidades que maldizemos ou sem aquelas relações que nos esfrangalham. Os elementos alienantes já foram integrados em nós. Há em nós um advogado que fala em seu favor e contra nós. Muitos querem vencer a sociedade materialmente mas falham porque o que há a vencer é a sociedade em nós, pois o nosso instinto alienante pesa mais que tudo o que venha de fora. Se tivermos a ideia que somos melhores que a sociedade, a ruptura com a sociedade só nos tornará mais falsos e alienados. Pior ainda é exibir uma pose de transgressão por saber que a caricatura do alienado tem sempre uma certa aprovação da sociedade em tempos de contracultura. Isto Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 24 pode até ser recompensado com verbas públicas para recompensar os supostos serviços prestados. Temos um medo enorme das pressões exteriores, mas elas não nos irão destruir, como supomos; o medo deve ser sempre proporcional à ameaça real. Não aceitar as pressões vai nos tornar mais fortes, individualizados e até mais respeitados. Não devemos temer a solidão que vem do afastamento das pessoas que só nos querem puxar para baixo. Nem devemos continuar no jogo recorrendo aos alívios que a sociedade moderna coloca ao nosso dispor, pois estes não resultam para os fins a que nos propomos. Goethe achava que se devia fugir à escravidão da sociedade cumprindo todas as obrigações para com ela. Assim seremos superiores à sociedade e não permitiremos que ela nos derrube, faça de nós uma vítima e nos marginalize. No caso específico das pressões dos colegas, também não as devemos temer, é preferível seguir o conselho de Maquiavel, ser temido em vez de amado, mostrar que sabemos muito mais que eles e os podemos desmascarar a qualquer altura. A noção de que existe uma alma contra a sociedade originou o género romance, definido por autores como Balzac e Walter Scott. A identificação das pessoas com os heróis dos romances, que vivem uma falta de harmonia com a sociedade, só foi possível com numa situação real onde as forças de alienação tentavam demolir a unidade interior e onde a sociedade suscitasse nos indivíduos anseios muito acima dos concretizáveis para a maioria. O problema assim extremado e clarificado pode ser equacionado para uma solução, como fez Louis Lavelle. Ele percebeu onde estava o fulcro do problema e que era a partir dali que tinha de ser resolvido. A unidade da consciência é retomada assumindo o domínio da própria biografia. Passamos a aceitar totalmente o destino que nos coube, que tem um sentido apontado pelos momentos fugidios, dos quais devemos guardar memória, e a nossa oposição deve ir apenas para os elementos alienantes. Precisamos pensar durante muitos anos sobre a nossa vocação, para descobrir onde está a pureza daquilo que queremos ser, pois lidamos com material ambivalente. Os meios que servem para realizar a nossa vocação também podem ser meios de alienação, por isso temos de ser dotados de muita lucidez. Isto já é entrar no caminho da filosofia e sem esta postura os próprios estudos serão uma busca vã de erudição motivada pelo desejo de aprovação. É a nossa força moral que irá graduar a nossa quantidade de estudos, e quando essa força já estiver suficientemente desenvolvida, quando já não tivermos nenhum ponto de apoio na sociedade, nenhum ídolo mesmo que cristão, aí começamos a falar com Deus. A utilização da literaturaA utilização da literaturaA utilização da literaturaA utilização da literatura A consciência vai se apropriar da experiência através dos meios de expressão verbal e só depois pode raciocinar em cima. A literatura fortalece a consciência ao fornecer um dicionário de situações que será usado para reconhecimento de outras situações por analogia. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 25 O escritor, ao tornar a experiência dizível, vai retirá-la dos cofres individuais e transformá-la num bem comum. Proust elucida-nos sobre os mistérios do cair no sono nas páginas inaugurais de Em Busca do Tempo Perdido. Perceberemos também melhor os elementos de alienação da cultura brasileira depois de ter lido O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa, e as obras de Lima Barreto como Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Queremos da literatura aquilo que os escritores conseguiram verbalizar em termos de impressões autênticas. Os estudos literários propriamente ditos podem nos afastar disso, mas têm a sua utilidade para nos ensinar a ler autores antigos, elucidando questões formais e de vocabulário. A literatura do século XX pode nos afastar do caminho da filosofia porque foi perdendo a integridade do eu. Para a filosofia é fundamental essa integridade, pois só assim podemos contar a nossa própria história e falar com a sinceridade mostrada por Santo Agostinho. A dissolução do eu, que se vê em Kafka onde só existem fragmentos, ou em Proust que só lida com estados mentais, vai criar uma consciência psicótica que já não consegue juntar causa e efeito e onde a noção de responsabilidade individual torna-se impossível. Este padrão começou na alta cultura e transferiu-se depois para toda a sociedade. A própria civilização precisa de um referencial mínimo dado pela poesia e pela religião para poder existir. A poesia moderna tornou-se muito hermética e de difícil compreensão por remeter para experiências intelectuais e espirituais muito elaboradas. Mas a poesia usava originalmente toda uma série de recursos sonoros e formas repetíveis para mais facilmente invocar a experiência relatada, pois ela é a expressão mais primária da literatura que tenta exprimir de forma mais directa a experiência. O critério para saber se lemos com qualidade passa simplesmente por averiguar se as obras literárias que estamos lendo nos ajudam a compreender as situações reais da vida. O processo é gradual, só vamos poder fazer de início comparações muito genéricas, da mesma forma que a fala da criança utiliza poucas palavras para muitos significados e só depois parte à conquista do termo próprio. Devemos ir aumentando o nosso vocabulário de situações e personagens humanas, para que este se ajuste cada vez mais às situações concretas, utilizando para isso, em primeiro lugar, as grandes obras, pois estas possuem maior vitalidade e não são cópias de cópias. Para ler bem um livro é necessário ter lido muitos livros, dizia Jorge Luís Borges. A natureza do conhecimentoA natureza do conhecimentoA natureza do conhecimentoA natureza do conhecimento A ideologia científica parte do pressuposto que o estado de desconhecimento é algo provisório e que será futuramente corrigido. Isto é uma recusa em aceitar a estrutura da realidade, uma postura alienada. A realidade tem um coeficiente intrínseco de desconhecimento que não pode ser vencido. Nenhum objecto pode se mostrar a nós em todos os seus aspectos ao mesmo tempo. Por outro lado, a ideia de um conhecimento total aplicada a um ser humano não faz sentido, só seria aplicável a um ser eterno. O ser humanoCurso Online de Filosofia – Resumos de aulas 26 lida naturalmente com o desconhecido na sua vida cotidiana, qualquer pessoa lida com o desconhecido quando conduz um automóvel e não sabe o que está depois da curva. Mas no domínio intelectual muitos acreditam que o desconhecido é um mero acidente a ser vencido. Um indivíduo dominado pela ideologia científica pode acreditar que já conhece tudo a seu respeito ou achar que tudo o que desconhece é irrelevante. Ele até acreditará que pode existir uma concepção científica do cosmos, sendo isso impossível pois todo o conteúdo da ciência não abarca um infinitésimo do cosmos e ela só pode se pronunciar sobre o que conhece. Se queremos nos dedicar seriamente ao conhecimento devemos começar por distinguir dentro do desconhecido aquilo que é fruto da nossa ignorância e aquilo que ignoramos por isso fazer parte da própria estrutura dos objectos. Daqui vai sair o repertório da nossa ignorância, que passa a ser um plano de estudos. Isto foi feito de forma notável por Eric Voëgelin a propósito dos fenómenos de massas. O processo pode ser atrapalhado se não reduzirmos o número de opiniões, que tornam difícil a graduação da confiabilidade dos conhecimentos. As opiniões podem vir de múltiplos lugares, mas a partir do momento em que as expressamos passam a compor a nossa auto-imagem. A origem da Paralaxe CognitivaA origem da Paralaxe CognitivaA origem da Paralaxe CognitivaA origem da Paralaxe Cognitiva Na entrada da modernidade os filósofos começaram a fazer uma separação entre os dados da realidade como primários e secundários. Os primários seriam os que podiam ser medidos, como o peso e o tamanho; os secundários aqueles que dependiam da presença de um observador, como a cor ou o gosto. Não é verdade que só os dados primários possam ser matematizáveis por poderem ser medidos, já que os secundários também podem ser medidos. Além de que as estruturas matemáticas não vão operar sobre os objectos em si mas sobre as próprias medidas. Só Deus pode conhecer a lei de proporcionalidade intrínseca dos objectos (conceito de Mário Ferreira dos Santos), e qualquer ciência faz as medições com vista a responder às próprias perguntas que essa ciência faz, servindo-se de medidas extrínsecas para tal, que também são relativas a um observador humano. Esta série de confusões colocou uma fórmula matemática inventada como realidade primária no lugar do objecto concreto com todo o seu tecido de relações e acidentes. Quando o mundo inventado substitui o mundo da experiência fica consolidada a paralaxe cognitiva. O conhecer uma pessoa em profundidadeO conhecer uma pessoa em profundidadeO conhecer uma pessoa em profundidadeO conhecer uma pessoa em profundidade Um exercício aconselhado consiste em imaginar a vida de pessoas que conhecemos como se fosse um romance. O conhecimento que temos das pessoas é em geral muito superficial, mas para aprofundarmos esse conhecimento será necessário abordar três níveis. O nível elementar é o conhecimento intuitivo que advém dos simples sinais que nos chegam da presença de alguém. Num segundo nível alargamos a nossa visão para abarcar a pessoa no meio onde ela Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 27 vive, com as suas tensões, os seus problemas, a sua situação própria. O terceiro nível, que se enquadra dentro do exercício mencionado, consiste em conhecer a pessoa em termos biográficos. Temos de imaginar a pessoa dentro de um fio de desenvolvimento temporal que já começou há muito tempo e se irá projectar no futuro. Outro exercício, que também implica a utilização da veia de romancista, é fazer um roteiro de um filme a partir de um livro ou, pelo contrário, a partir de um filme elaborar uma narrativa verbal. Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 28 Aula 05 Aula 05 Aula 05 Aula 05 –––– 25/04/2009 Sinopse: Sinopse: Sinopse: Sinopse: Em filosofia a exposição lógica baseia-se em experiências reais para as quais devemos evocar análogos. Por vezes essa experiência está camuflada, como no caso de Descartes ao expor a “dúvida radical”, e se aceitarmos as contradições entramos num jogo de cartas marcadas onde seremos psicologicamente dominados. O filósofo só tem direito de argumentar em nome da realidade. O treino literário serve para compreender as evocações presentes na linguagem filosófica e para criar análogos experienciais. Refutar uma ideia poderá não limitar em nada os seus efeitos sociais. Os nossos modelos de entendimento são dados pelas formas consolidadas na memória. A ignorância faz parte da estrutura humana e o esquecimento persegue-nos sempre. A fé originalmente significava confiança numa pessoa – a presença do Cristo agindo – e não se lhe aplicam as mesmas categorias que a racionalidade. Para desenvolver o senso de realidade não se deve colocar a tónica na sensibilização mas na presença. A realidade deve ser vista apenas como indicadora dela mesma e não devemos querer tirar conclusões antes dos factos se desenrolarem. O fundo de experiência por detrás da exposição lógicaO fundo de experiência por detrás da exposição lógicaO fundo de experiência por detrás da exposição lógicaO fundo de experiência por detrás da exposição lógica Escreve Benedetto Croce na entrada do livro Lógica Como Ciência do Conceito Puro: O pressuposto da actividade lógica são as representações ou intuições. Se o homem não representasse coisa alguma não pensaria, se não fosse espírito fantástico não seria também espírito lógico. Na ficção e na vida a dificuldade é encontrar uma explicação para o sucedido. Na filosofia acontece o oposto, parte-se da explicação mas falta saber ao quê aquela explicação se refere. As coisas expressas na linguagem lógica exprimem apenas o mundo da possibilidade; se isto aconteceu então aquilo também acontecerá, mas não sabemos se isto aconteceu mesmo. Todas as certezas assim obtidas são vazias e uma filosofia trabalhada apenas a este nível pode apenas ser compreendida convencionalmente e não realmente. O raciocínio pode apenas lidar com conceitos verbalizáveis e não com dados puros da experiência, pois estes não são transportáveis. Contudo, foi a partir de experiências humanas que as discussões lógicas tiveram origem, pelo que é tarefa do filósofo retirar o fundo de experiência originário da exposição lógica. Este é um trabalho imaginativo, trata-se de uma transposição da linguagem filosófica para a linguagem poética. Não temos a obrigação de recriar exactamente as Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 29 experiências que motivaram os filósofos, bastam-nos análogos que nos coloquem numa posição de compreensão tal que aquela exposição podia ter sido feita por nós. Isto é 90% do trabalho de leitura. Esse trabalho deve ser feito de início sem julgamentos, sem achar que aquilo é bom ou mau, verdadeiro ou falso. Tentaremos ver a experiência tal como o filósofo a viu, não negaremos esse grau de co-participação e simpatia por receio de sermos influenciados, pois essa influência será parcial e vai diluir-se no meio de outras influências. A própria discussão filosófica tem um confronto dramático por detrás. Para compreender uma filosofia temos de saber contra quem ela se levantou polemicamente, segundo Benedetto Croce. Em consonância, Julian Marías dizia que a fórmula filosófica não era “A=B” mas sim “A não é B mas sim C”. Mais que o confronto de ideias existe um confronto de pessoas que tem que ser reconstituído. Para isso partimos das doutrinas e usamos a experiência literária. O encobrimento da experiência por DescartesO encobrimento da experiência por DescartesO encobrimento da experiência por DescartesO encobrimento da experiência por Descartes Na apostila “Consciência
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